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REPRESENTAÇÕES GROTESCAS DE UM EX-PRESIDENTE: QUESTÕES SEMIODISCURSIVAS

GROTESQUE REPRESENTATIONS OF A FORMER PRESIDENT: SEMIODISCURSIVE ISSUES

REPRESENTACIONES GROTESCAS DE UN EX PRESIDENTE: CUESTIONES SEMIODISCURSIVAS

Resumo

Este artigo investiga a estética do grotesco utilizada em imagens do ex-presidente Jair Bolsonaro veiculadas em grupos de Facebook, partindo das teorias semióticas discursiva e tensiva, demonstrando sua pertinência para o entendimento dessa estética como parte das semioses humanas, e como prática social de sentido. A partir do percurso gerativo de sentido e do modo/estilo tensivo do texto, demonstra-se que as imagens grotescas, representando Bolsonaro como animal, criatura, espectro da morte e líder enlouquecido, podem ser consideradas um gênero modalizado pela retórica tensiva do acontecimento. Nas representações do político, um produtor/enunciador procura manipular um interpretante/enunciatário através de um texto com bases mitológicas que busca a intensidade do sensível e do supranatural. O grotesco, entendido como um contra (contra-programa) de um programa ideológico, torna-se uma crítica social marcada pela intensidade.

Palavras-chave:
Grotesco; Semiótica discursiva; Retórica do acontecimento; Ex-presidente Bolsonaro

Abstract

This article investigates the aesthetics of the grotesque used in images of former president Jair Bolsonaro published in Facebook groups, based on discursive and tensive semiotic theories, demonstrating its relevance for understanding this aesthetic as part of human semiosis and as part of social practice of meaning. Based on the generative path of meaning and the tensive mode/style of the text, we demonstrate that the grotesque images, representing the former president as animal, creature, specter of death and deranged leader, can be considered a genre modalized by the tensive rhetoric of the event. In Bolsonaro's images, a producer/enunciator seeks to manipulate an interpretant/enunciatee through a text with mythological bases that seeks the intensity of the sensitive and the supranatural. The grotesque, understood as a counter (counter-program) of an ideological program, becomes a social criticism marked by intensity.

Keywords:
Grotesque; Discursive semiotics; Rhetoric of the event; Former President Bolsonaro

Resumen

Este artículo investiga la estética del grotesco utilizada en imágenes del expresidente Jair Bolsonaro difundidas en grupos de Facebook, partiendo de las teorías semióticas discursiva y tensiva, demostrando su pertinencia para la comprensión de esta estética como parte de las semiosis humanas, y como práctica social de sentido. A través del recorrido generativo de sentido y del modo/estilo tensivo del texto, demostramos que las imágenes grotescas, representando a Bolsonaro como animal, criatura, espectro de la muerte y líder enloquecido, pueden considerarse un género modalizado por la retórica tensiva del acontecimiento. En las representaciones del político, un productor/enunciador busca manipular a un intérprete/enunciatario a través de un texto con bases mitológicas que busca la intensidad de lo sensible y lo sobrenatural. El grotesco, entendido como un contra (contra-programa) de un programa ideológico, se convierte en una crítica social marcada por la intensidad.

Palabras clave:
Grotesco; Semiótica discursiva; Retórica del acontecimiento; Ex-presidente Bolsonaro

1 INTRODUÇÃO

Ao longo da história humana não apenas textos, imagens, esculturas e trabalhos artísticos, mas obras arquitetônicas e objetos variados exibiram conteúdos insólitos, bizarros, surpreendentes e chocantes, com o intuito básico de causar estranhamento e surpresa e, a partir deles, reflexão. Enquanto esses conteúdos podem ser vistos como fenômenos estéticos, a semiótica discursiva os entende como discursos construídos (a partir de um texto que possui um plano do conteúdo e um plano de expressão) por um destinador que emite enunciados cognitivos, pragmáticos, passionais e sensíveis, verbais ou não, para manipular um destinatário, ou seja, para fazê-lo crer, saber, fazer e sentir.

Do ponto de vista das imagens analisadas como unidades textuais/discursivas, discutiremos as representações do ex-presidente Bolsonaro, primeiramente entendidas como pertencentes a uma estética denominada “grotesco”, e depois expandiremos a questão, demonstrando como tal estética pode ser explorada a partir da ideia de gênero, produção textual e retórica socializada, que inclui o sensível e sua sintaxe. Partindo da semiótica discursiva e tensiva discutiremos o percurso gerativo de sentido1 1 Segundo o Dicionário de Semiótica (Greimas; Courtés, 2011); verbete: quadrado semiótico. O quadrado semiótico é uma representação visual lógica de uma categoria semântica, a partir de uma estrutura elementar de significação definida como uma dupla relação de oposição entre dois termos, que podem ser afirmados ou negados nos eixos semânticos dos contrários e dos subcontrários. As dinâmicas de sentido articuladas nessa dupla oposição geram sentidos de contrariedade, contradição e complementaridade, tais como os semas humano/não humano/animal (a transformação de um homem em lobisomem, por exemplo). A reunião de termos opostos no eixo afirmativo dos contrários (humano e animal, ao invés de humano ou animal) resulta em termos complexos e metafóricos (humano + animal) que são comumente utilizados em discursos sagrados, míticos, poéticos etc. e, em nossa opinião, no discurso grotesco. e seu aspecto universal e mitológico2 2 A mitologia é entendida aqui como uma narrativa, verbal ou não verbal, que produz conteúdos que buscam levar o enunciatário/narratário a um crer-saber-fazer-sentir psicossocial, operando discursos feitos a partir de triagens e misturas de valores sociais materiais ou abstratos. Segundo Cassirer (2004, p. 304), a consciência mítico-primitiva, que opera a mistura de gêneros de seres vivos e fusões entre os limites naturais e espirituais, revela algum traço universal da lógica do pensamento mítico, na forma e direção de sua formação de conceitos e de classes. A partir da ideia do mito como portador de traços universais e articulador de conceitos, pode-se propor a ideia de “mitologização” do mundo natural, e considerar a consciência mítico-primitiva como um tipo de consciência humana possibilitada pelas linguagens compartilhadas socialmente, de modo que todas as dinâmicas humanas são construídas mitologicamente. , além da noção de discurso e retórica do acontecimento. As imagens utilizadas em nossa discussão serão entendidas como discursos visuais em conjuntos estruturais e estruturantes (passíveis de reestruturação), que percorrem um percurso de sentido inteligível e sensível, desdobrado em várias camadas de sentido, das fundamentais às discursivas, e eixos tensivos correspondentes à intensidade, à extensidade e à junção de sentido entre homem sensível e mundo natural.

As imagens grotescas de Bolsonaro podem ser entendidas como narrativas geradoras “de mundos naturais próprios” e efeitos de “verdade” a partir de dois enunciadores: um construído dentro do texto, o enunciador, e o outro fora, um produtor textual/discursivo que habita uma “realidade psicossocial”, que é também textual. Assim, qualquer texto constrói seu contexto, enquanto contrai relações mais ou menos oblíquas e indiretas com o que denominamos o contexto social da “realidade”.

Em nossa análise é pressuposto que as representações grotescas exibidas são construídas por atores sociais que geram efeitos de sentido de discordância com o político e suas práticas e ideias, nas várias esferas psicossociais. Assim, Bolsonaro torna-se um importante ator do texto social, sendo tematizado como presidente da nação brasileira. O grotesco nos interessará menos como gesto político pontual de um grupo específico do que como exemplo de prática humana estilística e retórica de sentido adotada por diferentes grupos político-ideológicos em distintos momentos-históricos, que propõem um tipo muito especial de crítica social e produção sensível. Antes da análise semiótica das imagens, o grotesco será abordado primeiramente como fenômeno estético e, a partir daí, do ponto de vista semiodiscursivo.

Os textos sobre o ex-Presidente da República3 3 Jair Bolsonaro foi presidente de 2019 a 2023. Em 2023, o político foi considerado inelegível por seus constantes ataques ao sistema eleitoral brasileiro e pela tentativa de desestabilizar a democracia brasileira. , considerado como inserido no espectro político e na ideologia caracterizada de extrema direita, foram coletados no início de 2021, e veiculados no Facebook, em grupos que se autodenominavam simpatizantes da ideologia da esquerda, e em oposição aos valores da direita, ou simples opositores ideológicos do ex-chefe da nação. Algumas das imagens são autorais e estão assinadas, pertencendo a artistas como Ricardo Aroeira, Jota Camelo, Nando Motta e Gilmar; outras, porém, são anônimas, criadas por um público que domina técnicas visuais digitais. Algumas foram retiradas de grupos de políticos adversários do ex-presidente e figuras públicas, como a deputada federal Sâmia Bonfim e Paulo Pimenta, atual ministro-chefe da secretaria de Comunicações Social4 4 As imagens foram retiradas à época de grupos do Facebook, que podem atualmente não existir ou ter seu nome alterado. São eles: bolsonaro na cadeia; diário de bolso; fora bolsonaro; grupo anti pt, contra a censura e pela democracia; grupo de apoio ao presidente lula; os melhores tweets da esquerda; paulo pimenta, sâmia bonfim; somos 70 porcento. Devido à pandemia, à distância entre o período da pesquisa e o período da aceitação do artigo, e ao encerramento de alguns grupos do Facebook, algumas imagens desapareceram de suas publicações originais e foram buscadas em outros locais, como no Pinterest, no Instagram ou nos sites e páginas dos próprios artistas. .

2 O GROTESCO: QUESTÕES ESTÉTICAS

O termo ‘grotesco’, cunhado para designar determinada espécie de ornamentação bárbara (Kayser 2013KAYSER, W. O grotesco. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2013.[1957], p. 18), do ponto de vista diacrônico acumulou várias camadas semânticas, adquirindo um amplo espectro de sentido, muitas vezes antagônico, sendo posteriormente utilizado para se referir tanto ao cômico como ao horripilante. Kayser (2013[1957], p. 20) explica que na Renascença a palavra grottesco, derivada de grota (gruta), foi utilizada, primeiramente, para designar uma determinada arte ornamental estimulada pela antiguidade, não conotando apenas o lúdico, o alegre, o leve e o fantasioso, mas, igualmente, o angustiante e o sinistro, compostos em face de um mundo em que as ordenações da realidade estavam suspensas, inclusive a clara separação entre os domínios dos utensílios, das plantas, dos animais e dos homens, bem como da estética, da simetria e da ordem natural das grandezas.

Sodré e Paiva (2014) expandem o conceito, definindo o grotesco como algo relacionado à catástrofe, representada como mutação brusca, quebra insólita de uma forma canônica, e deformação inesperada. Durrenmatt (1956/57 apudKayser, 2013KAYSER, W. O grotesco. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2013.[1957), p. 9) entende o grotesco como um paradoxo sensível, a figura de uma não figura, o rosto de um mundo sem rosto. No espectro da noção de gosto, no qual operam motivações estéticas, morais e sensoriais, o grotesco é operado a partir de um equilíbrio e desequilibro de forças que atuam e interagem para estruturar seus elementos textuais; cálculos de reações afetivas; valores relacionados ao equilíbrio e ao ethos da obra, que resultam de julgamentos sobre sua qualidade; e trânsito estético, ou seja, capacidade de ser operado em diferentes formas de expressão simbólica. Bakhtin (1987BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora Hucitec. 1987.), ao analisar as figuras exageradas e quase disformes em Rabelais, entende que o corpo grotesco é cósmico e universal, e relacionado aos quatro elementos, em uma tradição que remonta a saberes aristotélicos5 5 Bakhtin (1987) explica que o corpo medieval foi construído a partir de Aristóteles, na base da doutrina dos quatro elementos, que são posicionados em um lugar e nível hierárquico na estrutura cósmica, e subordinados a uma certa regra do alto e do baixo. A semiótica discursiva utiliza esses saberes e essas crenças para explicar valores fundamentais humanos, disseminados até hoje nos mais variados discursos. e mitológicos.

Kaiser concebe o grotesco como uma constante supratemporal de algo negativo, mas tragicômico, e que se repete ao longo da história sob formas diferentes. Nessa constância, Sodré e Paiva (2014) entendem que a partir dos planos constitutivos de toda categoria estética, no grotesco observam-se práticas de criação, composição e efeito: em termos de criação, ele pode surgir da visão de quem sonha, devaneia, exprime uma visão desencantada da existência, assimilando-a como um jogo de máscaras ou um representação caricatural, a partir do qual assume formas fantásticas, satíricas ou absurdas; em termos de composição o monstruoso é destacado, existindo sob formas humanas, animais, vegetais ou mesmo maquínicas; propondo o sensível, o grotesco procura manipular o corpo. Ao adentrar o terreno do gosto e do estranho, explorando-o de diversas formas, a estética grotesca mobiliza os afetos, emoções e sensações da audiência, a ponto de causar manifestações de incômodo e nervosismo.

Na arte, Kayser (2013KAYSER, W. O grotesco. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2013.[1953]) encontra no grotesco motivos característicos, ou figuras, relacionados ao reino vegetal e animal, inclusive o microscópico, e ao cultural, em forma de invenções humanas perigosas, e mesclas do mecânico e do orgânico, como corpos de bonecas, marionetes, autômatos, e rostos coagulados em larvas e máscaras. Do ponto de vista discursivo, Sodré e Paiva (2014, p. 68-69) acreditam que o grotesco assume

[...] modalidades expressivas escatológicas (ou coprologicamente caracterizadas, por referência a dejetos humanos, secreções, partes baixas do corpo etc.), teratológicas (referências risíveis a monstruosidades, aberrações, deformações e bestialismos), chocantes (escalotógicas e teratológicas, e voltadas para a provocação superficial de um choque perceptivo) e críticas, que ao desvelar um mundo exagerado e do avesso, desmascara convenções sociais.

O grotesco, segundo Sodré e Paiva (2014, p. 60), “[...] assemelha-se a outro estado de consciência, a outra experiência de lucidez que penetra a realidade das coisas, exibindo a sua convulsão, como uma radiografia inquietante, surpreendente e risonha do real”. Atualmente, as ideias que vimos acima estão condensadas, no dicionário Houaiss (verbete: grotesco6 6 Disponível em: https://shre.ink/8cWl. (verbete; grotesco). Acesso em: 27 dez. 2023. ), da seguinte maneira:

  1. cada um dos ornamentos que representam objetos, plantas, animais e seres humanos ou frequentementeseres fantásticos, reunidos em cercaduras, medalhões e frisos que envolvem os painéis centrais de composições decorativas realizadas em estuques e especialmente em afrescos, e característicos do chamado terceiro estilo de Pompeia ou estilo egipcianizante, em voga nas sete primeiras décadas do sI, de Augusto a Nero; brutesco, grutesco. [Tais motivos e esquemas decorativos influenciaram decisivamente o Maneirismo, foram reinterpretados pelo Barroco e o Rococó, e retomados pelo Neoclassicismo.];

  2. [...] criação ornamental de graciosa fantasia que utiliza tais ornamentos[...];

  3. [...] estilo artístico ou obra desenvolvida a partir de tais ornamentos [...];

  4. [...] categoria estética cuja temática ou cujas imagens privilegiam, em seu retrato, análise, crítica ou reflexão, o disforme, o ridículo, o extravagante e, por vezes, o kitsch [...];

  5. que ou o que se presta ao riso ou à repulsa por seu aspecto inverossímil, bizarro, estapafúrdio ou caricato [...];

  6. que ou o que é incongruente às raias do ridículo, totalmente absurdo;

  7. [...] caráter tipográfico que apresenta traço uniforme, todo ele da mesma espessura, e é desprovido de serifa, ou seja, remate nas extremidades da letra; bastão, bastonete, etrusco, lineal.

Esses pontos de vista de cunho mais estético e filosófico são importantes, pois revelam o grotesco que, por poder ser reconhecido e lido/interpretado, pode ser aproximado a um gênero discursivo e a um conjunto de operações semânticas, sintáticas e retóricas que podem ser discriminadas. Para aprofundarmos a questão, veremos como a semiótica discursiva e tensiva ajudam a compreender esse estilo de composição.

3 O GROTESCO: QUESTÕES SEMIODISCURSIVAS E VISUAIS

Segundo Greimas (2004GREIMAS, A. Semiótica figurativa e semiótica plástica. In: GREIMAS, A. Semiótica Plástica. Trad. Ignacio Assis Silva. Org. Ana Claudia de Oliveira. São Paulo. Hacker Editores, 2004. p. 75-96.), a semiótica entende que o texto visual é um conjunto significante aplicado sobre um suporte planar, uma superfície material encarregada (no caso da modalização iconizante7 7 Entende-se a imagem icônica como uma referência visual ou descrição visual motivada pela imagem de algo existente em um mundo natural, seja ele real ou fictício. A imagem icônica é oposta à imagem abstrata. Como tipos de figurativização, o concreto e o abstrato podem interagir em um texto. ) de falar do espaço tridimensional do mundo natural. Com isso, manifestações visuais, ou seja, não apenas picturais, gráficas, fotográficas e fílmicas, mas também da ordem dos diferentes tipos de escrita, por exemplo, são reunidas com base num modo de presença no mundo comum. No caso da imagem icônica, que é diferente da abstrata (ambas são tipos diferentes de figurativização), há um sistema de representação no qual a relação entre realidades, a social/natural e a textual é menos arbitrária do que motivada, pressupondo certa identidade, total ou parcial, entre traços e figuras de representantes e representados (Greimas, 2004, p. 22).

Como o texto visual icônico aproxima-se da ideia de imitação, supõe-se, de um lado, alguém que imita e, de outro, alguém que reconhece essa imitação. Ambos, imitador e reconhecedor, que podemos relacionar ao enunciador e ao enunciatário do texto visual, respectivamente, existem dentro de um universo de letramento e de produção de sentido que passa pelo discurso e pela retórica, apresentando a iconização como procedimento de persuasão veridictória. Para haver essa persuasão, é necessário que imagens icônicas emanem de um crivo ideológico social de leitura, que permite identificar as figuras como objetos do mundo natural representado. Sendo de natureza semântica, esse crivo serve de código que torna o mundo inteligível e manuseável.

Barros (2002BARROS, D. L. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Humanitas. FFLCH-USP, 2002.) demonstra, a partir dos níveis semionarrativos e discursivos do percurso gerativo de sentido, que é possível considerar o enunciador e o enunciatário (em nosso caso, o imitador e o reconhecedor) papéis temáticos da comunicação e da produção do sentido, constituídos em dois diferentes percursos da mesma configuração de enunciação. O papel da comunicação trata da ação dos homens sobre outros homens, criando relações fundadoras da sociedade; o da produção trata da ação dos homens sobre as coisas, transformando-as ou construindo-as. Essa duplicidade permite considerar a enunciação, em quaisquer conjuntos significantes humanos, como atividade humana por excelência.

Na enunciação manifestada pelo papel temático da comunicação, o destinador manipulador, o destinatário sujeito e o destinador julgador, actantes do nível narrativo do percurso gerativo de sentido do texto, assumem os papéis temáticos de enunciador e enunciatário, de modo que o enunciador torna-se responsável pelos valores em jogo e a manipulação do enunciatário, que deverá realizar, por imposição ou vontade, um fazer-interpretativo. Após a manipulação, o papel enunciador revestirá mais uma vez o actante destinador, que agora julgará ou sancionará negativamente ou positivamente o enunciatário, que é o sujeito manipulado, a partir de seu fazer-interpretativo. No papel temático da produção do sentido, o destinatário existe como sujeito da enunciação, um papel composto de enunciador e enunciatário.

Na enunciação vista a partir dos temas de produção, que consiste na ação dos homens sobre as coisas, o destinador-manipulador é o produtor do sentido, o destinatário-sujeito é o sujeito da enunciação, e o destinador-julgador é o receptor-interpretante. A enunciação mostra-se como estrutura de mediação entre o discurso e o contexto social, entendido também como mundo natural discriminado pela linguagem.

Quadro 1
Atores textuais e sociais envolvidos na comunicação e na produção textual

A partir daí, a análise da produção textual visual pode identificar uma subjetividade ideológica manipuladora dentro e fora do texto, ou melhor, em um texto “linguístico” e um texto “social”, e uma subjetividade manipulada que habita os mesmos espaços. A ideia de um sujeito da enunciação composto de enunciador e enunciatário (o imitador do mundo e o reconhecedor do mundo imitado, no caso da imagem) aponta para a coalescência social/textual entre os dois actantes do enunciado, que na verdade se complementam no discurso. Isso significa que o manipulador também é manipulado pelo outro, e não pode manipular sem um cálculo de valores sobre o outro, que perpassa crivos ideológicos.

Partindo das considerações estéticas tratadas acima, e da noção de temas e papéis temáticos e dos temas de produção, é possível pontuar algumas características do grotesco como discurso que se repete nas dinâmicas sociais humanas, sendo utilizado em diferentes conjuntos significantes, verbais e não-verbais8 8 Discursos verbais e visuais escatológicos, por exemplo. . Relacionado a um fazer-persuasivo e interpretativo de um produtor/interpretante (dois atores sociais que interagem na produção de sentido), esse estilo de representação pode ser aproximado da ideia de gênero discursivo que, segundo Greimas e Courtés (2011GREIMAS, A; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2011., p. 228; verbete: gênero), aponta para certa concepção de “realidade” do referente “que permite distinguir seja diferentes mundos possíveis, seja encadeamentos narrativos mais ou menos conformes a uma norma subjacente”.

Adotando, como vimos acima, a temática do estranho, do bizarro e do inesperado - que engloba o fantástico, o maravilhoso, o surrealista, o paródico etc. -, o grotesco pode ser entendido como artifício de sentido vinculado principalmente à timia e à foria9 9 Mas não necessariamente, pois se calcula que o grotesco pode ser relacionado também ao prazeroso. , que relacionamos ao sensível. Entende-se, a partir das discussões estéticas, que tanto as categorias modais de veridicção ser/parecer10 10 No Dicionário de Semiótica (verbete: ser), Greimas e Courtês (2011) acreditam que o SER designa o termo positivo da imanência, contraindo uma relação de contrariedade com o PARECER. , os microssistemas dos valores semânticos fundamentais vida/morte e natureza/cultura, os valores figurativos fundamentais ar, água, fogo e terra11 11 O Dicionário de Semiótica (verbete: universo), ao definir o universo semântico fundamental, explica que sua relação a estruturas axiológicas elementares permite empreender a descrição de um universo individual, articulável segundo a categoria vida/morte e ao universo coletivo, articulável segundo a categoria natureza/cultura. Ambos os universos permanecem abstratos no nível mais fundamental do sentido, sendo suscetíveis de serem figurativizados homologando-se uma ou outra de suas categorias fundamentais com a estrutura figurativa elementar dos quatro elementos da natureza: fogo, ar, água e terra. Percebe-se que essa definição dialoga com a visão de Bakhtin (1987), relacionando o grotesco aos quatro elementos para delimitar os valores básicos fundamentais. Esses quatro elementos, acompanhados dos seres que os habitam, ainda permanecem na atualidade, sendo heranças discursivas antigas (o mundo grego antigo, por exemplo) e mitológicas. , assim como a figurativização de atores, tempos e espaços em percursos temáticos e figurativos serão ordenados a partir de uma lógica sensível que atrai justamente porque busca o diferente e surpreendente.

Retoricamente, pode-se concluir que as figuras de linguagem ressaltadas no grotesco, além da metáfora e da metonímia, são as figuras de acumulação denominadas hipérbole, relacionada ao excesso, à amplificação crescente, e ao aumento da intensidade semântica; a antítese, que aproxima ideias contrárias; o paradoxo, que produz enunciados que podem conter ideias sem nexo ou lógica, ou ideias que são contrárias a princípios considerados como básicos, propondo o absurdo; e a hipotipose, caracterizada como ênfase redundante, uma descrição de coisas passadas ou irreais que apresenta uma saliência perceptiva que constrói a impressão de subjetividade daquele que enuncia (Fiorin, 2014FIORIN, J. L. Figuras de retórica. São Paulo: Contexto, 2014.)12 12 Para melhor abordagem do assunto consultar Figuras da retórica (Fiorin, 2014). . Os tipos de imagens utilizadas pelos grupos de Facebook, por exemplo, indicam uma conjunção com esses objetos-valor retóricos que caracterizam esses sujeitos, atores discursivo-ideológicos do mundo natural.

Tanto a descrição do grotesco como estética e estilo, assim como as figuras de linguagem relacionadas a ele explicitam, ainda, um tipo de discurso discriminado pela semiótica tensiva, cujo objetivo é analisar o texto/discurso como local do inteligível e do sensível. O grotesco, a partir daí, pode ser entendido como um discurso do acontecimento, aposto ao discurso do estado, ou seja, um discurso que busca o impacto do inesperado e do choque (o não previsto pelo sujeito espantado), oposto ao discurso da rotina, que constrói o esperado e o exercício (o previsto pelo sujeito acostumado). A contraposição entre o discurso do acontecimento e o do estado ocorre a partir de três diferentes modos que estabelecem como grandezas semióticas são integradas a um espaço tensivo: os modos de eficiência, os modos de existência e os modos de junção.

Os modos de eficiência designam a maneira por meio da qual uma grandeza se instala no espaço tensivo do campo de presença do sujeito discursivo. Se tal processo ocorrer segundo o desejo do sujeito, dá-se a modalidade do pervir (ou do conseguir), caracterizado pela progressividade e pela longevidade; se, ao contrário, a grandeza se instalar sem nenhuma espera, de forma abrupta, contrariando os cálculos ou expectativas do sujeito, põe-se em jogo a modalidade do sobrevir, caracterizado pela subitaneidade e pela brevidade. Enquanto o pervir é da ordem do agir e da paciência, o sobrevir é da ordem do sofrer, do inesperado que se impõe ao sujeito, e que ele primeiro sofre antes de compreender.

Os modos de existência são caracterizados pela alternância do par focalização (foco ou visada) e apreensão. A focalização pode ser definida como ter algo em vista ou esforçar-se para atingir um resultado, enquanto a apreensão remete ao sobrevir, ao estado do sujeito espantado, admirado e marcado pelo que lhe aconteceu. Nos modos de junção, que marcam as relações entre sujeito e objeto (um sujeito busca um objeto valor para se completar), distinguem-se um modo implicativo e um modo concessivo: o primeiro pode ser explicado pela fórmula “se a, então b”, enquanto o segundo pela fórmula “embora a, não b”13 13 Para Tatit (2016, p. 27), os pensamentos implicativo e concessivo podem ser facilmente detectados a partir das partículas gramaticais da nossa linguagem diária: para os primeiros os conectores “porque”, “portanto”, “então” etc; para os segundos os conectores “embora”, “ainda que”, “apesar de” etc. . Ao entrar em contato sensível com o mundo, o sujeito pode compreendê-lo de maneira implicativa ou concessiva.

Cada modo semiótico é marcado por um estilo sintático com características próprias, possuindo subdimensões, operações tensivas, cifras (ou sílabas) tensivas de mais e menos (partículas que controlam acréscimos e decréscimos de conteúdos sensíveis), e direções e operações de grandezas semióticas: os modos de eficiência são elaborados por uma sintaxe intensiva e as subdimensões de andamento e tonicidade; os modos de existência são elaborados por uma sintaxe extensiva e as subdimensões de espacialidade e temporalidade; e os modos de junção são elaborados por uma sintaxe juntiva e as subdimensões de implicação e concessão:

Quadro 2
Modos e estilos tensivos

A partir da semiótica tensiva, observamos como o grotesco pode ser determinado por uma retórica do acontecimento e seus modos de eficiência, existência e junção, uma vez que esse tipo de texto procura impactar o enunciatário-interpretante, provocando um alto grau de intensidade na obra e surpresa no sujeito receptor manipulado. Entende-se, a partir daí, por que esse tipo de discurso adota conteúdos escatológicos, ou teratológicos e chocantes, e formas expressivas sensíveis ligadas ao sobrevir, à apreensão e à concessão. Em termos de sintaxe, vislumbramos na sintaxe intensiva a ascendência do andamento e da tonicidade, mas, em nosso caso, voltada principalmente ao texto imagético, que é também composto de formas de letras; na sintaxe extensiva, vislumbramos as operações de mistura, relacionadas à natureza mitológica desse tipo de texto, e, na sintaxe juntiva, vislumbramos a subdimensão de concessão, uma vez que esse tipo de discurso aposta no inesperado e no surpreendente, fazendo concessões ao factual, ao histórico, ao lógico e ao esperado.

Ao explicar semiotensivamente, a partir de Baudelaire (1957), o belo como bizarro, uma das características do grotesco, Zilberberg (2004ZILBERBERG, C. As condições semióticas da mestiçagem. In: CAÑIZAL, E. P.; CAETANO, K. E. (org.) O olhar à deriva: mídia, significação e cultura. São Paulo: Annablume, 2004. p. 69-101.) propõe o seguinte gráfico tensivo, que utilizamos para aprofundar a questão:

Quadro 3
O grotesco e o bizarro/impactante

Finalmente, em termos de programa e contraprograma narrativo, e do ponto de vista figural, aproveitamos ainda a caracterização de Zilberberg (2004ZILBERBERG, C. As condições semióticas da mestiçagem. In: CAÑIZAL, E. P.; CAETANO, K. E. (org.) O olhar à deriva: mídia, significação e cultura. São Paulo: Annablume, 2004. p. 69-101.) do bizarro para relacionar o grotesco à noção de contra (contraprograma), como no quadro 4, a seguir19 19 Zilberberg (2004) explica que o termo ‘supranaturalismo’ é utilizado pelo próprio Baudelaire (1957) e compreende à “[…] cor geral e o acento, ou seja, intensidade, sonoridade, vibração, profundidade, repercussão no espaço e no tempo. ([Baudelaire, 1957, p.691], Zilberberg, 2004, p. 88). :

Quadro 4
O grotesco como contra [contraprograma]

A semiótica tensiva sugere que, enquanto o texto visual icônico procura representar o mundo natural, o texto visual grotesco vai em busca da representação do supranatural. Nesse sentido, se a vida do sujeito é um programa narrativo associado ao naturalismo, ou ao natural da rotina dos saberes e creres, e o tédio é o contraprograma da anestesia, o bizarro, que associamos ao grotesco, existe justamente como contraprograma do tédio, ou do monótono e impessoal, e, até mesmo, do esperado. O termo ‘supranatural’, assim, reforça a ideia do bizarro como mais vivo do que a própria vida, o além-natural, aspecto intenso do real.

Do ponto de vista expressivo dos textos visuais, suas substâncias de expressão, também orientadas tensivamente pela intensidade, a extensidade e a junção, imagens apresentam-se primeiramente como um conjunto fechado de sentido em uma superfície plana que é inscrita. Enquanto a leitura de um texto escrito é linear e unidimensional, o texto visual se oferece à leitura a partir de categorias primeiramente topológicas, que são retilínias (alto/baixo; direito/esquerdo), curvilíneas (periférico/central; circunscrevente/ circunscrito), ou compostas, estabelecendo uma superfície traçada por eixos e/ou regiões delimitadas, que podem ser segmentadas em partes discretas e orientar eventuais percursos de leitura.

A partir da aplicação da categoria topológica, que permite empreender a análise da superfície desenhada (marcada), é possível articular o significante visual em termos de outras categorias, depreendendo-se assim as unidades mínimas do significante, cujas combinações reencontrarão os subconjuntos reconhecidos no recorte espacial planar. Assim, em uma imagem delimitada por formas e cores compostas em uma região planar, além das categorias topológicas distinguem-se categorias cromáticas, relativas a todas as cores do espectro cromático e a suas aplicações, combinações e contrastes (inclusive o preto, o branco ou a ausência de cor); e categorias eidéticas, relativas a formas (uniformes, multiformes, homogêneas, heterogêneas), aos vários tipos de traços que compõem tais formas, e à discretização de regiões no texto planar. Tais categorias plásticas possuem formantes plásticos, que são apreendidos e discretizados de maneira relacional pelo reconhecedor da imagem.

Vimos, acima, que o verbete grotesco no dicionário Houaiss abrange conceitos relacionados ao disforme, ridículo, extravagante, kitsch, incongruente, repulsivo, inverossímil, estapafúrdio, caricato, ridículo e absurdo, levando a crer que esse tipo de discurso procura fugir dos lugares comuns, representando o mundo natural e seus seres, inclusive os fantásticos, de maneiras consideradas pela semiótica discursiva como narrativas e mitológicas; e pela semiótica tensiva como intensas, dirigidas por modos e sintaxes discursivas que combinam o sensível e o inteligível em textos que são modalizados pela ideia de acontecimento, apreensão e sobrevir. Essa característica tensiva do texto grotesco é suportada pelas figuras de linguagem relacionadas a ele, tais como a metáfora, a hipérbole, o paradoxo e a hipotipose.

Entende-se, também, que o texto grotesco não existe sem uma subjetividade abstrata autoral que habita dois níveis da produção textual/discursiva: a linguística e a social, procurando manipular outra subjetividade abstrata não-autoral. Tanto no nível social quanto no textual, o receptor-interpretante/enunciatário é uma entidade que precisa ser ao menos imaginada pela subjetividade do produtor/enunciador. Sendo entidades abstratas autorais e não autorais, sociais e textuais, produtor, receptor-interpretante e sujeito da enunciação são subjetividades éticas manipuladoras/manipuladas, que produzem e consomem valores semânticos e ideológicos. No caso da imagem, o produtor/enunciador/imitador vai manipular o receptor-interpretante/enunciatário/ reconhecedor a partir de substâncias expressivas topológicas, cromáticas e eidéticas e da relação sintática de seus formantes plásticos.

Feitas essas aproximações entre estética, linguagem, semiótica discursiva e semiótica tensiva, algumas imagens grotescas do ator social ex-presidente brasileiro Jair Messias Bolsonaro serão descritas e, depois, analisadas em termos de conteúdos e formas expressivas. As figuras analisadas são desenhos e fotomontagens, que podem apresentar ou não a linguagem verbal. Enquanto os últimos são tipos de textos que utilizam apenas uma substância de expressão, a visual, os primeiros são textos sincréticos, que apresentam mais de uma substância da expressão para compor o conteúdo, em nosso caso a visual (inclusive o desenho das letras) e a verbal. No caso da ancoragem verbal, além de seu caráter visual, pode-se ainda, segundo Pietroforte (2012PIETROFORTE, A. V. Semiótica visual: os percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2012.), delimitar dois tipos de operação do texto escrito na imagem: a ancoragem referencial, com legendas e títulos que a explicam; ou a ancoragem por etapas, que não necessariamente a explica, mas a complementa, como os textos/balões nas histórias em quadrinhos, que interagem com o texto visual e completam seu sentido.

4 AS IMAGENS GROTESCAS DO EX-PRESIDENTE BOLSONARO

Como poderíamos esperar observando a estética grotesca, um tipo de representação do ex-presidente envolve o reino animal, e suas mais diversas espécies. Nas figuras (1A-1E), o rosto do político, mesclado a aves de rapina e quadrúpedes equinos, revela a construção do sentido a partir de valores disseminados nos eixos contrários do ser-parecer, transformando o político em ser complexo, homem-animal pertencente, igualmente, ao reino natural e cultural, e criando valores paradoxais.

Na figura 1A, de Renato Aroeira (RA), Bolsonaro e seus filhos são figurativizados como aves de rapina pousadas sobre ossos roídos, e ainda com restos de carne em decomposição, que formam o número 2021, fazendo alusão ao início do terceiro ano de mandato do político. O número 1 do ano 2021, diferentemente dos números anteriores, é figurado como um suculento e gordo pedaço de carne crua. A posição do número e sua descrição visual em relação aos outros conota uma previsão sombria para o futuro, indicando que o ano que se inicia será devorado pelo ex-presidente e seus filhos urubus. A previsão disfórica é suportada pela ancoragem verbal referencial no topo do desenho, cujo enunciado é: carne nova no pedaço.

Na figura 1B (Nardo Motta), Bolsonaro assume mais uma vez a imagem de um escuro homem pássaro, mas que, agora, como mãe zelosa, alimenta seus filhotes, representados como crianças. O alimento que a ave grotesca despeja/regurgita nas bocas escancaradas é um composto formado por ossos e suásticas nazistas. O título da imagem é “o cercadinho do medo”, fazendo alusão aos encontros diários que o presidente tinha com seu público, em Brasília, que ficava contido por grades de segurança.

Na figura 1C (Gilmar), o ex-presidente é uma ave, escura, de rapina, e pode ser identificado pela faixa presidencial. Nesse caso, a transformação do homem em natureza/animal é total, mas porta o traço humano, definido pela faixa e pelo texto verbal, que funciona como ancoragem de etapa, completando o sentido do desenho. A ave ameaçadora vocifera, pousada sobre a cruz de uma lápide, na frente da qual um homem chora, ajoelhado: “Vacina, só se for na casa da tua mãe (texto à esquerda da imagem). Chega de frescura e de mimimi. Vai chorar até quando? (textos à direita da imagem)”. É importante comentar que as falas da ave, em uma intensidade de voz, representada na cor vermelha, não são criações do enunciador, mas trechos de opiniões omitidas pelo ex-presidente, e veiculadas em mídias durante seu mandato. Nesse texto sincrético, as falas citadas relacionam os dois atores, o que permite que o ex-presidente não precise ser representado realisticamente.

Na figura 1D (RA), Bolsonaro é representado com cascos equinos, e olha com olhos esbugalhados e uma expressão estúpida diretamente o enunciatário. Sua imagem também é ancorada em um texto verbal, que suporta um teste de múltipla escolha, e é realizado pelo próprio interlocutor, que fala em primeira pessoa, e procura medir o conhecimento do leitor/interlocutário a seu respeito. Do lado esquerdo da imagem, na parte superior do quadro, o gênero do texto é identificado: “Múltipla escolha (pra ficar mais fácil)”; à direita da imagem, a pergunta e as opções a serem assinaladas são apresentadas.

Na figura 1E (sem autor), o ex-presidente é acompanhado de outros membros do governo, e fortes apoiadores e mentores (como o escritor e ensaísta Olavo de Carvalho, já falecido, e o pastor evangélico Silas Malafaia). A ancoragem verbal referencial identifica as pessoas representadas como “bichos escrotos”, fazendo referência à canção homônima do grupo Titãs (1982) que, segundo Lopes (2020), alude não apenas a seres transmissores de doenças, mas ao regime militar. Na forma imperativa, o enunciado ordena que os políticos/bichos voltem ao seu lugar de origem, os esgotos, e convivam com seus semelhantes, ou seja, moscas, baratas e ratos. Insetos rastejam ou estão pousados nos corpos dos políticos. Enquanto o pastor evangélico ostenta um chifre demoníaco, Olavo de Carvalho, o guru intelectual do ex-presidente, mostra uma língua reptiliana; Bolsonaro, por sua vez, com o rosto inchado e putrefato, veste a faixa presidencial com uma barata, e afaga uma ratazana. O texto visual mostra esses sujeitos animalizados posando, como em uma fotografia, e olhando para a câmera:

Figura 1
Bolsonaro animal

Além da aparência animal ou bestial, e seguindo o eixo semântico natureza/cultura, as representações grotescas de Bolsonaro também invadem o campo semântico do monstruoso e do disforme. Na figura 2A1 (sem autor), ostentando a faixa presidencial no ombro esquerdo e a bandeira dos EUA na lapela direita, o ex-presidente, representado como ser monstruoso com olhos vermelhos e dentes arreganhados amarelados, rosna, encarando o enunciatário. Nessa imagem, assim como na relacionada ao grupo Titãs, a intertextualidade com a cultura popular é evidente, e o texto cita o rosto de um personagem da franquia dos filmes Guerra nas Estrelas, o senador Palpatine (figura 2A2), um político dominado pelo lado negro da força, e simpatizante de ideologias imperiais, autoritárias, antidemocráticas e violentas (no enredo do filme, o personagem é responsável por um golpe político que causa uma guerra intergaláctica).

Na figura 2B (sem autor), o rosto do ex-presidente, que fala em um microfone com uma expressão facial de ódio, apresenta uma textura de pele diferente, não-humana, fazendo alusão ao efeito nocivo de uma exposição a um vírus perigoso: a imagem é ancorada no seguinte texto verbal, que coloca em caixa alta duas palavras, vacina e cloroquina: “Vou rogar uma praga em vocês; Acabou a VACINA e o oxigênio, sobrou a CLOROQUINA”. Nesse caso, uma das suposições de construção de sentido da imagem, além da representação da maldade, é a relação direta entre a pele escamosa do político e os efeitos colaterais do remédio anunciado por ele.

Na figura 2C (RA), o desenho apresenta um conjunto de sketches que representam o presidente dos EUA, Donald Trump e o presidente brasileiro (que foram comparados e aproximados durantes seus mandatos) com faces monstruosas, ancorados referencialmente em um texto verbal que sugere uma ação política de afastamento desses políticos do poder, dizendo “Razões para um impeachment”, sugerindo motivos relacionados ao caráter não-humano e monstruoso desses personagens. No último sketch de Bolsonaro, a face ameaçadora do político é representada como uma labareda de fogo, fazendo possível alusão à destruição da biodiversidade do país, atribuída ao político e a seu governo.

Na figura 2D (Paulo Kalvo), o conteúdo temático e figurativo é rico, e Bolsonaro, no centro da imagem, é representado como um títere com crânio de esqueleto e o cabelo do palhaço norte-americano Bozo (um dos apelidos do político, que o compara ao famoso personagem de um programa infantil), discursando em um pódio com o ícone do aplicativo Whatsapp, imagem que alude a um governo intensamente presente no mundo digital, nas redes socias, e produtor de fake news. O presidente-esqueleto marionete, que veste uma suástica no braço direito, e cuja mão, cheia de sangue, suja a bancada, é manipulado por um ser tenebroso envolto em uma roupa escura com capuz, e com a face do vírus da Covid-19. Na parte inferior da figura, uma manada de bois pasta ao redor do púlpito de onde o presidente fala26 26 No Brasil, os simpatizantes do ex-presidente são relacionados ao “gado”. . Atrás dele, há uma cerca de arame farpado, que alude aos campos de concentração nazistas, e um cemitério. Perfilados do lado direito e esquerdo da imagem, e cercando o presidente que discursa, há militares com rostos de esqueleto e membros do grupo racista de extrema direita Ku Klux Klan; um deles segura uma laranja, fruta escolhida como símbolo da corrupção brasileira. No fundo da imagem, uma floresta queima, tingindo de vermelho a metade superior da imagem.

Figura 2
Bolsonaro criatura

Figura 3
Bolsonaro espectro da morte

Além do eixo semântico natureza/cultura, o eixo semântico fundamental vida/morte é também explorado, revelando um ex-presidente figurativizado como um ser das trevas, demoníaco e/ou com feições de um esqueleto. Na figura 3A (sem autor), ele sorri com escárnio, envolto em um véu escuro, e dentro de um espaço e tempo que remete à idade média. As mãos de esqueleto do ex-presidente-monge-das-trevas estão unidas em prece e amarradas por um terço do qual pende um crucifixo invertido, símbolo de cultos demoníacos. As escolhas temáticas e figurativas da imagem aludem a um ritual satânico. Novamente, Bolsonaro olha diretamente na direção do enunciatário.

Na figura 3B, também ancorada no texto verbal como referência, o ex-presidente, identificado pela palavra MORTE, é uma das “quatro bestas do apocalipse’, e cavalga, em um espaço que parece desértico e sem vida, ao lado de três membros de seu governo: o DESCASO, representado pelo ex-vice-presidente Hamilton Mourão, que cavalga um corcel em chamas e empunha uma espada flamejante (cujo fogo preenche a parte superior do quadro); a INCOMPETÊNCIA, representada pelo ex-ministro da saúde Eduardo Pazuello, responsável, na opinião de muitos brasileiros, pela campanha desastrosa de enfrentamento à COVID), e a FOME, o ex-ministro da economia Paulo Guedes, entendido por seus detratores como um economista neoliberal que protege os ricos, contrário aos direitos dos trabalhadores, e que no desenho segura uma carteira de trabalho em chamas. Ao lado direito da imagem, cuja cor predominante é o vermelho, e perto da cabeça de Bolsonaro, paira uma caixa de Cloroquina, medicamento apoiado pelo ex-presidente contra a COVID.

Na figura 3C (sem autor), o ex-chefe da nação, enquanto caminha para o lado oposto do enunciatário, como se cruzasse a imagem ou se afastasse, mantém contato visual com o leitor e o encara. Representado como a morte, segura uma foice com os dizeres: PÁTRIA AMADA BRASIL. Atrás dele, uma seringa, pressuposta como a vacina contra o vírus da COVID, está inserida em suas nádegas.

A estética do grotesco também é utilizada em outro tipo de representação de Bolsonaro: não mais como animal, monstro ou ser demoníaco, mas líder e político, em narrativas nas quais o ex-presidente pode ser visto como ator social no âmbito privado, ou é comparado a outros líderes considerados loucos e perigosos, como Nero e Hitler. Nesse caso, o político é composto de traços semânticos relacionados a valores de mais humano, mais cultura, e menos natureza. Enquanto valores de morte continuam a ser explorados, outros valores entram em jogo, tais como lógico x mitológico, e sanidade x loucura. A partir de uma retórica hiperbólica, o ex-presidente é figurativizado como super-humano, figura trágica, enlouquecida ou simplesmente banal. Mais humanizado, discute-se o político como ameaça potencial ao tecido social e, como já vimos acima, ao ecossistema. Na figura grotesca 4A (sem autor), com tons verdes e amarelos e a bandeira brasileira ao fundo, Bolsonaro super-herói está acompanhado de membros do governo, representados como um grupo de outros super-heróis da Marvel Comics, unidos para salvar o Brasil. Os desenhos, porém, são menos ligados aos quadrinhos e a seus traços, do que a imagens da franquia de filmes do universo cinematográfico Marvel, “Os vingadores”.

Nessa narrativa hiperbólica que incorpora a cultura popular, o ex-juiz Sérgio Moro35 35 Sérgio Moro ficou conhecido por julgar o presidente Luis Inácio Lula da Silva. Lula foi preso por crimes de corrupção, mas sua sentença foi anulada posteriormente devido a inconsistências jurídicas. é o super-homem, o ex-vice-presidente Ernesto Mourão é o monstro verde Hulk, a então deputada federal paulista Joice Hasselmann é a Mulher Maravilha, o ex-ministro da tecnologia Marcos Pontes é o Homem de Ferro, e Bolsonaro é o Capitão América, segurando um escudo com as cores da nação brasileira. Apesar de ter sido provavelmente criado por algum simpatizante do ex-presidente, e se tratar de um exemplo de grotesco eufórico, um emoji gargalhante, colocado no canto inferior direito da imagem, revela um sancionamento negativo da imagem e de seu produtor.

Na figura 4B (sem autor), o político ocupa um espaço privado e familiar, sentado em uma cadeira que parece pertencer a uma sala de estar. À vontade, e vestindo camiseta, bermuda e chinelo, um vestuário que conota mundo privado, mas também desleixo e pouca elegância, Bolsonaro descansa as pernas, estendidas sobre uma pilha de crânios que toma a sala. O político conversa com o vírus da COVID-19, queixando-se, em uma ancoragem verbal de etapa, da aflição da população, pela busca da vacina, que entende como exagerada: “Essa aflição do povo pela vacina não se justifica”. À sua frente, o vírus concorda, utilizando linguagem informal e gíria: “Eu super concordo contigo, brô”!, enquanto mergulha a mão em um pote de pílulas de cloroquina, que no contexto representado, é metaforizado como um snack, amendoim ou pipoca.

Na figura 4C (Jota Camelo), o título “BOLSONERO” faz alusão ao imperador romano associado à tirania, à extravagância e à loucura, sendo suspeito de incendiar parte de Roma por causa de seus caprichos. O ex-presidente, englobado em um espaço desolado, com ruínas em chamas e crânios no chão, adota um gesto teatral e trágico, e ordena, solitário: “Comprem mais cloroquina”. Nessa representação espetacular e shakespeareana, o grotesco atinge proporções tragicômicas, enfatizando a teatralidade, a retórica vazia, e a cloroquina como salvação improvável para o caos social representado.

Na figura 4D, o político é figurado como recém-nascido que vem à luz em espaços carnavalescos e a partir de orifícios improváveis. Relacionado ao discurso carnavalesco por Bakhtin (1987BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora Hucitec. 1987.), o grotesco se faz notar também na fotomontagem bizarra (sem autor) que representa o nascimento do ex-presidente, que vem à luz segurando duas bandeiras americanas, e emerge do ânus de uma mulher posicionada de quatro em um carro alegórico. Na imagem o rosto de Bolsonaro é adicionado ao feto grotesco, e a montagem coloca o ex-presidente dentro de um espaço carnavalesco onde uma multidão parece assistir ao parto. O discurso carnavalesco é amplificado com a colocação de emojis amarelos que gargalham com lágrimas azuis nos olhos. Ancorada no discurso verbal referencial, o título da imagem esclarece o conteúdo da efeméride, um nascimento/defecação: “Momento exclusivo do nascimento de um bolsominions”. Nessa narrativa cômica e chocante eufórico/disfórica, combinam-se nascimento e defecação, e a ambiguidade e a ironia do discurso grotesco causam uma inversão de valores diretamente relacionada à inversão de orifícios, e ao nascimento de um feto/fezes, que transforma o biológico em bio-escatológico.

5 ANÁLISE SEMIODISCURSIVA DAS IMAGENS DO POLÍTICO

Como os textos sobre Bolsonaro foram elaborados por grupos e indivíduos que se mostravam contrários ao político e a sua ideologia, presume-se que a intenção de cada texto é a de apontar e criticar também o governo, suas ideias e membros. Os destinadores sociais, os produtores sujeitos, manipulam o receptor-interpretante através de narrativas que abordam os vários temas sociais considerados problemáticos na época, tais como o tratamento da pandemia da COVID, a destruição do meio ambiente e o enfraquecimento de direitos sociais e trabalhistas. Nesse momento sócio-histórico, o movimento dos produtores textuais foi o de triar fatos sobre o governo que já haviam sido triados pelos meios de comunicação nacionais e internacionais, e redes sociais, e reformulá-los em novas narrativas (em uma operação linguística que podemos aproximar da adaptação e da tradução). Nessa nova versão, abandona-se o fato, orientado discursivamente pela história, para gerar o acontecimento, orientado discursivamente pelo mito (Lara; Brito, 2016LARA, G. M. P.; BRITO, G. L. Acontecimento e discurso poético: uma análise de abordagem mítica da origem de Portugal em Mensagem, de Fernando Pessoa. Em: Em torno do acontecimento: uma homenagem a Claude Zilberberg. Org. Conrado Moreira Mendes e Glaucia Muniz Proença Lara. Curitiba: Appris Editora, 2016. p. 265-280.). A triagem da triagem pode ser observada, por exemplo, nos textos que repetem as palavras do ex-presidente Bolsonaro (1C). Sendo a triagem de uma triagem, e gerando o acontecimento, “[…] compreendido como o “correlato e intenso ou hiperbólico do fato” (Lara; Brito, 2016, p. 265), os textos grotescos sobre Bolsonaro revelam sua condição mestiça concessiva e intensa, e operações tensivas de recrudescimento, operados por cifras tensivas mais mais.

Observamos, nas amostras recolhidas, quatro tipos básicos de representação do político: homem/animal, criatura, espectro da morte/anticristo e líder mentalmente desequilibrado. O investimento semântico para retratar o político estende-se desde a criação de atores complexos, onde o homem é amalgamado a, ou transformado em outro ser, tornando-o uma criatura mitológica, até a retratação paródica e cômica de líder, onde os semas mais humano e mais cultura são utilizados. Do ponto de vista semionarrativo, as imagens grotescas do ex-presidente oscilam, de maneira profunda e mais abstrata, a partir do eixo fundamental de três valores semânticos fundamentais contrários: ser x parecer, vida x morte e natureza x cultura. Cada tipo de representação propõe outros pares semânticos opostos.

Em relação aos eixos contrários natureza/cultura, Bolsonaro é figurativizado como homem-animal (ave de rapina, quadrúpede e ser do esgoto que mora com ratos), operação semântica que pode ser entendida como metafórica e complexa. O traço animal em Bolsonaro também é utilizado para compará-lo a animais considerados popularmente como pouco inteligentes. Ainda no eixo natureza/cultura, a representação do corpo e das manifestações corporais, como era de esperar no grotesco, apresentam corpos e faces desfigurados, deformados e seres que regurgitam, apodrecem e defecam, comportando-se como animais.

As imagens do político como homem-criatura criam paradoxos nos eixos de ser/parecer, e o ex-presidente é figurado como ser deformado; como espectro da morte, as imagens acionam o eixo morte/vida. Investido de valores semânticos relacionados ao espectro do mal, articula-se também o eixo sagrado/profano (como aquele que não respeita os valores instituídos do sagrado). Bolsonaro é também retratado como o anticristo, portando objetos relacionados à demonologia. Finalmente, ao ser investido de mais humanidade e ser caracterizado como líder humano, mas enlouquecido, o político, além de ser construído a partir do eixo morte, relacionado à destruição, ganha novos investimentos semânticos, como razão x loucura (figuras 4A-4E).

No nível fundamental do sentido relacionado aos quatro elementos naturais, dois se destacam: a terra, com seus vermes, insetos e animais peçonhentos: e o fogo, elemento no qual Bolsonaro se transforma (figura 2C), e com o qual o político destrói a nação (figuras 3B, 4C e 4D). Além disso, as aves de rapina sugerem o elemento ar. Observa-se, comparando-se os elementos naturais enunciados, que em nenhum dos textos o elemento água foi utilizado, o que demonstra uma produção de sentido que abandona valores associados a esse elemento, tais como vida e purificação. Nas várias representações grotescas do ex-presidente, o elemento natural mais repetido é o fogo, associado à destruição, mesmo com conotações purificadoras.

De maneira geral, a análise revelou que o presidente é figurativizado como ser deformado e desequilibrado, oriundo de reinos animais relacionados à terra e ao céu, ser monstruoso, ser espiritual maligno e ser humano destrutivo, habitando espaços tanto físicos como metafísicos, terrenos e espirituais. De forma geral, representado como animal de rapina, como criatura deformada e maligna, como espectro da morte e como líder desiquilibrado e perigoso, detecta-se outro eixo semântico fundamental, comum a todos os textos, pois expressam questões éticas e morais: o eixo bem/mal no qual o político é sancionado negativamente pelo enunciador, que o associa ao mal, à destruição e à morte.

É importante ressaltar que nossa definição das várias caracterizações ou figurações do político procurou ser apenas didática e não pretendeu fornecer uma classificação fechada. Ao contrário, dentro da perspectiva tensiva desse conjunto de textos, nota-se um investimento de mais e menos nos valores fundamentais e nas grandezas semióticas utilizadas para a figurativização do ex-presidente, relacionados ao eixo extensivo do texto. Uma vez que mescla com maior ou menor intensidade todos os níveis narrativos do texto, do fundamental ao discursivo, tanto os eixos semânticos fundamentais abstratos, assim como os figurativos das imagens, oscilam sempre entre as cifras tensivas de mais e menos. Na figura (1C), por exemplo, o presidente é mais animal e menos humano, sendo representado por um pássaro, enquanto na figura (1D) ele é mais humano do que animal (mas seus cascos equinos podem ser vistos). As oscilações de mais e menos, que saltam cifras tensivas nas representações dos valores ser/parecer, vida/morte e natureza/cultura, acionam justamente a característica concessiva do discurso.

Se o grotesco, como lembra Bakhtin (1987BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora Hucitec. 1987.), é ligado ao baixo, ao carnavalesco e ao popular, observamos como os textos analisados dialogam com a cultura de massa, em verdadeiras operações intertextuais e interdiscursivas: verificamos, na composição de sentidos dos textos, referências ao rock brasileiro, às franquias de cinema, e a fatos históricos, como o incêndio de Roma, executado por Nero (2A, 4A e 4C). Na dimensão carnavalesca do discurso, que aproximamos do modo discursivo acontecimento, observou-se o uso de emojis de gargalhada em muitas das imagens, revelando a dimensão da enunciação enunciada do texto, sua subjetividade autoral, que é também traço marcante do grotesco. Os valores de morte e maldade, que orientam o sentido do texto para caracterizar o ex-presidente, geram configurações espaciais disfóricas e distópicas, apresentando locais putrefatos, desérticos e sem vida. Devastados, estéreis e pestilentos, esses espaços são compostos por objetos também relacionados a valores de morte: esqueletos, cruzes, esgotos, cidades devastadas etc.

Nota-se que, em alguns casos, Bolsonaro grotesco olha e/ou dirige-se diretamente ao público (figuras 1D, 2A, 2B e 3A) através de texto verbal. Em relação às funções de etapa e referência da ancoragem verbal no texto visual, que criam efeitos de objetividade (como o título e a legenda), e subjetividade (como a fala do personagem), a função de etapa demonstrou que alguns enunciados verbais são construídos em primeira pessoa, transformando o enunciatário em interlocutário, e uma estratégia que procura estabelecer uma cena enunciava próxima do tempo real da interação, criando efeitos do “aqui e agora” da enunciação e intensificando a relação sensível entre produtor e interpretante.

Em relação à figurativização do sujeito, do espaço e do tempo, percebemos como esse tipo de gênero busca a adesão do enunciatário a partir do já conhecido e do facilmente identificável e característico em uma cultura, ou seja, a partir de um crer-saber já estabelecido e programado socialmente, acionando estratégias de sentido de caráter mitológico (e sublógico). Se de maneira geral o fazer mitológico, como prática simbólica de compreender a realidade interna e externa ao sujeito, através de uma narrativa, é sempre acionado na inter-relação enunciador e enunciatário no texto, e entre produtor e interpretante no mundo “real”, no caso do grotesco, que é subversivo e carnavalesco por natureza, o fazer mitológico é aparente e esperado, emergindo dos valores semânticos fundamentais para figurar seres complexos. É a partir desse fazer textual grotesco, e gerador de acontecimento, da apreensão e do sobrevir, que o produtor social oposto ao político se projeta como enunciador do discurso, revelando-se como comentador de um fato social. Em nosso caso, como o texto possui forte teor mitológico e intertextual, pode-se dizer que a enunciação mistura vários tipos de discursos, de modo que propõe uma mistura quase tônica, e ligada à fusão de elementos. Assim, enquanto do ponto de vista da produção do texto, ou da enunciação, existe uma triagem da triagem, do ponto de vista do produto, ou do enunciado, opera-se uma mistura, relacionada ao mundo supranatural.

Já observamos que o ex-presidente, muitas vezes, é deformado, apresentando traços animais, monstruosos e malignos, e colocado em ação em cenários distópicos. O conteúdo surpreendente e bizarro dos textos grotescos analisados suscita, ainda, uma breve investigação sobre seus formantes plásticos. As representações figurativas ao nível do conteúdo do texto são elaboradas a partir de sua relação com um plano de expressão, cuja substância se dá a partir de categorias topológicas, cromáticas e eidéticas, relacionadas dentro de uma sintaxe visual tensiva. No caso do grotesco, entendemos que o discurso procura a ascendência do andamento e do ritmo das imagens, a mestiçagem tônica de grandezas da espacialidade e da temporalidade, e a concessão, modalizadas pela retórica do sobrevir, da apreensão e do acontecimento. Tal organização sensível modal e sintática do discurso em textos cuja proposta é a iconização grotesca é gerada por uma série de artifícios expressivos que merecem ser mencionados.

Em relação às imagens escolhidas é importante salientar que há diversos tipos de produtores textuais, profissionais e amadores, e com maior e menor grau de talento artístico, ou letramento visual digital. No entanto, independentemente desses fatos, pode-se dizer que há uma série de escolhas topológicas, eidéticas e cromáticas para representar o ex-presidente, que é fruto de um letramento visual socializado (TV, fotografias, comerciais, filmes etc.) no qual os produtores estão inseridos, que são aprendidos e difundidos. Em relação às categorias topológicas, por exemplo, dado que o ex-presidente é o assunto principal de todos os textos visuais, ele está presente em todas as imagens, representado de corpo inteiro ou parcialmente (geralmente a face), e ocupando a posição central da composição. O texto grotesco, tendo uma proposta icônica e paródica, enquanto mantém reconhecíveis os diferentes corpos que o ex-presidente adquire, humanos e animais, altera, muitas vezes, a proporção de membros e órgãos dos corpos representados.

Na categoria eidética, por exemplo, relacionada às formas empregadas no texto e à discriminação de regiões visuais, percebe-se que, nos desenhos, os traçados das figuras são muitas vezes interrompidos, sobrecarregados, ou inesperados, relacionados à caricatura e a formas exageradas, ou ao choque de dimensões, e frequentemente revelando a disposição motora do produtor imitador/enunciador (1A, 1B, 1C, 1D). Nas imagens de Camelo, por exemplo, o contorno do corpo de Bolsonero (4C) é composto de linhas acentuadamente onduladas, que emprestam um ar cômico e bizarro ao personagem. O rosto do ex-presidente como animal e criatura (1E, 2A, 2B) vem recoberto por traços que auxiliam a conotação de um rosto malformado, deformado e maligno. Em algumas imagens digitais (3B, 4A, 4D), o rosto de Bolsonaro é aplicado sobre um desenho, ou outro personagem cuja verdadeira face acaba sendo encoberta, em outro processo de triagem da triagem. Mais uma vez, nem sempre as dimensões entre corpos e rostos são respeitadas. Ainda do ponto de vista eidético, a fonte das letras de algumas imagens que utilizam o texto verbal é manuscrita de maneira não-cursiva, como demonstram as figuras (1A, 1C, 1D). Percebe-se que as letras de forma que compõem o texto verbal são feitas pela mão do produtor desenhista/enunciador, que deixa sua marca caligráfica, seu gesto corporal no desenho, como estratégia enunciativo-narrativa.

Em relação à categoria cromática, a produção de sentido se dá a partir de dois tipos de cores: as relacionadas simbolicamente a valores de morte e elementos ligados a ela, como o preto; e as cores de dois países: o Brasil e os EUA. Assim, cores quentes e avermelhadas, o azul, o preto, o branco, e vários tons de cinza fazem parte da paleta cromática dos textos, sendo utilizadas para compor as várias facetas ideológicas de Bolsonaro, ambientes distópicos, e caracterizar a destruição, a ausência de vida, as ciências ocultas e o mundo espiritual habitado por seres da escuridão. Como poderíamos esperar, devido ao slogan de campanha “Brasil, acima de tudo”, as cores da nação, utilizadas maciçamente pelo governo Bolsonaro, o verde e o amarelo, são mobilizadas nas composições grotescas, muitas vezes conjuntamente com as cores norte-americanas, uma característica do governo Bolsonaro (figuras 4B, 4E), que via os EUA não apenas como maior parceiro econômico, mas como fonte de inspiração ideológica. No caso da paródia grotesca, o uso de ambas as cores e bandeiras serve como comentário irônico, lembrando a subserviência aos EUA, e compondo figurativizações complexas do político, figurativizado por duas pátrias.

De maneira geral, a programação cromática dos textos revela duas estratégias de sentido: o contraste e a aceleração. Em relação ao contraste, definido aqui como “[…] co-presença, na mesma superfície, de termos opostos (contrários e contraditórios) da mesma categoria plástica ou de unidades mais vastas, organizadas da mesma maneira” (Greimas, 2012) encontram-se imagens com total fundo branco, ressaltando o tema principal, desenhado em preto ou a cores (1A, 1B, 1C, 1D, 3C), e imagens carregadas de cores, que trabalham com o contraste e a hipérbole cromática, principalmente quando unem as cores dos EUA e do Brasil, as cores amarelas dos emojis e de outras paletas que compõem o texto visual (2D, 3B, 4D).

O emprego de cores contrastastes, quentes e fortes, que existem entre contrários (cores brasileiras ou/vs. cores norte-americanas, como nas imagens 1E, 2A, 4D) e contraditórios (heróis americanos com rostos de políticos brasileiros e cores brasileiras, como em 4A, ou um chefe da nação representado por pátrias diferentes), utilizadas para delimitar regiões de sentido aliadas às categorias eidéticas, leva a uma tonificação no eixo das temporalidades e espacialidades, e causa efeitos de aceleração no conteúdo do texto visual planar. Segundo Pietroforte (2012PIETROFORTE, A. V. Semiótica visual: os percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2012.), que aproxima as acentuações tônicas da melodia, que são da ordem do tempo, das formas e cores da pintura, que são da ordem do espaço, quanto mais marcações visuais houver na tela mais o discurso plástico possuirá ritmo e andamento acelerado, como nas duas gravuras de Mondrian, (Figura 5, a seguir):

Figura 5
Ritmo plástico em tela desacelerada e acelerada

Percebemos que muitos dos textos analisados possuem essa característica visual e procuram, dentro do discurso do acontecimento, acentuar o sentido do sensível textual, que comporá os elementos do conteúdo grotesco dos textos. De maneira geral, todos os textos apresentaram, a partir da manipulação de categorias topológicas, eidéticas e cromáticas, estratégias de sentido que procuraram tonificar e acelerar seu sentido, tanto através de formas e cores, como dos contrastes entre elas, em um projeto tensivo de aumento de intensidade do sentido, que é uma característica do grotesco.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em nossa discussão sobre o grotesco - a partir de imagens produzidas por grupos descontentes com o governo do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro - procuramos ampliar o entendimento dessa produção estética do ponto de vista semiodiscursivo, que nos pareceu pertinente por orientar a discussão para a questão da imagem como texto/discurso narrativo, gerando novas abordagens sobre esse tipo de fabricação de sentido. O grotesco foi relacionado a um gênero, estilo e tipo de retórica utilizados em diferentes conjuntos significantes, verbais e não-verbais, e diferentes contextos históricos, o que constrói, a partir de eixos básicos narrativos e tensivos, um texto inteligível/sensível baseado na ideia de discurso mitológico e retórica do acontecimento.

As imagens grotescas do ex-presidente Bolsonaro revelam um projeto enunciativo relacionado ao intenso, ao surpreendente e inesperado, que constrói textos a partir da combinação forçada de valores fundamentais básicos contrários, regidos por cifras tensivas de mais e menos, e elementos figurativos desses valores, que geram complexidades semânticas relacionadas ao metafórico, ao hiperbólico, ao antitético, ao paradoxal e ao hipotipótico, ou sensível (contrários e contraditórios).

A partir da semiótica tensiva, entendemos que os textos foram produzidos segundo uma retórica do acontecimento, utilizada para manipular o fazer-interpretativo do enunciatário através do choque e do estranhamento construídos por modos semióticos e estilos sintáticos. Em nosso caso os modos são o sobrevir (a surpresa), a apreensão (uma invasão sensível no espaço tensivo do sujeito) e o acontecimento (o evento inesperado). Os estilos sintáxicos são os de ascendência (intensidade), de mistura (a maneira pela qual os elementos da forma e do conteúdo do texto são especialmente triados e mesclados na composição grotesca) e concessão (relacionado ao caráter mitológico do político, à mistura de elementos de sentido, e a estratégias de contraste e tonificação).

Apesar da mistura tônica, que se dá na representação de um mundo supranatural, observamos que os textos analisados são triagens de discussões presentes na imprensa e nas mídias sociais. Assim, entendemos que a operação grotesca exige um aumento de tonificação de sentido, gerado por cifras tensivas de mais mais. Do ponto de vista da enunciação, mais triagem, e do ponto de vista do enunciado, mais mistura. Observou-se, também, que nos desenhos do político e nas formas das letras, no caso dos textos verbais, ficaram marcas motoras do enunciador.

O grotesco entendido como contra (contraprograma) do “naturalismo” ideológico de Bolsonaro e seu governo, afirma-se como radiografia inquietante, surpreendente e cômica do real, e como tentativa discursiva de conjurar o elemento demoníaco do mundo, de modo que esse gênero pode ser tomado tanto como sintoma de descontentamento e desequilíbrio das dinâmicas psicossociais, a que um sujeito corporificado está atrelado, como também maneira de, através da representação de um “supranatural”, gerar reflexão e mudança social. Nesse caso, uma vez que produtor/enunciador e interpretante/ enunciatário interagem na composição do texto, mesclando-se na figura de um sujeito da enunciação, verificamos como os receptores interpretantes do discurso ideológico do ex-chefe da nação (ou do programa semântico proposto pelo político) se mobilizaram para enunciar em oposição a esse discurso dominante, tornando-se antissujeitos do ex-presidente, em uma proposta crítica que vai além da elaboração de um simples contra-programa esperado.

Como contra (contraprograma), as imagens analisadas não clamam por um mundo melhor ou retomam ideais humanistas ou socialistas; ao contrário, revelam acontecimentos bizarros, criando eventos psicossocialmente disfóricos gerados por essa figura política, enfatizando o acontecimento como retórica. Assim, os discursos analisados procuram ir além dos contraprogramas mais esperados, e expõem suas críticas a partir do choque, da ruptura com o antagonismo mais natural e normal, e do carnavalesco, em um programa discursivo tensivo que transforma o natural bolsonarista em supranatural. Nesse sentido, o contra (contraprograma) grotesco pode ser entendido, a partir de Sodré e Paiva (2014), como reflexão sobre a vida, um outro estado da consciência, uma outra experiência de lucidez, que penetra a realidade das coisas e exibe sua convulsão.

Se o grotesco é erigido a partir do choque, do inesperado e do intenso, é justamente na tentativa de sua compreensão e absorção, ou seja, na tentativa de desaceleração de seu impacto, que forças psicossociais e discursivas contrárias são geradas, ligadas a modos e estilos sintáxicos tensivos opostos. Assim, é na produção e na recepção do grotesco que o tecido social busca a regeneração e a recomposição de valores eufóricos do estado, das modalidades do pervir, do foco e da rotina, que supõem equilíbrio e racionalidade, e a quebra de uma dinâmica social entendida como disfórica e naturalizada e euforizada pelo oponente - em nosso caso Bolsonaro e seu governo -, que procuraram assumir o controle ideológico em dado momento histórico, propondo um programa discursivo/mitológico específico.

REFERÊNCIAS

  • BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora Hucitec. 1987.
  • BARROS, D. L. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Humanitas. FFLCH-USP, 2002.
  • BAUDELAIRE, C. Œuvres complètes. Paris: Gallimard/La Pléiade, 1954.
  • CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas 2. O pensamento mítico. Trad. Cláudia Cavalcanti. São Paulo. Martins Fontes. 2004.
  • FIORIN, J. L. Figuras de retórica. São Paulo: Contexto, 2014.
  • GREIMAS, A. Semiótica figurativa e semiótica plástica. In: GREIMAS, A. Semiótica Plástica. Trad. Ignacio Assis Silva. Org. Ana Claudia de Oliveira. São Paulo. Hacker Editores, 2004. p. 75-96.
  • GREIMAS, A; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2011.
  • HOUAISS. UOL. Grotesco. Disponível em: https://bit.ly/44QYXII Acesso em: 27 dez. 2023.
    » https://bit.ly/44QYXII
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  • LARA, G. M. P.; BRITO, G. L. Acontecimento e discurso poético: uma análise de abordagem mítica da origem de Portugal em Mensagem, de Fernando Pessoa. Em: Em torno do acontecimento: uma homenagem a Claude Zilberberg. Org. Conrado Moreira Mendes e Glaucia Muniz Proença Lara. Curitiba: Appris Editora, 2016. p. 265-280.
  • LOPES, C. A. M. A revolução dos bichos escrotos (2020). In: Pensar a educação: um jornal para a educação brasileira. Disponível em https://shre.ink/8cWE Acesso em: 20 dez. 2023.
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  • PIETROFORTE, A. V. Semiótica visual: os percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2012.
  • SODRÉ, M.; PAIVA, R. O império do grotesco. Rio de Janeiro: Mauad, 2002. Ed. 2014.
  • TATIT, L. Claude Zilberberg e a prosodização da semiótica. Em: Em torno do acontecimento: uma homenagem a Claude Zilberberg. Org. Conrado Moreira Mendes e Glaucia Muniz Proença Lara. Curitiba: Appris Editora, 2016. p. 17-33.
  • ZILBERBERG, C. As condições semióticas da mestiçagem. In: CAÑIZAL, E. P.; CAETANO, K. E. (org.) O olhar à deriva: mídia, significação e cultura. São Paulo: Annablume, 2004. p. 69-101.
  • ZILBERBERG, C. La structure tensive: suivi de note sur la structure des paradigmes et de sur la dualité de la poétique. Liège: Presses Universitaires de Liège, 2012.
  • ZILBERBERG, C. Elementos de semiótica tensiva. Trad. Ivã Carlos Lopes, Luiz Tatit e Waldir Beividas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011.
  • 1
    Segundo o Dicionário de Semiótica (Greimas; Courtés, 2011GREIMAS, A; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2011.); verbete: quadrado semiótico. O quadrado semiótico é uma representação visual lógica de uma categoria semântica, a partir de uma estrutura elementar de significação definida como uma dupla relação de oposição entre dois termos, que podem ser afirmados ou negados nos eixos semânticos dos contrários e dos subcontrários. As dinâmicas de sentido articuladas nessa dupla oposição geram sentidos de contrariedade, contradição e complementaridade, tais como os semas humano/não humano/animal (a transformação de um homem em lobisomem, por exemplo). A reunião de termos opostos no eixo afirmativo dos contrários (humano e animal, ao invés de humano ou animal) resulta em termos complexos e metafóricos (humano + animal) que são comumente utilizados em discursos sagrados, míticos, poéticos etc. e, em nossa opinião, no discurso grotesco.
  • 2
    A mitologia é entendida aqui como uma narrativa, verbal ou não verbal, que produz conteúdos que buscam levar o enunciatário/narratário a um crer-saber-fazer-sentir psicossocial, operando discursos feitos a partir de triagens e misturas de valores sociais materiais ou abstratos. Segundo Cassirer (2004CASSIRER, E. A filosofia das formas simbólicas 2. O pensamento mítico. Trad. Cláudia Cavalcanti. São Paulo. Martins Fontes. 2004., p. 304), a consciência mítico-primitiva, que opera a mistura de gêneros de seres vivos e fusões entre os limites naturais e espirituais, revela algum traço universal da lógica do pensamento mítico, na forma e direção de sua formação de conceitos e de classes. A partir da ideia do mito como portador de traços universais e articulador de conceitos, pode-se propor a ideia de “mitologização” do mundo natural, e considerar a consciência mítico-primitiva como um tipo de consciência humana possibilitada pelas linguagens compartilhadas socialmente, de modo que todas as dinâmicas humanas são construídas mitologicamente.
  • 3
    Jair Bolsonaro foi presidente de 2019 a 2023. Em 2023, o político foi considerado inelegível por seus constantes ataques ao sistema eleitoral brasileiro e pela tentativa de desestabilizar a democracia brasileira.
  • 4
    As imagens foram retiradas à época de grupos do Facebook, que podem atualmente não existir ou ter seu nome alterado. São eles: bolsonaro na cadeia; diário de bolso; fora bolsonaro; grupo anti pt, contra a censura e pela democracia; grupo de apoio ao presidente lula; os melhores tweets da esquerda; paulo pimenta, sâmia bonfim; somos 70 porcento. Devido à pandemia, à distância entre o período da pesquisa e o período da aceitação do artigo, e ao encerramento de alguns grupos do Facebook, algumas imagens desapareceram de suas publicações originais e foram buscadas em outros locais, como no Pinterest, no Instagram ou nos sites e páginas dos próprios artistas.
  • 5
    Bakhtin (1987BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora Hucitec. 1987.) explica que o corpo medieval foi construído a partir de Aristóteles, na base da doutrina dos quatro elementos, que são posicionados em um lugar e nível hierárquico na estrutura cósmica, e subordinados a uma certa regra do alto e do baixo. A semiótica discursiva utiliza esses saberes e essas crenças para explicar valores fundamentais humanos, disseminados até hoje nos mais variados discursos.
  • 6
    Disponível em: https://shre.ink/8cWl. (verbete; grotesco). Acesso em: 27 dez. 2023.
  • 7
    Entende-se a imagem icônica como uma referência visual ou descrição visual motivada pela imagem de algo existente em um mundo natural, seja ele real ou fictício. A imagem icônica é oposta à imagem abstrata. Como tipos de figurativização, o concreto e o abstrato podem interagir em um texto.
  • 8
    Discursos verbais e visuais escatológicos, por exemplo.
  • 9
    Mas não necessariamente, pois se calcula que o grotesco pode ser relacionado também ao prazeroso.
  • 10
    No Dicionário de Semiótica (verbete: ser), Greimas e Courtês (2011GREIMAS, A; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2011.) acreditam que o SER designa o termo positivo da imanência, contraindo uma relação de contrariedade com o PARECER.
  • 11
    O Dicionário de Semiótica (verbete: universo), ao definir o universo semântico fundamental, explica que sua relação a estruturas axiológicas elementares permite empreender a descrição de um universo individual, articulável segundo a categoria vida/morte e ao universo coletivo, articulável segundo a categoria natureza/cultura. Ambos os universos permanecem abstratos no nível mais fundamental do sentido, sendo suscetíveis de serem figurativizados homologando-se uma ou outra de suas categorias fundamentais com a estrutura figurativa elementar dos quatro elementos da natureza: fogo, ar, água e terra. Percebe-se que essa definição dialoga com a visão de Bakhtin (1987BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora Hucitec. 1987.), relacionando o grotesco aos quatro elementos para delimitar os valores básicos fundamentais. Esses quatro elementos, acompanhados dos seres que os habitam, ainda permanecem na atualidade, sendo heranças discursivas antigas (o mundo grego antigo, por exemplo) e mitológicas.
  • 12
    Para melhor abordagem do assunto consultar Figuras da retórica (Fiorin, 2014FIORIN, J. L. Figuras de retórica. São Paulo: Contexto, 2014.).
  • 13
    Para Tatit (2016TATIT, L. Claude Zilberberg e a prosodização da semiótica. Em: Em torno do acontecimento: uma homenagem a Claude Zilberberg. Org. Conrado Moreira Mendes e Glaucia Muniz Proença Lara. Curitiba: Appris Editora, 2016. p. 17-33., p. 27), os pensamentos implicativo e concessivo podem ser facilmente detectados a partir das partículas gramaticais da nossa linguagem diária: para os primeiros os conectores “porque”, “portanto”, “então” etc; para os segundos os conectores “embora”, “ainda que”, “apesar de” etc.
  • 14
    A ascendência é a passagem de um estado inicial que só comporta menos, a um estado final que só comporta mais; a descendência é seu oposto.
  • 15
    A semiótica tensiva entende que a triagem forma com a mistura as duas grandes operações da sintaxe extensiva, referente ao estado de coisas (Zilberberg, 2011ZILBERBERG, C. Elementos de semiótica tensiva. Trad. Ivã Carlos Lopes, Luiz Tatit e Waldir Beividas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011.). Na elaboração de um texto, há dinâmicas de triagens e misturas de elementos do seu plano de conteúdo e expressão. Assim, pensa-se uma sintaxe da mestiçagem que produza implicações e concessões. A seleção, a partir de critérios, de elementos que fazem parte de um conjunto desordenado, ou ao contrário, a mistura de dados que decorrem de uma triagem anterior, produz sintagmas implicativos. Quando a seleção vai além da previsibilidade, triando ainda mais o que já havia sido triado ou misturando o que já era considerado mistura, há a produção de mestiçagens concessivas (Tatit, 2016TATIT, L. Claude Zilberberg e a prosodização da semiótica. Em: Em torno do acontecimento: uma homenagem a Claude Zilberberg. Org. Conrado Moreira Mendes e Glaucia Muniz Proença Lara. Curitiba: Appris Editora, 2016. p. 17-33.).
  • 16
    As combinações são variadas, do tipo mais mais, mais menos, menos mais, menos menos, somente mais, somente menos etc. Na ascendência, por exemplo, vai-se do somente menos (a extinção) ao somente mais (a saturação), passando-se pelo menos menos (o restabelecimento) e o mais mais (o recrudescimento); na descendência, do somente mais ao somente menos, passando-se do menos mais (a atenuação) ao mais menos (a minimização). Controlando a tensidade de um texto (verbal ou não-verbal), o enunciador pode aumentar ou diminuir uma grandeza semiótica de forma gradual, (ou extensa) passando por todas as cifras tensivas, ou súbita (ou intensa) saltando cifras tensivas. Em uma operação concessiva, por sua vez, amplia-se as fronteiras do mais e do menos, e provocando-se saltos combinatórios entre os processos de ascendência e descendência.
  • 17
    Combinações como “quanto mais...mais” e “quanto menos...menos” (quanto mais estuda mais progride, ou vice-versa) podem ser vistas como proposições juntivas implicativas, enquanto combinações como “quanto mais...menos”, e “quanto menos...mais” (quanto mais estuda, menos progride), como proposições juntivas concessivas (Tatit 2016TATIT, L. Claude Zilberberg e a prosodização da semiótica. Em: Em torno do acontecimento: uma homenagem a Claude Zilberberg. Org. Conrado Moreira Mendes e Glaucia Muniz Proença Lara. Curitiba: Appris Editora, 2016. p. 17-33., p. 30).
  • 18
    Sobre o bizarro em Baudelaire (1957), Zilberberg (2004ZILBERBERG, C. As condições semióticas da mestiçagem. In: CAÑIZAL, E. P.; CAETANO, K. E. (org.) O olhar à deriva: mídia, significação e cultura. São Paulo: Annablume, 2004. p. 69-101., p. 8) explica o seguinte: “[…] o bizarro baudelairiano é transcendente, ou ainda, na terminologia do poeta, é da ordem da ideia; é apresentado como produto espontâneo, inesperado, da vitalidade universal e tem por antagonista não o feio, porém o banal”. O amálgama, no sentido utilizado pelo semioticista, é oposto à liga e está igualmente relacionado à intensidade, referindo-se a uma mistura forçada e inesperada de elementos diferentes, “[…] uma mistura de elementos que não combinam bem”, associados ao processo de uma mistura “tônica”. A liga, nas palavras de Zilberberg (2004), associada à conjunção de elementos que combinam melhor, é “[…] uma conjunção excessiva e anestesiante”, ou seja, uma mistura átona.
  • 19
    Zilberberg (2004ZILBERBERG, C. As condições semióticas da mestiçagem. In: CAÑIZAL, E. P.; CAETANO, K. E. (org.) O olhar à deriva: mídia, significação e cultura. São Paulo: Annablume, 2004. p. 69-101.) explica que o termo ‘supranaturalismo’ é utilizado pelo próprio Baudelaire (1957) e compreende à “[…] cor geral e o acento, ou seja, intensidade, sonoridade, vibração, profundidade, repercussão no espaço e no tempo. ([Baudelaire, 1957, p.691], Zilberberg, 2004, p. 88).
  • 20
    Disponível em: https://shre.ink/8cB4. Acesso em: 20 dez. 2023.
  • 21
    Motta, Nando. Cercadinho do ódio (sem data). Em: Desenhos do Nando (página do artista). Disponível em: https://shre.ink/8cBO. Acesso em: 20 dez. 2023.
  • 22
    Múltipla escolha (pra ficar mais fácil...). Eu não consigo fazer nada porque: a. eu não sei mesmo fazer nada, nunca fiz, nunca soube fazer nada, e tenho raiva de quem sabe; b. sei destruir e quebrar, como estou fazendo com o país...e destruir não é fazer, é desfazer; c. sou um idiota; d. sou só um fantoche; e. todas as respostas anteriores
  • 23
    Disponível em: https://shre.ink/8cBV. Acesso em: 20 dez. 2023.
  • 24
    Disponível em: https://shre.ink/8cBC. Acesso em: 20 dez. 2023.
  • 25
    Disponível em: https://shre.ink/8cBK. Acesso em: 20 dez. 2023.
  • 26
    No Brasil, os simpatizantes do ex-presidente são relacionados ao “gado”.
  • 27
    Disponível em: https://shre.ink/8cBu. Acesso em: 20 dez. 2023.
  • 28
    Disponível em: https://shre.ink/8cB3. Acesso em: 20 dez. 2023.
  • 29
    Disponível em: https://shre.ink/8cBL. Acesso em: 20 dez. 2023.
  • 30
    Disponível em: https://shre.ink/8cBt. Acesso em: 20 dez. 2023.
  • 31
    Disponível em: https://shre.ink/8cBf. Acesso em: 20 dez. 2023.
  • 32
    Disponível em: https://shre.ink/8cBT. Acesso em: 20 dez. 2023.
  • 33
    Disponível em: https://shre.ink/8cB2. Acesso em: 20 dez. 2023.
  • 34
    Disponível em: https://shre.ink/8cBH. Acesso em: 20 dez. 2023.
  • 35
    Sérgio Moro ficou conhecido por julgar o presidente Luis Inácio Lula da Silva. Lula foi preso por crimes de corrupção, mas sua sentença foi anulada posteriormente devido a inconsistências jurídicas.
  • 36
    Disponível em: https://shre.ink/8cpN. Acesso em: 20 dez. 2023.
  • 37
    Disponível em: https://shre.ink/8cpJ. Acesso em: 20 dez. 2023.
  • 38
    Disponível em: https://shre.ink/8cp6. Acesso em: 20 dez. 2023.
  • 39
    Disponível em: https://shre.ink/8cpY. Acesso em: 20 dez. 2023.

Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Abr 2022
  • Aceito
    29 Abr 2024
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