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PANDEMIA E DISCURSOS OPRESSORES: CARNAVALIZAÇÃO, RISO E CORPO GROTESCO COMO ATOS SUBVERSIVOS EM CHARGES

PANDEMIC AND OPPRESSIVE DISCOURSES: CARNAVALIZATION, LAUGH AND THE GROTESQUE BODY AS SUBVERSIVE ACTS IN CARTOONS

PANDEMIA Y DISCURSOS OPRESORES: CARNAVALIZACIÓN, RISA Y CUERPO GROTESCO COMO ACTOS SUBVERSIVOS EN SÁTIRAS

Resumo

Este artigo analisa três charges de artistas gráficos brasileiros (Fraga, 2020; Duke, 2020; Silva, 2020a) elaboradas para contestar conceitos hegemônicos e opressores, destacando a carnavalização e o corpo grotesco como mecanismos subversivos em resposta aos discursos de Bolsonaro durante a crise da Covid-19. Com amparo nos estudos de Bakhtin (2010), Cañizal (2006) e Discini (2006), busca-se compreender como o riso e a caricatura emergem como formas de resistência à ordem autoritária. Os resultados indicam que a carnavalização, ao ridicularizar o discurso unívoco do ex-presidente, desvela processos subversivos que desafiam a censura e promovem questionamentos do autoritarismo.

Palavras-chave:
Pandemia da Covid-19; Carnavalização; Corpo Grotesco; Riso; Charges

Abstract

In this article, we analyze three cartoons by Brazilian graphic artists (Fraga, 2020; Duke, 2020; Silva, 2020a) created to contest hegemonic and oppressive concepts, highlighting the carnivalization and the grotesque body as subversive mechanisms in response to Bolsonaro's speeches during the Covid-19 crisis. Supported by the studies of Bakhtin (2010), Cañizal (2006), and Discini (2006), we seek to understand how laughter and caricature emerge as forms of resistance to authoritarian order. The results suggest that the carnivalization reveals subversive processes that challenge censorship and promote questioning of authoritarianism by ridiculing the univocal discourse of the former president.

Keywords:
Covid-19 Pandemic; Carnavalization; Grotesque Body; Laugh; Cartoons

Resumen

Este artículo analiza tres caricaturas de artistas gráficos brasileños (Fraga, 2020; Duke, 2020; Silva, 2020a) elaboradas para cuestionar conceptos hegemónicos y opresores, destacando la carnavalización y el cuerpo grotesco como mecanismos subversivos en respuesta a los discursos de Bolsonaro durante la crisis de Covid-19. Apoyados en los estudios de Bajtín (2010), Cañizal (2006) y Discini (2006), buscamos comprender cómo la risa y la caricatura emergen como formas de resistencia al orden autoritario. Los resultados indican que la carnavalización, al ridiculizar el discurso unívoco del expresidente, desvela procesos subversivos que desafían la censura y promueven cuestionamientos del autoritarismo.

Palabras clave:
Pandemia de COVID-19; Carnavalización; Cuerpo Grotesco; La Risa; Sátiras

1 CARNAVALIZAÇÃO, RISO E CORPO GROTESCO: PERMISSÕES SUBVERSIVAS

Neste artigo, mediante uma metodologia analítico-discursiva de cunho bibliográfico e mobilizando reflexões de Bakhtin (2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Iara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.), Cañizal (2006CAÑIZAL, E. P. Realismo grotesco. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.) e Discini (2006DISCINI, N. Carnavalização. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.), pretende-se compreender a carnavalização e o corpo grotesco como atos subversivos contra os discursos do presidente da República do Brasil durante o período da pandemia da COVID-19 em três charges de artistas brasileiros (Fraga, 2020FRAGA, G. Capitão Cloroquina. In: Instagram: @fragadesenhos. Porto Alegre, 20 de maio de 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CAaU8t9A7ZT/?igshid=1j0lratsdxvf5. Acesso em: 10 de setembro 2020.
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; Duke, 2020DUKE, C. E Daí. In: Instagram: @dukechargista. Belo Horizonte, 17 outubro de 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CGdTHH1DDIc/?igshid=950urcd0w93u. Acesso em: 15 set. 2020.
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; Silva, 2020aSILVA, A. Cloroquina. Instagram: @adnael_art. Maceió, 16 abr. 2020a. Disponível em: https://www.instagram.com/p/B_DSPukpUBY/?igshid=16eje68pv5tbt. Acesso em: 18 de setembro de 2020.
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). Conjectura-se que a carnavalização faz emergir processos subversivos da ordem social, revelando resistências que desafiam a censura. Como o corpo grotesco deriva do carnaval, assistiu-se por meio dele a ridicularização, pelo riso, de fenômenos sociais quanto à figura do presidente, o que fez emergir, consequentemente, um mundo às avessas nas produções gráficas analisadas.

Bakhtin (2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Iara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.) estudou o riso na Idade Média e no Renascimento na França, bem como a carnavalização e o corpo grotesco a partir da obra de François Rabelais. O filósofo russo constatou um movimento de reorganização da vida no plano artístico por meio da criação de novas significações dadas pela construção de uma “hierarquia às avessas”, de um “mundo às avessas” e de uma “negação positiva”. Desse modo, o carnaval foi apontado por ele como um tempo marcado para a liberação de atos não oficiais e uma libertação temporária do que se podia perceber como sério, ensimesmado e acabado em si. Durante o carnaval, toda e qualquer norma vigente, posições hierárquicas e proibições estavam suspensas. Assim, tudo ocorria reversamente em uma manifestação pura do que o autor entendia como dialogismo.

Nesse quadro, como meio de questionamento dos lugares sociais, surge a estética do corpo grotesco no carnaval, que constitui, juntamente com a carnavalização, uma base semântica. “Carnaval histórico e realismo grotesco, ambos os termos, apesar das nuanças que os diferenciam, significam, no pensamento bakhtiniano, carnavalização, pois ambos se reportam aos processos subversores da ordem social, política ou artística” (Cañizal, 2006CAÑIZAL, E. P. Realismo grotesco. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006., p. 245). Entendido como uma subversão da ordem natural, o grotesco evoca a dimensão não racional da vida como tal, estabelecendo-se, dessa forma, através do signo da ambivalência. Para isso, aproveita-se do cômico, do trágico, do bizarro, do ridículo e do satírico, potencializando seu efeito crítico.

Em resumo, são características da estética do grotesco: o exagero caricatural de um fenômeno e a superabundância, esta última dada por enumerações de extensão absurda; a extrapolação dos limites do corpo; o uso abusivo de sinônimos e de adjetivação, etc. De forma enfática, a hiperbolização é um dos traços mais nítidos do grotesco, constatação esta retirada do sistema rabelaisiano das imagens (Bakhtin, 2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Iara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.), uma vez que uma das maneiras mais corriqueiras de desencadear o disforme está na inflação das figuras ou de partes de seus corpos. Em virtude disso, elas são avolumadas desmedidamente, o que causa estranheza e repulsa, ingredientes da caricatura.

Nessa escrita, o núcleo de gênese das personagens é amplamente desenvolvido. A convulsão representa um meio de gerar o efeito grotesco: a distorção do objeto, do rosto e do corpo. O contorcionismo e as anomalias tornam a face disforme, o corpo ganha uma mecanicidade estranha, causando nojo e repulsa. Esse tipo de arte literária está saturado de imagens que denotam a potência sexual, a fecundidade e a abundância. Outro meio de gerar o grotesco é a animalidade. Para carregar os traços fisionômicos ativados na caricatura, estabelecem-se comparações com animais, emprestam-lhes características animalescas ou adicionam-lhes pormenores de corpos de animais (Bakhtin, 2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Iara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.). Em vista disso, há um código próprio para a materialização linguística do grotesco, repleto de representações corporais, impropérios e expressões populares - sobretudo quando há uma relação estreita com o riso. Assim, predomina a linguagem popular não oficial, em oposição à culta, refletindo a hierarquia social instaurada, impositiva e opressora.

No carnaval, consoante as palavras de Bakhtin (2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Iara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.), há ainda a representação realista da esfera material e corporal, comer, beber, ter flatulência, etc., além dos demais acontecimentos orgânicos relacionados. Na estética do grotesco, todos esses elementos criam uma atmosfera licenciosa e questionadora porque desenham um mundo às avessas e fora do padrão. Portanto, o grotesco concorre para acentuar o realismo. Ele marca a presença do corpo e sua influência na existência humana, cavando fundo para mostrar a animalidade não dominada pela racionalidade.

Posto isso, observa-se que o carnaval é relacionado ao grotesco em contraponto à estética canônica secularmente imposta, que forja formas perfeitamente arredondadas, cujas aberturas são seladas e as protuberâncias, niveladas. Há, aqui, uma contradição formal entre o corpo grotesco e os moldes da Antiguidade Clássica, base estética do Renascimento. Ao contrário, a estética grotesca sublinha os orifícios e as saliências, moldando formas exageradas. Com efeito, o corpo grotesco não é uma unidade fechada e completa, é inacabada porque transgride os próprios limites.

Sobre a morte, ela se junta à contemplação do corpo pelas fendas e cavidades: é olhar de baixo para cima, da terra para o céu. Segundo Bakhtin (2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Iara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 325), “em baixo, do avesso, de trás para frente: tal é o movimento que marca todas essas formas; elas se precipitam todas para baixo, viram-se e colocam-se sobre a cabeça, pondo o alto no lugar do baixo, o traseiro no da frente”. Esse corpo rebaixado constrói a imagem grotesca. É no baixo material que o corporal é visto em sua função regeneradora, pois se sustenta na reversibilidade dos movimentos, sendo esta uma forte característica grotesca (Discini, 2006DISCINI, N. Carnavalização. In: BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006.). O inacabamento representado pelo corpo grotesco denota, ainda, a conclusão da vida e do homem, o que se dá pelo ininterrupto movimento de transmutação de algumas formas em outras pelo contato entre os corpos e a terra, que é regeneradora e se mantém em estado permanente de criação.

A respeito do riso, a temática das injúrias é quase puramente grotesca e corporal, pois o corpo mostrado nas expressões da linguagem não oficial é familiar. Por isso, o papel essencial é entregue àquelas partes onde são avançados os próprios limites do corpo. “O ventre e o falo; essas são as partes do corpo que constituem o objeto predileto de um exagero positivo, de uma hiperbolização” (Bakhtin, 2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Iara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 277), levando as demais partes do corpo a um segundo plano. Nas palavras de Moraes (2015MORAES, E. R. Introdução. In: MORAES, E. R. (org.). Antologia da poesia erótica brasileira. Cotia: Ateliê Editorial, 2015. p. 18-48.) acerca do exagero carnavalesco, quando o humor surge converge para o hiperbólico, de onde deriva o cômico. A comicidade faz críticas sociais contundentes a partir da estética do rebaixamento por meio do riso libertador, algo que é bastante presente na escrita pornográfica. Como exemplo, há a utilização da metáfora alimentar, cujo sentido é deslocado facilmente do gastronômico para o sexual e vice-versa. Toda essa cosmovisão cômica do corpo é expressa no texto por meio de obscenidades e de linguagem chula e de baixo calão, pois quanto menos oficial e mais familiar é a linguagem, mais se enfraquece a fronteira entre o louvor e a injúria.

Em suma, a junção de elementos díspares, a ambivalência, a inflação, a subversão, a obscenidade, a caricatura, o riso e a animalidade estão convocados para o discurso e para a estética carnavalesca em nome da moral e da ética que se cogita demonstrar. Esses elementos permitem confrontar o leitor com o tema fundamental da hipocrisia social. Logo, pode-se dizer que a carnavalização e o grotesco propõem uma forma nova e revolucionária de ver a vida, como demonstraremos, a seguir, na análise do corpus.

2 CARNAVALIZAÇÃO E CORPO GROTESCO COMO ATOS DE SUBVERSÃO

Quando falamos em gêneros do discurso do ponto de vista do Círculo de Bakhtin, pensamos em um objeto fundado nas necessidades comunicativas. Quando nos comunicamos, estamos nos inserindo em práticas de uso social da linguagem e “cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso” (Bakhtin, 2011, p. 262). Desse modo, os gêneros do discurso são a materialização dos sentidos. Logo, cabe ressaltar que não são materializações da simples tipologia de frases, mas de enunciados concretos, cuja arquitetônica supõe uma regularidade, mas nunca uma rigidez ou um dado acabado. Reforçando esse pensamento, destacam-se as palavras de Sobral (2009SOBRAL, A. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. Campinas: Mercado de Letras, 2009., p. 116-117):

Não se trata de “estruturas fixas de enunciados” nem de “enunciados-tipo”. Entender o conceito assim é reduzi-lo ao linguístico estrito. Isso não é admissível para o Círculo, porque o plano linguístico estrito não tem enunciados, e sim frases (nem discursos, mas textos), ou seja, não é domínio da comunicação discursiva, em que as frases são apenas o material dos enunciados, e sim o domínio do estudo das formas da língua, cujo conhecimento, por si só, não possibilita entender o sentido [...].

Por meio do entendimento do conceito de gêneros discursivos, verifica-se que a charge é classificada como um gênero secundário, portanto, mais elaborada em vista dos gêneros mais prosaicos, e pertencente à esfera de atividade jornalística, uma vez que tem seu berço no jornal. De forma genérica, é uma produção gráfica cujo conteúdo é humorístico em uma primeira leitura. Entretanto, quando há aprofundamento, ela é uma importante ferramenta de questionamento e denúncia de problemas e mazelas sociais. Para atingir seu objetivo de crítica, a charge emprega imagens de pessoas conhecidas em cenários que remetem a acontecimentos hodiernos. Para haver a compreensão de seu conteúdo e a produção efetiva de sentidos, o leitor necessita estar informado sobre a atualidade, caso contrário perderá a dimensão crítica do texto para ficar somente na leitura de sua superfície, aquela que é apenas cômica.

Ademais, o gênero é opinativo, produzido em linguagem visual, podendo receber também a inserção de textos verbais, geralmente em balões e legendas; assinado; e se estrutura em um único quadro. É interessante frisar que a charge é, simultaneamente, simples, por seu tamanho reduzido e pelo “resumo” que apresenta sobre o tema, e exagerada pela utilização que faz de elementos hiperbólicos. Segue disso sua etimologia francesa ligada ao verbo charger, “carregar”. Trata-se, principalmente, de uma caricatura sobre cenários e personagens. Em decorrência de dialogar com o tempo presente, a charge tem um vínculo profícuo com o jornal. Contudo, juntamente com a expansão de outros meios de comunicação, em especial os digitais, as charges circulam em diversas plataformas de gêneros discursivos, dos jornais impressos às redes sociais.

Na pandemia de Covid-19, entre os meses de março e abril de 2020, conforme compilado por Ponce (2020PONCE, J. Casos confirmados e mortes por COVID-19. In: CASTRO, K. ‘E daí?’, desdenha Bolsonaro: 20 capas de jornal e charges sobre as mortes por coronavírus e a reação do presidente. Blog da Kika Castro, 30 abr. 2020. Disponível em: https://kikacastro-com-br.cdn.ampproject.org/v/s/kikacastro.com.br/2020/04/29/edai-bolsonaro-coronavirus-charges-jornais/amp/?usqp=mq331AQFKAGwASA%3D&_js_v=0.1#aoh=15991568994300&referrer=https%3A%2F%2Fwww.google.com&_tf=Fonte%3A%20%251%24s&share=https%3A%2F%2Fkikacastro.com.br%2F2020%2F04%2F29%2Fedai-bolsonaro-coronavirus-charges-jornais%2F. Acesso em: 8 set. 2020.
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), o ex-presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, fez pronunciamentos negacionistas acerca das notificações da doença no país. Para ilustrar, seguem alguns exemplos: “Esse vírus trouxe uma certa histeria” (17 de março), “Não vai ser uma gripezinha que vai me derrubar” (20 de março), “Nada sentiria, ou sentiria, quando muito, uma gripezinha ou resfriado” (23 de março), “Não dá para fazer mais do que estamos fazendo” (23 de março), “Eu acho que não vai chegar a esse ponto” (26 de março), “A maioria das mortes não tem nada a ver com coronavírus” (27 de março), “Todo mundo vai morrer um dia” (29 de março), “Vai morrer gente? Vai” (30 de março), “O vírus é igual a uma chuva… você vai se molhar, mas não morrerá afogado” (1º de abril), “Tá com medinho de pegar o vírus?” (2 de abril), “O vírus está indo embora” (12 de abril), “Eu não sou coveiro” (20 de abril). Conforme perceptível nas frases citadas, o ex-presidente revelava comportamento inadequado frente à pandemia.

3 ANÁLISE DO CORPO GROTESCO EM TRÊS CHARGES

Em virtude da situação delineada, centenas de charges foram criadas e circulam pelas plataformas midiáticas recorrentemente desde o começo do avanço da COVID-19. Três foram selecionadas (Fraga, 2020FRAGA, G. Capitão Cloroquina. In: Instagram: @fragadesenhos. Porto Alegre, 20 de maio de 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CAaU8t9A7ZT/?igshid=1j0lratsdxvf5. Acesso em: 10 de setembro 2020.
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; Duke, 2020DUKE, C. E Daí. In: Instagram: @dukechargista. Belo Horizonte, 17 outubro de 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CGdTHH1DDIc/?igshid=950urcd0w93u. Acesso em: 15 set. 2020.
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; Silva, 2020aSILVA, A. Cloroquina. Instagram: @adnael_art. Maceió, 16 abr. 2020a. Disponível em: https://www.instagram.com/p/B_DSPukpUBY/?igshid=16eje68pv5tbt. Acesso em: 18 de setembro de 2020.
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) para compor o corpus de análise deste artigo, haja vista o acesso de comunicação com os autores e a prévia autorização de veiculação de suas obras neste trabalho. A partir delas, pretende-se compreender a construção da carnavalização e do corpo grotesco, conceitos estes que foram usados com o intuito de provocar, nos leitores, o riso e, por conseguinte, elaborar críticas ao governo diante da pandemia que assola o mundo atualmente.

Dado o exposto, analisemos a Figura 1 (Fraga, 2020FRAGA, G. Capitão Cloroquina. In: Instagram: @fragadesenhos. Porto Alegre, 20 de maio de 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CAaU8t9A7ZT/?igshid=1j0lratsdxvf5. Acesso em: 10 de setembro 2020.
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).

Figura 1
Capitão cloroquina

A charge foi publicada em 20 de maio de 2020 por Gilmar Fraga, chargista do site GZH, em Porto Alegre. O texto se apresenta em um único quadro, característica desse gênero discursivo. No centro, temos a imagem de Jair Messias Bolsonaro trajando, no lugar de terno e gravata, uma roupa verde, amarela, azul e branca, em alusão à bandeira do Brasil, inspirada naquelas usadas pelos heróis das histórias em quadrinhos. Ademais, a máscara, aqui também retratada de forma subvertida, confirmando os discursos do ex-presidente de desqualificação do uso do objeto como meio de prevenção ao vírus. Quanto aos olhos, eles são intimidadores em virtude do contorno das sobrancelhas, bastante cerradas, e da testa franzida, na tentativa de impor medo ao interlocutor em uma atitude monológica típica de governantes antidemocráticos. Por fim, o presidente calça botas militares, em alusão aos discursos favoráveis à ditadura.

Desse modo, explicita-se uma construção paródica e carnavalizada da figura do “Superman” dada pela associação inusitada entre o presidente brasileiro e os super-heróis, singularmente quanto aos padrões corporais. Bolsonaro é representado com braços finos, pernas esqueléticas e queixo minúsculo, ou seja, o avesso de um “verdadeiro” herói. Como aponta Bakhtin (2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Iara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.), a desorganização da estética corporal construída pela caricatura, contrapondo o cânone clássico ao grotesco, é um forte indício carnavalesco. A respeito do nariz enorme, observa-se outro diálogo, agora com o conto As aventuras de Pinóquio (Collodi, 2009COLLODI, C. As aventuras de Pinóquio. 4. ed. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2009.), cuja associação se estabelece pelo mau hábito de falar mentiras. Nota-se, ainda, que a sátira da charge é contextual: em um pronunciamento oficial, publicado em 25 de março de 2020 (Record, 2020), duvidando da gravidade da pandemia e dos sintomas da COVID-19, o político disse que seu “histórico de atleta” impediria que ele fosse infectado pelo vírus. Na charge, esse é o superpoder da personagem: ser imune, pela via do negacionismo, ao coronavírus.

Outrossim, entrevemos mais uma inversão da figura de atleta: a barriga é destacada na imagem, bem como o baixo corporal, retratado de forma hiperbólica. Além disso, no título da charge, “Capitão cloroquina, dos frascos e dos comprimidos…”, há um destaque para um ato recorrente do presidente que é a busca, por si, de soluções para a doença, como ocorreu com a hidroxicloroquina, a azitromicina e a ivermectina.

Na estética rabelaisiana (Bakhtin, 2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Iara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.), a base do método do autor francês dependia, sobretudo, da destruição de todas as “vizinhanças habituais” e da criação de “vizinhanças inesperadas”. Na charge, ao resgatar a cultura pop pela dialogia que faz com os super-heróis, os sentidos produzidos destroem as relações tradicionais de entendimento da imagem para ser construído um mundo novo, no caso, de denúncia e desaprovação, em oposição ao sentimento positivo que emana das histórias do “Superman”.

Outro ponto a analisar parte de que os super-heróis usam nos filmes uma marca simbólica cravada no peito. No caso do “Superman”, Clark Kent revelou que o “S” não significa super-homem, mas uma ideologia marcada por seu lugar social, pois, em termos “Kryptonianos” (planeta natal de “Superman”), aquela figura “representa esperança, um rio fluindo sem impedimentos” (O homem de aço, 2013). De forma análoga, Bolsonaro usa no peito duas letras “C”, cujo significado é “Capitão Cloroquina”. Contudo, em um olhar mais atento, verifica-se que o vão entre os dois “C” revela o contorno de uma cruz.

Nesse contexto, podemos perceber uma denúncia sobre questões quanto ao rompimento da laicidade do Estado, haja vista as tendências ideológicas da administração da nação por uma base religiosa. A esse respeito, o slogan usado por Bolsonaro em suas campanhas deixa clara sua posição: “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, lema este que contraria abertamente um princípio democrático e constitucional básico: a laicidade do Estado. Além disso, em seu discurso de posse, no dia 1º de janeiro de 2019, embasou boa parte de sua fala em princípios antiquados no tripé: família, religião e legítima defesa. Como exemplo, temos o trecho: “Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã. Combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores. O Brasil voltará a ser um país livre das amarras ideológicas” (O tempo, 2019, grifos nossos).

Acerca da religiosidade explícita do ex-presidente, segundo Rosas (2015ROSAS, N. Cultura evangélica e “dominação” do Brasil: música, mídia e gênero no caso do Diante do Trono. Dissertação de Mestrado em Sociologia - Universidade Federal de Minas Gerais - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Belo Horizonte, 2015.), existe um intuito permanente de evangelização, domínio e moralização da sociedade que desembarca nos níveis mais altos do Poder Legislativo em coadunação com o Poder Executivo. A título de exemplo, a bancada evangélica no Congresso Nacional criou um confronto permanente com outras categorias religiosas ou não religiosas, a fim de estabelecer uma cultura que aspira a ser purificadora, redentora e triunfante, chegando a impor os critérios de escolha dos ministros da República pelo Executivo, com preferência, sobretudo, a pastores e pastoras encaixadas no perfil de “terrivelmente evangélicos” (Tarja; Adorno, 2020TARJA, A.; ADORNO, L. Novo ministro da Justiça é “terrivelmente evangélico” e já elogiou Lula. Uol, São Paulo, 24 de abril de 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/04/28/quem-em-e-andre-mendonca-o-terrivelmente-evangelico-que-assume-a-justica.htm. Acesso em: 3 set. 2020.
https://noticias.uol.com.br/politica/ult...
).

Nas falas citadas na charge, percebemos a minimização dos riscos da pandemia por meio do questionamento das medidas de controle do vírus propostas pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Verifica-se que várias perguntas são feitas - sobre economia, isolamento, candidatos ao Ministério da Saúde, ajuda emergencial para os estados, etc. -, mas o presidente as ignora, reafirmando insistentemente o “poder” da cloroquina. Ao desprezar as falas dos jornalistas, aclara-se uma atitude monológica que tem em vista cessar o diálogo. Acerca disso, constata-se um ataque à mídia, outra atitude típica de Bolsonaro em entrevistas e pronunciamentos públicos, como ocorreu no dia 23 de agosto de 2020, data em que o ex-líder republicano disse a uma repórter do Jornal O Globo: “A vontade é encher tua boca com porrada” (Ladeira; Onofre; Macedo, 2020LADEIRA, P.; ONOFRE, R.; MACEDO, I. 'A vontade é encher tua boca com porrada', diz Bolsonaro após repórter perguntar sobre Queiroz. Folha de São Paulo, Caderno Poder, 23 ago. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/08/a-vontade-e-encher-tua-boca-com-porrada-diz-bolsonaro-apos-reporter-perguntar-sobre-queiroz.shtml. Acesso em: 9 set. 2020.
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020...
), ao ser perguntado sobre a relação existente entre a ex-primeira-dama, Michelle Bolsonaro, e o ex-policial militar Fabrício Queiroz.

Nessa conjuntura de crítica e de desejo por renovação, as condutas, os gestos e as palavras ficam liberados da dominação do discurso oficial e hierarquizado, por ser na esfera da liberdade utópica que uma cosmovisão alternativa se mostra. Assim, por meio da inversão de dogmas já sedimentados, a produção gráfica chega a uma composição insólita e grotesca da figura presidencial. Nesse quadro, tem-se o confronto entre os padrões de acabamento e de perfeição estética, aludindo ao corpo idealizado pelo cristianismo, e a imagem grotesca, que se situa na ideia de superação de tudo o que tem caráter de acabado. O resultado é a caricatura: conforme Bakhtin (2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Iara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.), o corpo caricaturesco provoca o riso porque é um corpo que age sem as interdições impostas pelo código de “boas maneiras”, daí a hiperbolização da imagem e das ações da personagem.

Portanto, ao destronar o político pela carnavalização, a produção gráfica revela responsividade no tratamento do tema, uma vez que, ao criticar as posturas antidemocráticas e negacionistas do presidente, também denuncia o descaso do Governo Federal para com o povo, à mercê da morte durante a pandemia de coronavírus.

Passemos à Figura 2 (Duke, 2020DUKE, C. E Daí. In: Instagram: @dukechargista. Belo Horizonte, 17 outubro de 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CGdTHH1DDIc/?igshid=950urcd0w93u. Acesso em: 15 set. 2020.
https://www.instagram.com/p/CGdTHH1DDIc/...
).

Figura 2
“E daí”?

A charge da Figura 2 foi criada pelo chargista Duke e publicada em seu Instagram em 17 de outubro de 2020DUKE, C. E Daí. In: Instagram: @dukechargista. Belo Horizonte, 17 outubro de 2020. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CGdTHH1DDIc/?igshid=950urcd0w93u. Acesso em: 15 set. 2020.
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(Duke, 2020). Nela, o ex-presidente, que deveria subir no púlpito para falar com o povo, sobe em uma pilha de esqueletos humanos. O texto revela, em uma primeira leitura, que Bolsonaro está sobre uma montanha de ossos. Pelo fato de estar em cima do monte, demonstra desrespeito às vítimas da doença e descaso quanto ao número de pessoas infectadas. A faixa presidencial, em suas cores verde e amarela, sobressai na imagem em contraste com as demais cores.

A charge constitui analogia também à situação de Manaus (Oliveira, 2020OLIVEIRA, R. COVID-19 faz mortes dispararem em Manaus, e cemitério entra em colapso. O Globo, Rio de Janeiro, 21 abr. 2020. Disponível em: https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus/covid-19-faz-mortes-dispararem-em-manaus-cemiterio-entra-em-colapso-1-24384991. Acesso em: 4 set. 2020.
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), cidade em que houve um forte pico de infecção por COVID-19, fazendo com que houvesse uma crise nos cemitérios pela falta de espaço. Ademais, verifica-se uma associação do desenho da charge com o genocídio de judeus e de outros grupos durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945): corpos empilhados, jogados em valas, sem identificação, sendo enterrados sem cerimônia, no sentido literal (Roseman, 2003ROSEMAN, M. Os nazistas e a solução final: a verdadeira história da conferência de Wannsee. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.).

Na produção gráfica, há ainda um eco da Ditadura Militar, fase da história brasileira em que pessoas foram mortas pelo Estado e seus corpos, jogados em valas comuns, como ocorrido no Cemitério de Perus, na cidade de São Paulo, local onde, no final do século XX, foram exumados 1.043 sacos contendo ossadas de pessoas até então não identificadas (Oliveira; Calazans, [s.d.]). O momento retratado na charge, bem como os outros três - caos no Amazonas, Holocausto e perseguição política - referem-se a situações históricas em que o autoritarismo prevaleceu.

Segundo atesta Bakhtin (2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Iara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.), o grotesco é entendido como um caminho de subversão da ordem natural do mundo, o que também serve para evocar uma dimensão não racional, instintiva ou animalizada da vida como tal. Em vista disso, no texto gráfico carnavaliza-se o lugar canônico de líder político - aquele que governa com e para o povo, vivo, no caso -, através da ideia de “política da morte” ou “necropolítica”, como cita o filósofo camaronense Achille Mbembe (2016MBEMBE, A. Necropolítica. Revista Arte e ensaios, Universidade Federal do Rio de Janeiro, n. 32, dez. 2016. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993. Acesso em: 4 set. 2020.
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). Nesse tipo de regência, as políticas propostas “escolhem” as pessoas quanto a viver ou morrer, e assim o Estado troca sua função primordial de cuidar, conforme apregoa o artigo 6º. da Constituição da República Federativa (Brasil, 1988).

Na charge, a maneira como Bolsonaro foi representado indica a oficialização dessa política pela normalização das mortes oriundas da infecção por coronavírus. Tal fato cristaliza a ideia de que o Estado não cumpriu sua função provedora; além disso, também não criou possibilidades políticas para que houvesse um real combate à desigualdade e à injustiça social. Nesse caso, as pessoas das classes menos favorecidas morrem em decorrência da COVID-19 por necessitarem trabalhar, não podendo fazer o isolamento social, ou por não terem acesso ao atendimento adequado de saúde, o que se configura como outro ataque aos direitos civis básicos conforme a Carta Magna (Brasil, 1988). Nesse cenário, nota-se o peso da cor da pele e da condição financeira na separação ideológica que se faz entre os que merecem viver e os que não merecem. Por conseguinte, o descaso governamental provoca uma “limpeza étnica, social e etária” no Brasil: de coronavírus morrem negros, indígenas, pobres e velhos. Nesse cenário desolador, Bolsonaro é responsabilizado, na imagem, pelo sangue que escorre de suas mãos.

Quanto ao balão de diálogo, o enunciado “E daí?”, seguido de “Lamento. Quer que eu faça o quê? Sou Messias, mas não faço milagre” foram ditos pelo presidente em uma entrevista no dia 28 de abril (Garcia; Gomes; Viana, 2020GARCIA, G.; GOMES, P. H.; VIANA, H. ‘E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?’, diz Bolsonaro sobre mortes por coronavírus; 'Sou Messias, mas não faço milagre'. G1, Caderno de política, 24 abr. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/28/e-dai-lamento-quer-que-eu-faca-o-que-diz-bolsonaro-sobre-mortes-por-coronavirus-no-brasil.ghtml. Acesso em: 8 set. 2020.
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). Nessa data, o “Brasil somou 5.017 mortes por COVID-19, segundo os números oficiais, e superou o total de mortos da China, país de origem da pandemia de coronavírus” (Garcia; Gomes; Viana, 2020). Na manchete, o alarde está na comparação entre o número de notificações do vírus, fato este que deveria ser suficiente para causar comoção geral no Brasil - mas, infelizmente, isso não ocorreu. No lugar de uma palavra de consolo esperada de um líder, a expressão “e daí?” explicita a negligência de um governo que manteve, de 15 de maio a 16 de setembro de 2020, o Ministério da Saúde sem liderança, o que impediu o funcionamento e a proposição de ações de enfrentamento à pandemia.

Como é de praxe, o ex-líder do poder executivo usa o discurso cristão para flertar com a população religiosa do país. No caso, ao usar “Messias”, parte de seu nome, faz alusão a Jesus Cristo, o que se associa à palavra “milagre”. Como resultado, além de se colocar como um “deus”- ou um “mito”, como costuma ser chamado por seus apoiadores -, ele ainda utiliza esse discurso para se omitir de suas funções como presidente em uma circunstância de pandemia, já que não pode “fazer milagres”. Sobre isso, é interessante frisar que ele se coloca como Deus em certas circunstâncias, mas, em outras, abandona o posto de divindade por conveniência. Desse modo, o poder da religião tem legitimidade (ou não) consoante a necessidade discursiva do presidente, o que é uma incoerência.

Segundo Bakhtin (2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Iara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.), no carnaval ocorre supressão das leis, de modo que a hierarquia que organiza o mundo cotidiano é virada ao avesso. Isso se traduz na Figura 2 através do destronamento do presidente, resultando na destruição de todas as formas convencionais de medo e mentira oriundas de sua figura e de seus discursos, o que fica perceptível pela seriedade oficial monológica e gerada pela imposição da força. Da mesma forma como ocorre com Bolsonaro, o povo é retirado de seu papel habitual em uma hierarquia tradicional e impositiva na charge, tendo liberdade para criticar os desmandos do governo. Portanto, infere-se que a cultura carnavalesca que emoldura a Figura 2 denuncia as relações de desacordo que se estabelecem em situações cotidianas, imprimindo à produção gráfica o espírito sarcástico e as transgressões que desafiavam a censura oficial.

Em analogia ao carnaval de Rabelais (Bakhtin, 2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Iara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.), a estética do grotesco se presentifica devido à repugnância que provoca no interlocutor ao retratar o ser humano, equiparando-o aos animais em seu instinto e irracionalidade. Como ocorre na Figura 1, o grotesco é explicitado na Figura 2 pelo tom caricaturesco e exagerado da imagem do ex-presidente: nariz avantajado em contraste com braços e pernas esqueléticos.

Ademais, pela presença dos pontos pretos que envolvem a figura centralizada, vê-se que o mau cheiro exalado pelos esqueletos está subindo em direção a seu nariz. Mesmo assim, ele se mantém parado, como se não lhe causasse nenhuma reação, assim como não causam comoção as mais de 220 mil mortes. Comprova-se, desse modo, a resposta inadequada de Bolsonaro a esse momento de turbulência, uma evidência de que o sistema de “necropolítica” foi adotado no Brasil.

Passemos à Figura 3 (Silva, 2020aSILVA, A. Cloroquina. Instagram: @adnael_art. Maceió, 16 abr. 2020a. Disponível em: https://www.instagram.com/p/B_DSPukpUBY/?igshid=16eje68pv5tbt. Acesso em: 18 de setembro de 2020.
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).

Figura 3
Cloroquina

A terceira charge, do premiado chargista alagoano Adnael Silva, foi publicada em suas redes sociais em 16 de abril de 2020. A charge nos remete ao contexto religioso, algo muito comum no governo da época. Em uma reportagem à Gazeta de Alagoas, o chargista afirmou que o Brasil enfrentava momentos difíceis. Para ele, o posicionamento crítico é uma obrigação, principalmente no que concerne à política, e as redes sociais, uma grande mesa de debates: todo dia surgem fatos que pedem um posicionamento (Silva, 2020b).

A charge é uma sátira à tentação e à queda do ser humano no jardim do Éden, ensejando o advento do pecado, ou a quebra da inocência original. No entanto, a peça relaciona o ex-presidente com uma serpente que oferece uma caixa de cloroquina para Adão e Eva - supostamente para reparar o delito.

O que emoldura esse contexto é uma questão debatida em vários momentos da vida humana, o livre arbítrio. Todavia, o livre arbítrio só teria validade até o momento em que houvesse uma ação divergente ou quebra de ordem, resultando na expulsão dos moradores do jardim e na perda da inocência.

A oferta de sabedoria pela serpente presume o desenvolvimento crítico e não condiz com as características da fé. As imagens que surgem pelos contrastes são o que há de mais fértil no campo carnavalesco, sendo utilizadas com o intuito de questionar a norma oficial, dada pelo discurso religioso, visto como puro, digno, decoroso, asséptico, elegante, contido, elevado, etc. Desse modo, o riso carnavalesco, ao desestabilizar a “verdade dada” pelo cristianismo, não permite que a seriedade unilateral e monológica desse tipo de discurso se mantenha imune. A esse respeito, as formas carnavalescas se sobrepõem à fábula bíblica engendrada em Gênesis (Bíblia, 2006BÍBLIA, S. Bíblia: Revisão do estudo das promessas. Rio de Janeiro: Impressa Bíblica Brasileira, 2006.), através da aparição de uma serpente, que traz uma embalagem de cloroquina no lugar do fruto. Portanto, na imagem, o veneno que torna a serpente perigosa é a cloroquina; ela não oferece sabedoria, pelo contrário, vai na contramão do que diz a ciência.

Acerca dessa medicação, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) reafirmou ser contra o uso da hidroxicloroquina no tratamento da COVID-19 em 17 de julho de 2020. A SBI cita estudos publicados no dia anterior para alertar que a droga não deve ser usada em nenhuma fase da doença e nem mesmo para sua prevenção (Ferreira, 2020FERREIRA, V. Hidroxicloroquina não tem efeito e deve ser abandonada no tratamento da COVID, diz Sociedade Brasileira de Infectologia. G1.Globo. Rio de Janeiro, 17 de jul. de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/07/17/hidroxicloroquina-nao-tem-efeito-e-deve-ser-abandonada-no-tratamento-de-qualquer-fase-da-covid-diz-sbi.ghtml. Acesso em: 13 set. 2020.
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). Também de forma carnavalesca são colocados, lado a lado, o discurso religioso criacionista e o discurso de negação da ciência, num amálgama que “explica” o (des)governo de Bolsonaro frente à rápida contaminação por COVID-19 no Brasil.

Além disso, a serpente no corpo os tons de verde da roupa camuflada, símbolo do Exército, fazendo alusão ao fato de que Bolsonaro é militar da reserva. Suas opiniões a favor da Ditadura Militar são recorrentes. Para ilustrar, seguem alguns exemplos reunidos por Campos (2019CAMPOS, J. P. de. Doze vezes em que Bolsonaro e seus filhos exaltaram e acenaram à ditadura. Veja, Política, 4 nov. 2019. Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/doze-vezes-em-que-bolsonaro-e-seus-filhos-exaltaram-e-acenaram-a-ditadura/. Acesso em: 9 set. 2020.
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): “Eu louvo os militares que, em 1968, impuseram o AI-5 para conter o terror em nosso País, ato também apoiado pela mídia, apoiado pelo Supremo Tribunal Federal” (dezembro de 2008), “E, quando [a corrupção] aparecia, a autoridade era cassada pelo saudoso AI-5, que veio para evitar que o terrorismo se expandisse mais em nosso País” (março de 2010), “Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff […], o meu voto é sim” (abril de 2016), “o erro da ditadura foi torturar e não matar” (junho de 2016), “Não houve golpe militar em 1964” (junho de 2018), dentre outras ocorrências.

Sobre o grotesco, a serpente tem uma cabeça muito grande e olheiras bem marcadas, o que lhe confere um tom de perversidade. Em virtude disso, o olhar é autoritário, impondo medo medo aos intimidados Adão e Eva. Somado a isso, verifica-se que a figura presidencial também se “camufla” em cobra porque é traiçoeira ao enganar a população quanto aos efeitos da pandemia em solo brasileiro e, de forma irônica, é explícita ao contrariar, em tom de zombaria, as recomendações advindas da OMS.

Após a leitura, compreende-se que a população cristã brasileira, que constituiu eleitorado ativo e base aliada de Bolsonaro, é a primeira vítima de seu discurso sobre o uso da cloroquina. Assim, ao carnavalizar as atitudes de Bolsonaro, coloca-se em xeque seu lugar canônico de ex-presidente de uma nação laica.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste estudo, apresentou-se o gênero discursivo charge mediante sua caracterização quanto aos temas abordados, à estrutura, à linguagem, ao diálogo que mantém com a realidade imediata e o objetivo comunicativo. Em paralelo, compreendeu-se a charge como gênero argumentativo, por seu viés questionador da norma, e de cunho cômico, pela forma como desperta o riso. Embora sem finalidade pedagógica ou moralizante, a charge conecta-se com o mundo empírico, de onde deriva sua responsividade.

Sobre o arcabouço teórico, buscou-se compreender no corpus a carnavalização e o corpo grotesco como atos subversivos contra os discursos do ex-presidente da República do Brasil durante o período da pandemia de COVID-19. Desse modo, verificou-se que os chargistas - Fraga, Duke e Silva - usaram a figura de um líder político às avessas, como, infelizmente, é perceptível também na prática. O político é destronado. Na base da ação ritual de destronamento do “rei” reside o próprio núcleo da cosmovisão carnavalesca, segundo os estudos de Bakhtin (2010BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Iara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 2010.).

A respeito da perspectiva bakhtiniana da vida, ela é dialógica, multivocal, reflexiva, crítica, e favorável à circulação de ideias e de pensamentos livres, por meio da qual se tem um todo polifônico formado de vozes centrífugas. Quanto aos discursos de Jair Bolsonaro ecoados pelas charges analisadas, porém, nota-se o inverso: o ex-presidente demonstra publicamente o autoritarismo da voz una que acentua a violência da palavra outra - nesse caso, a grande violência pela imagem em ausência (Bakhtin, 2019BAKHTIN, M. O Homem ao espelho. Apontamentos dos anos 1940. São Carlos: Pedro & João, 2019.).

Posto isso, verifica-se que as vozes centrípetas tomam conta de sua conduta, em um olhar mais próximo, e de sua maneira de governar, em um olhar mais geral. Como resultado das posturas do “Capitão”, a nação brasileira, na figura das pessoas socialmente e economicamente vulneráveis, ficou à deriva em plena pandemia. No entanto, verifica-se haver vozes que riem para mobilizar a subversão dos discursos do ex-presidente a fim de destronar sua hegemonia, revelando resistências que desafiam a censura oficial.

REFERÊNCIAS

Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2021
  • Aceito
    22 Maio 2024
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