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DA CARTILHA AO E-MAIL E À PEÇA PUBLICITÁRIA: OS PORTADORES DE TEXTO MARCANDO A INCLUSÃO/ EXCLUSÃO DO SUJEITO NA ESCRITA

FROM SCHOOL READERS TO EMAILS TO ADS: TEXTUAL MEDIAS ESTABLISHING THE INCLUSION/EXCLUSION OF SUBJECTS FROM WRITING PRACTICES

DE L’ABÉCÉDAIRE AU COURRIEL ET À LA PIÈCE PUBLICITAIRE: LES PORTEURS DES TEXTES INDIQUANT L’INCLUSION/EXCLUSION DANS L’ÉCRITURE

DE LA CARTILLA AL E-MAIL Y LA PUBLICIDAD: LOS PORTADORES DE TEXTO MARCANDO LA INCLUSIÓN/ EXCLUSIÓN DEL SUJETO EN LA ESCRITA

Resumo

Nesse artigo, visamos discutir como a prática pedagógica de alfabetização está distante das necessidades de leitura e escrita do sujeito, que vive em contato com textos escritos dos mais variados gêneros, que está submetido a um verdadeiro bombardeio de gêneros textuais e que é, o tempo todo, convidado a ler e compreender o que lê. Para isso, recorreremos aos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de ‘linha’ francesa e às teorias do letramento para compreender o modo como a sociedade da informação reclama a familiaridade com vários portadores de texto na mesma medida em que a escola não dá conta de preencher tal demanda, gerando, assim, um furo sobre o qual queremos especular.

Palavras-chave:
discurso; letramento; leitura; escola

Abstract

In that article, we seek to discuss how the pedagogical practices of literacy are distant from the reading and writing needs of the students who live in contact with written texts of the most varied genres, who are submitted to a bombardment of textual genres and who are constantly called upon to read and understand texts. To do so, we base our work on the theoretical presuppositions of French Discourse Analysis and on literacy theories to understand how, on the one hand, information society requires familiarity with several textual medias, while on the other hand the school system is not able to prepare students to this requirement, thus generating a gap we will discuss here.

Keywords:
discourse; literacy; reading; school

Résumé

Dans cet article, on a l’intention de discuter comment la pratique pédagogique de l’alphabétisation se trouve lointaine des besoins de lecture et écriture du sujet, qui vit en contact avec des textes écrits parmi les genres les plus variés, qui est soumis à un vrai bombardement de genres textuels et qui est, pendant tout le temps, invité à lire et à comprendre ce qu’il lit. Pour cela, on a fait appel aux présupposés théoriques de l’Analyse du Discours de ‘ligne’ française et aux théories de la littératie pour comprendre la manière dont la société d’information revendique la familiarité avec plusieurs porteurs de texte dans la même mesure à travers laquelle l’école n’arrive pas à accomplir telle demande, en engendrant ainsi, un trou à propos duquel nous voulons bien réfléchir.

Mots-clés:
discours; littératie; lecture; école

Resumen

En este artículo visamos discutir cómo la práctica pedagógica de alfabetización está lejos de las necesidades de lectura y escrita del sujeto que vive en contacto con textos escritos de distintos géneros, que está bajo a una gran demanda de géneros textuales y que, a todo momento, es invitado a leer y comprender lo que lee. Para eso, usaremos los presupuestos teóricos del Análisis del Discurso de ‘línea’ francesa y las teorías de literacia. Con el objetivo de comprender cómo la sociedad de la información reclama la familiaridad con varios textos a medida que la escuela no alcanza tal demanda, generando, así, un hueco el cual queremos especular.

Palabras-clave:
discurso; literacia; lectura; escuela

1 INTRODUÇÃO

Sabemos que há um discurso que sustenta a relevância e a necessidade da aprendizagem da escrita, tanto para o sujeito participar das práticas sociais perpassadas por ela, quanto para que a sociedade possa desenvolver-se, documentar o seu tempo, criar acervos que possam sobreviver aos rasgos e fissuras do tempo. Podemos dizer que, grosso modo, tal concepção vai ao encontro da teoria da grande divisa (cf. STREET, 1995______. Social literacies: critical approaches to literacy in development, ethnography and education. London: Longman, 1995.), segundo a qual há uma separação radical entre os usos da escrita e da oralidade, privilegiando o código escrito em detrimento dos usos orais. Nessa direção, as escolas têm como objetivo central proporcionar aos alunos a aquisição do código escrito, mesmo que seja em sentido restrito, isto é, como decodificação de letras e palavras isoladas. Não podemos silenciar o fato de que mesmo essa aprendizagem, tão restrita, não está sendo alcançada pela maioria das crianças que ocupam as carteiras escolares.

Por ser assim, o contato com um texto publicitário, na forma de um email, que divulgou a coleção de calçados femininos de verão de uma sofisticada grife, causou-nos inquietação e vontade de escrever este artigo, visando a discutir como a prática pedagógica de alfabetização está distante das necessidades de leitura e escrita do sujeito, que vive em contato com textos escritos dos mais variados gêneros, que está submetido a um verdadeiro bombardeio de gêneros textuais e que é convidado a ler e compreender o que lê. Para isso, recorreremos aos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de linha francesa e às teorias do letramento para refletir sobre o modo como a sociedade da informação reclama familiaridade com vários portadores de texto (toda materialidade que contem texto escrito, por exemplo, uma carta, uma bula de remédio, um talão de cheque) na mesma medida em que a escola não dá conta de preencher tal demanda, gerando, assim, um furo sobre o qual queremos especular.

2 DISCUSSÃO

Segundo Kleiman (1995KLEIMAN, A. (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 1995., p. 20):

Pode-se afirmar que a escola, a mais importante das agências de letramento, preocupa-se, não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização, o processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico), processo geralmente concebido em termos de uma competência individual necessária para o sucesso e promoção na escola.

Com isso, a escola despreza que existem várias práticas sociais da escrita, assim como relações desiguais de poder subjacentes a elas, sendo que estas determinam o acesso ou a interdição do sujeito à leitura, escrita, interpretação, em uma palavra, aos sentidos. Esse é o ponto que nos toca e nos mobiliza a refletir, neste artigo, isto é, buscar compreender como se dá a complexa relação do sujeito com os sentidos por meio do texto escrito. Sabemos que toda relação do sujeito com a linguagem é opaca, nebulosa, passível de equívocos, contradições, ambigüidades, enfim, de furos. Porém, julgamos que com o texto escrito tal relação apresenta-se ainda mais instável, movediça, visto que há entre o sujeito e a linguagem, um código escrito que circula sob várias formas, a saber, texto literário, texto jornalístico, texto científico, texto jurídico, e-mail, panfletos, out-doors, bulas de remédio, placas de trânsito, manual de instruções, editais, cartas, enfim, há uma multiplicidade de formatos, formas, estruturas, gêneros, materialidades que sustentam um texto escrito.

Compreender o que significa a materialidade de cada texto, já permite ao leitor criar determinadas expectativas de leitura e interpretação, e este saber extrapola o sentido restrito de alfabetização; todavia, esse saber ainda está aquém daquilo que defendemos ser necessário para que o sujeito possa ler, interpretar e produzir textos, em concordância com a Análise do Discurso. Estamos nos referindo ao interdiscurso (PÊCHEUX, 1999______. Papel da memória. In: ACHARD. P. (Org.). Papel da memória. Tradução de José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999.), à intertextualidade (BAKHTIN, 1997BAKHTIN, M. (VOLOCHINON). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.), à historicidade dos sentidos, à ideologia. Para Fernandes (2005FERNANDES, C. Análise do Discurso - reflexões introdutórias. Goiânia: Trilhas Urbanas, 2005., p. 25):

Se na exterioridade do lingüístico, no social, há posições divergentes que se contrastam, nota-se a coexistência de diferentes discursos concomitantes, isto implica diferenças quanto à inscrição ideológica dos sujeitos e grupos sociais em uma mesma sociedade [...]; de sua voz emanam discursos, cujas existências encontram-se na exterioridade das estruturas lingüísticas enunciadas.

Partindo dessa citação, sustentamos nossa argumentação de que não é suficiente apenas um conhecimento lingüístico para que a leitura, a interpretação e a produção de texto sejam acessíveis ao sujeito, pois, em cada situação de enunciação, existem outras relações que podem ser (e são) estabelecidas entre o sujeito e o sentido, que não pertencem tão somente à ordem da língua, mas sim, reclamam a compreensão de sua exterioridade. Portanto, o fato de a escola vislumbrar uma única maneira possível de letramento, como alfabetização, está distanciando cada vez mais os alunos das múltiplas práticas sociais da escrita. Indo numa direção oposta a esse modelo autônomo de letramento, muitos autores foram levados, de acordo com Street (1993STREET, B. Introduction: the new literacy studies. In: ______. (Ed.). Cross-cultural approaches to literacy. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. p. 1-21., p. 7), a

[...] perceber as práticas de letramento como inextricavelmente ligadas às estruturas culturais e de poder na sociedade e reconhecer a variedade de práticas culturais associadas à leitura e à escrita nos diferentes contextos. Evitando a reificação do modelo autônomo, [esses autores] estudaram essas práticas sociais ao invés do letramento-em-si-mesmo por suas relações com outros aspectos da vida social.

Nossa experiência escolar, como aluna e como professora, permite-nos dizer que, para a maioria dos alunos, a escola funciona como o (único) lugar em que o letramento acontece, efetivamente. Diante disso, corroboramos a afirmação de Rojo (2001ROJO, R. Letramento escolar, oralidade e escrita em sala de aula: diferentes modalidades ou gêneros de discurso? In: SIGNORINI, I. (Org.). Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas: Mercado das Letras, 2001. p. 51-74., p. 65):

Dessa perspectiva, a escola é justamente um lugar enunciativo privilegiado para colocar em circulação e em relação as formas discursivas (gêneros) secundárias e públicas, que, por sua vez, põem, em relação diferenciada e complexa, as ditas “modalidades oral e escrita” dos discursos.

No entanto, o que vemos ocorrer, na maioria das escolas, é uma prática pedagógica pautada na paráfrase (PACÍFICO, 2002PACÍFICO, S. M. R. Argumentação e autoria: o silenciamento do dizer. Tese (Doutorado em Lingüística) - FFCLRP, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2002.), na repetição de atividades propostas pelo material didático que privilegia o uso da escrita, das palavras isoladas, das sílabas, das letras que faltam para preencher as lacunas. Ou, por outro lado, temos relatos de professores que se propõem a fazer atividades de leitura e escrita diferenciadas, como, por exemplo, o relato de uma professora que levou um jornal para a sala de aula, o qual trazia uma reportagem sobre a vida do conhecido personagem Zé do Caixão; todavia, uma aluna da sala disse ser prima do personagem e, por isso, sabia que a matéria jornalística era mentirosa. A partir disso, a professora ficou sem saber o que fazer e encerrou a leitura, pois não soube lidar com o não-esperado, com a multiplicidade de sentidos.

Entendemos que se o professor tiver acesso a outras possibilidades de trabalho com a linguagem, ele pode dar início e continuidade a uma atividade como essa por meio do discurso polêmico (ORLANDI, 1996ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 1996.), possibilitando aos alunos posicionarem-se de diferentes modos em relação ao objeto discursivo, defenderem seus pontos de vista sobre aquilo que estava sendo discutido. Em outras palavras, o professor deveria estar preparado para lidar com o diferente, duvidar da transparência da linguagem, principalmente da ilusão de que tudo que está escrito é verdadeiro, em outras palavras, se está escrito, é inquestionável. Dessa forma, o contexto escolar contribuiria para que os alunos aprendessem que a escrita está ligada ao poder e, sendo assim, aqueles que a dominam, criam efeitos de sentidos desejados e silenciam os sentidos que devem permanecer apagados. Contudo, o que circula na escola, segundo Orlandi (1996ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 1996.) é o discurso pedagógico do tipo autoritário, isto é, aquele que legitima um único sentido, impedindo que os interlocutores disputem o objeto discursivo. Isso pode ser observado nas atividades escolares de cópia, de completar as lacunas, de repetição das partes do texto lido, enfim.

Com base nessas considerações, chegamos ao ponto que julgamos relevante, neste artigo: o texto publicitário que simula um e-mail entre amigas (conforme adiante, a análise irá mostrar). O que encontramos no texto em questão é uma linguagem escrita, informal, mais próxima da linguagem oral do que da escrita, posto que apresenta características de um diálogo próprio da conversação, porém, no “formato” de um e-mail com características de um texto publicitário. De início, já temos um sincretismo na materialidade simbólica do texto, que o leitor não pode desconsiderar para exercer seu gesto de interpretação.

Sabemos que todo texto publicitário tem um público alvo; todavia, o que nos interessa como docente é que os alunos saibam ler, interpretar e produzir qualquer tipo de texto, mesmo sem pertencer ao público a que o texto se destina. Tendo, neste caso, o texto publicitário como objeto de análise, constatamos que sua leitura exige que o leitor assuma o que Pacífico (2002PACÍFICO, S. M. R. Argumentação e autoria: o silenciamento do dizer. Tese (Doutorado em Lingüística) - FFCLRP, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2002.) denomina funçãoleitor, ou seja, o leitor que realiza uma leitura sócio-histórica, que tem acesso ao interdiscurso que sustenta sentidos sobre o que é um e-mail; o que é um texto publicitário; quem pode usar determinada grife de calçados; que mulher é essa que pode viajar tanto, falar inglês, ser executiva; que sentidos sobre o feminino são tecidos no século XXI (cf. PACÍFICO; ROMÃO, 2006______; ROMÃO, L. M. S. A memória e o arquivo produzindo sentidos sobre o feminino. Revista Em Questão, Porto Alegre, v. 12, n. 1, p. 73-90, jan./jun. 2006.) quais as relações de poder e de saber que isso implica. Analisar um texto sob estes aspectos tem a ver com grau de letramento e não simplesmente com alfabetização.

Tfouni (1995TFOUNI, L. V. Letramento e alfabetização. São Paulo: Cortez, 1995., 1996, 2001) vem pesquisando questões relativas ao letramento e postulou um continuun, “que, pela própria natureza, opõe-se a uma visão linear e dicotômica, visto que encara as diferenças entre os níveis de letramento como sendo produzidas discursivamente” (TFOUNI, 2001______. A dispersão e a deriva na constituição da autoria e suas implicações para uma teoria do letramento. In: SIGNORINI, I. (Org.). Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas: Mercado das Letras, 2001. p.77-94., p. 79). Isso significa que, para a autora, alfabetização não é sinônimo de letramento, mas faz parte deste processo que é sócio-histórico e mais abrangente. Sendo assim, alfabetizado não significa letrado; tampouco, analfabeto significa iletrado, visto que, para Tfouni (1995) é impossível considerar um sujeito que vive numa sociedade letrada como sendo iletrado, pois certo conhecimento sobre a escrita ele possui. Daí, a concepção da autora de que existem graus de letramento de natureza variada. Além disso, estudos sobre o letramento (TFOUNI, 1995, 1996; PACÍFICO, 2002PACÍFICO, S. M. R. Argumentação e autoria: o silenciamento do dizer. Tese (Doutorado em Lingüística) - FFCLRP, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2002.) apontam que o grau de letramento não está diretamente relacionado ao grau de escolaridade, pois existem sujeitos com alto grau de escolaridade, com curso superior, que apresentam baixo grau de letramento.

De acordo com as transformações sociais às quais estamos expostos, a escrita não poderia ficar à margem das mudanças. Pois bem, temos hoje, com a internet, uma heterogeneidade de escritos (cf. ROJO, 2001ROJO, R. Letramento escolar, oralidade e escrita em sala de aula: diferentes modalidades ou gêneros de discurso? In: SIGNORINI, I. (Org.). Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas: Mercado das Letras, 2001. p. 51-74.), a saber: textos publicitários, científicos, blogs, MSN, orkut, e-mail e tantos outros que fazem uso da escrita, muitas vezes, de uma maneira bem distante da escrita escolar, visto que estão mais próximos da oralidade, rompem a estrutura formal da escrita, promovem deslocamentos da ordem da língua, inserem animação e som naquilo que antes tinha apenas letras como matéria-prima. Muitos alunos passam horas na internet, diante da escrita, do escrito, brincando com e produzindo tudo isso; todavia, não escrevem na escola, não entendem a lição, não gostam das aulas de Língua Portuguesa, repletas de regras e de leis, marcadas por exigências gramaticalizadas e restritas à norma. Questionamo-nos: o que explica o desacerto dessa situação? Por que há esse descompasso entre as linguagens que circulam dentro e fora da escola?

Talvez, a explicação deva-se ao fato de que os textos que circulam fora da escola sejam de naturezas variadas e, por isso, os sujeitos vão lendo e produzindo de acordo com a identificação e com o seu grau de letramento. Por outro lado, na escola, os graus de letramento são desconsiderados. Por exemplo, o conhecimento oral que os alunos têm sobre o texto escrito, mesmo sem estarem alfabetizados, conhecimento que a escola geralmente despreza, pois valoriza somente a escrita no âmbito das atividades escolares. Em entrevistas com crianças que cursam as séries de alfabetização, é comum encontrarmos a seguinte fala: “é importante ler e escrever para copiar o que a professora passa na lousa”.

Como podemos observar, a leitura e a escrita são vistas como atividades escolares e não como práticas sociais que as usam como mediadoras. Assim, inquieta-nos o fato de que muitas vezes, no contexto escolar, fica parecendo que os alunos não precisam estar expostos aos textos que circulam fora da escola, pois o que importa é saberem ler e escrever, ou copiar e colar.

Não queremos dizer com essa discussão que somos contra o ensino da Língua Portuguesa com suas leis e regras combinatórias. O que estamos defendendo é que o esforço de professores para alfabetizar, em sentido restrito, não garante aos alunos um alto grau de letramento, pois há uma separação entre os usos da escrita legitimados ou excluídos da escola, que não colocam os alunos em contato e em confronto com a transformação da escrita e com sua relação de poder. Nessa relação desigual de poder, muitos sujeitos ficam à margem, pois aqueles que sabem apenas decodificar, não participam do processo sócio-histórico de construção dos sentidos, embora tenham a ilusão de que têm acesso ao poder dizer, posto que são alfabetizados. Os que nem isso sabem, são totalmente silenciados por aqueles que dominam a leitura e a escrita e criam efeitos de sentido de acordo com seus interesses, em anúncios publicitários, em contratos jurídicos, em documentos oficiais, na rede eletrônica, nos livros didáticos, no discurso médico, no discurso jornalístico, no discurso televisivo, no discurso pedagógico.

Como nosso objeto de análise, neste artigo, está relacionado ao texto eletrônico, julgamos relevante marcar que concordamos com Rojo (2001ROJO, R. Letramento escolar, oralidade e escrita em sala de aula: diferentes modalidades ou gêneros de discurso? In: SIGNORINI, I. (Org.). Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas: Mercado das Letras, 2001. p. 51-74., p. 53), quando ela diz que

[...] a partir de então - e cada vez com maior intensidade, com os meios eletrônicos de comunicação - tanto a importância da fala como a do escrito e da grafia têm diminuído em favor da significação que pode emergir do texto escrito ele próprio, como enunciação que se põe em relação com outras enunciações e com outros enunciadores.

É justamente isso que estamos defendendo: que o texto produzido por essa grife de calçados têm uma significação própria. Isto é, a construção textual procura marcar sua relação com a tecnologia (a escrita usada na rede eletrônica) atrelada ao desenvolvimento como garantia da inserção social do sujeito, de sua participação na sociedade capitalista. Mesmo sendo um sujeito alfabetizado, ele só terá acesso ao e-mail se tiver acesso a um computador. Começa aí a exclusão de um grupo de leitores, aqueles que não dominam/possuem a tecnologia. Em última instância, a significação emerge do texto e não da escrita, visto que é necessário buscar compreender quais são os efeitos de sentido criados por um texto que pretende vender um produto para um público feminino sofisticado, simulando ser um e-mail e não uma propaganda banal, barata, previsível.

Somando ao que já foi exposto, queremos acrescentar que em todo processo de construção de sentidos entram em jogo as formações imaginárias (PÊCHEUX, 1993PÊCHEUX, M. Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. In: GADET, F. e HAK, T. (Orgs.). Campinas: Editora da Unicamp, 1993.) e, como estamos na chamada “era da comunicação”, não podemos apagar de nossas análises que os sujeitos têm, ou são levados a ter, uma imagem da internet, da rede eletrônica, do que significa poder ter acesso ao mundo virtual e tudo isso interfere na construção dos sentidos sobre a escrita, a linguagem e o mundo. Por isso, a escrita formal, tal como é enfatizada na escola, fica centrada em si mesma, como se só o código lingüístico e seus usuários pudessem significar, independentemente do modo e do lugar em que a escrita é usada. Sobre isso, Romão e Pacífico (2005ROMÃO, L. M. S.; PACÍFICO, S. M. R. Por trás dos muros: uma narrativa poética construindo sentidos da/na cidade. Revista Signum, Departamento de Letras da Universidade Estadual de Londrina, v. 8, n. 2, p. 65-82, 2005.) analisam como a escrita produz efeitos de sentido nos muros de uma cidade paulista, construindo uma narrativa urbana.

Disso decorre que, como afirma Signorini (2001SIGNORI, I. Construindo com a escrita “outras cenas de fala”. In: ______. (Org.). Investigando a relação oral/escrito e as teorias do letramento. Campinas: Mercado das Letras, 2001. p. 97-134., p. 125), “a filiação do estudo da escrita ao letramento significa, pois, compreendê-la não como um objeto único, estático e autônomo, sempre o mesmo em diferentes suportes, momentos e situações”. Assim sendo, entendemos que a análise que segue vem corroborar o que estamos defendendo, isto é, a alfabetização não garante ao sujeito o acesso à leitura e à interpretação. É preciso ir além, ter um conhecimento sobre a escrita que extrapola o nível da língua, do código escrito. Vejamos o texto publicitário de uma loja de sapatos caros, cuja marca tem franquias espalhadas pelo país. Ele nos interessou, pois não se apresentava como um anúncio de venda de sapatos, mas em forma de e-mail como se a partir de uma troca imaginária de mensagens entre duas mulheres, tanto a marca, o modelo e o preço dos sapatos pudessem ser legitimados. Supomos que os endereços eletrônicos e as mensagens são fictícios e não dizem respeito a pessoas ou indivíduos em particular, mas a lugares discursivos que estão jogo atravessados pela ideologia e pela memória do que é ser mulher, comprar sapatos, ter e-mail, integrar-se no mundo dos negócios, viajar, ter acesso a produtos estrangeiros, dentre outros sentidos.

De: htech@gmail.com

Para: evintage@yahoo.com

Assunto: verão brasileiro

Darling,

Londres foi o máximo, mas bom mesmo estar de volta ao Brasil. Não agüentava mais usar botas e casacões o tempo todo. Sabe qual foi a primeira coisa que fiz quando cheguei a São Paulo? Comprei uma rasteirinha Capodarte, meu must-have de verão, e saí por aí. Uma delícia! Estou louca para desfilar com a minha sandália nova em Trancoso no próximo feriado.

Ate lá, continuo a mil, trabalhando à beça, sempre atenta ao Blackberrye com o laptop à mão. Por isso, fiz algumas outras comprinhas para encarar a rotina puxada. Adorei saber que, assim como nas roupas, o off-white, o caramelo e o bege estão em alta nas coleções de sapatos. Todos são tons chiques e clássicos (como eu!) e ainda alongam a silhueta. O pretoe-branco, combinação adorada por Chanel, também é tendência forte. Para dar uma cor ao meu guarda-roupa, ainda apostei nos modelos em verde mata, vermelho e, seguindo a tendência navy, não resisti ao azul. Para ficar bem poderosa à noite, nada melhor que investir nas sandálias com detalhes de strass, não é mesmo?

Tenho reunião agora, mas escrevo com calma depois.

Um beijo e saudades, H.

As marcas em inglês inscrevem o efeito de inclusão na “nova ordem mundial” com a indicação de um modo de usar a língua estrangeira para produzir sentidos de prestígio, valorização, entrada e trânsito no mundo tido como globalizado e sem fronteiras. A evidência sobre isso marca o político inscrevendo-se, na ordem da língua, de modo a fazer falar uma posição sujeito, a saber, aquela em que as palavras em inglês marcam o acesso a outros países e várias ordens de consumo. Exemplo disso é dado pela formulação “Londres foi o máximo, mas bom mesmo estar de volta ao Brasil”, o que põe em funcionamento a voz do sujeito que se imagina cosmopolita, implicado pelas viagens internacionais e pelo contato com a capital inglesa. Ainda sobre esse efeito de vanguarda, temos o próprio e-mail colocado como um portador de texto capaz de promover a correspondência entre amigas íntimas (“darlings”). Marcamos que não são todos que dominam essa tecnologia nem conhecem os programas para dominar essa ferramenta, tampouco têm os rudimentos da língua inglesa capazes de garantir, ainda que minimamente, a navegação ou a correspondência eletrônica. Então, temos que o acesso a esse portador (alem do uso do inglês) discursiviza uma maneira de estar conectado ao mundo, visto que a internet parece representá-lo, condensá-lo, enquadrado na tela e preso na virtualidade. Melhor dizendo, estar na rede e trocar e-mails com a amiga coloca o sujeito em um lugar de prestígio e poder, instalando uma posição de sujeito que não é nem está acessível a todos igualmente.

O que chama a nossa atenção é o fato de que tais sentidos estão materializados no encarte publicitário de uma famosa marca de sapatos, cujos preços estão proibitivos à imensa maioria da população; mas eles estão ali funcionando de outro modo, diferente das propagandas explícitas, em cujas formulações o imperativo é dito com palavras, desejos e ordens. É como se o email e a ficção da narrativa (melhor nomeada pelo sujeito htech@gmail.com) estivesse fora do âmbito comercial, pairando acima dele e fazendo deslizar o sentido de venda (e gestão dos desejos de ter o sapato Capodarte) para o campo da intimidade do sujeito H. Ao leitor, está desenhando o lugar de amigo íntimo, capaz de ler e vasculhar o mail de H., tornando-se cúmplice de seu retorno, de suas compras e de seus próximos planos de viagens e consumos.

Assim, H. é discursivizada com voz de autoridade nessa peça publicitária, mediadora de saber sobre moda e tendências, capaz de dar “dicas de verão” e de expor-se como síntese do consumo de “botas, casacões, rasteirinha, sandália, o offwhite, o caramelo e o bege, cores...”. As cores, tão plurais, indicam tantos quantos forem os sapatos e os chamados para comprá-los. Ter muitos pares (e outros peças do guarda-roupa), de várias cores e modelos parece atribuir, mais uma vez, um diferencial à voz de H., enfim, tem-se o discurso do/sobre consumo, não falado como tal, mas deslocado para uma voz que relata, de forma aparentemente informal e afetuosa, o seu relato cotidiano tão cheio de idas e voltas.

A evidência do sentido dessas viagens a trabalho (ou lazer) combina-se com o universo dos negócios. “Tenho uma reunião agora”, “continuo a mil, trabalhando à beça com o laptop à mão”, “rotina puxada” são formulações que indiciam, na ordem da linguagem, o modo como a ideologia captura o sujeito, fazendo-o ver como naturais o trabalho e a carreira profissional, o que implica tecer e-mails em elo nessa cadeia de associações, a saber, o fato de que comprar sapatos caros potencializa esses dois sentidos. Assim, “sapatos Capodarte” funcionam como uma metáfora de uma série de ganhos que não estão centrados no próprio sapato, mas no universo de representações e imagens da vida das empresárias ou executivas, consideradas bem sucedidas.

Aquelas que se preocupam em “alongar a silhueta”, que pretendem usar “tons chiques e clássicos”, que seguem a moda, enfim, mulheres que desejam “ficar bem poderosa(s) a noite”. Ou seja, mulheres que “investem”, “fazem comprinhas, seguem tendências, apostam”, todos esses verbos são indiciários de regularidades nos dizeres do/sobre mercado e investimentos. Aqui deslocados para o universo do feminino, eles mantêm os efeitos de venda e negociação, ou seja, de uso do capital para sustentar uma ordem de consumo, que não é permitido a todos, mas reservado a alguns.

Nesse sentido, investir em sapatos está próximo a investir no mercado da imagem pessoal feminina, mas emprestando a si mesma um poder, conquistado pela posse de bens materiais. Nada se sabe a respeito do trabalho da mulher do email (H), e tal silenciamento nos parece significativo, pois destaca ainda mais a capacidade de comprar e adquirir coisas, dentre elas, sapatos da marca indicada.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Julgamos que, para dar conta de construir sentidos sobre o texto analisado, é preciso mais do que decodificar palavras, do que conhecer as classes gramaticais da língua portuguesa, do que responder às perguntas óbvias sobre qual é o personagem da história, do que preencher com “correção” os suplementos literários tão consumidos na escola. Faz-se necessário, finalmente, que a escola tenha porosidade para apre(e)nder as novas tecnologias, para não apenas absorver a nova discursividade posta em movimento por elas, mas, sobretudo, para interpretar os modos de constituição dos sujeitos e dos sentidos. Sabemos que isso não é tarefa fácil. No entanto, ressaltamos que se não fizer isso, a escola será imaginarizada como o lugar da língua dissecada e morta, em que não haverá nem “o rosa na rosa” nem “o pessoa na pessoa” da canção de Caetano Veloso.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. (VOLOCHINON). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
  • FERNANDES, C. Análise do Discurso - reflexões introdutórias. Goiânia: Trilhas Urbanas, 2005.
  • KLEIMAN, A. (Org.). Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado das Letras, 1995.
  • ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 1996.
  • PACÍFICO, S. M. R. Argumentação e autoria: o silenciamento do dizer. Tese (Doutorado em Lingüística) - FFCLRP, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2002.
  • ______; ROMÃO, L. M. S. A memória e o arquivo produzindo sentidos sobre o feminino. Revista Em Questão, Porto Alegre, v. 12, n. 1, p. 73-90, jan./jun. 2006.
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  • ______. Papel da memória. In: ACHARD. P. (Org.). Papel da memória. Tradução de José Horta Nunes. Campinas: Pontes, 1999.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2007

Histórico

  • Recebido
    06 Mar 2007
  • Aceito
    03 Jul 2007
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