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LETRAMENTO CRÍTICO EM PRINCÍPIOS: AUSÊNCIA, PRESENÇA E TRANSGRESSÃO

Critical Literacy in Principles: Absence, Presence, and Transgression

Letramiento crítico en principios: ausencia, presencia y transgresión

Resumo

Neste texto, problematiza-se letramento crítico e narrativas de verdade(s) por que são atravessadas as interações em determinadas culturas. Apresentam-se, como recurso didático-metodológico para o trabalho com o letramento, três princípios: princípio da ausência de verdade, princípio da presença de verdade e princípio da transgressão crítica. Cada um desses princípios é desenvolvido com base nas concepções de discurso, razão, crítica, práxis, interseccionalidade, transgressão. No ensaio, discutem-se as categorias de real, simbólico e imaginário, oriundas dos estudos psicanalíticos, bem como as de verdade categórica, enunciados discursivos e multiculturalidades. Com base nos processos de inferência e compreensão - estratégico, flexível, interativo e inferencial, propõe-se o letramento crítico como uma prática contra-hegemônica de inclusão de multiplicidade de discursos, que levem em conta os contextos culturais e linguisticamente diversos, a fim de haver uma mudança epistêmica e metodológica de análise crítica dos fatos para que se gere uma ação concreta, uma práxis.

Palavras-chave:
Letramento crítico; Colonialidade; Construção da verdade; Multiculturalidade; Transgressão Crítica

Abstract

In this text, I problematize critical literacy and the narratives of truth(s) through which people define the interactions in certain cultures. As a didactic-methodological resource for literacy instruction, I suggest the principle of truth absence, the principle of truth presence, and the principle of critical transgression. Each of those three principles is developed based on the conceptions of discourse, reason, criticism, praxis, intersectionality, and transgression. Throughout the text, I discuss the categories derived from psychoanalytic studies of real, symbolic, and imaginary, as well as those of categorical truth, discursive statements, and multiculturalities. Based on the strategic, flexible, interactive, and inferential processes of inference and understanding, I propose critical literacy as a counter-hegemonic practice of inclusion of a multiplicity of discourses, which take into account culturally and linguistically diverse contexts, to establish an epistemic and methodological change of the critical analysis of the facts in order to generate a concrete action, a praxis.

Keywords:
Critical literacy; Coloniality; Construction of truth; Multiculturalism; Critical Transgression

Resumen

En este texto, se problematiza el letramiento crítico y las narrativas de verdad por las cuales están atravesadas las interacciones en determinadas culturas. Se presentan tres principios como recursos didáctico-metodológicos para trabajar con el letramiento: el principio de la ausencia de verdad, el principio de la presencia de verdad y el principio de la transgresión crítica. Cada uno de ellos se desarrolla con base en las concepciones de discurso, razón, crítica, praxis, interseccionalidades y transgresión. En el ensayo, se discuten las categorías de real, simbólico e imaginario, provenientes de los estudios psicoanalíticos, así como las de verdad categórica, enunciados discursivos y multiculturalidades. Con base en los procesos de inferencia y comprensión, estratégicos, flexibles, interactivos e inferenciales, se propone el letramiento crítico como una práctica contrahegemónica para incluir una multiplicidad de discursos, teniendo en cuenta los contextos culturales y lingüísticamente diversos, con el fin de lograr un cambio epistémico y metodológico en el análisis crítico de los hechos, generando así una acción concreta, una praxis.

Palabras clave:
Letramiento crítico; Colonialidad; Construcción de la verdad; Multiculturalidad; Transgresión crítica

1 CRÍTICA DO LETRAMENTO CRÍTICO

O título dessa introdução traz uma paráfrase, a um só golpe, de duas obras incontornáveis: Crítica da razão pura, de Immanuel Kant (2001KANT, I. Crítica da razão pura. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.)1 1 Crítica da razão pura foi escrita por Immanuel Kant em 1781 (com alterações substanciais feitas pelo próprio autor em outra publicação em 1787). Esta obra se consagrou na história do pensamento crítico como uma virada epistemológica da filosofia moderna. O projeto inicial da obra era questionar se a metafísica seria possível enquanto ciência, feita a partir de proposições (analíticas e sintéticas). Kant questiona como é possível a objetividade de uma regra moral prática, estabelecendo assim toda uma reflexão sobre o conceito de imperativo categórico. , e Crítica da razão negra, de Achille Mbembe2 (2014MBEMBE, A. Crítica da razão negra. 2. ed. Lisboa: Antígona, 2014.). Meu propósito ao nomear esta seção foi relacionar duas obras que (re)elaboram o conceito de crítica como modo de questionar a possibilidade de haver discursos objetivos, ou seja, discursos que revelem a verdade dos fatos. Os autores, ainda que separados por mais de dois séculos, inauguram uma forma de problematizar os saberes legitimados e os poderes hegemônicos que sustentam a lógica dominante de seu tempo. Em suas obras, tanto Kant como Mbembe demandam que os sujeitos sociais sejam responsáveis pela constante interrogação da racionalidade estabelecida em sua própria atualidade, não somente para refletir sobre a possibilidade empírica de uma razão pura/negra, mas, e sobretudo, para elucidar como tais racionalidades exercem direta influência nas subjetividades humanas, marcadas pelo tempo, espaço, cultura e ideologias. É justamente neste ponto de elucidação de racionalidade que trago a reflexão acerca dos estudos sobre letramento crítico.

Logo na primeira parte deste texto, proponho uma desconstrução radical da ideia de letramento crítico, problematizando a fragilidade dos limites impostos por um tipo de racionalidade que não leva em consideração aspectos fundamentais para a compreensão do mundo, como estratificação social, gênero e raça, por exemplo. Faço isso com dois objetivos: primeiro, para censurar as pretensões de um letramento crítico universal (em franca alusão à ideia de letramento autônomo)3 3 Para Street (2014, p. 143-144), o letramento autônomo está diretamente relacionado a uma pedagogização do letramento, ou seja, a um modelo pedagógico focado em torno da linguagem do letramento e dos procedimentos para sua disseminação na sociedade, como modo de universalizar o conhecimento sobre as práticas e eventos de linguagem. Street, no entanto, ressalta que este letramento deriva de padrões culturais e ideológicos mais amplos, e não somente da escola. , cuja razão se daria independentemente da visão de mundo dos sujeitos cognoscentes; segundo, para desestabilizar uma ideia romantizada que se interpõe, tanto na academia quanto na escola, acerca da promoção de letramento crítico que os docentes partilham com os alunos, desde que, para isso, contextualizem a discussão sobre determinado fato (conteúdo, assunto, acontecimento, texto) no âmbito histórico, cultural, social, ressaltando valores contra-hegemônicos que critiquem as relações de poder4 4 Marx e Engels, em meados do século XIX, fundam uma tradição intelectual (pensamento crítico dialético) de crítica ao complexo sistema capitalista, cujo objetivo primordial era mostrar o funcionamento desse sistema econômico a partir do método dialético. Um dos elementos centrais desse sistema seria justamente a luta de classe, as relações de poder e a desigualdade social, os quais têm como pano de fundo a exploração das forças de trabalho pelo capital. .

Inquieta-me em tal contextualização a possibilidade latente do trabalho com o letramento crítico a partir de distorções e imprecisões produzidas por discursos generalistas político-partidários traspassados pelo verniz dogmático-progressista. Tais discursos relacionam a ideia de “ter letramento crítico” ao saber-poder produzir uma crítica sobre determinado fato, e não como reflexão acerca das possibilidades de narrativas de verdade(s) por que são atravessadas as interações entre os sujeitos inseridos em determinadas culturas. Por isso, para iniciar a desconstrução a que me proponho sobre letramento crítico, estabeleço, nesta introdução, três reflexões norteadoras: Como se tem acesso à rede de ideias que sustentam a legitimação simbólica de submissão ao capitalismo, ao passado colonial e ao patriarcado moderno (Santos, 2007SANTOS, B. de S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 78, p. 3-46, 2007.)? Quais critérios teóricos, valores ideológicos e metodologias conduzem a mediação docente no processo de letramento crítico? e Como se promove um engajamento crítico que gere outras possibilidade epistêmicas de conhecimento legitimadas nas ciências humanas, nas instituições de ensino, nos currículos, etc.?

A partir dessas reflexões, apresento, para além da simples desconstrução, uma perspectiva de promoção do letramento crítico, como recurso didático-metodológico, cuja base se encontra alicerçada em três princípios: princípio da ausência de verdade, princípio da presença de verdade e princípio da transgressão crítica. Tais critérios procuram ressaltar a crítica à verdade dos discursos5 5 Para Foucault (1996), a produção do discurso, em toda sociedade, é, ao mesmo tempo, controlada, selecionada, organizada e distribuída por um certo número de procedimentos, como o de exclusão e interdição. O discurso não traduz apenas as lutas ou os sistemas de dominação, mas o poder do qual queremos nos apoderar. vigentes sustentada por todo um sistema de instituições - que a impõe e a reconduz (Foucault, 1996FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.), como método para produção de letramento crítico. Cada um desses princípios foi desenvolvido com base nas concepções de verdade, discurso, razão, crítica, ideologia, transgressão desenvolvidas por autores e pensadores como Kant ([1781] 2001), Marx e Engels ([1846] 1996), Fanon ([1952] 2020), Césaire ([1955] 2020), Foucault (1987; 1990; 1996;), Said ([1978] 2007), Santos (2007SANTOS, B. de S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 78, p. 3-46, 2007.), Gnerre (2009GNERRE, Maurizio. Linguagem, escrita e poder. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.), Mbembe (2014MBEMBE, A. Crítica da razão negra. 2. ed. Lisboa: Antígona, 2014.), Hooks (2017HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2017.), Kilomba (2019KILOMBA, G. Memória da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.) e Freire (2016FREIRE, P. Pedagogia do oprimido: saberes necessários à prática educativa. 62. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2016.; 2019). A partir desses autores, problematizo o ensino acadêmico-escolar do letramento crítico, assim como a própria adjetivação a ele agregada, tratada como uma espécie de salvo-conduto, tanto teórico como empírico, a uma retomada redentora de um sistema educacional frequentemente [e propositadamente] a-crítico, a-político e a-histórico.

Tal salvo-conduto que a superposição adjetiva do termo “crítico” pretende não se sustenta como um novo modo de perceber/conceituar o letramento, tendo em vista que, há mais de 20 anos, Street ([1995] 2014) deixou bem clara a ideia de crítica implicada na própria definição de letramentos sociais (assim como as inúmeras referências e discussões bastante publicadas sobre letramento autônomo, ideológico; práticas e eventos de letramento). O autor foi categoricamente crítico ao dizer que o estigma do analfabetismo6 6 Street (2014, p. 36-37) faz uma crítica a Paulo Freire ao dizer que até o pedagogo, como militante mais influente e radical do letramento, tendia a acreditar que pessoas sem letramento do tipo ocidental eram incapazes de ler o mundo. é um fardo maior do que os verdadeiros problemas com a leitura e a escrita e que a ideia de “o analfabeto”, além de não fazer sentido intelectualmente, é socioculturalmente nociva. Portanto, quando o conceito de letramento chegou ao Brasil, ele já aportou crítico e politicamente engajado, com a finalidade de promover “uma autoconsciência linguística e política” (Street, 2014, p. 37) que se expressa por meio de formas sutis de construção do discurso.

Os estudos de letramento demandaram desde sempre que os sujeitos percebessem a diferença entre mensagem de superfície e o significado profundo de várias maneiras codificadas. Por isso, pode-se aferir que o letramento crítico está implicado na virada epistemológica promovida pelos Novos Estudos de Letramento (NEL) - desenvolvidos ainda no início da década de 1990 - o que me permite dizer que não há novidade tácita pretensamente destinada aos estudos de letramento crítico. A mesma percepção de criticidade sobre estudos de letramento pode ser vista se voltarmos mais uma década, ao início dos anos 1980. Gnerre (2009GNERRE, Maurizio. Linguagem, escrita e poder. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009. [1985]), um dos primeiros estudiosos sobre letramento, já discutia a relação entre linguagem, escrita e poder, quando reivindicava maior reflexão sobre as atitudes, as expectativas e as crenças que “outros grupos étnicos, outras classes sociais ou outros grupos de idade podem ter sobre a escrita compartilhada dentro da própria tradição escrita, elaborada por minorias letradas ligadas ao poder político e econômico”(p. 47).

Como vemos, o movimento de reflexão crítica sobre o trabalho com os letramentos sempre existiu. Hoje, quando lidamos com letramento crítico, o que percebo são tentativas de convocar a tradição crítica como possibilidade analítica de identificação da verdade no presente contemporâneo. Diante de tal pressuposição, minha condução argumentativa, neste texto, se dará a partir de uma proposição de princípios que nos orientem a definir a tarefa da crítica para o letramento crítico, em articulação com os estudos filosóficos, aferindo ao procedimento de letramento um caráter eminentemente político e emancipatório.

2 PRINCÍPIO DA AUSÊNCIA DE VERDADE

Não chego armado de verdades categóricas. Minha consciência não está permeada de fulgurações precípuas. No entanto, com toda a serenidade, acho que seria bom que certas coisas fossem ditas (Fanon, 2020FANON, F. Pele negra máscaras brancas. São Paulo: Ubu, 2020. [1952]).

Trago a ideia de verdades categóricas inscrita no trecho de Fanon como o cerne dialético do princípio da ausência de verdade. Este princípio traz à baila uma reflexão sobre verdade, razão, discurso e poder - foco do letramento crítico - e lança a proposição de que, para discorrer sobre letramento crítico, é preciso ter consciência da limitação constitutiva, dada pela própria linguagem, de elaboração enunciativa de uma verdade absoluta. Para explicar tal limitação, abro um parêntese para fazer um rápido diálogo com as categorias de real, simbólico e imaginário, oriundas dos estudos psicanalíticos. Proponho para esta explicação um alinhamento sinonímico de tais categorias às ideias de verdade categórica, enunciados discursivos e interpretabilidade, respectivamente.

O real é definido pela psicanálise como aquilo que não pode ser simbolizado pela linguagem. Ele é diferente do simbólico e do imaginário, pois escapa à simbolização, isto é, escapa à possibilidade de ser capturado por meio da linguagem humana. Para a psicanálise, a linguagem humana está na ordem da incompletude, da impossibilidade de “dizer” o real. Por isso, o que estrutura a realidade (o real) é o simbólico e o imaginário (Lacan, 2005LACAN, J. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.). Assim, nós, sujeitos discursivos, só temos acesso à realidade (à verdade categórica) quando fazemos uso do simbólico (narrativas de verdades inseridas na, e por meio da cultura).

Podemos dizer que o simbólico é um sistema representativo social, um conjunto de posições enunciativas que circunscreve e representa lugares, tempos, espaços, mitos, crenças, valores, posições identitárias e ideologias. Dessa forma, ele só pode ser interpretado a partir das relações que um elemento (simbólico) tem com outro conjunto de elementos (também simbólicos), ou seja, só pode ser compreendido nas redes de significações estabelecidas socioculturalmente.

Já o imaginário seria o elemento que liga esta rede de significações a suas relações intersubjetivas subsequentes, uma vez que o sujeito, para a psicanálise, só se constitui por meio de uma relação imaginária com o outro. É através do imaginário que o sujeito do discurso se aliena à possibilidade de uma compreensão absoluta do enunciado do outro. Esta ideia de compreensão absoluta repercute diretamente no processo de letramento [crítico] quando acreditamos que há uma relação direta entre a palavra (imagem) e seu significado, isto é, quando agimos como se houvesse uma verdade objetiva a ser apreendida no discurso. Diante de tal explicação, podemos dizer que a realidade/o real (as verdades categóricas) que enunciamos é composta pelo simbólico e pelo imaginário, e isso nos permite dizer que a realidade não nos é apresentada como uma totalidade integrada, harmoniosa, dotada de sentido pleno, e sim como uma representação simbólica social atravessada pela cultura. Logo, diante da impossibilidade de enunciarmos a realidade, no trabalho com o letramento, é imprescindível lidar com a ausência tácita de verdades categóricas.

Por isso, o princípio da ausência de verdade promove uma antítese norteadora para letramento crítico, uma vez que revela as múltiplas possibilidades de produção de verdades que vão além das hipóteses inferenciais de sujeitos alienados a seu contexto referencial como centro norteador do mundo. Tal princípio relativiza a centralidade que os sujeitos letrados imprimem a sua projeção de crítica aos acontecimentos, visto que lhes lembra as muitas possibilidades enunciativas às quais eles não têm alcance. Isso acontece porque, quando interpretamos determinados fatos, estamos apenas diante de uma representação da verdade, e tal representação se dá na ausência de outras tantas possíveis. Assim, o princípio da ausência de verdade atua no processo de letramento crítico como uma potencialidade de legitimação simbólica de interpretação crítica, fundada necessariamente na relação do indivíduo com a alteridade, com o outro, com as múltiplas vozes sociais.

Esta legitimação simbólica é o que sustenta a verdade no discurso, por isso não há como pensar em letramento crítico e em sua relação com as estruturas de poder, se não compreendermos uma ausência de verdade predeterminada inclusive em nosso próprio discurso. Assim, ao admitirmos que nossa crítica a um fato específico pode ser negada ou afirmada por outras vozes sociais, abrimos um importante espaço de letramento crítico, cuja construção terá a ausência da verdade como via discursiva já preestabelecida.

Fazer esta mudança de paradigma no trabalho com o letramento crítico pode gerar uma reflexão mais implicada sobre os estereótipos, os clichês, os binarismos, as certezas e os essencialismos universais de que lançamos mão no/para o discurso. Tal mudança põe à prova verdades categóricas, incluindo as nossas. Trata-se de um esforço para reinventar procedimentos metodológicos, com base na linguística e na filosofia, que descentralizem a crítica “padrão”7 7 A crítica padrão a que me refiro remete a um grupo geral de ideias e saberes advindos de uma cosmovisão eurocêntrica e norte-americana que estão impregnadas de doutrinas de superioridade ocidental de fazer crítica. Antes de aceitar tais pressupostos críticos, porém, temos sempre de levar em conta que “a economia, a política e a sociologia na academia moderna são ciências ideológicas” (Said, 2007, p. 37). feita às relações de poder8 8 Não existe nenhuma relação de poder sem um polo de resistência. O poder não é uma substância em si. Ele se concretiza no exercício da ação, na produção de efeitos sociais, logo nós só podemos identificar uma relação de poder - uma relação de dominação - onde existam pelo menos dois polos de resistência: o do dominante e o do dominado. Assim, as relações de poder contêm em sua base conceitual a seguinte premissa: para que o dominante permaneça dominante, ele precisa do dominado, isto é, dominado tem de permanecer dominado. e às ideologias dominantes que pouco, ou quase nada, atravessa as fronteiras das contraculturas ocidentais legitimadas, sobretudo em academias e instituições de prestígio nacional e internacional.

Tal crítica padrão feita por instituições de prestígio ganha ares de paladina da razão (baseada sobretudo em epistemologias eurocêntricas), sem se dar conta de que ela, muitas vezes, não ultrapassa os limites da retórica - muito menos os da experiência empírica - servindo apenas como princípios metafísicos (Kant, 2001KANT, I. Crítica da razão pura. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.). Por isso o letramento crítico deve contestar a ilusão de razão [pura], a fim de cumprir um papel eminentemente político no sentido de desmontar os mecanismos das epistemologias dominantes, interrogando sobre suas fontes, suas categorias, seus componentes, seus limites, suas exclusões e escolhas, trazendo à tona constantemente o princípio da ausência da verdade categórica. Logo, ao assumir o princípio da ausência como ponto de ancoragem, me parece que o letramento crítico assumirá a adjetivação como uma real mudança de paradigma aos estudos do letramento.

Além desse princípio, outra concepção que merece ser mais bem trabalhada no letramento crítico é a própria ideia de crítica. Foucault, em 1978, fez uma conferência9 9 Nessa conferência, intitulada no original como Qu'est-ce que la critique? Critique et Aufklärung, Foucault, rememorando Kant, faz uma pergunta que me parece central para toda a tomada de consciência crítica. Ele provoca a plateia com a célebre frase: você sabe bem até onde pode saber? (Foucault, 1990). na qual indaga, com base no projeto crítico inaugurado por Kant, o que seria a crítica [neste ponto, poderíamos fazer uma paráfrase e também nos perguntar o que seria, de fato, letramento crítico]. Nessa conferência, o autor promove uma reflexão sobre uma história crítica da verdade, na qual problematiza o distanciamento do vínculo horizontal entre sujeito e conhecimento da verdade. Para o filósofo, o que temos como prática de produção de verdade nada mais é do que uma articulação entre práticas discursivas, práticas sociais e práticas de subjetivação (Foucault, 1990), e é a partir dessa articulação que a concepção de crítica se vê implicada como forma de desconstrução das verdades autoritárias que moldam o jogo da governamentalidade.

Foucault explica que o discurso religioso, o jurídico, o científico - bem como o magistério, a lei, a natureza, o dogmatismo - se articulam e dão fundamento à história da cultura ocidental. Tal cultura, por conseguinte, operando dentro de uma sociedade civil, sofre a influência de ideias, de pessoas e de instituições, que funcionam não pela dominação, mas pelo consenso (Gramsci, 2004GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. V. 2. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.). Este consenso carrega em si a noção de hegemonia, segundo a qual, em uma sociedade não totalitária, certas expressões culturais predominam sobre outras, assim como certas ideias, valores, crenças. É justamente o resultado da hegemonia cultural em ação (Said, 2007SAID, E.. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 34) que dá a epistemologias eurocêntricas e anglófonas durabilidade e força motriz de influenciar outras culturas.

Essa ideia de hegemonia também pode ser vista na percepção consensual que se tem de letramento como universalização do saber. Ela compôs a dicotomia letrado e não letrado com base numa identificação colonializada entre a superioridade dos povos e nações. Por isso o foco do letramento crítico deve ser a leitura, a compreensão, a ponderação e a análise da relação que existe entre essas práticas discursivas hegemônicas e como elas articulam o sujeito ao poder e à verdade [quem tem o poder de enunciar a “verdade”?].

Trabalhar o letramento crítico, então, seria promover um movimento de interrogação constante, com base no princípio da ausência da verdade, a partir de uma noção de crítica articulada às práticas sociais e à noção de (contra) hegemonia, a fim de (des)legitimar a rede simbólica usada tanto pelo opressor quanto pelo oprimido (Freire, 2016FREIRE, P. Pedagogia do oprimido: saberes necessários à prática educativa. 62. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2016.). Porém, tal legitimação não se dá de forma clara nem objetiva, tendo em vista que a relação entre poder e conhecimento muitas vezes sustenta nossa própria subjetivação, afinal qualquer sistema de ideias capaz de permanecer imutável como conhecimento passível de ser ensinado (em academias, livros, congressos) deve ser algo mais formidável que uma simples coletânea de mentiras (Said, 2007SAID, E.. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 33).

3 PRINCÍPIO DA PRESENÇA DE VERDADE

Colonização e civilização? A maldição mais comum nessa questão é a de ser em sua boa-fé pela hipocrisia coletiva, perita em situar mal os problemas para melhor legitimar as odiosas soluções oferecidas. [...] Da colonização à civilização, a distância é infinita. (Césaire, 2020CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo, Veneta, 2020. [1955])

A problemática da distância infinita que Césaire aponta na citação que inicia esta seção se coloca como um eixo norteador para a discussão neste bloco, não apenas como militância acadêmica, mas, e sobretudo, como busca de métodos recursivos que permitam pontes entre o dito e o vivido.

Como vimos na seção anterior, a legitimação simbólica de algumas representações sociais é o que sustenta nossa vida em sociedade. As constantes interações dialógicas entre os sujeitos fundam nossa subjetividade e nela se objetificam práticas e discursos. Tais práticas e discursos que são considerados democráticos e libertadores - como as campanhas de letramento, de alfabetização, de aumento de oportunidades e dos recursos educacionais - “estão muitas vezes conjugados com processos de padronização da língua, que são menos obviamente democráticos e ‘libertadores’” (Gnerre, 2009GNERRE, Maurizio. Linguagem, escrita e poder. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009., p. 29). Daí que entender o letramento crítico como uma prática de interpretação das relações sociais promove ao processo um caráter eminentemente político e emancipatório.

Por isso, se o letramento crítico quer ser conceituado como uma posição crítica de combate às práticas hegemônicas, temos que fazer uma mudança profunda no discurso autofágico academicista para que haja de fato impacto nas relações de poder. Temos que fazer uma mudança epistêmica e metodológica de análise crítica dos fatos para que se gere uma ação concreta, uma práxis.

Na tradição marxista, práxis não é apenas uma relação (dialética) entre prática e teoria. Práxis é uma atuação social de mão dupla: tanto ela é orientada pela teoria, que impacta a realidade, como orienta a teoria num processo de retroalimentação simbiótica entre ambas (atualização de práticas e das teorias como atividades históricas situadas). Assim, a práxis tanto confronta quanto resolve contradições em um movimento dialético de ação e orientação sobre um fluxo de atividades humanas, a fim de que prática e teoria estejam sempre conectadas. Garantir esta conexão é uma forma de manter uma orientação revolucionária e transgressora, um engajamento implicado, diferentemente de um ativismo proselitista.

Contemporaneamente, há uma falência de aparato teórico para lidar com tantas situações político-econômicas que mostram o fracasso das instituições governamentais e educacionais como projeto de poder (contra) hegemônico. Faz parte do processo letramento crítico o reconhecimento de que as consciências (prática e teórica) são formadas tanto pela realidade imediata de certos grupos sociais, como por bases teóricas hegemônicas e legitimadas. Se tais consciências não estão articuladas em um processo de práxis, provavelmente haverá contradição e a manutenção das hierarquias hegemônicas.

Esta mudança qualitativa da percepção do mundo, que não se realiza fora da práxis, não pode jamais ser estimulada pelos opressores, como objeto de sua teoria da ação. Pelo contrário, a manutenção do status quo é o que lhes interessa, na medida em que a mudança na percepção do mundo, que implica, neste caso, a inserção crítica na realidade, os ameaça (Freire, 2016FREIRE, P. Pedagogia do oprimido: saberes necessários à prática educativa. 62. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2016., p. 207, grifos meus).

Como modo de inserção crítica na realidade, o letramento crítico se preocupa, em primeira instância, pela busca de verdade (vontade de verdade10 10 Cf. Foucault (1996). ). Neste ponto, vale a pena refletir não sobre a ausência de verdade categórica, mas sim sobre as possibilidades de presença de verdade nos enunciados. Vejamos, então, as premissas que sustentam a ideia de verdade. Se, no processo de letramento crítico, compreendermos que a verdade pode ser identificada com a clareza e a distinção da representação dos objetos de discurso, o acesso de nosso intelecto à verdade não pode estar corrompido por nenhuma opacidade, por nenhuma distorção. A verdade seria, assim, a clareza e a distinção da representação simbólica dos enunciados discursivos. Porém, para que a forma [histórica] da verdade possa coincidir com clareza e distinção da representação, tem de haver procedimentos muito específicos de comprovação, de atestação, de verificação11 11 O grande modelo de verificação da verdade que surge na história humana é a demonstração matemática. da verdade. Para isso, é preciso que haja uma possibilidade de acesso totalmente transparente à verdade e que esta verdade seja pública, universal, semelhante à forma de ciência construída a partir do modelo de Descartes (1596-1650).

Segundo Foucault (2002), porém, o que vemos na prática são regimes históricos de produção de verdade, que exigem certas regras, modelos, condições de possibilidade do discurso - e condições de possibilidade de objeto do discurso (ou seja, determinados conceitos correspondem a determinados objetos) - que podem ser trabalhados por meio de alguns métodos. Para que isso tudo seja possível, é preciso, então, que haja um conjunto de regras, que Foucault chama de epistemes. Essas epistemes carregam em si grandes referentes históricos - como Deus ou a razão humana -, porém a ideia de que eles garantam, definam e determinem o que é a verdade é extremamente problemática, porque o próprio homem é também uma construção discursiva produzida numa rede tanto de regras e de produção de enunciados, quanto de práticas sociais.

O que existe na realidade é uma espécie de engrenagem entre as formas do conhecimento; entre as regras de produção de discurso, de enunciados, de práticas discursivas. Essa engrenagem está totalmente articulada com os mecanismos de relação de poder, de disciplina (mandar e obedecer) que acontecem em instituições sociais (nas fábricas, nos quartéis, nas escolas, nos hospitais, nos hospícios, nos reformatórios). Tais instituições, segundo Foucault, criam condições de observação das quais são extraídos os conhecimentos que vão ser sistematizados, ordenados e organizados nas ciências humanas que, por sua vez, extraem, dessas relações de dominação capitalistas, seu saber sobre como esses mecanismos que são empregados para produzir, para disciplinar, para controlar os corpos das pessoas. Logo, as ciências humanas se erguem a partir desses procedimentos de observação - e consequente sistematização de certos conhecimentos - e retroalimentam estes mesmos mecanismos de controle.

Percebendo, então, o letramento crítico como um processo advindo das ciências humanas, faz-se necessário pensarmos em mudanças, epistêmicas e metodológicas, que impliquem tanto uma análise crítica dos fatos (presença de verdade) como ações concretas (transgressão crítica) por parte dos atores sociais envolvidos. Por isso discuto, neste tópico, o segundo princípio para promoção do letramento crítico: o princípio da presença de verdade. Trago, para a elucidação desse princípio, os estudos de Marcuschi (2008MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.) sobre as inferências, especialmente no que se refere ao modo como o linguista operacionalizou os processos de compreensão textual; e as premissas de Fanon (2020FANON, F. Pele negra máscaras brancas. São Paulo: Ubu, 2020.), Césaire (2020CÉSAIRE, A. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo, Veneta, 2020.), Said (2007SAID, E.. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.), Santos (2007SANTOS, B. de S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 78, p. 3-46, 2007.) e Mbembe (2014MBEMBE, A. Crítica da razão negra. 2. ed. Lisboa: Antígona, 2014.) sobre o reconhecimento do colonialismo para a construção de narrativas hegemônicas de verdade. Quero, com isso, apresentar para a reflexão aqui empreendida possibilidades da presença de verdade como mais um recurso norteador do letramento crítico.

Tomando como premissa que o processo de compreensão está implicado na trajetória identitária do letramento crítico, começo pelos aspectos destacados por Marcuschi quando sistematiza uma forma de operacionalização do processo de compreensão. São eles o processo estratégico, o flexível, o interativo e o inferencial. Esses processos ganham, na discussão sobre letramento crítico, o caráter de organizadores do princípio de presença de verdade quando articulados aos diversos tipos de natureza inferencial, como veremos a seguir.

Como processo estratégico entendem-se as atividades voltadas para uma ação comunicativa otimizada, cujas inferências são pragmáticas, semânticas ou cognitivas de maneira geral (Marcuschi, 2008MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.). Neste processo, compreensão não é uma atividade com regras formais e lógicas, e sim uma atividade de escolha de alternativas inferenciais mais produtivas para o contexto imediato. No processo flexível, percebe-se que a compreensão se dá tanto num movimento global (top-down) quanto local (bottom-up) e que ela dependerá das necessidades dos interactantes e do contexto discursivo. Trata-se de um movimento flexível, indutivo (parte pelo todo) ou dedutivo (todo pela parte), de compreensão recursiva. Já o processo interativo revela a necessidade de uma compreensão coconstruída, negociada nas atividades interativas tanto entre a proposta textual quanto entre os interlocutores. Por fim, o processo inferencial lembra aos sujeitos que a produção de sentidos no/do enunciado discursivo “não se dá pela identificação e extração de informações codificadas, mas como uma atividade em que conhecimentos de diversas procedências entram em ação por formas de raciocínio variadas” (Marcuschi, 2008, p. 256).

Neste processo inferencial, Marcuschi mostra métodos de produção de inferências que se articulam com o princípio de presença de verdade no letramento crítico. Tais métodos apresentam tanto diferentes tipos de natureza inferencial12 12 Natureza lógica, lexical, semântica, pragmática, experimental, experiencial e cognitiva. quanto distintas condições de realização discursiva, e eles nos dão a dimensão da complexidade para se designar a (uma) verdade. Os tipos de natureza inferencial seriam a dedução, a indução, a particularização, a generalização, a sintetização, o parafraseamento, a associação, a avaliação ilocutória, a reconstrução, a eliminação, o acréscimo e o falseamento. Assim, ainda que tais métodos possam denotar que a atividade de compreensão [de letramento crítico] seja de difícil precisão, isso não quer dizer que compreender seja uma “atividade imprecisa e de pura adivinhação” (Marcuschi, 2008, p. 256). E é por esta compreensão que trabalha o princípio da presença de verdade. Por este princípio, o método se encontra precisamente na seleção, reordenação e reconstrução das possibilidades de narrativas de verdade que podem ser apreendidas a partir de determinados fatos/acontecimentos discursivos.

Se o princípio da ausência de verdade lida com a dimensão da falta estrutural de uma verdade categórica - como traço constitutivo da própria linguagem e da inexistência de neutralidade não ideológica dos sujeitos envolvidos na produção das narrativas de verdade -; o princípio da presença de verdade lida com as possibilidades de compreensão advindas das marcas, das pistas enunciativas, textuais, de um determinado evento discursivo. Isso quer dizer que o letramento crítico é uma prática que busca apreender, no processo de compreensão, as verdades compatíveis com as inferências permitidas pelos acontecimentos. Tais inferências podem ser objetivas - informações que não oferecem resistência para a construção da compreensão por parte dos interlocutores - por exemplo, os dados factuais, os nomes, as idades, a localização, a nação, as datas; ou subentendidas (implicadas, supostas), passíveis de receber interpretações diversas (Marcuschi, 2008MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.). O princípio da presença de verdade atuará especialmente nas inferências subentendidas, a fim de aferir (por meio de pistas, marcas, regras e condições enunciativas) possíveis verdades que podem ser lidas a partir de um determinado fato.

Com base nas inferências subentendidas, o letramento crítico pode promover uma crítica interseccional, na qual aspectos como raça, gênero, estratificação social, patriarcado e estruturas coloniais agem como recursos de contravenção e deslegitimação dos discursos hegemônicos e de epistemologias que sustentam as relações de poder no Ocidente. Tais interseccionalidades procuram problematizar uma narrativa de erudição a-política imparcial que está acima das crenças doutrinárias13 13 Segundo Marcuschi (2008, p. 257), os textos poéticos, os textos da esfera religiosa e os textos de alto teor ideológico, como os discursos políticos, operam de modo bastante acentuado no nível de inferência de domínio das crenças e dos valores pessoais. , a fim de promover um letramento crítico que identifique quais verdades são cerceadoras de direitos e de liberdades. Estas verdades são indefensáveis14 14 Faço aqui uma paráfrase à célebre frase de Aimé Césaire (1955): A Eupora é indefensável. .

Para esta problematização, porém, é importante ressaltar novamente que, na produção de conhecimento das ciências humanas, “jamais se pode ignorar ou negar o envolvimento de seu autor como sujeito humano em suas próprias circunstâncias” (Said, 2007SAID, E.. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 39). Isso quer dizer que, por exemplo, quando se trata de um europeu ou um norte-americano estudando o letramento [crítico], deve-se levar em consideração primeiramente a sua realidade como ser social (ele é europeu/americano) para depois pensá-lo enquanto indivíduo atravessado por ideologias (orientação de subjetivação). Como ressaltou Freire (2016FREIRE, P. Pedagogia do oprimido: saberes necessários à prática educativa. 62. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2016.), as aspirações, os motivos, as finalidades que se encontram implicadas são sempre aspirações humanas, por isso não são coisas putrificadas, mas estão sendo. “São tão históricos quanto os homens” (p. 138). Portanto, o letramento crítico não é um simples campo de análise crítica das práticas discursivas refletido passivamente pela cultura, pela erudição ou pelas instituições; é sim uma tomada de consciência geopolítica, como afirma Said (2007), que visa a uma (re)elaboração de textos a partir da contravenção de padrões estéticos, eruditos, econômicos, históricos, linguísticos e sociológicos marcados pelo interesse de manutenção e tomada do poder.

Por isso, o princípio de presença de verdade demanda ao letramento crítico um processo de compreensão inferencial que tome as possibilidades de construção de verdades a partir de marcas objetivas e subentendidas de modo a apresentar criticamente a “constelação de dados, de uma série de proposições que, lentamente, insidiosamente, por intermédio dos textos escolares, dos cartazes, do cinema, do rádio, penetram um indivíduo” (Fanon, 2020FANON, F. Pele negra máscaras brancas. São Paulo: Ubu, 2020., p. 167), de modo a construir uma percepção universal e coletiva do mundo que o sujeito assume, irrefletidamente, como sua. Essa percepção pretensamente universalista do sujeito (como a construção do negro, por exemplo) tem sido cada vez mais usada como gatilho inferencial para compreender as formas de gestão da vida e da morte (Mbembe, 2014MBEMBE, A. Crítica da razão negra. 2. ed. Lisboa: Antígona, 2014.) organizadas pelos Estados em nossa sociedade atual.

Este princípio de presença revela, assim, no processo de letramento crítico, que existem alternativas práticas de combate ao status quo; que, como explica Santos (2011), muitas vezes não são nem visíveis nem críveis para a nossa maneira de pensar, porém operam a partir de outra episteme histórico-cultural, a qual reconhece “a relação ecossistêmica do homem no conjunto da diversidade existencial dos seres vivos que povoam este planeta” (Santos, 2011, p. 17).

Estas alternativas podem ser reveladas com o auxílio dos processos de compreensão e dos diferentes métodos de produção de inferências, desde que os envolvidos com a prática de letramento crítico destaquem a interseccionalidade como recurso de produção de verdades contra-hegemônicas, pois têm a “responsabilidade de criar novas configurações de poder e de conhecimento” (Kilomba, 2019KILOMBA, G. Memória da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., p. 11).

4 PRINCÍPIO DA TRANSGRESSÃO CRÍTICA

Se pretendemos a libertação dos homens, não podemos começar por aliená-los ou mantê-los alienados. A libertação autêntica, que é a humanização em processo, não é uma coisa que se deposita nos homens. Não é uma palavra a mais, oca, mitificante. É práxis, que implica a ação e reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo (Freire, 1968).

É preciso mais do que interpretar o mundo, é preciso transformá-lo. É preciso mais que letramento crítico para criticar os sistemas de dominação, é preciso transgredi-los. Com esta reflexão, começo a última seção que encerra a apresentação de princípios como recurso metodológico para o trabalho com o letramento crítico. Nesta parte, apresento o que denominei princípio de transgressão crítica. A dimensão central de tal princípio é a multiculturalidade, a qual, se adotada como mais um fio condutor para a prática de letramento crítico, demandará dos sujeitos envolvidos no processo a aceitação da descentralização das epistemologias dominantes (Santos, 2011), bem como a necessidade de conhecimento de outros códigos culturais (hooks, 2017).

Esta tomada de consciência contra-hegemônica implica um engajamento transgressor por parte dos agentes de letramento crítico, em detrimento do teoricismo autofágico da academia e de outras instituições de ensino. A dimensão multicultural, pois, propõe a substituição de um letramento que narra verdades por um letramento crítico que seja mediado pela diversidade narrativa de verdades. O princípio da transgressão, assim, toma a multiculturalidade não só como modo de ampliação do conhecimento, mas como possibilidade latente de mudança para que novos valores e hábitos reflitam o compromisso do letramento crítico com a liberdade, com a vida.

[...] digo que a filosofia nunca salvou ninguém. Quando um outro insiste em me provar que os negros são tão inteligentes quanto os brancos, digo: tampouco a inteligência salvou ninguém, e isso é verdade, pois, se é em nome da inteligência e da filosofia que se proclama a igualdade dos homens, é também em nome delas que se decide pelo extermínio desses mesmos homens (Fanon, [1952] 2020, p. 43).

Proponho nesta seção, com base no princípio da transgressão crítica, a possibilidade de um trabalho docente com o letramento crítico como forma de engajamento, de autoavaliação constante, de luta contra as hierarquias coercitivas e as parcialidades advindas do sistema de dominação (Freire, 2016FREIRE, P. Pedagogia do oprimido: saberes necessários à prática educativa. 62. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Paz e Terra, 2016., 2019; Hooks, 2017HOOKS, B. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2017.), com a finalidade de que as experiências não hegemônicas prevaleçam nos espaços de formação, nas agências de letramento. Para isso é preciso transgredir, partir da margem, ver-escutar-sentir a posição discursiva dos grupos oprimidos e marginalizados. Como bem denuncia hooks (2017), é preciso questionar as políticas de dominação, o impacto do racismo, do sexismo, da exploração de classes e da colonização; é preciso abandonar raciocínios simplistas, reducionistas, dedutivos, ir além das teses essencialistas sobre o ser humano; é preciso fugir de discursos repletos de clichês, de ficções e autoficções, inverter as narrativas de verdade eurocêntricas; é preciso impedir que os currículos (acadêmicos e escolares) sejam mais um mecanismo de dominação.

Olhando para trás, vejo que nos últimos vinte anos conheci muita gente que se diz comprometida com a liberdade e a justiça para todos; mas seu modo de vida, os valores e os hábitos de ser que essa gente institucionaliza no dia a dia, em rituais públicos e privados, ajudam a manter a cultura da dominação, ajudam a criar um mundo sem liberdade (hooks, 2017, p. 42).

Como hooks, Kilomba (2019KILOMBA, G. Memória da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.) chama a atenção para o caráter de responsabilização que os agentes de letramento [crítico] - esta gente que se diz comprometida com a liberdade e a justiça para todos - devem ter no sentido de criar novas configurações de poder e de conhecimento. Para Kilomba, uma sociedade que vive na negação, ou até mesmo na glorificação da história colonial, não permite que novas linguagens sejam criadas; e só quando se reconfigurarem as estruturas de poder é que muitas identidades marginalizadas podem também, finalmente, reconfigurar a noção de conhecimento. Esta reconfiguração se estende à língua [portuguesa], uma vez que, como ressalta Kilomba, por mais poética que possa ser, a língua tem sua dimensão política de “criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade” (2019, p. 14). Daí a importância de compreendermos o que significa socialmente - e dimensionarmos os impactos político-econômicos - uma identidade não existir em sua própria língua, ou ser representada como uma ficção subalterna e oprimida. Compreender, tomar consciência, engajar-se numa práxis é transgredir.

Não podemos, porém, pensar no princípio de transgressão crítica apenas como uma demanda local, regional que só surgiu porque os grupos minoritários fizeram movimentos de pressão política e conseguiram ter suas pautas “ouvidas”. Ao contrário: devemos pensar que transgredir a normatividade advinda da sociedade disciplinar (Foucault, 1987FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.) é uma forma de revelar a própria essência humana em oposição às concepções metafísicas e antropológicas universais de homem moderno. Transgredir é, pois, uma forma simbólica de devolver aos homens e mulheres (negro[a]s, indígenas) os deuses, as terras, os costumes, as tradições, os conhecimentos que lhes foram arrancados no indefensável processo de colonização; é uma tomada de posição na prática discursiva de compreensão/letramento implicado de retirar-lhes o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, o ajoelhar-se, o desespero, o servilismo (Césaire, [1995] 2020) que foram inculcados neles por um conjunto de ficções que legitimaram a coisificação de milhares e milhares de pessoas durante séculos até os dias de hoje.

Essas ficções ainda estão no discurso contemporâneo, e o letramento crítico tem por obrigação demovê-las. A maior e mais letal delas é a ficção da raça e do negro. Mbembe (2014MBEMBE, A. Crítica da razão negra. 2. ed. Lisboa: Antígona, 2014.) explica que raça é uma ficção perversa que gera medos e problemas do pensamento. Raça, para Mbembe, não é uma categoria referencial, e sim uma ficção útil para um modelo de exploração e depredação, para consolidar o paradigma da submissão advindo de um complexo psiconírico15 15 Termo usado por Mbembe para se referir ao significante “raça” como uma ficção útil para governo dos corpos e para as práticas biopolíticas. que tem a raça como enquadramento estrutural da sociedade capitalista. A ideia de raça, assim, foi forjada para estabelecer a ficção de diferença ontológica entre o branco (europeu, colonizador, civilizado) e outro (negro, colonizado, coisificado).

Tomando como premissa que a eficácia do discurso ideológico é dada por sua internalização por parte tanto dos opressores como dos oprimidos, transgredir criticamente, a partir de um trabalho de letramento crítico, é engajar-se na desconstrução de discursos de verdade que criam a configuração de um mundo por meio de estruturas políticas oficiais, configuração que “privilegia manifestadamente seus sujeitos brancos, colocando membros de outros grupos racializados em uma desvantagem visível, fora da estrutura dominante. Isso é chamado de racismo estrutural” (Kilomba, 2019KILOMBA, G. Memória da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019., grifo da autora).

Como Kilomba, Gonzalez (2020GONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.) também denuncia a ideia de racismo enquanto articulação ideológica e práticas estruturais, uma vez que se estabelece uma divisão racial do trabalho e é compartilhado por todas as formações socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas. Para Gonzalez, em termos de manutenção do equilíbrio do sistema capitalista global, o racismo é um dos critérios de maior importância na articulação dos “mecanismos de recrutamento para as posições nas estruturas de classes e no sistema de estratificação social” (2020, p. 35), o que exige dos agentes de letramento crítico um engajamento implicado na luta contra a manutenção dos mecanismos discursivos coloniais de dominação e de exclusão.

Como a maioria de nós aprendeu com este modelo de estrutura colonizada, ser letrado [criticamente] hoje é enfrentar “a vontade avassaladora de muitos cidadãos bem intencionados de negar a política do racismo, do sexismo, do heterossexismo que determina o que ensinamos e como ensinamos” (hooks, 2017, p. 53). Nesta seção, proponho este enfrentamento a partir da ampliação da compreensão de letramento crítico como uma prática contra-hegemônica de inclusão de uma multiplicidade de discursos que levem em conta contextos culturais e linguisticamente diversos, como caracteriza a Pedagogia dos Multiletramentos, desenvolvida pelo Grupo Nova Londres16 16 Conferir a tradução para o português do Manifesto da pedagogia dos multiletramentos, publicada em 1996 pela Harvard Educational Review, no número especial da revista Linguagem em Foco (2021). (GNL, 1996). Por meio dessa compreensão, no trabalho com o letramento crítico a multiculturalidade deve assumir relevância no processo de inferência e produção de representações simbólicas do mundo.

Porém, como assevera hooks, ainda que o multiculturalismo esteja em foco em nossa sociedade atual, sobretudo no discurso acadêmico e escolar, inexistem, do ponto de vista da autora, discussões práticas suficientes sobre como “o contexto de sala de aula pode ser transformado de modo a fazer do aprendizado uma experiência de inclusão” (hooks, 2017, p. 51). Neste ponto da crítica de hooks à ideia de tal abordagem didática sem uma práxis efetiva das instituições educacionais, acredito que algumas categorias da Pedagogia dos Multiletramentos podem contribuir para o trabalho docente com o letramento crítico, em especial com o princípio da transgressão e com a dimensão da multiculturalidade. Tais categorias são a de design, prática situada, enquadramento crítico e prática transformada (GLN, 1996).

Como herdeiros de padrões e convenções de significados coloniais, racistas, sexistas e burgueses, a categoria de design desenvolvida nos estudos de multiletramentos17 17 Termo escolhido pelo Grupo de Nova Londres (1996) para designar, nos estudos de letramento, dois aspectos importantes em relação à emergente ordem cultural, institucional e global: a multiplicidade de canais de comunicação e de mídia, bem como a crescente importância de se trabalhar com a diversidade cultural e linguística. possibilita a criação de outros modos de significação, outros códigos culturais, uma vez que são recursos representacionais mais dinâmicos que podem ser constantemente refeitos pelos participantes do evento discursivo. Por meio da categoria de design, os agentes de letramento [não só escolar ou acadêmico] podem trabalhar o princípio da transgressão crítica e a dimensão da multiculturalidade à medida que constroem novos designs de sentido contra-hegemônico.

Estes designs propostos pelo GNL foram pensados a partir de seis elementos que se implicam na construção de sentido multicultural: design linguístico, visual, de áudio, gestual, espacial, e os padrões multimodais de significado (que relacionam os demais designs entre si). Eles devem ser trabalhados no letramento crítico para revelar novas experiências, novos discursos, novas teorizações que espelhem outras realidades históricas, políticas, econômicas (como as raciais, as sexistas, as subalternas) nos espaços acadêmicos e escolares, de modo a transgredir as epistemologias clássicas eurocênticas. Neste sentido, o letramento crítico se alia à proposta de design para refletir sobre a multiplicidade de discursos multiculturais que hoje se faz presente nas músicas, nos filmes, na dança, na poesia, nas mídias digitais, nas redes sociais, a fim de produzir alternativas de conhecimento emancipatório e libertário, como modo de fazer confluir os discursos marginais com os do centro.

Para a confluência dos discursos marginalizados, além do trabalho com os designs de sentido, outras categorias interessantes, advindas também da Pedagogia dos Multiletramentos para o princípio de transgressão crítica são a de prática (situada e transformada) e a de enquadramento crítico. A própria ideia de um letramento a partir de práticas situadas, como base nas experiências dos sujeitos e nos designs que eles encontram em seu universo discursivo, demanda uma leitura multicultural do mundo, mesmo em espaço onde a branquitude domine. Situar tais práticas é desenvolver a escuta, o olhar, os sentidos para vozes que foram (e são) impedidas de ser ouvidas. Neste ponto, os designs multimodais como substância das práticas situadas, se/quando acolhidos nos espaços tradicionais e conservadores de poder, podem desmarginalizar culturas, crenças, ritos, costumes e pessoas.

É claro que as práticas situadas não garantem, por si sós, nem criticidade nem transgressão. Muitas vezes o que vemos nos espaços sociais são aberturas sazonais a outras culturas que são exoticizadas e folclorizadas (basta ver os livros didáticos ou a programação dos cursos das Ciências Humanas). Tal carnavalização acontece porque ter consciência crítica demanda um longo processo de letramento [crítico] para descontruir a consciência colonializada na qual todos nós fomos imersos desde que nascemos. Por isso, as proposições de enquadramento crítico (percepção discursiva ampla com base nas relações históricas, sociais, culturais, políticas e ideológicas) e prática transformada (projeção de novas práticas, recriação de novos discursos, engajamento contra-hegemônico), juntas, apertam o gatilho da práxis e disparam o projétil da transgressão. Ele penetra a bolha conservadora, autoritária e hegemônica num ato simbólico de ferir os padrões opressores e espalhar estilhaços libertários. Assim, transgredimos.

5 LETRAMENTO CRÍTICO EMERGENCIAL

A discussão que propus sobre letramento crítico neste texto consistiu em um duplo esforço: primeiro colocar os agentes de letramento como responsáveis pelo processo de mudança epistemológica e metodológica de uma retórica acadêmica de crítica a posições contra-hegemônica que não se sustentam empiricamente como movimento de práxis; segundo apresentar três princípios norteadores que podem ajudar o trabalho com o letramento crítico, tanto na universidade quanto na escola (princípio da ausência de verdade, princípio da presença de verdade e princípio da transgressão crítica). Todo este esforço procurou mostrar a emergência de um letramento engajado - teórico e prático - com a diversidade de vozes, de discursos e de possibilidades de inferências articuladas com as multiculturalidades e as interseccionalidades (raça, gênero e estratificação social).

Como reflexo de tal esforço, problematizo o caráter democrático, engajado e renovador que o letramento crítico per se traz para as Ciências Sociais, especialmente para a Linguística, sem levar em conta a figura do docente não como ser histórico e social - cuja subjetividade foi (e é) construída por ideologias e ideias de verdade -, e sim como um agente de letramento [crítico] pelo “simples fato” de estar na posição de agente de letramento. Quero com isso ressaltar que o termo crítico acrescido aos estudos de letramento requer novos paradigmas e novas premissas para que de fato tenhamos um processo de letramento mais aberto, responsável, engajado e implicado com as mudanças emergenciais na educação e nos demais campos da vida (pública e privada). Do contrário, teremos apenas mais uma retórica ativista de empoderamento e autonomia que se coaduna com políticas neoliberais de horizontalidade autogovernante, cuja rendição ao ideário das competências e habilidades universais será a nova ordem democrática. Voltaríamos, com essa retórica, à ideia de letramento autônomo adaptada aos preceitos da mais-valia neoliberal (autorresponsabilização dos agentes envolvidos na educação), porém camuflado (e estimulado pelos agentes de letramento, irrefletidamente) de combate ao autoritarismo, à hierarquização, às normas vigentes, ao colonizador.

Se o letramento crítico é uma proposta de olhar os fenômenos sociais de modo a descrever, problematizar e confrontar as relações de poder, há de se refletir também qual seu horizonte ético e político. Entendo que, para que o letramento crítico - como exigência emergente nas universidades e nas escolas18 18 A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento curricular nacional, traz em seu texto uma quantidade expressiva de vezes a palavra “crítico”. - seja empreendido como processo de inferências, cujo norte são críticas às políticas hegemônicas, há de haver determinadas condições que operem não só nas instituições de ensino, mas também nas outras esferas sociais. Do contrário, ficaremos no binarismo típico do discurso acadêmico (e aqui ressalto o discurso no curso de Letras) capturado pela polarização tradicional de letramento [escolar, autônomo] versus letramento crítico [acadêmico, contra-hegemônico]. Entre a exigência de letramento crítico e os discursos que o operam no plano da ideologia, no plano do conhecimento, existe um terceiro nível, que faz uma espécie de dobradiça entre eles, que é pensamento agonístico (Mouffe, 2015MOUFFE, C. Sobre o político. São Paulo: Martins Fontes, 2015). Tal pensamento assume o antagonismo e o conflito como premissas centrais do político, e o dissenso como elemento central na democracia.

Mouffe, para descrever a agonística, parte de uma separação objetiva de dois projetos iluministas: o epistemológico e o político, e defende um projeto político para a modernidade sem que isso implique uma vinculação a uma forma específica de racionalidade. A autora entende que o que é posto socialmente como legítimo sempre está aberto à possiblidade de questionamento, ao debate, o que implica a falta de uma resposta apriorística. Isso porque, segundo Mouffe (2015), na esfera política não prevalece a verdade. Mouffe explica que cada esfera (filosofia/sociologia/psicologia/linguística) possui critérios de validação e legitimação e que o político não permite o estabelecimento de verdades universais (princípio da ausência de verdade categórica). O letramento crítico, portanto, deve levar em conta o caráter conflituoso das sociedades contemporâneas e a impossibilidade da erradicação do conflito e dos antagonismos sociais.

O letramento crítico trata, assim, de um processo democrático emergencial que se articula com a criação de um espaço (não só acadêmico e escolar) de discussões motivadas e enérgicas em que se reflita tanto o individualismo neoliberal como a construção de racionalidade (coletiva) da esfera política. Ele deve partir da ideia de que toda ordem política se baseia em alguma forma de exclusão para assim examinar as possiblidades de inferência (princípio da presença de verdade) como uma atividade em que conhecimentos de diversas procedências entram em ação por formas de raciocínio variadas. O letramento crítico, finalmente, é um processo de leitura de mundo engajado e implicado numa práxis de resistência interseccional a práticas discursivas legitimadas que determinam a ordem das relações sociais e definem os discursos hegemônicos de inclusão, exclusão e apagamento dos sujeitos (princípio da transgressão crítica).

REFERÊNCIAS

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  • 1
    Crítica da razão pura foi escrita por Immanuel Kant em 1781 (com alterações substanciais feitas pelo próprio autor em outra publicação em 1787). Esta obra se consagrou na história do pensamento crítico como uma virada epistemológica da filosofia moderna. O projeto inicial da obra era questionar se a metafísica seria possível enquanto ciência, feita a partir de proposições (analíticas e sintéticas). Kant questiona como é possível a objetividade de uma regra moral prática, estabelecendo assim toda uma reflexão sobre o conceito de imperativo categórico.
  • 2
    O filósofo camaronês Achille Mbembe, em seu livro Crítica da razão negra (2014MBEMBE, A. Crítica da razão negra. 2. ed. Lisboa: Antígona, 2014.), se propõe a fazer uma avaliação do campo semântico-histórico europeu e americano de como negro e raça foram identificados ao longo da modernidade. Segundo Mbembe, os mundos euro-americanos fizeram do negro e da raça duas versões de uma mesma e única figura, deflagrando, no decorrer dos séculos, inúmeras catástrofes, inúmeras devastações físicas, incalculáveis crimes e carnificinas.
  • 3
    Para Street (2014STREET, B. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. São Paulo: Parábola Editorial, 2014., p. 143-144), o letramento autônomo está diretamente relacionado a uma pedagogização do letramento, ou seja, a um modelo pedagógico focado em torno da linguagem do letramento e dos procedimentos para sua disseminação na sociedade, como modo de universalizar o conhecimento sobre as práticas e eventos de linguagem. Street, no entanto, ressalta que este letramento deriva de padrões culturais e ideológicos mais amplos, e não somente da escola.
  • 4
    Marx e Engels, em meados do século XIX, fundam uma tradição intelectual (pensamento crítico dialético) de crítica ao complexo sistema capitalista, cujo objetivo primordial era mostrar o funcionamento desse sistema econômico a partir do método dialético. Um dos elementos centrais desse sistema seria justamente a luta de classe, as relações de poder e a desigualdade social, os quais têm como pano de fundo a exploração das forças de trabalho pelo capital.
  • 5
    Para Foucault (1996FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.), a produção do discurso, em toda sociedade, é, ao mesmo tempo, controlada, selecionada, organizada e distribuída por um certo número de procedimentos, como o de exclusão e interdição. O discurso não traduz apenas as lutas ou os sistemas de dominação, mas o poder do qual queremos nos apoderar.
  • 6
    Street (2014STREET, B. Letramentos sociais: abordagens críticas do letramento no desenvolvimento, na etnografia e na educação. São Paulo: Parábola Editorial, 2014., p. 36-37) faz uma crítica a Paulo Freire ao dizer que até o pedagogo, como militante mais influente e radical do letramento, tendia a acreditar que pessoas sem letramento do tipo ocidental eram incapazes de ler o mundo.
  • 7
    A crítica padrão a que me refiro remete a um grupo geral de ideias e saberes advindos de uma cosmovisão eurocêntrica e norte-americana que estão impregnadas de doutrinas de superioridade ocidental de fazer crítica. Antes de aceitar tais pressupostos críticos, porém, temos sempre de levar em conta que “a economia, a política e a sociologia na academia moderna são ciências ideológicas” (Said, 2007SAID, E.. Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007., p. 37).
  • 8
    Não existe nenhuma relação de poder sem um polo de resistência. O poder não é uma substância em si. Ele se concretiza no exercício da ação, na produção de efeitos sociais, logo nós só podemos identificar uma relação de poder - uma relação de dominação - onde existam pelo menos dois polos de resistência: o do dominante e o do dominado. Assim, as relações de poder contêm em sua base conceitual a seguinte premissa: para que o dominante permaneça dominante, ele precisa do dominado, isto é, dominado tem de permanecer dominado.
  • 9
    Nessa conferência, intitulada no original como Qu'est-ce que la critique? Critique et Aufklärung, Foucault, rememorando Kant, faz uma pergunta que me parece central para toda a tomada de consciência crítica. Ele provoca a plateia com a célebre frase: você sabe bem até onde pode saber? (Foucault, 1990).
  • 10
    Cf. Foucault (1996FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1996.).
  • 11
    O grande modelo de verificação da verdade que surge na história humana é a demonstração matemática.
  • 12
    Natureza lógica, lexical, semântica, pragmática, experimental, experiencial e cognitiva.
  • 13
    Segundo Marcuschi (2008MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008., p. 257), os textos poéticos, os textos da esfera religiosa e os textos de alto teor ideológico, como os discursos políticos, operam de modo bastante acentuado no nível de inferência de domínio das crenças e dos valores pessoais.
  • 14
    Faço aqui uma paráfrase à célebre frase de Aimé Césaire (1955): A Eupora é indefensável.
  • 15
    Termo usado por Mbembe para se referir ao significante “raça” como uma ficção útil para governo dos corpos e para as práticas biopolíticas.
  • 16
    Conferir a tradução para o português do Manifesto da pedagogia dos multiletramentos, publicada em 1996 pela Harvard Educational Review, no número especial da revista Linguagem em Foco (2021).
  • 17
    Termo escolhido pelo Grupo de Nova Londres (1996) para designar, nos estudos de letramento, dois aspectos importantes em relação à emergente ordem cultural, institucional e global: a multiplicidade de canais de comunicação e de mídia, bem como a crescente importância de se trabalhar com a diversidade cultural e linguística.
  • 18
    A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento curricular nacional, traz em seu texto uma quantidade expressiva de vezes a palavra “crítico”.

Editado por

Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Jun 2023
  • Aceito
    01 Nov 2023
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