Acessibilidade / Reportar erro

Resenha de "Sincronía y diacronía de tradiciones discursivas en Latinoamérica"

RESENHA REVIEW

Resenha de "Sincronía y diacronía de tradiciones discursivas en Latinoamérica" [Ciapuscio, G.; Jungbluth, K.; Kaiser, D.; Lopes, C. (eds.) - Madrid: Iberoamericana; Frankfurt: Vervuert, 2006]

Lígia Rospantini

Doutoranda em Lingüística na Eberhard Karls Universität, Tübingen, Alemanha. Mestre em Lingüística e Doutora em Administração. E-mail: <ligia.rospantini@gmx.net>

O volume coletivo Sincronía y diacronía de tradiciones discursivas en Latinoamerica utiliza o conceito de tradição discursiva, importante contribuição da lingüística alemã para uma melhor compreensão do desenvolvimento histórico das línguas em determinados tipos de textos. O livro, organizado por um grupo de estudiosas (Guiomar Ciapuscio, Universidade de Buenos Aires; Konstanze Jungbluth, Universidade Viadrina de Frankfurt (Oder); Dorothee Kaiser, Universidade de Reutlingen; Célia Lopes, Universidade Federal do Rio de Janeiro), traz artigos em espanhol e em português, originados de comunicações apresentadas em 2004 no âmbito do Congresso de Freudentstadt, organizado pela Universidade de Tubingen em colaboração com as Universidades de Buenos Aires e do Rio de Janeiro. O livro é dividido em três partes que tratam do conceito de tradição discursiva respectivamente na ciência, na imprensa e na história.

O primeiro artigo dessa coletânea abre a parte dedicada às tradições discursivas na ciência e, utilizando como fonte de pesquisa os cadernos do Instituto de Filologia da Universidade de Buenos Aires, publicados no período 1923-1927, aborda surgimento do gênero artigo científico na área de lingüística e filologia na Argentina. A autora, Guiomar Ciapuscio, procura reconhecer nos textos analisados alguns segmentos textuais característicos do discurso científico, seja em termos retóricos seja na escolha dos assuntos. Ademais, ela documenta a influência estrangeira no âmbito da atividade filológica argentina dos anos 20 em relação à escolha de tópicos e à forma de abordagem. Laura Ferrari retoma as duas partes do artigo científico analisadas também por Guiomar Ciaspuscio, a saber, a Introdução e a Conclusão, partes tidas como estandardizadas na comunicação especializada, e analisa o tipo de avaliação modal gerada através dos verbos epistêmicos em textos de lingüística e de medicina. Colocando a identificação da fonte do conhecimento como base da credibilidade do texto científico, mostra-se de que forma os marcadores evidenciais representam escolhas estilísticas e geram diferentes graus de facticidade. O terceiro artigo da coletânea, de autoria de Susanna Gallardo, vai ao cerne da comunicação especializada e traz uma comparação entre artigos de medicina de caráter divulgativo, ou seja, provenientes de jornais, e bulas médicas. O intuito do artigo é mostrar de que maneira as estruturas ilocutórias regulamentam tipos de textos e objetivos comunicativos através de funções de apoio, denominadas aqui funções subsidiárias e complementárias.

Muitos dos trabalhos mais recentes sobre tradições discursivas na América Latina se concentram no estudo da imprensa periódica. Em seu artigo sobre a voz passiva na língua castelhana, Konstanze Jungbluth focaliza as ligações existentes entre tradições discursivas e relações sintáticas. Ela explica, através da análise da utilização da voz passiva, de que forma certas estruturas gramaticais podem-se demonstrar mais aptas a expressar relações e fatos extralingüísticos. Após uma interessante digressão sobre o atual debate em torno do desenvolvimento histórico dos discursos textuais, ela expõe de maneira plausível a predileção por certas opções gramaticais em uma determinada tradição discursiva. Em sua pesquisa sobre os artigos científicos no diário argentino "La Razón" no período de 1917 a 1922, Dante Peralta distingue os conceitos de vulgarização e divulgação, revelando os entrelaçamentos entre tipo de informação, responsabilidade autoral e formas de discurso. Valéria Gomes analisa a história do editorial jornalístico pernambucano a partir do século dezenove e, esclarecendo a correlação entre elementos de mudança e de permanência no âmbito dessa tradição discursiva, consegue mostrar de que forma aspectos socioculturais e lingüísticos estão entrelaçados. Do plano formal, como denominação do tipo de artigo e localização deste no corpo do jornal, ao plano lingüístico-discursivo - uso dos pronomes da 1ª pessoa do plural, utilização dos recursos de adjetivação e modalização, questão gráfica -, ela nos dá uma visão sincrônica e diacrônica, capaz de posicionar os textos dentro de um contínuo histórico-lingüístico. O trabalho de Marlos Pessoa sobre o Diário de Pernambuco insere-se plenamente na linha de pesquisa lingüística diacrônica desenvolvida na Universidade de Tübingen. Investigando as interdependências entre contexto histórico, tipos de texto e gramática, ele traça um interessante perfil da presença e da falta de determinados traços gramaticais e sintáticos segundo o tipo de tradição discursiva - introdução, anúncio, informe, aviso, notícia - presente no Diário de Pernambuco. Consegue, desta forma, delinear a passagem do oral ao escrito, mostrando as implicações gramaticais e lingüísticas deste processo no Brasil do século dezenove. Partindo de um prisma funcional-interativo, ou seja, situando o texto dentro de uma situação comunicativa concreta, na qual as condições de produção, de circulação e de recepção também são levadas em conta, a autora do artigo Marcas de interação na correspondência publicada em jornais paulistas do século XIX, Maria Lúcia Andrade, averigua o uso das formas de tratamento no português como expressão das relações desempenhadas pelas funções sociais dos interlocutores e faz notar que marcas de interação, que aí se encontram, são traços comuns tanto à fala como à escrita. Helena Brandão analisa anúncios da imprensa brasileira referentes à venda, compra e aluguel de escravos e objetos no período de 1828 a 1880 sob o ponto de vista teórico da análise do discurso de linha francesa. Seu intuito é captar, pela linguagem utilizada nesse universo discursivo, os entrelaçamentos entre uma determinada classe social e sua forma de expressão em relação à comunicação interna e externa. A autora consegue delinear a passagem de uma linguagem de conteúdo referencial, legitimada pela posição social do locutor, a outra de caráter persuasivo. Ela marca, dessa forma, o princípio do deslocamento para o alocutário e, conseqüentemente, a mudança na organização textual-enunciativa desse tipo de discurso.

A terceira parte desse volume, dedicada ao discurso histórico, inicia-se com uma importante contribuição sobre a definição do conceito-guia de toda a coletânea. Johannes Kabatek rediscute a categoria de tradição discursiva de uma forma original e distinta de outras considerações sobre gêneros textuais. Mostrando como esse novo paradigma se originou, Kabatek elucida os pressupostos histórico-lingüísticos necessários para a formação de uma específica tradição discursiva. Sua forma de abordagem possibilita um interlacement estreito entre essas tradições, mudança lingüística e gramática histórica. O uso do esquema raibleriano de Junktion1 1 RAIBLE, W. Junktion: eine dimension der sprache und ihre realisierungsformen zwischen aggregation und integration. Heidelberg: Winter, 1992. em textos medievais espanhóis serve de base para abrir novas perspectivas no âmbito da lingüística histórica. Em seu artigo sobre os Paganismos na Alta Idade Média, Mário Bastos discorre sobre a mudança da concepção da história no decorrer dos tempos e sua imbricação com as relações sociais e as formas do discurso. Utilizando como exemplo para sua pesquisa a problemática dos resíduos pagãos em gêneros discursivos religiosos, ele questiona se a presença desses elementos deva ser interpretada como tradição discursiva ou realidade extratextual. Interessante é a alusão ao encontro dos dois sistemas de representação simbólica, ou seja, entre a religiosidade e o paganismo como expressões das relações existentes entre os homens e a natureza, e de suas conseqüências para a concepção da história. Em seu artigo sobre as formas de tratamento dos séculos XVIII e XIX, Célia Lopes faz uma análise diacrônica e sincrônica da inserção de "você" no quadro pronominal do Português Brasileiro e de suas implicações para todo o sistema gramatical. Averiguando cartas não-oficiais de uma alta autoridade portuguesa no Brasil, o Marquês de Lavradio, e de um casal de brasileiros da alta burguesia, todos residentes no Rio de Janeiro, ela faz um levantamento do uso de formas pronominais e nominais sob um prisma sociodiscursivo. Cabe ressaltar a hipótese aventada de que "você" teria surgido na escrita, em contextos restritos, e de que seu uso fosse, pois, no início motivado discursivamente. O artigo proporciona uma ótima panorâmica da extensão do uso de você em detrimento do tu e mostra a fossilização de formas ligadas ao vós no gênero cartas. Voltam às questões sul-americanas os artigos de Hans-Joachim König e Brigitte König sobre as Proclamações na Colômbia e na Venezuela no decorrer das guerras de independência. O primeiro fornece as motivações histórico-sócio-econômicas do movimento independentista e aflora a questão da formação dos estados, como ponto de partida para a constituição de uma nação, enfocando a dicotomia história e lingüística. O segundo investiga o início da tradição discursiva da Proclamação, explorando motivações diafásicas e aspectos gramaticais de variação diatópica. Resultam interessantes as observações sobre elementos denotadores de distância comunicativa que passam a ser neutralizados por elementos prosódicos no sentido de uma "fala no ducto da escrituralidade"2 2 Brigitte König cita aqui, p. 237, uma expressão utilizada por Brigitte Schlieben Lange em: Tradition des Sprechens: elemente einer pragmatischen Sprachgeschichtsschreibung. Stuttgart: W. Kohlhammer (1983), tradução minha. . Em seu artigo, Noemí Goldman trabalha com a noção de "gobierno mixto" que influenciou as teorias políticas do período pós-independência na região rio-platense. A autora assinala a preocupação de criar fundamentos à nova nação, harmonizando as múltiplas tendências políticas presentes na época: monárquicas e republicanas, centralistas e autonomistas. Noemí Goldman chega a questionar se a fórmula "gobierno mixto" não foi um simples artifício retórico na tentativa de conciliar posições opostas nos debates em torno da Constituição unitária a ser adotada em 1826. O artigo de Wulf Österreicher, Mudança lingüística e recursos de expressividade na língua falada, encerra essa coletânea de textos. Nele vêem-se discutidos os processos lingüísticos com base na oralidade expressiva, que levam à introdução de novos termos na língua. Partindo de um esquema comunicativo aplicável às tradições discursivas, o autor esboça de maneira coerente as condições lingüísticas de ordem semântico-pragmática - e por fim também antropológica - favoráveis à inovação e, conseqüentemente, à mudança. Suas considerações proporcionam um esquema de inovação e mudança que fundamenta a presença de formas das modalidades padrão e não padrão no âmbito das línguas históricas.

O volume Sincronía y diacronía de tradiciones discursivas en Latinoamerica demonstra a ductilidade do conceito de tradição discursiva aplicado na análise diacrônica de fenômenos lingüísticos da América Latina. Em particular, as intricadas relações entre expressão escrita e oral, tão significativas na afirmação das variantes nacionais das línguas ibéricas levadas à América Latina, resultam mais compreensíveis quando analisadas sob o ponto de vista das dinâmicas de continuidade e descontinuidade no âmbito de cada tradição discursiva.

  • 1
    RAIBLE, W.
    Junktion: eine dimension der sprache und ihre realisierungsformen zwischen aggregation und integration. Heidelberg: Winter, 1992.
  • 2
    Brigitte König cita aqui, p. 237, uma expressão utilizada por Brigitte Schlieben Lange em:
    Tradition des Sprechens: elemente einer pragmatischen Sprachgeschichtsschreibung. Stuttgart: W. Kohlhammer (1983), tradução minha.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Maio 2012
    • Data do Fascículo
      Abr 2008
    Universidade do Sul de Santa Catarina Av. José Acácio Moreira, 787 - Caixa Postal 370, Dehon - 88704.900 - Tubarão-SC- Brasil, Tel: (55 48) 3621-3369, Fax: (55 48) 3621-3036 - Tubarão - SC - Brazil
    E-mail: lemd@unisul.br