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POSSIBILIDADES DISCURSIVAS DO E - UM CONECTOR CORINGA

THE DISCURSIVE PROPERTIES OF ‘AND’ - A JACK-OF-ALL-TRADES CONNECTOR

POSSIBILITÉS DU ET - UN CONNECTEUR PRÊT À TOUT FAIRE

POSIBILIDADES DISCURSIVAS DO Y - UN CONECTOR COMODÍN

Resumo

Este trabalho focaliza o mecanismo de conexão interfrástica da conjunção por meio do comportamento sintático-semântico do conector e, procurando identificar os diversos matizes sintático- semânticos de que se reveste este coordenador de emprego e sentidos amplos (CHARAUDEAU,1992; NEVES, 2000; QUIRK, 1985). Assim, apresentam-se relações de sentido não uniformes entre os elementos conjuntos em virtude de implicações pragmáticas: a partir de seu valor primário aditivo (que se traduz pela fórmula A e B), alarga-se a área significativa da partícula e, sendo o valor temporal o primeiro, no campo da associação de idéias e da irradiação do contexto, a ampliar-lhe o sentido, já que quando se trata de enumeração pura e simples de seres, nenhuma adição se processa concretamente sem estar subordinada à idéia de tempo, que implica forçosamente a de sucessividade e, daí, a de acúmulo, passando, antes, pela de concomitância. Por outro lado, o termo adicionado pode vir a contradizer, a corrigir aquele que o precede, o que acarreta a idéia de oposição - contraste, adversidade e concessão. O estudo trabalha ainda com os conceitos de simetricalidade/assimetricalidade do “e” e com o funcionamento da conjunção nos domínios do conteúdo, epistêmico e dos atos de fala (SWEETSER, 1992), concluindo ser este conector neutro, de baixa especificidade, ou seja, frouxo argumentativamente, o que assegura a sua permeabilidade.

Palavras-chave:
conjunção; conexão interfrástica; valores polissêmicos; comportamento sintático- semântico

Abstract

This work analyses the connection mechanism of conjunction, focusing on the syntatic- semantic behaviour of “and”. It aims at identifying its polysemic values in different contexts (Neves, 2000; Charaudeau, 1992; Quirk, 1985). Therefore, discontinuous meaning relations between the conjoined elements due to pragmatics implications are introduced: starting from its primary addition value (formula A+B), other semantic notions are involved, being the temporal one the first, in the associative semantic field to widen its linguistic scope, since when dealing with enumeration, the notion of addition is normally subordinated to those of time, succession, accumulation and concomitance. On the other hand, the addition term may not only contradict the one that precedes it (opposition value), but also introduce a conclusion or a consequence of the previous proposition. The work still deals with symmetrical/asymmetrical concepts (Van Dijk, 1977; Lakoff, 1971) and with the functioning of conjunction in the content, epistemic and speech- acts domains (Sweetser, 1990), concluding that “and” is a neuter connector, argumentatively weak, what, in turn, gives it its functional permeability.

Key words:
interphrasic connection; conjunction; polysemic values; syntactic-semantic behaviour

Résumé

Cet article focalise le mécanisme de connexion interphrastique de la conjonction au moyen du comportement syntaxique-sémantique du connecteur et, cherchant à identifier les diverses nuances syntaxiques-sémantiques dont se revêt ce coordinateur aux sens et emploi larges. (Charaudeau, 1992; Neves, 2000; Quirk, 1985). De cette façon, il y a des rapports de sens, qui ne sont pas uniformes, présents entre les éléments assemblés, à cause d’implications pragmatiques; à partir de sa valeur primaire additive (qu’on peut traduire par la formule A et B), le domaine significatif de la particule s’élargit et, étant la valeur temporelle la première, dans le champ de l’association d’idées et de l’irradiation du contexte, ce qui rend plus large le sens, puisque quand il s’agit de l’énumération pure et simple des êtres, aucune addition ne s’effectue concrètement sans être subordonnée à l’idée du temps, ce qui met en cause forcément à l’idée de succession et, à partir de cela, à l’idée d’accumulation, passant avant, par l’idée de concomitance. D’autre part, le terme additionné peut devenir contradictoire, en corrigeant celui qui le précède, ce qui entraîne l’idée d’opposition-contraste, adversité et concession. Cette étude développe encore les concepts à propos du caractère symétrique / asymétrique du “et” et avec le fonctionnement de la conjonction dans les domaines du contenu, de l’épistémologie et des actes de parole (Sweestser, 1992), arrivant à conclure que ce connecteur est neutre, d’une faible spécificité, c’est-à-dire, flexible en argumentation, ce qui assure sa perméabilité.

Mots-clés:
connexion interphrastique; conjonction; valeurs polysémiques; comportement syntaxique- sémantique

Resumen

Este estudio focaliza el mecanismo de conexión interfrásica de conjunción po medio del comportamiento sintáctico-semántico del conector y, buscando identificar los diversos matizes sintácticos-semánticos de que se reviste este coordinador de empleo y sentidos amplios (Charaudeau, 1992; Neves, 2000; Quirk, 1985). De este modo, se presentar relaciones de sentido no uniformes entre los elementos conjuntos en virtud de implicaciones pragmáticas: a partir de su valor primario aditivo (que se traduce por la fórmula A y B), se queda más ancha el área significativa de la partícula y, sendo el valor temporal el primero, en el campo de la asociación de ideas y de la irradiación del contexto, a ampliarle el sentido, ya que cuando se trata de enumeración pura y simple de seres, ninguna adición se procesa concretamente sin estar subordinada a la idea de tiempo, que implica necesariamente a de sucesión y, desde ahí, la de acúmulo, pasando antes, por la concomitancia. Por otro lado, el término añadido puede venir a contradecir, a corrigir aquel que lo precede, lo que genera la idea de oposición - constraste, adversidad y concesión. El estudio trabaja todavia con los conceptos de simetricalidad/asimetricalidad del “y” y con el funcionamiento de la conjunción en los dominios del contenido, epistémico y de los actos de habla (Sweetser, 1 9 9 2 ) , c o n c l u y e n d o s e r e s t e c o n e c t o r n e u t r o , d e b a j a e s p e c i f i c i d a d , o s e a , f l o j o argumentativamente, lo que asegura su permeabilidad.

Palabras-clave:
conexión interfrásica; conjunción; valores polisémicos; comportamiento sintáctico-semántico

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Este trabalho focaliza o mecanismo de conexão interfrástica da conjunção por meio do comportamento sintático-semântico do conector e.

Em pesquisa realizada anteriormente, sobre conectores em textos publicitários, (MONNERAT, 2000MONNERAT, Rosane Santos Mauro. Os conectores e e se no texto publicitário - implicações semântico-discursivas. In: CONGRESSO NACIONAL DA ABRALIN, 2., 1999, Florianópolis. Anais, em cd-rom... Florianópolis: UFSC/ABRALIN, 2000. p. 69-79.), pudemos observar a preponderância absoluta do e sobre os demais relatores. Essa prevalência pode também ser comprovada em outros tipos de texto que não o publicitário e, ainda, em textos orais, em que o e se apresenta como marcador discursivo, ou melhor, “marcador aditivo de continuidade seqüencial”:

Várias características da conjunção e sugerem suas propriedades como marcador de discurso. Podemos resumir essas propriedades observando que e é uma conjunção que liga orações e termos, com uma distribuição mais ampla que a de mas ou então.1 1 Several characteristics of the conjunction and suggest its propperties as a discourse marker. We can summarize these properties by noting that and is a clausal and phrasal conjunction with a wider distribution than either but or so. (SCHIFFRIN, 1982SCHIFFRIN, Deborah. Discourse markers: semantic resource for the construction of conversation. Dissertation in Linguistics presented to the Graduate Faculties of the University of Pennsylvania, 1982., p. 171)

A conjunção e é a primeira a aparecer na linguagem infantil; a outra conjunção considerada aditiva, o nem, por encerrar uma dupla significação negativa e conjuntiva, aparece um pouco mais tarde. Assim, o pleonasmo de e é a forma infantil e popular das narrações. Nas primeiras fases da linguagem, o e serve, então, para exprimir muitas relações que, mais tarde, serão expressas de outra forma.

Em seu emprego normal, as conjunções aditivas expressam relações de simples soma. Emprega-se e, quando as orações somadas são afirmativas e nem, quando são negativas.

Perini (1995PERINI, A. P. Gramática descritiva do português. São Paulo: Ática, 1995., p. 144-145) se refere ao e como o coordenador que ilustra a coordenação em sua forma menos problemática, já que apenas esse conector (juntamente com o ou), atende às quatro propriedades características da concepção tradicional da coordenação:2 2 O mas e o porem têm comportamentos diferentes, deixando de atender, as vezes, a algumas dessas propriedades em seu conjunto.

(a) As duas orações podem ser separadas opcionalmente por pontuação:

(1) a. Ana cantava e Pedro tocava piano.

b. Ana cantava. E Pedro tocava piano.

Nesse caso, o e liga orações que expressam fatos simultâneos, coexistentes. Pode também ligar orações que expressem fatos cronologicamente seqüenciados, associados ou não numa relação de causa e efeito (AZEREDO, 2000AZEREDO, José Carlos. Fundamentos de gramática do português. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 2000., p. 247).

(b) O coordenador vale para coordenar qualquer número de membros; nesse caso, em geral, mas não obrigatoriamente, o coordenador só ocorre entre os dois últimos membros:

(2) Ana arrumou a casa, Lilian preparou o jantar e Pedro saiu.

(c) O coordenador, quando não repetido, só pode ocorrer em uma posição, ou melhor, logo antes da última oração, conforme ocorre em (2).

(d) o e pode juntar quaisquer elementos coordenáveis: orações (1) e

(2), sintagmas nominais (3), verbos (4), ou ainda adjetivos (5): (3) Comemos salada e peixe.

(4) Cantaram e dançaram.

(5) Uma casa segura e confortável.

Assim, para Perini (1995PERINI, A. P. Gramática descritiva do português. São Paulo: Ática, 1995., p. 145) o e e o ou “integram o primeiro grupo de coordenadores em que o mas figura como um terceiro membro, desviante.”

Dentre as formas lingüísticas responsáveis pela conexão interfrástica, de modo geral, o e merece, portanto, especial atenção, em virtude de sua ampla distribuição, não só como conjunção responsável pela ligação de termos dentro de uma oração, mas também pela ligação de orações no período.

2 A POLISSEMIA DO E

A gramática apresenta o e como protótipo das conjunções coordenativas aditivas (ou copulativas), ao lado de outras, como nem, não só... mas também, esta última considerada correlativa, com significado gramatical de “seriador”:

O significado da conjunção representa uma indicação para serem feitas determinadas operações cognitivas sobre os significados dos conjuntos frásicos ou dos elementos frásicos relativamente ao conjunto total do enunciado. Eis os significados das conjunções relativamente às relações semânticas entre as frases coordenadas:

Alguns autores, apesar de trabalharem com a definição canônica das aditivas, mencionam certos valores particulares, comumente assumidos pelo e.

Charaudeau (1992CHARAUDEAU, Patrick. Grammaire du sens et de l’expression. Paris: Hachette, 1992., p. 503), ao estudar a categoria lógico-lingüística da conjunção, menciona os “efeitos contextuais” resultantes da combinação de elementos de sentido que se encontram nas palavras do contexto. Para a conjunção de adição, apresenta os seguintes efeitos:

- sucessividade (depois, em seguida): “Ele fala e se cala.”

- simultaneidade (ao mesmo tempo): “Ele trabalha rápido e bem”.

- aproximação (quase): “Cem reais e uns quebradinhos.”

- equivalência (quer dizer): “Eu tenho dez centavos e justo o necessário para comprar um caramelo.”

- acréscimo ou de reforço argumentativo (surenchère - não somente... mas ainda: “Ele fala inglês e fluentemente”.3 3 Cf. "valor semantico de intensificacao" e "adicao de argumentos" em Neves (2000, p. 7 4 4 - 7 4 8 ) .

- oposição (de um lado... de outro lado; de uma parte... de outra parte, enquanto): “Ele mentiu, mas há mentiras e mentiras”.

- restrição (mas, no entanto): “Esforçou-se muito e não conseguiu a vaga”.

-conseqüência (portanto, então): “Cumpra suas obrigações e será recompensao.”

Também Van Dijk (1977, p. 58) refere-se não só à possibilidade de um tipo de conexão poder ser expressa por mais de um conectivo, mas também à de um mesmo conectivo poder expressar diferentes tipos de conexão. Trata especialmente do e, apresentando os seguintes exemplos:

(6) João fumou um charuto e Pedro fumou um cachimbo.

(7) João foi à biblioteca e pesquisou o assunto.

(8) Por favor, vá à mercearia e compre algumas cervejas.

(9) João fumou um charuto e Maria saiu da sala.

(10) Tomei um tranqüilizante e dormi.

(11) Dê-me um pouco mais de tempo e eu lhe mostrarei como isso pode ser feito.

(12) “Ria e o mundo ri com você, ame e ame sozinho”.

Nessas sentenças, o emprego do e sugere relações distintas, que ultrapassam o significado de simples adição e que podemos parafrasear por (e) ao mesmo tempo [6], (e) lá [7,8], (e) em conseqüência disso [9], (e) então [10], se... então [11,12].

O autor assinala, ainda, que as várias leituras do e podem ser determinadas pelas próprias proposições em conexão (assindéticas), o e servindo, apenas, para reforçar um elo já existente, que se tornaria mais explícito pelo emprego de outros conectores mais específicos que ele próprio, que se caracteriza por um conteúdo semântico mais geral, ou neutro, em relação aos outros conectores.

Assim, segundo Van Dijk (1977, p. 67), o e é um conectivo neutro, porque apenas indica que os fatos estão relacionados, enquanto os outros conectivos denotam, mais especificamente, o tipo de conexão estabelecida.

É precisamente devido à baixa especificidade da conjunção e, que se podem depreender esses inúmeros matizes, em contextos diversos. Por vezes, as construções de valor adverbial que acompanham o e acrescentam nuances explícitas ao caráter da relação de coordenação; em outros casos, a ordem dos termos unidos pela conjunção é imprescindível para indicar seqüência temporal, ou relações de causa-efeito.

Quando as orações se sucedem copulativamente, linearmente ordenadas, de maneira que o tempo da primeira é anterior ao da segunda, tende-se a interpretá- las em relação consecutiva: a seqüência temporal e expressiva se converte em seqüência lógica, já que essa ordenação segue a ordenação normal dos próprios fatos no mundo bio-social. São numerosos os refrões construídos segundo a fórmula: oração exortativa + e + oração no futuro, que indica conseqüência: “Diga-me com quem andas e eu te direi quem és”, “Case-se e verá” etc.

Neves (2000NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora da UNESP, 2000., p. 739) também se refere “ao caráter mais neutro” desse conector em relação aos outros coordenadores e acena para a possibilidade de uma relação “menos neutra” entre os segmentos por ele coordenados, quando esses segmentos mantêm entre si, por exemplo, uma relação semântica mais marcada: de contraste, ou de causa-conseqüência.

Quirk (1985QUIRK, Randolph et al. A comprehensive grammar of the English language. London: Longman, 1985., p. 930-932) aponta valores semânticos do e - coordenador de uso e sentido mais amplos, usando o termo conotação para indicar que as relações de sentido entre os elementos conjuntos não são uniformes, podendo coexistir mais de um sentido para uma mesma ocorrência de e, em virtude de implicações pragmáticas.

Destaca oito tipos de conotação, cujo valor semântico pode tornar-se mais explícito, através do reforço de um advérbio, ou locução adverbial. Segundo o autor, a única restrição ao uso de e, como coordenador, é de ordem pragmática, ou seja, as asserções por ele ligadas devem ter algo em comum que justifique a sua combinação, já que, do ponto de vista lógico, o e simplesmente determina que se a sentença, como um todo, é verdadeira, então cada uma de suas partes também o será. As implicações pragmáticas, que determinam a possibilidade de combinação entre as partes, variam de acordo com nossas pressuposições e conhecimento do mundo.

Dos oito tipos de conotação propostos por Quirk (op. cit), apenas os três primeiros podem apresentar inversão na ordem das asserções, sem alterar-lhes o sentido e, mesmo nesses casos, segundo o autor, a ordem na seqüência raramente é aleatória:

  • 1° tipo: A segunda oração introduz um contraste: “Pedro é estudioso e (ao contrário) André é vadio”.

  • 2° tipo: A segunda oração apresenta uma situação similar à da primeira: “O acordo comercial traria benefícios e (da mesma forma) o intercâmbio cultural seria bem recebido”.

  • 3° tipo: A segunda oração é pura adição em relação à primeira, o que implica perfeita compatibilidade entre seus enunciados: “Ele tem cabelos compridos e (também) sempre usa jeans”.

  • 4° tipo: A segunda oração acrescenta um comentário apenso, ou uma explicação da primeira: “Ele não gosta dela - e isso não é novidade, haja vista seu comportamento”.

  • 5° tipo: A segunda oração é conseqüência ou resultado da primeira, isto é, a primeira apresenta as circunstâncias que possibilitam o evento descrito na segunda, o que implica uma seqüência cronológica na ordem das orações: “Ele não estudou e (por isso) tirou nota baixa”.

  • 6° tipo: A segunda oração é cronologicamente seguinte à primeira, mas sem nenhuma implicação de relação causa/resultado: “Eu lavei os pratos e (então) sequei-os”.

  • 7° tipo: A segunda oração contraria a expectativa da primeira, o que confere a esta força concessiva: “Ela se esforçou bastante e (mesmo assim) não conseguiu”.4 4 0 autor aproxima as ideias de contraste, oposição (1o tipo) e concessão (7o tipo), ao se referir ao fato de que, nesses dois contextos, o e pode ser substituido por mas, o que, segundo Charaudeau (1992), nao e uma boa pratica.

  • 8° tipo: A primeira oração é a condição da segunda: “Faça o seu serviço e (então) você poderá sair mais cedo”.

O uso condicional de e se apresenta, via de regra, sob um tipo de construção em que a primeira oração é uma ordem (directive) e a segunda, a conseqüência advinda da obediência a essa ordem (AZEREDO, 2000AZEREDO, José Carlos. Fundamentos de gramática do português. Rio de Janeiro: J. Zahar Editor, 2000., p. 248). Embora seja mais comum o emprego do imperativo na primeira e do futuro do indicativo na segunda, há construções de imperativo nas duas asserções, o que aproxima esse uso do e, de certos tipos de atos de fala com valor de promessa, muito empregados na linguagem publicitária (“Abra uma conta no Banco REAL e ganhe qualidade”).

A partir de seu valor primário aditivo (que se traduz pela fórmula A e B), alargou-se a área significativa da partícula e, sendo o valor temporal o primeiro, no campo da associação de idéias e da irradiação do contexto, a ampliar-lhe o sentido. De fato, exceto quando se trata de enumeração pura e simples de seres5 5 A frente, referimo-nos a essas construcoes como =e simetrico", ou =comutativo". , nenhuma adição se processa concretamente sem estar subordinada à idéia de tempo, que implica forçosamente a de sucessividade e, daí, a de acúmulo (NEVES, 2000NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora da UNESP, 2000., p. 743), passando, antes, pela de concomitância. Por outro lado, o termo adicionado pode vir a contradizer, a corrigir aquele que o precede e teremos, então, a idéia de oposição - contraste, adversidade e concessão.

Para que a coordenação copulativa ocorra, é preciso que os termos envolvidos sejam todos afirmativos, ou todos negativos. Se tal não ocorre, produz- se uma contrariedade total, ou parcial entre eles, o que dá à coordenação um caráter adversativo mais ou menos acentuado, como, por exemplo, quando se associa uma oração afirmativa a uma negativa: “Procuro e não encontro”; ou uma negativa, a uma afirmativa: “Não procuro e encontro”. Nesses casos, há luta entre o sentido consecutivo e o adversativo: prevalece o primeiro, quando a significação de ambas as orações não é incompatível e o segundo, quando se percebe alguma oposição, ou desconformidade entre elas.

Além dos valores mencionados, não raro o e se reveste de carga afetiva, posto a serviço da exteriorização psíquica do falante (ROCHA LIMA, 1975______. Subsídios para o estudo da partícula “e” em algumas construções da língua portuguesa. Tese apresentada à Universidade Federal Fluminense em prova de habilitação à Livre-Docência, Rio de Janeiro, 1975., p. 51; 1995, p. 721). Nessas circunstâncias, importa reconhecer e interpretar esse valor afetivo. Outras vezes, em início de período, figura como partícula meramente arquitetural, encadeando ritmicamente a transição entre parágrafos, ao mesmo tempo em que contrabalança, em parte, a tendência de séries de orações assindéticas, em que as coisas ou fatos encadeados como que sugerem uma impressão de incompletude. Pode também significar enlace lógico-afetivo com o anteriormente dito, ou pensado. É muito freqüente em orações interrogativas e exclamativas. Pode ainda o “e” constituir uma indicação explícita de que o segundo segmento se acresce ao primeiro, sendo especialmente importante para acentuar esse efeito uma pausa, denominada pausa dramática (NEVES, 2000NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora da UNESP, 2000., p. 743)

3 SIMETRICALIDADE E ASSIMETRICALIDADE DO E

Lakoff (1971LAKOFF, Robin. If’s, and’s, and but’s about conjunction. In: Studies in linguistic semantics. New York: Holt, Rinehart and Winston, Inc., 1971., p. 114-131) estuda o e com ênfase no aspecto semântico e propõe três condições para a conjunção. Dadas as proposições P e Q, pode-se realizar a conjunção entre elas (1) se existir alguma relação entre P e Q; (2) se P e Q não forem idênticos; (3) se Q não for a negação de P.

Segundo a autora, há dois tipos mais ou menos homônimos de e: o simétrico e o assimétrico. O primeiro simplesmente liga duas ou mais sentenças e o segundo impõe uma ordem de prioridade às sentenças por ele ligadas.

Comentando o e simétrico, Lakoff faz algumas observações quanto à aceitabilidade de certos enunciados, ressaltando que para alguns autores, como Gleitman (apudLAKOFF, 1971LAKOFF, Robin. If’s, and’s, and but’s about conjunction. In: Studies in linguistic semantics. New York: Holt, Rinehart and Winston, Inc., 1971.), o e pode ser usado para unir quaisquer sentenças:

(13) Minha avó me escreveu uma carta ontem e seis homens podem se acomodar no banco traseiro de um Ford.

O enunciado (13) é, no mínimo, estranho; no entanto, as restrições que se podem fazer a ele não são sintáticas (as orações são perfeitamente bem formadas), mas sim semânticas: enquanto cada uma de suas partes individualmente é perfeitamente inteligível, a sentença, como um todo, causa estranhamento e isto porque, como sabemos, dois enunciados só podem ser unidos se um é relevante para o outro, ou se partilham um tópico comum.

Um enunciado aparentemente estranho pode, por outro lado, ser decodificado em função do contexto, ou do conhecimento de mundo do locutor/ receptor e isto porque a relação entre as duas proposições ligadas pelo e (P e Q), de que fala a condição (1), não tem necessariamente que ser direta, explícita. A condição também é satisfeita quando tanto P quanto Q estão relacionados a um terceiro enunciado, implícito, que faz parte do “repertório” do locutor/receptor:

(14) João come maçãs e eu sei de muitas pessoas que nunca vêem um médico.

Para compreender (14), o receptor deve descobrir uma relação entre os fatos expressos pelas orações. Para isso, vai tomar de sua experiência, ou conhecimento do mundo, ou de situação comunicativa anterior de que tenha participado, fatos adicionais que possam ligar algo de um conjunto a algo do outro, ou melhor, ele terá de fazer pressuposições a respeito dos elementos explícitos no enunciado e, a partir destas, chegar a deduções, que poderão auxiliá-lo na percepção da ligação entre os dois enunciados apresentados. No caso de (14), duas pressuposições (a e b) e uma dedução (c) nelas baseadas são necessárias:

  1. Há um provérbio que diz “an apple a day keeps the doctor away”.6 6 "Uma maca por dia mantem o medico afastado".

  2. Esse provérbio quer dizer que se você comer maçãs, não terá necessidade de ir ao médico, porque terá muita saúde.

  3. Raciocinando assim, se você acredita no provérbio, as pessoas que nunca vão ao médico são, ou devem ser, aquelas que comem maçãs.

Alguns enunciados parecem, no entanto, violar as condições (2) e (3) estabelecidas por Lakoff, para a caracterização da conjunção:

(15) Gostei e não gostei do espetáculo.

(16) Ela repetiu e repetiu.

(17) Ela morava em São Paulo e não morava em São Paulo.

(18) Ela morava em São Paulo e morava em São Paulo.

Os enunciados (15) e (17) transgridem a condição (3) e os (16) e (18), a condição (2). Para compreendê-los, o receptor deve procurar a razão que teria levado o falante a se expressar dessa forma, isto é, buscar uma interpretação perlocutória. No caso de (15) e (16), isso não seria difícil, pois os sentidos perlocutórios já estão de certa forma convencionados em seu repertório. “Gostar de X”, por exemplo, pode sugerir a idéia de diferentes aspectos de “X” e “repetir”, por seu componente aspectual implícito, presta-se à idéia de ação prolongada e repetida. O mesmo não ocorre com “morar”. Entretanto, aí também é possível achar um contexto em que ambos os enunciados, ou seja, (17) e (18), se tornem aceitáveis. Em (17), por exemplo, poder-se-ia imaginar uma situação em que determinada pessoa, em certa época, viajasse tanto que não morasse concretamente em nenhum lugar (Ela morava em São Paulo porque esse era realmente o seu endereço, mas não parava em casa, pois viajava muito e, daí, na verdade, também não morava em São Paulo). No caso de (18), o contexto pode deixar claro que a repetição exprime ênfase, ou contrariedade do locutor, numa situação em que sua afirmação já tenha sido refutada várias vezes.7 7 Trata-se do sentido intensivo da conjuncdo, tanto em (18), quanto em (20) (LAKOFF, 1971, p. 122).

O e assimétrico, segundo Lakoff (op. cit.), é equivalente a e então, num sentido temporal, ou causal. Numa conjunção simétrica, os componentes do enunciado podem-se inverter sem prejudicar o sentido, ou a gramaticalidade da sentença. Retirados do contexto, cada um dos dois conjuntos pode funcionar como sentença completa, sem necessidade um do outro. O mesmo já não ocorre com a conjunção assimétrica. Nesse caso, o conjunto é, num determinado sentido, maior que a soma de suas partes:

(19) A polícia entrou na sala e todos engoliram seus cigarros.

(20) * Todos engoliram seus cigarros e a polícia entrou na sala.

Se (20) for considerada aceitável, é porque se trata de uma conjunção simétrica, ou então porque não tem as implicações de causalidade presentes em (19). Como construções simétricas, (19) e (20) são perfeitamente sinônimas; como assimétricas não o são.

Uma outra diferença entre o e simétrico e o assimétrico diz respeito à pressuposição. Com a conjunção simétrica, pode-se dizer que nenhum dos dois enunciados unidos pelo e são pressupostos, mas antes afirmados; já com a conjunção assimétrica, pode-se constatar que o primeiro membro do par é pressuposto, para que o segundo tenha sentido.

Também van Dijk (1977, p. 58-62) refere-se a dois tipos de conjunção: a comutativa e a não comutativa, equivalentes, respectivamente, à simétrica e à assimétrica, de Lakoff. Analisa algumas frases, que adaptamos, como (21) e (22):

(21) João fumou um charuto e Pedro fumou um cigarro.

(22) João fumou um charuto e Maria saiu da sala.

Considera (21) como conjunção comutativa, enquanto em (22), sugere a possibilidade de duas leituras - uma comutativa e outra não comutativa. No primeiro caso, a conjunção indica apenas a validade de ambas as proposições; no segundo, o e teria valor de e depois. No entanto, olhando (21) mais uma vez, pode-se inferir mais uma leitura, em que há idéia de causalidade, sendo que, nesse caso, o e tem valor de por isso. Se a ordem das proposições for alterada, a leitura assimétrica ou desaparece, ou fica invertida, ou seja, o que era causa passa a efeito e vice-versa.

No exemplo (22), ainda há a possibilidade de uma leitura do e equivalente a mas. Nesse caso, imaginamos uma situação em que “João tenha fumado charuto para chamar a atenção de Maria (para se mostrar diante dela), sem, contudo, ter conseguido seu objetivo, porque Maria detesta cheiro de charuto”: “João fumou um charuto e = mas Maria saiu da sala”.

Poderíamos, sem muito esforço, encontrar ainda outras leituras, talvez mais forçadas, porém possíveis. Isso ocorre com qualquer enunciado, desde que inserido num contexto específico (lingüístico, ou pragmático), para se conseguir um determinado sentido de conjunção. O próprio enunciado (21), considerado, simétrico (ou comutativo), numa situação empírica, poderia vir a ter leituras assimétricas. Por exemplo, para uma leitura causal, bastaria que o discurso em que (21) estivesse inserido fizesse parte de um enunciado como: “Pedro não pode ver ninguém fumando que fica com vontade de fumar também”.

Por outro lado, o conceito de simetria e assimetria não é privativo do e:

(23) Fique quieto, ou vai ficar de castigo.

(23’) Vou de saia ou de calça comprida?

(24) Estudou muito, mas não passou.

(24’) João é magro, mas Luís é gordo.

Os enunciados (23) e (24) podem ser interpretados segundo a ordenação temporal. São, portanto, assimétricos, o que já não ocorre com (23’) e (24’) que são simétricos.

Disso podemos concluir que o que determina a natureza simétrica ou assimétrica de cada conector é o conteúdo semântico dos enunciados, juntamente com os contextos lingüísticos e pragmáticos em que se inserem. Assim, a questão da simetria/assimetria, em muitos casos, tem de ser estudada em relação à semântica textual e à pragmática.

Sweetser (1990, p. 86-93) retoma as noções de simetria e assimetria do e, aliadas à idéia de que o estudo das conjunções deve ser interpretado sob três grandes espaços de domínio cognitivo, estreitamente vinculados: a conjunção de conteúdo referencial, espaço do mundo físico-social; a conjunção de premissas no mundo epistêmico, de conteúdo inferencial e a conjunção de atos de fala, proferidos via enunciação das orações em questão, sendo que, nesse último caso, a interpretação dada às orações conjuntas é pragmaticamente determinada. Isto porque, segundo a autora, modelamos nossa compreensão dos processos lógicos e de pensamento, a partir de nossa compreensão do mundo social e físico e, simultaneamente, modelamos a expressão lingüística, não apenas como uma descrição, um modelo do mundo, mas também como ação (um ato no mundo que está sendo descrito) e, ainda, como entidade epistêmica ou lógica (uma premissa, uma conclusão, em nosso mundo da razão). Em outras palavras, só conseguimos falar das realidades de nosso mundo mental porque o nosso mundo físico-social nos dá o ponto de partida e de referência, em que nos apoiamos para mapear e projetar nossos conteúdos de consciência, nossas conclusões e inferências, bem como nossos próprios atos de fala.

A autora trata da conjunção, coordenação e subordinação, apresenta as conjunções causal8 8 A conjuncao causal se manifesta nos tres dominios: no dominio de atos de fala, indica explicacao do ato de fala que esta sendo realizado; no dominio epistemico, marca a causa de uma crenca, ou de uma conclusao; no dominio referencial indica a causalidade do mundo real de um evento. e adversativa e descreve os usos de conteúdo referencial, epistêmico e de ato de fala de and, or e but.9 9 Com relacao a but, Sweetser so considera dois niveis de dominio: o epistemico e o dos atos de fala: se dois estados coexistem no mundo real (e a conjuncao com but apresenta os dois conjuntos como verdadeiros), entao eles nao podem chocar-se no nivel desse mundo real. A autora destaca pontos em comum entre seu trabalho e o de Lakoff (1971), ao analisar, sob a otica do dominio epistemico e a dos atos de fala, o mas de negacdo de expectativa, assimetrico e o mas de oposicdo, simetrico.

A escolha do domínio de interpretação da conjunção é essencialmente pragmática - certas construções praticamente forçam a interpretação num dado nível; um exemplo como (25), com menção explícita ao estado de conhecimento do falante, praticamente força uma interpretação epistêmica:

(25) Já que10 10 Sweetser (1990, p. 155, nota 5) faz um paralelo entre sua abordagem e a de Ducrot, no que diz respeito as conjuncoes because e since e parce que e puisque. Segundo a autora, because e parce que sao usadas especificamente para o dominio de conteudo referencial, enquanto since e puisque, para o epistemico e para o dos atos de fala. Podemos acrescentar que o mesmo ocorre em portugues, respectivamente, com porque e ja que. você está de short e camiseta, você não está indo para o colégio. (Eu suponho, eu concluo).

Já a frase (26) permite outra interpretação:

(26) O que você vai fazer esta noite, porque há um filme excelente no cinema X.

Esse enunciado seria totalmente incompreensível se a conjunção fosse interpretada no domínio de conteúdo referencial, pois a oração do porque não pode ser compreendida como a causa verdadeira da situação descrita na oração principal, mas sim dá a causa do ato de fala implícito nesta (Eu pergunto o que você vai fazer esta noite porque eu quero sugerir uma ida ao cinema).

A análise do e se apresenta vinculada à idéia de ordenamento icônico nos diferentes domínios; muitos de seus múltiplos significados podem estar ligados a um uso icônico do conceito geral de adição, ou conexão. Não apenas pares de orações ligadas por e, mas também orações isoladas de uma seqüência narrativa são interpretadas como portadoras de uma ordem icônica no encadeamento dos acontecimentos:

(27) Ele abriu a porta e entrou.

(28) Ele abriu a porta. Ele entrou.

Como sabemos, o e assimétrico corresponde a e então; no entanto, o e não traz em si próprio a indicação de sucessão temporal, ou de causalidade, ou melhor, a ordem das duas orações conjuntas pode, por convenção, ser icônica para a seqüência dos eventos descritos. Por exemplo, a assimetricalidade de (19) - o fato de que se mudará a interpretação do enunciado com a troca da ordem das duas orações - é aparentemente devida a convenções icônicas da ordem das palavras nas narrativas, já que a ordem das orações é paralela à do mundo real dos acontecimentos descritos nessas mesmas orações, não sendo, portanto, necessárias outras especificações de ordenação temporal dos eventos que estão sendo narrados.

A noção de causalidade está também, de certa forma, vinculada à de seqüência temporal, uma vez que fatos anteriores causam os posteriores, enquanto a recíproca não é verdadeira.

Segundo Sweetser (1990, p. 87-93), o e tem três diferentes domínios de aplicação. Apresenta-se tanto no domínio do conteúdo referencial, quanto no epistêmico, podendo ainda unir atos de fala. A conexão entre os conjuntos será percebida diferentemente, de acordo com o domínio no qual os conjuntos são considerados e a iconicidade na ordem das palavras será inerente ao domínio no qual a conjunção ocorrer - ordenação temporal e causal no domínio do mundo real e prioridade lógica, no domínio epistêmico.

No domínio do conteúdo, as convenções da ordem das palavras na narrativa determinam que a colocação de fatos lado a lado, através do uso de e, seja um ícone da ordem temporal do mundo real. A causalidade do mundo real também pode tornar-se implícita, uma vez que fatos anteriores podem exercer força causal em fatos posteriores, e não o contrário:

(29) Tirou os sapatos e se atirou na piscina.

(30) X e Y são excelentes restaurantes. X serve uma deliciosa moqueca de peixe e Y é conhecido pelo seu vatapá.

No domínio epistêmico, a colocação de eventos lado a lado pode também levar à ordenação icônica, guardadas certas circunstâncias, mas será um ícone de precedência lógica (relevante para o domínio epistêmico atemporal), e não de precedência temporal:

(31) Pedro viajou ontem à noite para São Paulo?

Bem, sua bagagem não está aqui e ele avisou que não iria trabalhar hoje.

(Conclusão: Sim, ele viajou)

O e pode unir também atos de fala:

(32) Vá para cama agora! E chega de conversa!

(33) Muito obrigada, dona Eugênia, e, por favor, feche a porta antes de sair.

Podemos, portanto, interpretar a conjunção sintático-semântica de orações em três domínios distintos: como conjunção de conteúdo, como conjunção de premissas no mundo epistêmico e como conjunção de atos de fala proferidos via enunciação de pares de sentenças pragmaticamente determinadas. E, como vimos, se acrescentarmos a idéia de ordem icônica dos termos a essa múltipla interpretação da conjunção, poderemos explicar grande parte das diferenças entre a conjunção simétrica e a assimétrica.

4 FECHANDO: A RELEVÂNCIA DO E NA COESÃO FRÁSICA INTERFRÁSICA

Dentre os conectores, percebe-se preferência pelo e - seja o simétrico seja o assimétrico - sempre que se quer imprimir simplicidade à estruturação sintática do enunciado, o que se obtém, com facilidade, através do processo sintático da coordenação.

Ao estudar os processos sintáticos, Garcia (1995GARCIA, Othon M. Comunicação em prosa moderna. 16. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1995., p. 25-26) refere-se à questão da coordenação e ênfase, defendendo a utilização da subordinação que cria, segundo ele, na sua estrutura hierarquizada, maiores possibilidades de ênfase do que a coordenação, que nivela as orações no seu valor.

É certo que a subordinação permite uma mobilidade de enunciado que a coordenação não admite, o que lhe confere, em determinadas situações, maiores possibilidades de ênfase; é certo, ainda, que a coordenação, sobretudo a que se utiliza da partícula e, apresenta uma relação de causa/conseqüência mais frouxa que a que se obteria por meio de uma construção de subordinação. No entanto, nas situações em que ocorre a coordenação, os períodos parecem ter uma certa “leveza”, em função da relativa simplicidade na estruturação sintática.

Tomemos, por exemplo, os enunciados:

(34) A criança estava com muita febre e a mãe resolveu chamar o médico.

(35) Como a criança estava com muita febre, a mãe resolveu chamar o médico.

(36) A mãe, como a criança estava com muita febre, resolveu chamar o médico.

Observa-se, de imediato, que em (34) não se dá relevo a nenhuma parte do enunciado, ou melhor, o enunciado, como um todo, merece igual relevância; em (35), focaliza-se o sujeito e a causa e em (36), focaliza-se mais o sujeito que a causa.

Sendo o e um conectivo de significação mais neutra, de baixa especificidade, os enunciados por ele unidos são mais diretos, tendem a expressar maior simplicidade, com menos artifícios, sendo, por isso mesmo, o tipo de construção preferida para certos tipos de textos, como é o caso, por exemplo, dos textos publicitários, em que se quer “ganhar” o receptor sem com ele polemizar.

Assim, a presença e a constância de um mecanismo lingüístico pode fornecer subsídios que sinalizem a preferência por uma construção em detrimento de outra(s) - no caso, a preferência pela coordenação e, nesta, pelo conector e, evidenciando um tipo peculiar de construção em que se prioriza a simplicidade na estruturação das idéias.

Esse fato não é novidade. A extensão e freqüência do e em textos os mais diversos têm sido alvo de trabalhos que demonstram o papel especial desse conector na esfera dos morfemas de coordenação, tendo em vista, sobretudo, como já foi assinalado, a polissemia desse articulador da relação de conjunção.

Vale destacar, finalmente, que muitas das múltiplas interpretações semânticas dadas ao e, inclusive os sentidos simétrico e assimétrico (narrativo), são regulares e previsíveis, se considerarmos o conceito icônico de ordem das palavras e a constatação de que a conjunção pode ser a junção de atos de fala, ou de entidades lógicas, e não apenas de conteúdos referenciais. Todos esses sentidos são, de certa forma, manifestações do sentido básico da colocação de coisas lado a lado, aditivamente. O e é pragmaticamente ambíguo, ou seja, seu sentido abstrato se aplica diferentemente à interpretação dos conjuntos, dependendo do contexto.

Referências

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  • LAKOFF, Robin. If’s, and’s, and but’s about conjunction. In: Studies in linguistic semantics. New York: Holt, Rinehart and Winston, Inc., 1971.
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  • ______. Subsídios para o estudo da partícula “e” em algumas construções da língua portuguesa. Tese apresentada à Universidade Federal Fluminense em prova de habilitação à Livre-Docência, Rio de Janeiro, 1975.
  • SCHIFFRIN, Deborah. Discourse markers: semantic resource for the construction of conversation. Dissertation in Linguistics presented to the Graduate Faculties of the University of Pennsylvania, 1982.
  • SWEETSER, Eve. From etymology from pragmatics. New York: Cambridge University Press, 1900.
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  • VILELA, Mário; KOCH, Ingedore. Gramática da língua portuguesa. Coimbra: Almedina, 2001.
  • 1
    Several characteristics of the conjunction and suggest its propperties as a discourse marker. We can summarize these properties by noting that and is a clausal and phrasal conjunction with a wider distribution than either but or so.
  • 2
    O mas e o porem têm comportamentos diferentes, deixando de atender, as vezes, a algumas dessas propriedades em seu conjunto.
  • 3
    Cf. "valor semantico de intensificacao" e "adicao de argumentos" em Neves (2000NEVES, Maria Helena de Moura. Gramática de usos do português. São Paulo: Editora da UNESP, 2000., p. 7 4 4 - 7 4 8 ) .
  • 4
    0 autor aproxima as ideias de contraste, oposição (1o tipo) e concessão (7o tipo), ao se referir ao fato de que, nesses dois contextos, o e pode ser substituido por mas, o que, segundo Charaudeau (1992CHARAUDEAU, Patrick. Grammaire du sens et de l’expression. Paris: Hachette, 1992.), nao e uma boa pratica.
  • 5
    A frente, referimo-nos a essas construcoes como =e simetrico", ou =comutativo".
  • 6
    "Uma maca por dia mantem o medico afastado".
  • 7
    Trata-se do sentido intensivo da conjuncdo, tanto em (18), quanto em (20) (LAKOFF, 1971LAKOFF, Robin. If’s, and’s, and but’s about conjunction. In: Studies in linguistic semantics. New York: Holt, Rinehart and Winston, Inc., 1971., p. 122).
  • 8
    A conjuncao causal se manifesta nos tres dominios: no dominio de atos de fala, indica explicacao do ato de fala que esta sendo realizado; no dominio epistemico, marca a causa de uma crenca, ou de uma conclusao; no dominio referencial indica a causalidade do mundo real de um evento.
  • 9
    Com relacao a but, Sweetser so considera dois niveis de dominio: o epistemico e o dos atos de fala: se dois estados coexistem no mundo real (e a conjuncao com but apresenta os dois conjuntos como verdadeiros), entao eles nao podem chocar-se no nivel desse mundo real. A autora destaca pontos em comum entre seu trabalho e o de Lakoff (1971LAKOFF, Robin. If’s, and’s, and but’s about conjunction. In: Studies in linguistic semantics. New York: Holt, Rinehart and Winston, Inc., 1971.), ao analisar, sob a otica do dominio epistemico e a dos atos de fala, o mas de negacdo de expectativa, assimetrico e o mas de oposicdo, simetrico.
  • 10
    Sweetser (1990, p. 155, nota 5) faz um paralelo entre sua abordagem e a de Ducrot, no que diz respeito as conjuncoes because e since e parce que e puisque. Segundo a autora, because e parce que sao usadas especificamente para o dominio de conteudo referencial, enquanto since e puisque, para o epistemico e para o dos atos de fala. Podemos acrescentar que o mesmo ocorre em portugues, respectivamente, com porque e ja que.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Dec 2003

Histórico

  • Recebido
    10 Jul 2003
  • Aceito
    18 Set 2003
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