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QUANDO A FICÇÃO INVADE A PROSA: PRÁTICAS DISCURSIVAS NÃO-CANÔNICAS NO DISCURSO ACADÊMICO

WHEN FICTION INVADES PROSE: NON-CANONICAL DISCURSIVE PRACTICES IN ACADEMIC DISCOURSE

QUAND LA FICTION ENVAHIT LA PROSE: DES PRATIQUES NON-CANONIQUES DANS LE DISCOURS ACADÉMIQUE

CUANDO LA FICCIÓN INVADE LA PROSA: PRÁCTICAS DISCURSIVAS NO-CANÓNICAS EN EL DISCURSO ACADÉMICO

Resumo

Neste artigo, focalizam-se duas dissertações de mestrado não-canônicas e discutem-se as condições de possibilidade para sua emergência. O argumento apresentado desenvolve-se em duas direções: 1) as dissertações escapam à regra do “comentário” (FOUCAULT, 1996), mas não emergem exclusivamente como práticas sociais que rejeitam e, portanto, são parcialmente governadas por aquele princípio - ou pela dimensão do simbólico onde este princípio está codificado; e 2) no caso das dissertações analisadas, reconhecem-se diferentes dimensões discursivas no espaço simbólico onde se inserem: uma dimensão de certa cultura local, em determinada instituição; uma outra dimensão, relacionada à cultura de dada disciplina; uma dimensão ainda mais abrangente, relacionada a paradigmas epistemológicos. No final do trabalho, são feitos comentários sobre as relações entre o simbólico, como o local da mediação discursiva, e a prática social, o local de emergência do sujeito (LACLAU, 2000).

Palavras-chave:
discurso acadêmico; gênero; prática discursiva

Abstract

This article focuses on two non-canonical Master´s dissertations with a view to exploring the conditions of possibility for their emergence. The argument in the article is twofold: 1) the dissertations challenge the controlling principle of “commentary” (FOUCAULT, 1996), but do not emerge exclusively as social practices that reject it, and are thus partially governed by that principle; 2) three symbolic dimensions have been identified, which might account for the plurality of discursive positions that govern the emergence of these non-canonical practices: a local dimension, that of a particular institution; a disciplinary dimension, that of studies in the area of literature; a broader dimension, related to the epistemological paradigms operating in the discipline. Towards the end of the article, a few comments are made about the relationship between the symbolic, as the locus of discursive mediation, and social practices, the locus for the emergence of the subject (LACLAU, 2000).

Keywords:
academic discourse; genre; discursive practice

Résumé

Dans cet article, on focalise deux mémoires d’un cours de post-graduation (correspondant au niveau/maîtrise, au Brésil) non-canoniques et on discute les conditions d’une possibilité vers son émergence. L’argument présenté se développe dans deux directions: 1ère) les mémoires échappent à la règle du “commentaire” (FOUCAULT, 1996), mais n’émergent pas seulement comme des pratiques sociales qui refusent, et sont ainsi partiellement gouvernées par ce principe - ou par la dimension du symbolique où ce principe est codifié; 2ème) dans le cas des mémoires analysées, on reconnaît de différentes dimensions d’une certaine culture locale, dans une institution déterminée, une dimension encore davantage plus large par rapport aux paradigmes épistémologiques. À la fin du travail, des commentaries sont proposés sur les relations entre le symbolique, le situant comme la place de la médiation discursive, et la pratique sociale, étant la place de la médiation du sujet (LACLAU, 2000).

Mots-clés:
discours académique; genre; pratique discursive

Resumen

En este artículo se enfocan dos disertaciones de “Master of Arts” no-canónicas y se discuten las condiciones de posibilidad para su emergencia. El argumento que expone se desarrolla en dos direcciones: 1) las disertaciones se apartan del principio de control del “comentario” (FOUCAULT, 1996), sin embargo no surgen exclusivamente como prácticas sociales que rechazan y, por tanto, se rigen parcialmente por aquel principio - o por dimensión del simbólico en que dicho principio se encuentra codificado; y 2) respecto a las disertaciones analizadas, se reconocen distintas dimensiones discursivas en el espacio simbólico en que se insertan: una dimensión de cierta cultura local, en determinada institución; otra dimensión relacionada a la cultura de dada disciplina; y aun una dimensión con más abarcadura, relacionada a paradigmas epistemológicos. Al final del trabajo, se hacen comentarios acerca de las relaciones entre el simbólico, como el local de la mediación discursiva, y la práctica social, el local de emergencia del sujeto (LACLAU, 2000).

Palabras-clave:
discurso académico; género; práctica discursiva

1 INTRODUÇÃO

Em dois trabalhos anteriores (BALOCCO, 2004aBALOCCO, A.E. Rompendo fronteiras genéricas na dissertação acadêmica: um estudo de caso. Revista Matraga, Rio de Janeiro,v. 16, p. 41-52, 2004a.; 2004b), ocupei-me de duas dissertações de mestrado não-canônicas na área dos estudos de Literatura Brasileira, dando continuidade à análise de práticas discursivas na área dos estudos de literatura que venho desenvolvendo desde a Tese de doutorado (BALOCCO, 2000). Na ocasião, argumentava que, além de analisar a forma como aquelas dissertações fugiam às convenções do gênero e de explorar, junto às suas autoras, as motivações que as levaram a produzi-las, era preciso investigar as condições de possibilidade para a emergência de dois textos que revelam o discurso naquilo que ele tem de acontecimento.

Neste artigo, retomo as dissertações para explorar esta dimensão de análise, não realizada por restrições de espaço, referente às suas condições de possibilidade. As duas dissertações foram analisadas separadamente e os resultados das análises foram apresentados na forma de dois artigos submetidos a periódicos diferentes. O primeiro deles voltou-se para o texto de Lúcia Facco (2003FACCO, L. Boca no trombone: literatura lésbica contemporânea. Dissertação (Mestrado) - UERJ, Rio de Janeiro 2003.), que se distingue de outros exemplares do gênero “dissertação” em função de seu formato epistolar e do tratamento ficcional conferido ao tema. A segunda dissertação analisada, de autoria de Adriana Lisboa Costa (2002COSTA, Adriana Lisboa Fábregas da. Um beijo de Colombina. Dissertação (Mestrado) - UERJ, Rio de Janeiro, 2002.), também dá um tratamento ficcional ao seu tema. O que distingue a dissertação de Adriana Lisboa é a utilização de estratégias narrativas pós-modernas, a re-escritura, o pastiche e a paródia, já amplamente discutidas e analisadas no âmbito do discurso literário, mas ainda largamente inexploradas nos estudos do discurso acadêmico. Conforme anuncia a autora no preâmbulo da dissertação, ela apropria-se da obra de Manuel Bandeira para dialogar com ela.

Este artigo está organizado da seguinte forma. Inicio por apresentar, de forma reduzida, a análise das duas dissertações, de forma a contextualizar a discussão das seções seguintes; passo então a explorar as condições de possibilidade destas duas produções discursivas; e termino com breves comentários sobre as relações entre o simbólico, como o local da mediação discursiva, e a prática social, o local de emergência do sujeito (LACLAU, 2000LACLAU, E. Identity and hegemony: the role of universality in the constitution of political logics. In: BUTLER, J. et alii. Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on the left. London: Verso, 2000. p. 44-89., p. 78).

2 AS DISSERTAÇÕES EM DISCUSSÃO

Do ponto de vista empírico, o que caracteriza os textos de Lúcia Facco e de Adriana Lisboa como dissertações de Mestrado é o fato de os mesmos estarem arquivados no banco de teses do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ.

Do ponto de vista lingüístico/discursivo, há elementos para-textuais (GENETTE, 1997GENETTE, G. Palimpsests: literature in the second degree. Lincoln: University of Nebraska Press, 1997., p. 3) que caracterizam os textos das autoras como dissertações de Mestrado: a folha de rosto com título, autoria, nome do orientador, e instituição; folha de agradecimentos; sinopse; índice; resumo e abstract; referências bibliográficas; folha com nomes dos membros da banca de defesa de dissertação.

Há ainda, como elementos para-textuais, uma “Nota Prévia”, no caso de Adriana Lisboa, em que a autora do trabalho faz alguns comentários sobre sua opção por um trabalho ficcional, incluindo-o na tradição de produção de dissertações ficcionais na Pós-Graduação em Letras da UERJ, inaugurada com o trabalho de Marcelo Fernandes Carneval (“O chimpanzé cobaia: um diálogo ficcional com Raduan Nassar”).

No caso de Lúcia Facco, um outro elemento para-textual é uma carta dirigida ao leitor (“prezado leitor”), assinada pela autora da dissertação, em que a mesma afirma o caráter ficcional do seu texto. O pacto negociado com o leitor, portanto, distingue-se do acordo convencional que preside à interação entre autor e leitor de uma dissertação: o leitor é instruído a ler o texto como ficção (e não como ensaio).

Do ponto de vista de suas características genéricas, os dois textos afastam-se do gênero “dissertação de Mestrado”. No caso de Lúcia Facco, isto se dá em função do tratamento ficcional conferido ao tema e do seu formato epistolar: a dissertação da autora textualiza-se na forma de cartas dirigidas a diferentes interlocutores, incluindo-se aqui seu orientador de dissertação e uma pesquisadora na área de estudos ligada ao tema de sua dissertação (a literatura lésbica contemporânea).

No caso de Adriana Lisboa, a par do tratamento ficcional, observa-se o uso de práticas discursivas através das quais a autora-leitora de Bandeira estimula os seus leitores a se envolverem num jogo intertextual, incluindo-se aqui o pastiche, a paródia e a re-escritura.

Argumentou-se, na análise das duas dissertações, que não se pode negligenciar uma dimensão política nos gestos de Lisboa e Facco1 1 Ao atribuirmos uma dimensão política à intervenção das autoras, abraçamos os seguintes pressupostos teóricos foucaultianos: 1) o político é o campo das relações sociais, marcadas pelo poder, ou posições assimétricas; 2) o poder não é estático ou unitário, mas construído nas várias dimensões da vida cotidiana; 3) o poder impregna desde os níveis mais concretos do “senso comum” até os níveis mais abstratos da episteme de uma cultura (ou de seu “regime de verdade”). . No caso da primeira, ao questionar os limites entre recepção e produção, ou entre invenção e apropriação, a autora problematiza a questão da “autoria” e distancia-se do discurso moderno. No caso de Lúcia Facco, ao questionar os limites entre ensaio e ficção e adotar um formato epistolar para sua dissertação, a autora estaria apontando para o caráter contingente e histórico da classificação genérica. Em ambos os casos, os textos se constituem como uma intervenção cultural e política, que desaloja pressupostos teóricos e filosóficos sobre a representação, a significação, o sujeito e a linguagem na episteme moderna.

É para as condições de possibilidade de dissertações com as características das que acabamos de apresentar que voltamos nossa atenção nas seções seguintes. Para dar início à nossa discussão, apoiamo-nos em Foucault e na noção de discurso como acontecimento.

3 FOUCAULT E A NOÇÃO DE DISCURSO COMO ACONTECIMENTO

Para Foucault (1996______. A ordem do discurso. 7. ed. São Paulo: Loyola, 1996., p. 58), os acontecimentos discursivos não devem ser vistos como o produto de “sujeitos pensantes”, mas como “cesuras que rompem o instante e dispersam o sujeito em uma pluralidade de posições e de funções possíveis”:

Certamente o acontecimento não é nem substância nem acidente, nem qualidade, nem processo; o acontecimento não é da ordem dos corpos. Entretanto, ele não é imaterial; é sempre no âmbito da materialidade que ele se efetiva, que é efeito; ele possui seu lugar e consiste na relação, coexistência, dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos materiais; não é o ato nem a propriedade de um corpo; produz-se como efeito de e em uma dispersão material. Digamos que a filosofia do acontecimento deveria avançar na direção paradoxal, à primeira vista, de um materialismo do incorporal. (meu grifo)

Sobressai da proposição a noção de que também o acontecimento tem o seu lugar numa série histórica, que definiria suas condições de possibilidade, ou, nos termos do autor, “as margens de sua contingência, as condições de sua aparição” (1996, p. 56). A pergunta que se coloca aqui é portanto a seguinte: quais são as condições de possibilidade para os textos de Adriana Lisboa e de Lúcia Facco, vistos como acontecimentos discursivos? Que solo epistemológico permite a emergência destas produções discursivas?

Não nos ocuparemos da pergunta naquilo que diz respeito aos textos das autoras vistos como realização de romances de ficção, pelo seguinte motivo. Muito já foi dito e escrito sobre estratégias narrativas pós-modernas na ficção contemporânea, que dialoga com outros sistemas semióticos e em especial com a literatura, e sobre as condições de possibilidade para este tipo de produção discursiva (HUTCHEON, 1989HUTCHEON, L. The politics of postmodernism. London: Routledge, 1989.; BARBIERI, 2003BARBIERI, Therezinha. Ficção impura: prosa brasileira dos anos 70, 80 e 90. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2003.).

No entanto, do ponto de vista de como os textos das autoras realizam o gênero dissertação de mestrado, há pouca reflexão sobre as condições de possibilidade de dissertações nos moldes propostos por elas, tendo em vista as “regras” rígidas de produção discursiva na academia e a forma como aquele ambiente institucional delimita as posições ocupadas por autores, nesta ordem do discurso.

Nosso argumento estará centrado na idéia de que as condições de possibilidade para a emergência destas dissertações estão ligadas à criação de novos pressupostos teóricos ou filosóficos sobre a representação, a significação, o sujeito e a linguagem, no esteio da construção de um novo paradigma epistemológico para as ciências humanas no nosso século.

4 FOUCAULT E A CONCEPÇÃO DE SUJEITO DESCENTRADO

Para darmos conta de nosso argumento, iniciamos por apresentar a crítica de Foucault à concepção tradicional de representação, geralmente tratada no domínio da linguagem, do signo e das estruturas de significação. Para o autor, a representação, ou a produção do conhecimento e do sentido, não se dá através da linguagem, vista como um sistema de signos, mas através do discurso.

O termo discurso, em Foucault, tem valor diferente do que lhe atribuem teorias lingüísticas: discurso, no quadro teórico do pensamento do autor, faz referência ao conjunto de regras e práticas que constroem uma versão da realidade ao produzirem representações sobre certos objetos e conceitos e definirem aquilo que se pode dizer sobre aqueles objetos e conceitos, num momento histórico específico (FOUCAULT, 1987FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.). Por exemplo, as representações sobre a loucura (tema caro ao pensador francês, do qual ele se ocupou nos seus primeiros trabalhos) constroem-se no interior de discursos que, num determinado período histórico e numa determinada cultura, definem as regras que possibilitam articular um certo conhecimento sobre a loucura; definem uma posição para o sujeito que personifica aquele discurso (o louco; a mulher histérica); consubstanciam práticas institucionais para se lidar com aqueles sujeitos; e definem posições de autoridade para aqueles que articulam o discurso sobre a loucura (o médico; o psiquiatra).

A representação da “mulher histérica” no século XIX, por exemplo, ou os sentidos que lhe são atribuídos, são regulados por um discurso que entende a histeria como uma “doença” tipicamente feminina, embora haja registros de ocorrência da “doença” em homens (HALL, 1997HALL, S. (Ed.). Representation: cultural representations and signifying practices. London: Sage, 1997., p. 46). Assim, os sentidos da loucura variam em diferentes épocas e em diferentes culturas. Para o autor, interessa portanto investigar o quê leva ao surgimento de um certo tipo de representação e não de outro, ou os fatores que possibilitam o aparecimento de certos discursos.

Uma dimensão importante do pensamento de Foucault está representada pela investigação da forma como a representação, o discurso e o conhecimento são intimamente ligados a práticas sociais e a questões relativas ao poder, ou à forma como determinadas pessoas têm acesso diferencial a certos discursos ou têm mais autoridade para falar sobre certos assuntos, ou para construir determinadas representações, do que outras.

É este vínculo entre conhecimento e práticas sociais que leva o autor a questionar a noção de “verdade absoluta” da metafísica ocidental e a argumentar que certos discursos sustentam determinados “regimes de verdade”, em diferentes momentos históricos. A representação da histeria como uma “doença” tipicamente feminina, por exemplo, constrói-se na confluência entre os discursos patriarcal, médico, psiquiátrico, moral e legal do século XIX, que sustentam um “regime de verdade” que impôs à mulher daquele século limitações na sua vida produtiva, artística e intelectual.

A mudança de foco da linguagem para o discurso, no pensamento do autor francês, é necessariamente acompanhada por uma mudança na concepção de sujeito: passa-se de uma visão do sujeito como um indivíduo centrado, dotado de consciência plena de seus atos e origem do seu dizer, para uma concepção de sujeito limitado pela “episteme” ou “regime de verdade” de sua época e de sua cultura.

Nos termos de Hall (1997HALL, S. (Ed.). Representation: cultural representations and signifying practices. London: Sage, 1997., p. 55), esta é uma das proposições mais radicais do filósofo francês e poderia ser formulada nos seguintes termos: o sujeito é construído no discurso. Mas o quê significa dizer que o sujeito é construído no discurso? Num sentido mais óbvio, a construção do sujeito no discurso faz referência a questões de representação, ou seja, à forma como os discursos produzem representações e conhecimento social em diferentes períodos históricos. Os exemplos anteriores relativos à representação da loucura e aos sentidos atribuídos à loucura feminina, num discurso específico do século XIX, poderiam ser aqui retomados.

Num outro sentido, este menos óbvio, o sujeito é construído no discurso à medida que assume as “posições de sujeito” próprias dos discursos que articula. Por exemplo, ao articularem um discurso específico do século XIX sobre “a mulher histérica”, os psiquiatras identificam-se com a posição de sujeito que lhes é atribuída no interior deste discurso (que tem pontos de interseção com o discurso patriarcal), sujeitando-se às suas regras, ou tornando-se portadores dos seus sentidos e de suas representações.

O pensamento de Foucault é influenciado pelo de três outros pensadores, que provocaram deslocamentos ou rupturas na concepção de sujeito moderno: Marx, Freud e Nietszche. Os postulados marxistas representaram uma reação às tendências universalistas e a-históricas das análises culturais da época (CHILDERS e HENTZI, 1995CHILDERS, J. e HENDTZI, G. (Eds.). The Columbia dictionary of modern literary and cultural criticism. New York: Columbia University Press, 1995., p. 191): no pensamento marxista, tal como re-interpretado na década de sessenta por Althusser, por exemplo, argumenta-se que os indivíduos não são agentes autônomos da história, sendo limitados pelas condições materiais que lhes são dadas em determinado período histórico, numa dada cultura (HALL, 1998______. A identidade cultural na pós-modernidade. 2. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 1998., p. 34).

Na mesma linha de força do pensamento marxista, o pensamento de Freud contribui para o chamado “descentramento” do sujeito na modernidade tardia: além de limitado por determinadas condições materiais, o indivíduo é limitado pela barreira entre consciente e inconsciente. Ao caracterizar o inconsciente como uma dimensão autônoma da consciência (um dos diversos sistemas que constitui a “topografia” da psique), Freud exila o sujeito de si mesmo: para o autor, o inconsciente é portador de uma linguagem inacessível ao sujeito, ou à sua consciência, visto que no inconsciente se formam representações numa linguagem própria, que obedece a leis e regras específicas daquele domínio.

Em Nietszche, Foucault vai encontrar elementos para sustentar suas idéias relativas à noção de “regimes de verdade”, que se contrapõe à “verdade absoluta” da metafísica ocidental. No cerne do pensamento de Nietzsche encontra-se o ataque à noção de “origem” da metafísica ocidental, que implica que o conhecimento, a moral, ou o sentido, ocupam um lugar transcendental, além das coisas: a tarefa do filósofo, deste ponto de vista, seria capturar “[este] segredo a-temporal e fundamental” das coisas, ou sua essência (SHERIDAN, 1980SHERIDAN, A. Michel Foucault: the will to truth. London: Routledge, 1980., p. 118).

Já a tarefa genealógica proposta por Nietszche, tal como formulada por Foucault (SHERIDAN, id. ibid.), abandona a busca da “essência exata das coisas, suas possibilidades mais puras e suas identidades cuidadosamente protegidas” e volta-se, não mais para estas “formas imóveis que antecedem o mundo externo”, não mais para a “identidade inviolável de suas origens”, mas para a “dissensão”, para a “disparidade” que caracteriza o “começo histórico das coisas” (id. ibid.).

Apropriando-se das idéias de Nietzsche (ou “deformando-as, fazendoas reclamar e protestar”, como prefere o autor, citado em SHERIDAN, 1980SHERIDAN, A. Michel Foucault: the will to truth. London: Routledge, 1980., p. 116), e fazendo coro aos seus questionamentos sobre a noção de “verdade” absoluta ou a-temporal, Foucault historiciza a noção de “verdade” e aponta o vínculo estreito entre verdade e poder:

[…] a verdade não existe fora do poder ou sem poder […]. A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade […]. (FOUCAULT, 2003______. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2003., p. 12)

A partir daí o pensamento do autor estará centrado na noção de que o poder na modernidade apresenta-se como uma busca pelo saber: “A vontade de saber foi transformada entre nós numa paixão que não teme qualquer sacrifício, que não teme nada além de sua própria extinção […]” (SHERIDAN, 1980SHERIDAN, A. Michel Foucault: the will to truth. London: Routledge, 1980., p. 120). A articulação entre saber e poder, no quadro teórico do autor, representa uma nova forma de descentramento do sujeito, limitado desta vez pelos “regimes de verdade” do seu tempo e de sua cultura.

Em A ordem do discurso (1996), Foucault ocupa-se do “discurso” propriamente dito, apontando a forma como o “poder” emana das instituições, através de uma discussão de procedimentos internos e externos de controle do discurso.

5 O PRINCÍPIO DO COMENTÁRIO

Foucault inicia sua exposição argumentando que o discurso não é portador de um sentido absoluto; pelo contrário, caracteriza-se pela “dispersão dos sentidos”. No entanto, prossegue o autor (1996, p. 9), há princípios de controle do discurso:

[…] suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.

Dentre os três grandes princípios de controle do discurso postulados pelo autor, destacamos aquele que tem pertinência para nossa discussão: o princípio do comentário. Para o autor, há “uma espécie de desnivelamento entre os discursos” (1996, p. 22-23): alguns são discursos criadores; outros são discursos que “repetem, glosam e comentam”.

De que forma o comentário funciona como princípio de controle do discurso? Para Foucault, ao estabelecer o significado do texto primeiro, o comentário coíbe a dispersão dos sentidos:

O comentário conjura o acaso do discurso, fazendo-lhe sua parte: permitelhe dizer algo além do texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado. A multiplicidade aberta, o acaso são transferidos, pelo princípio do comentário, daquilo que arriscaria de ser dito, para o número, a forma, a máscara, a circunstância da repetição.

Na categoria de “comentário”, Foucault inclui “esses textos curiosos, quando se considera o seu estatuto, e que chamamos de ‘literários’; em certa medida textos científicos” (1996, p. 22). O autor está fazendo referência aqui a todos aqueles gêneros textuais que freqüentemente estão abarcados sob o rótulo mais abrangente de “crítica literária”.

Segundo comentário perceptivo de Maria Antonieta Jordão Borba (2003BORBA, Maria Antonieta Jordão de Oliveira. Tópicos de teoria para a investigação do discurso literário. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2003., p. 31),

[...] a crítica literária do século XIX, por desejar deter o núcleo do discurso literário, por querer reproduzir uma suposta verdade tomada por já expressa, por limitar-se a parafrasear um outro discurso, pode ser incluída neste campo das produções que “repetem, glosam ou comentam”.

Dentre os gêneros textuais abarcados sob o rótulo de “crítica literária” (o manifesto literário; o artigo publicado em periódicos especializados; o artigo de divulgação publicado em páginas literárias de veículos de grande circulação; o ensaio; o livro; o trabalho em congresso; a palestra), podemos incluir a dissertação de Mestrado na área de Literatura. Tanto quanto outros gêneros da crítica literária, a dissertação de Mestrado nesta área disciplinar caracterizase por ser um comentário sobre textos literários: nos termos de Foucault, tratase de um discurso segundo que “glosa ou comenta” um discurso primeiro.

A função do comentário, na episteme moderna2 2 Pelo menos no que diz respeito ao texto literário. , por apresentar-se como uma tentativa de atribuir um determinado sentido ao texto, parece ser a de deter o movimento dos sentidos no texto primeiro. Assim sendo, representa uma concepção de leitura (ou interpretação) historicamente marcada, subordinada a “procedimentos de controle internos do discurso” característicos de uma determinada época, numa determinada cultura, regidos pela noção de sentido absoluto, ou significado transcendental.

Se a episteme moderna foi marcada pela noção de significado transcendental, entendido como origem, consciência, telos, Deus (BORBA, 2003BORBA, Maria Antonieta Jordão de Oliveira. Tópicos de teoria para a investigação do discurso literário. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2003., p. 193), a episteme do nosso século é marcada pela noção da impossibilidade de totalização do sentido.

A noção da totalização do sentido, que a episteme do nosso século questiona, está baseada na crença de que o texto literário é portador de um “sentido absoluto”, que vai sendo aos poucos desvendado: embora a mesma obra possa ter leituras diferentes, em diferentes épocas, estas leituras representariam apenas possibilidades de leitura, ou tentativas imperfeitas de compreensão de um sentido que é absoluto (JOBIM, 1996JOBIM, J. L. A poética do fundamento. Rio de Janeiro: EDUFF, 1996., p. 39).

As dissertações de Adriana Lisboa e de Lúcia Facco escapam ao princípio do comentário: as autoras rejeitam diversos pressupostos sobre os quais se baseia o princípio controlador do comentário na episteme moderna. No caso de Lisboa, sua leitura de Bandeira não está centralizada na obra do poeta, mas apresenta-se como ato criador, que revela a complementariedade entre os atos de recepção e de produção.

Ao questionar os limites entre recepção e produção, ou entre invenção e apropriação, a prosa de Adriana Lisboa problematiza a questão da autoria e distancia-se do discurso moderno, marcado por uma concepção “romântica” do sujeito, que valoriza a autenticidade, a originalidade, a expressão do eu (HUTCHEON, 1989HUTCHEON, L. The politics of postmodernism. London: Routledge, 1989., p. 4). Ao “dialogar com a poesia de Manuel Bandeira”, como ela mesma propõe, apropriando-se de sua palavra poética, a autora apresenta o seu texto como leitura do poeta e, ao mesmo tempo, como ato criador.

Observa-se ainda que o texto de Adriana Lisboa não pretende fixar mais uma possibilidade de leitura, que viria acrescentar ao conjunto das leituras possíveis de Bandeira, num gesto que pretende, em última instância, abarcar a “totalidade” da obra do poeta. Ao invés de buscar alcançar a totalidade do seu objeto, o texto de Adriana Lisboa registra a força significante da poesia de Bandeira e inscreve, no seu próprio discurso, o jogo intertextual por ela desencadeado.

No caso de Lúcia Facco, embora haja trechos dissertativos nas cartas apresentadas na sua dissertação, que funcionam como “comentários” sobre os romances em discussão, o formato epistolar da dissertação permite à autora transcender os romances e ocupar-se de questões “prosaicas” como: 1) experiências sociais de sujeitos homoeróticos; 2) práticas sociais em fóruns de discussão sobre o tema do homoerotismo; 3) formas de abordar o tema em diferentes gêneros da cultura popular (no cinema, na televisão, na internet); 4) os bastidores, por assim dizer, da construção de um discurso na academia, ou uma dissertação.

A atitude de “brincar” com as convenções do discurso pode ser vista como uma disposição pós-moderna (HUTCHEON, 1989HUTCHEON, L. The politics of postmodernism. London: Routledge, 1989., p. 19), cujo intuito é chamar a atenção do leitor para o caráter artificial e construído de todo discurso e das possibilidades abertas quando se questionam as suas fronteiras. Um objetivo central desta dissertação parece, portanto, ser o de problematizar as formas de produção de conhecimento naquele espaço público.

6 AS RELAÇÕES ENTRE O SIMBÓLICO E AS PRÁTICAS SOCIAIS

Neste artigo, argumentou-se que as condições de possibilidade para dissertações que fogem ao princípio do comentário, tal como se apresenta na episteme moderna, estão ligadas à problemática do sujeito e do sentido na modernidade tardia. Os postulados pós-estruturalistas que questionam o sujeito cartesiano, no domínio total de sua capacidade cognitiva e simbólica, assim como aqueles que rejeitam a noção de sentido absoluto, constituem o ponto de partida para a criação de novas formas de se relacionar com o conhecimento e com a cultura.

Embora haja consideráveis divergências entre teóricos sobre questões relativas ao sujeito, mesmo entre aqueles que compartilham vários pressupostos teóricos e filosóficos, como Butler, Laclau e Zizek, para dar apenar um exemplo (cf. BUTLER et alii, 2000c______; et alii. Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on the Left. London: Verso, 2000c.), a centralidade da questão em diversas áreas do conhecimento é inegável. Neste artigo, focalizou-se a questão do ponto de vista do princípio do “comentário”, como proposto por Foucault.

O que falta fazer neste artigo parece ser articular, de forma mais explícita, o argumento que subjaz à possibilidade de se relacionar “convenções discursivas” (o comentário como princípio de controle do discurso, ou uma convenção discursiva) a uma categoria “empírica”, se assim podemos denominá-la provisoriamente, como “sujeito”. Embora não se possa fazer mais do que apenas apontar para as questões mais candentes que ocupam teóricos de diferentes áreas do conhecimento no sentido de articular este argumento, parece necessário pelo menos resumir aquelas que seriam as indagações mais freqüentes nos seus trabalhos.

De que forma as normas sociais3 3 Pode-se argumentar que as “normas sociais” incluem as “normas ou convenções discursivas”, ou ainda os “princípios de controle do discurso”. No entanto, no argumento desenvolvido por Butler, a discussão se desenvolve no contexto da temática estudada pela autora, a da identidade, na sua dimensão de orientação sexual. “que regulam o sujeito na produção de seus desejos e limitam suas operações” são internalizadas (BUTLER, 2000b______. Competing universalities. In: BUTLER, J. et alii. Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on the Left. London: Verso, 2000b. p. 136-181., p. 151)? Elas são simplesmente “internalizadas” ou “impostas”, ou há alguma outra dimensão que precisa ser reconhecida aqui, que evitaria uma visão empobrecida do sujeito passivo, presa fácil da regulação social? De que forma esta dimensão, que poderia ser chamada de uma dimensão de “práticas de identificação”, deve ser teorizada? Como se pode compreender a “dimensão fantasmática das normas sociais”, nos termos de Butler (2000b______. Competing universalities. In: BUTLER, J. et alii. Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on the Left. London: Verso, 2000b. p. 136-181., p. 152), ou seja, o que leva o sujeito a aderir a “ideais que são ao mesmo tempo sociais e psíquicos”?

Embora Foucault tenha sido criticado por supostamente subscrever a uma noção de sujeito baseada numa concepção “behaviorista” de comportamento reproduzido mecanicamente, ou por supostamente subscrever a “uma noção sociológica de internalização que não dá conta das instabilidades que existem nas práticas de identificação” (BUTLER, 2000b______. Competing universalities. In: BUTLER, J. et alii. Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on the Left. London: Verso, 2000b. p. 136-181., p. 151), é ao autor que recorremos mais uma vez para fecharmos nosso argumento. O conceito, proposto pelo autor, de dispersão do sujeito “numa pluralidade de posições e de funções possíveis” (FOUCAULT, 1996______. A ordem do discurso. 7. ed. São Paulo: Loyola, 1996., p. 58) permite que se explorem as relações entre convenções discursivas e práticas de identificação (ou de “não-identificação”, ou ainda “des-identificação”, nos termos de Zizek, 2000ZIZEK, S. Introduction: questions. In: BUTLER, J. et alii. Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on the left. London: Verso, 2000. p. 1-10., p. 9).

No caso das autoras das dissertações em questão, não se pode negligenciar três fatores que contribuiriam para a “pluralidade de posições” que caracterizam o espaço simbólico a partir do qual produzem seus textos e constroem sua identidade. Em primeiro lugar, observa-se uma dimensão simbólica representada por valores em competição: lado a lado ao princípio do comentário marcado pela episteme moderna, identifica-se a vigência de valores marcados por um novo paradigma epistemológico, o pós-estruturalismo. São valores ligados à noção da não-totalização do sentido; das fronteiras tênues entre realidade e ficção; entre produção e leitura textual; entre ficção e ensaio.

Há ainda uma segunda dimensão simbólica, ligada a uma certa “cultura disciplinar”, a área dos estudos sobre literatura. Bazerman (1981BAZERMAN, C. What written knowledge does: three examples of academic discourse. Philosophy of the social sciences, v. 11, p. 361-382, 1981., p. 368), por exemplo, argumenta que o ethos do crítico se constrói, em grande parte, a partir de sua sensibilidade, ou mesmo de seu brilhantismo. O que o autor parece estar dizendo aqui é que há uma importante dimensão “performativa” (para usar o termo de Roland Barthes, in: MARTIN, 1996MARTIN, B. Teaching literature, changing cultures. PMLA, v. 112, n. 1, p. 7-25, 1996., p. 8) na prosa acadêmica sobre a literatura. Parte do ethos do autor na pesquisa literária depende de sua habilidade em usar a linguagem artisticamente, de alguma forma mimetizando as qualidades do texto que analisa. De fato, aquilo que é freqüentemente chamado de “o discurso da crítica literária” é muitas vezes visto como um discurso que se aproxima do próprio discurso literário.

Finalmente, observam-se valores simbólicos ligados a uma certa “cultura local”, que é aquela da instituição onde são produzidas estas dissertações. O Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ tem se destacado pela iniciativa de abrigar projetos voltados para um aspecto da formação dos estudantes de Letras largamente ignorado, que é o da sua formação como escritor. Neste sentido, tem realizado o Programa Escritor Visitante, que ao longo dos seus vários anos de existência abrigou os romancistas Antonio Torres, Sérgio Sant´Anna, João Gilberto Noll, Rubens Figueiredo e os poetas Ferreira Gullar e Carlito Azevedo. Observa-se ainda, naquele ambiente institucional, que os alunos estão em contato com muitos professores-pesquisadores que também atuam como escritores. Este é o caso de Ítalo Moriconi, Gustavo Bernardo e Flávio Carneiro, para citar apenas alguns.

7 CONCLUSÃO

As diferentes dimensões reconhecidas no espaço simbólico (uma dimensão de certa cultura local, em determinada instituição; uma outra dimensão relacionada à cultura de dada disciplina; uma dimensão ainda mais abrangente, relacionada a paradigmas epistemológicos) contribuem para a “dispersão do sujeito”, nos termos de Foucault.

Trazendo a noção para o contexto local das dissertações em discussão, poder-se-ia argumentar que embora as mesmas representem práticas sociais que subvertem a ordem simbólica, estas práticas não são governadas exclusivamente por uma lógica ditada por aquilo que é subvertido (LACLAU, 2000LACLAU, E. Identity and hegemony: the role of universality in the constitution of political logics. In: BUTLER, J. et alii. Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on the left. London: Verso, 2000. p. 44-89., p. 78). As dissertações escapam à regra do comentário, mas não emergem exclusivamente como práticas sociais governadas por aquele princípio - ou pela dimensão do simbólico onde este princípio está codificado.

O seu lugar de emergência é o lugar do sujeito disperso numa pluralidade de posições, na expressão de Foucault. No caso das autoras, a dispersão está representada pelos diferentes lugares discursivos que constituem o espaço simbólico onde se movimentam (a cultura local; a cultura disciplinar; os valores em competição de diferentes epistemes, ou paradigmas epistemológicos na contemporaneidade). Nos termos de Foucault (inBUTLER, 2000aBUTLER, J. Restaging the universal: hegemony and the limits of formalism. In: BUTLER et alii. Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on the Left. London: Verso, 2000a. p. 11-43., p. 38), “[…] ninguém é responsável por uma emergência: a ninguém pode ser creditada a glória por uma emergência, visto que a mesma sempre ocorre nos interstícios”4 4 Traduzido de Butler, em inglês: “(…) no one is responsible for an emergence: no one can glory in it, since it always occurs in the interstice” (FOUCAULT, 1977, p. 150). .

A adesão (ou não adesão) a princípios de controle do discurso não se dá de forma automática, por uma razão muito simples: uma prática social (e toda prática discursiva é uma prática social) não representa apenas a realização do simbólico (ou a realização da “regra” ou do “princípio”) através de ações institucionalizadas. Nos termos de Butler (2000b______. Competing universalities. In: BUTLER, J. et alii. Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on the Left. London: Verso, 2000b. p. 136-181., p. 152), “as normas não são entidades estáticas, mas aspectos incorporados e interpretados da existência [humana] […]” (negrito meu).

E seria precisamente neste ponto que a análise foucaultiana se abriria para a teorização das relações entre as normas sociais e as práticas sociais, ou práticas de identificação: os “interstícios” a que se refere o autor seriam os lugares onde co-existem diferentes posições discursivas, que se aproximam (ou se distanciam) no espaço simbólico, e que permitem que, na interpretação da “regra” e na sua aplicação, o que emerge seja diferente dela.

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  • ZIZEK, S. Introduction: questions. In: BUTLER, J. et alii. Contingency, hegemony, universality: contemporary dialogues on the left. London: Verso, 2000. p. 1-10.
  • 1
    Ao atribuirmos uma dimensão política à intervenção das autoras, abraçamos os seguintes pressupostos teóricos foucaultianos: 1) o político é o campo das relações sociais, marcadas pelo poder, ou posições assimétricas; 2) o poder não é estático ou unitário, mas construído nas várias dimensões da vida cotidiana; 3) o poder impregna desde os níveis mais concretos do “senso comum” até os níveis mais abstratos da episteme de uma cultura (ou de seu “regime de verdade”).
  • 2
    Pelo menos no que diz respeito ao texto literário.
  • 3
    Pode-se argumentar que as “normas sociais” incluem as “normas ou convenções discursivas”, ou ainda os “princípios de controle do discurso”. No entanto, no argumento desenvolvido por Butler, a discussão se desenvolve no contexto da temática estudada pela autora, a da identidade, na sua dimensão de orientação sexual.
  • 4
    Traduzido de Butler, em inglês: “(…) no one is responsible for an emergence: no one can glory in it, since it always occurs in the interstice” (FOUCAULT, 1977, p. 150).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Jun 2005

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2005
  • Aceito
    03 Jun 2005
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