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APRESENTAÇÃO

Os artigos aqui reunidos foram inicialmente apresentados na II Conferência sobre metáfora na linguagem e no pensamento, realizada na UFF (Universidade Federal Fluminense), no Rio de Janeiro, em agosto de 2005. Esses trabalhos mostram que os estudos sobre a metáfora se expandem hoje em diferentes direções, reposicionando e reorganizando questões clássicas desse campo. Depois de uma fase em que predominou, de uma forma geral, o estudo das metáforas numa perspectiva cognitivista de base lakoffiana, em que a criação metafórica é vista como um mapeamento conceptual até certo ponto abstrato, purificado dos contextos de uso e da linguagem em que esse mapeamento se articula, os trabalhos aqui publicados mostram que, sem negar os avanços do paradigma da metáfora conceptual, a metáfora é feita não só de espírito (a junção de conceitos), mas também de carne (a língua em que é formulada, o contexto em que é usada).

Dar valor ao papel do discurso e do contexto, como fazem vários artigos aqui reunidos (Zhiming, Kupferberg, Macedo e Vereza), retoma na verdade uma intuição fundamental de I. A. Richards, que talvez tenha sido o primeiro a solapar a visão da metáfora como figura de estilo e como mera substituição de palavras. Segundo Ricoeur (1975, p. 124), “todo o projeto retórico de I. A. Richards é dedicado a restabelecer os direitos do discurso a expensas dos da palavra”. As palavras exprimem “rivalidades de grande escala entre contextos” (RICHARDS, apud RICOEUR, 1975, p. 125), e a metáfora é uma forma de criar um conflito aberto entre contextos de uso de uma palavra. Portanto, desde o início da tradição da metáfora como instrumento da cognição, o contexto de uso era um elemento vital. Se posteriormente, no paradigma da metáfora conceptual, o conceito se sobrepôs ao contexto, trata-se de um caminho que talvez tenha sido útil a seu tempo, mas que não se justifica mais hoje em dia.

Por outro lado, a par desse retorno dos contextos de uso, uma outra força tem levado ao estudo mais minucioso de ocorrências reais de metáforas: a lingüística de corpus (cf. DEIGNAN, 2005DEIGNAN, A. Metaphor and corpus linguistics. Amsterdam: John Benjamins, 2005.). Os artigos aqui citados que enfatizam essa necessidade de olhar os dados reais antes de fazer hipóteses sobre as metáforas são os de Moura e Vereza, apesar de suas orientações teóricas diferentes.

Uma outra direção importante é representada pelos artigos de Duvignau et alli, Macedo, e Fachini. Esses trabalhos tentam investigar fatores psicolingüísticos vitais no uso da metáfora, mas sem se fixar no pressuposto de que a metáfora é uma mera questão de transpor um mapeamento conceitual previamente determinado em entidades lingüísticas que representariam apenas um epifenômeno da metáfora. Entre o conceito e a interpretação da metáfora, intervêm fatores culturais (Macedo) e semânticos (Duvignau et alli, Fachini). Ou seja, a construção de uma metáfora envolve o uso de materiais de vários tipos (cognitivos, semânticos, culturais), não podendo se reduzir a uma pura elaboração e combinação de conceitos.

Aliás, é interessante citar aqui de novo I. A. Richards, que encarava a sua teoria sobre a metáfora como uma cruzada contra o postulado de que as palavras sejam os nomes de idéias presentes no espírito - tese que embasa a teoria tradicional da metáfora como troca de palavras para representar a mesma idéia (cf. RICOEUR, 1975, p. 125). É muito curioso que a teoria cognitiva mais importante do século XX (a da metáfora conceptual) tenha posto todo o peso nas idéias, assim como faziam os retóricos clássicos (embora de forma distinta, claro), relegando os contextos de uso e as distinções entre palavras e contextos a um segundo plano. Mas o campo está em plena ebulição, e nessa coletânea temos apenas uma parte do iceberg submerso.

O artigo de Kupferberg é um exemplo de como os estudos sobre a metáfora têm se voltado também para os usos que esse mecanismo lingüístico assume nos diferentes tipos de discurso. Nesse artigo, o objeto de estudo é o troubled talk, que a autora define como o discurso de pessoas que discutem seus problemas com profissionais ou paraprofissionais. A autora observa que, nesse tipo de discurso, a metáfora pode ser um meio de facilitar a interação, ou mais precisamente, pode funcionar como o tropo organizador do discurso, que sintetiza e dramatiza a situação do falante com problemas. A metáfora, assim, é encarada duplamente, como elemento textual e interacional. A idéia é que a metáfora pode ser o foco do discurso de uma fala difícil e emocionalmente carregada. Mas nem sempre o uso de uma metáfora é bem sucedido nesse tipo de discurso. O artigo cita o exemplo de um falante em crise que usa a metáfora “A vida é como uma prisão” e que é ridicularizado pelo atendente (o que não é muito profissional, diga-se de passagem). A autora parece implicar que a metáfora tem algum papel nesse fracasso da interação, mas uma questão metodológica se impõe. A metáfora em si aproxima duas palavras, ou dois pensamentos, como queiram: vida e prisão. Essa conexão em si nada tem de ridícula. Não se pode imputar à metáfora um efeito (o fracasso comunicativo) que na verdade vem do todo da fala da pessoa em questão (era alguém que parecia chato e petulante). Portanto, é difícil reduzir a metáfora a seu efeito perlocucionário. Em outro contexto interacional, esse efeito poderia ser bem diferente.

O artigo de Duvignau et alli se atém ao uso de flexibilidade semântica na aquisição de verbos por crianças na fase de 2-4 anos, assim como na fala de pacientes com o Mal de Alzheimer. Os experimentos foram conduzidos em francês. São exemplos de flexibilidade semântica o uso de expressões como “quebrar o livro” por “rasgar o livro” e “tirar a roupa do tomate” por “descascar o tomate”. O artigo identifica interessantes simetrias entre o processo de aquisição do léxico verbal por crianças e o processo de “desaquisição” lexical de pacientes com o Mal de Alzheimer. Os autores não se posicionam sobre a natureza metafórica ou não dessas construções, assumindo apenas que elas funcionam de uma forma equivalente às metáforas (metaphor-like), mas o interesse desse tipo de pesquisa para o estudo da metáfora é evidente. Se, na aquisição e (na desaquisição) do léxico, a rede semântica em que o léxico se estrutura pode gerar a construção de metáforas para representar os nódulos dessa rede em que falta um item lexical, há uma óbvia correlação entre uso das metáforas e a forma como nosso léxico mental está organizado. Ou seja, é preciso atentar, na construção das metáforas, não apenas para o mapeamento de conceitos independentes e isolados, mas para a relação que eles mantêm entre si na rede semântica em que o léxico de uma dada língua se organiza (cf. STEINHART, 2001STEINHART, E. The logic of metaphor: analogous parts of possible words. Dordrecht: Kluwer Academic, 2001. (Synthese Library, v. 299) e também MOURA, nesse volume).

O artigo de Macedo, em seguida, vai na mesma direção do de Zhiming (comentado abaixo), mostrando que fatores culturais intervêm na interpretação das chamadas metáforas primárias. Trata-se de uma pesquisa, ainda em curso, sobre a apreensão de falantes brasileiros e norte-americanos da metáfora primária “Dificuldades são pesos”. Os experimentos, envolvendo falantes de línguas e comunidades distintas, favoreceram a identificação da variação cultural de uma mesma metáfora conceptual. A autora avaliou os resultados da pesquisa da seguinte forma: “This evidence leads to the conclusion that there appears to be a correlation between physical experiences and various (inter)actions with weights. The same cannot be said, however, when emotions or subjective experiences of a psychological nature are at play”.

Esse artigo permite ainda colocar duas indagações metodológicas adicionais. Em primeiro lugar, os experimentos sobre metáforas primárias enfatizam a representação mental não propriamente do domínio alvo, mas do domínio fonte. Conforme a autora, “in describing the effects of dealing with big weights, participants would make up descriptions which would highlight the difficulty of such experiences”. Ou seja, o que está sendo investigado é basicamente como as pessoas conceptualizam suas experiências sensórias (os pesos, no caso) e não como elas pensam sobre o domínio alvo (as dificuldades). Mas essa representação do corpo explica de fato como pensamos sobre domínios abstratos? A questão fica em aberto.

Uma segunda questão metodológica é que as metáforas primárias parecem constituir uma dicotomia entre literal e figurativo, ou seja, imagens e representações do corpo se fariam presentes no uso de metáforas, mas não em enunciados literais. Mas essa dicotomia entre metafórico e literal não é muito rigorosa? Por exemplo, se alguém diz “Estou muito mal”, certamente interpretamos essa sentença também com base em experiências sensórias, embora não se trate de um enunciado metafórico. São questões que o interessante artigo de Macedo provoca (embora não as aborde diretamente) sobre a teoria das metáforas primárias.

Outro artigo no campo da psicolingüística é o de Fachini. Esse trabalho apresenta o resultado de um estudo empírico realizado com sujeitos destros normais e sujeitos destros portadores de lesão no hemisfério direito. Os resultados da pesquisa se opõem ao que diz a literatura sobre o assunto, pois não foram encontradas diferenças significativas entre as duas populações testadas, o que mostra que ainda temos muito a entender quanto às bases cognitivas da interpretação da metáfora. Outro aspecto desse artigo é que os experimentos são montados com base na idéia de que as interpretações de metáforas obedecem a padrões regulares de combinação semântica, tal como defendido por Moura (2005MOURA, H. Metáfora: das palavras aos conceitos. Letras de hoje, Porto Alegre, v. 40, n. 139, p. 20-50, 2005. e artigo neste volume), e os sujeitos lesionados são sensíveis a esses padrões da mesma forma que os normais.

O artigo de Moura enfatiza o papel do conteúdo semântico na interpretação das palavras. O autor define a metáfora como “um meio de navegar na rede conceptual da linguagem”. Ele apresenta uma metodologia de coleta e análise de dados de ocorrências metafóricas que permite identificar relações sintagmáticas e paradigmáticas que definem, em parte, a forma como interpretamos as metáforas. No artigo, são analisadas em detalhe ocorrências metafóricas de três verbos de mudança de estado: explodir, arquivar e congelar. A idéia é que o que dá força e status cognitivo à metáfora são justamente esses padrões regulares de interpretação. Como diz o autor, “Garimpamos o novo no velho; o novo é a metáfora e o velho é a rede conceptual da linguagem”.

O ensaio de Zhiming traz uma análise bastante interessante e detalhada das metáforas utilizadas na Roda da Vida budista. O objetivo é investigar se a hipótese universalista das metáforas primárias se aplica a uma construção cultural bem distante da tradição ocidental. Depois de uma análise minuciosa dos elementos pictóricos e estruturais da Roda da Vida, o autor mostra que ao menos alguns conceitos nessa figura são interpretados metaforicamente de uma forma que não pode ser reduzida ao modo de pensar ocidental, pondo em questão assim a universalidade das metáforas primárias. O autor ressalta que não se trata de traçar uma dicotomia entre Ocidente e Oriente, até porque muitas metáforas analisadas no texto são comuns às duas culturas, mas sim de examinar de que forma certos conceitos específicos podem ser mapeados de modo distinto em contextos culturais diferentes. Um conceito examinado em detalhes é o de causa. Segundo o autor, duas metáforas conceptuais ligadas a esse conceito (“causas são forças” e “prioridade causal é prioridade temporal”) não se aplicam à forma de pensar sobre causas na tradição budista. Nessa tradição, causas não pressupõem um agente, uma força motora que as provoque, e por outro lado “it is believed that events in this world are interrelated, constituting each other’s causes and manifesting as each other’s effects”, de modo que não faz sentido dizer que o evento causador é anterior ao evento causado, anulando-se assim a segunda metáfora conceptual citada acima.

A solução proposta pelo autor não é a de ampliar a rede metafórica universalista, mantendo-se os postulados da metáfora conceptual, mas a de assumir a posição alternativa de Quinn (1991QUINN, N. The cultural basis of metaphor. In: FERNANDEZ, J. W. (Ed.). Beyond metaphor: the theory of tropes in Anthropology. Stanford: Stanford University Press, 1991. p. 56-93.), de acordo com a qual os falantes dispõem de modelos culturais anteriores ao uso da metáfora, de modo que a escolha das metáforas responde não à força de metáforas primárias universais, mas à existência desses modelos culturais prévios.

O ensaio de Vereza ressalta que estudos recentes sobre a metáfora têm deslocado o foco do sistema para o uso. Ao invés de se deter no estudo de representações conceptuais subjacentes, o pesquisador da metáfora passa a investigar a riqueza da metáfora no uso, o que envolve fatores discursivos e pragmáticos. Uma forma de deslocar a atenção para o uso é focalizar as metáforas novas que não podem ser reduzidas a metáforas conceptuais subjacentes. Um exemplo dado pela autora é “O filho dele só obedece à base de mensalão”. Como interpretamos esse tipo de metáfora, se nenhum mapeamento cognitivo prévio está disponível? A proposta da autora é que a interpretação é possível com base em práticas discursivas de base sócio-cognitiva, no molde talvez dos jogos lingüísticos de Wittgenstein. Para a análise dos dados, a autora cunhou o termo “nicho metafórico”, que, segundo ela, “se mostrou analiticamente pertinente por ressaltar as redes, ou inter-cruzamentos cognitivo-discursivos formados por desdobramentos de metáforas específicas, cuja função mostrou-se, do ponto de vista pragmático, de teor argumentativo”.

Esperamos que o leitor desfrute do mesmo prazer que tivemos ao ler e examinar esses artigos, os quais mostram que a metáfora é ainda um excelente combustível para o estudo da linguagem humana.

REFERÊNCIAS

  • DEIGNAN, A. Metaphor and corpus linguistics. Amsterdam: John Benjamins, 2005.
  • MOURA, H. Metáfora: das palavras aos conceitos. Letras de hoje, Porto Alegre, v. 40, n. 139, p. 20-50, 2005.
  • QUINN, N. The cultural basis of metaphor. In: FERNANDEZ, J. W. (Ed.). Beyond metaphor: the theory of tropes in Anthropology. Stanford: Stanford University Press, 1991. p. 56-93.
  • RICOEUR, P. A metáfora viva. São Paulo: Loyola, 2005 [1975].
  • STEINHART, E. The logic of metaphor: analogous parts of possible words. Dordrecht: Kluwer Academic, 2001. (Synthese Library, v. 299)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2007
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