Resumo
Este texto emerge de reflexões construídas a partir de disciplinas cursadas no âmbito de dois programas de pós-graduação da Universidade de Brasília (UnB). À luz da psicanálise, pretende-se refletir sobre a escrita e seus possíveis efeitos sobre o sujeito que escreve. Para tanto, os diálogos contornam as complexas relações entre escrita-inconsciente, escrita-prazer-sofrimento, escrita-incompletude, escrita-fantasia-elaboração. A aposta é que a escrita de si, além de possível ferramenta de mediação analítica, pode configurar-se como dispositivo autoformativo e de pesquisa. Neste sentido, apresenta-se a Memória Educativa como um singular dispositivo de pesquisa e de mediação pedagógica em processos formativos com professores. Assim, pensa-se que tanto na escuta do sujeito quanto nas histórias em forma de narrativas escritas o inconsciente como um saber falado pode comparecer e ser “lido” nas entrelinhas da palavra dita e escrita para além do texto manifesto.
Palavras-chave:
Escrita de si; Memória educativa; Implicação subjetiva; Psicanálise e educação
Abstract
This text emerges from reflections built from courses taken within the scope of two graduate programs at the Universidade de Brasília (UnB). In the light of psychoanalysis, it is intended to reflect on writing and its possible effects on the subject who writes. Therefore, the dialogues circumvent the complex relationships between writing-unconscious, writing-pleasure-suffering, writing-incompletion, writing-fantasy-elaboration. Our bet is that self-writing, in addition to being a possible analytical mediation tool, can be configured as a self-training and research device. In this sense, we present Educational Memory as a device for research and pedagogical mediation in training processes with teachers. Thus, we think that both in listening to the subject and in the stories in the form of written narratives, the unconscious as a spoken knowledge can appear and be “read” between the lines of the spoken and written word beyond the manifest text.
Keywords:
Self writing; Educational memory; Subjective implication; Psychoanalysis and education
Resumen
Este texto surge de reflexiones construidas a partir de cursos realizados en el ámbito de dos programas de posgraduación de la Universidade de Brasília (UnB). A la luz del psicoanálisis, se pretende reflejar sobre la escritura y sus posibles efectos sobre el sujeto que escribe. Así, los diálogos rodean las complejas relaciones entre escritura-inconsciente, escritura-placer-sufrimiento, escritura-incompletitud, escritura-fantasía-elaboración. Nuestra apuesta es que la autoescritura, además de ser una posible herramienta de mediación analítica, pueda configurar como un dispositivo de autoformación e investigación. En este sentido, presentamos la Memoria Educativa como un dispositivo singular de investigación y mediación pedagógica en procesos de formación con docentes. Así, pensamos que tanto en la escucha del sujeto como en los relatos en forma de narraciones escritas, el inconsciente como saber hablado puede aparecer y ser “leído” entre líneas de la palabra hablada y escrita además del texto manifiesto.
Palabras clave:
Escritura del yo; Memoria educativa; Implicación subjetiva; Psicoanálisis y educación
1 PARA INICIAR A ESCRITA
O presente ensaio emerge como efeito de leituras, discussões e reflexões construídas durante (e após) o percurso formativo vivido na disciplina Tópicos Especiais em Psicanálise: a escrita do psicanalista, semestre 2020/1, ofertada pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (PPGPsiCC/UnB). Com o intuito de incitar o debate sobre a escrita do psicanalista e seu lugar na cultura e clínica psicanalítica contemporâneas, o referido componente curricular norteou-se pela pergunta: sobre o que os psicanalistas escrevem, hoje? Para tanto, propôs pensar a escrita como possível aliada do psicanalista implicado com sua formação e prática clínica, articulada às possibilidades de, com e a partir dela, escutar e olhar para além do setting analítico.
Nesse percurso, algumas questões nos inquietaram: por que/para que escrevemos? O que impulsiona nossas mãos quando escrevemos? Marcamos o papel a partir de marcas inscritas em nosso inconsciente? Quais os possíveis efeitos da escrita sobre o sujeito que escreve? Afinal, para que serve a escrita de si?
Importa reconhecer que essas perguntas emergiram em diálogos com discussões tecidas em outra disciplina, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Brasília (PPGE/UnB), intitulada Memória Educativa e Constituição da Subjetividade Docente. Esse componente curricular assumia como um dos temas de análise e discussão a Memória Educativa como dispositivo de pesquisa articulada à formação de professores: ao abordar aspectos teóricos, metodológicos e éticos sobre estudos psicanalíticos no campo da educação, apresenta a Memória Educativa como uma “escrita-leitura de si” que possibilita aos professores resgatar fatos e vivências da trajetória escolar e extraescolar, com vistas à compreensão das marcas que os constituem subjetivamente e possíveis repercussões na formação e exercício da docência.
Assim, sustentados no aporte psicanalítico, pretendemos tecer reflexões sobre a escrita e seus efeitos sobre o sujeito que escreve, para pensar possíveis implicações na formação e constituição subjetiva do Eu professor. Trata-se, portanto, de uma escrita sobre a escrita, sobre o ato de escrever como possibilidade de criação de mundos e recriação de si mesmo, seja na clínica ou fora dela. Nossa aposta é que a escrita pode ser uma ferramenta efetiva de trabalho para os psicanalistas, para além das anotações clínicas, dada sua função como dispositivo de mediação analítica, pois ao marcar o papel o sujeito do inconsciente comparece. Neste sentido, também pensamos a escrita da Memória Educativa como um singular dispositivo de pesquisa que, além de proporcionar aos pesquisadores de estudos psicanalíticos no campo da educação a construção de dados, tem repercutido em processos formativos e pedagógicos com professores.
Portanto, pensamos que o sujeito da enunciação (inconsciente) comparece na escrita de si - seja por meio da Memória Educativa ou de outra forma de narrativa autobiográfica - e no plano do dizer coloca-se para além do enunciado (consciente) (Almeida, 2012ALMEIDA, I. M. A memória educativa na formação do educador: da metáfora freudiana à leitura psicanalítica. In: ALMEIDA, I. M. (Org.). O lugar da memória educativa na formação de professores: uma leitura psicanalítica. Curitiba: CRV, 2012. p. 9-19.), pois o inconsciente, ainda que resistente e em movimento de fuga, pode escapar pelas fissuras da linguagem e se revelar por meio da “fala escrita”; esta que se mantém presente no tempo e, deste modo, pode permitir intervenções que não precisam necessariamente ocorrer no ato de sua produção pelo sujeito, mas ser retomada e (re)lida a posteriori.
Destarte, o texto está estruturado em seções que se interligam e retomam aspectos que permeiam toda a escrita: inicialmente, apresentamos Freud como um escritor de vários estilos e o lugar da escrita de si em suas produções; na sequência, indagamos sobre a questão “por que escrevemos?”, para, em seguida, continuar os diálogos em torno da relação entre “escrita e inconsciente”, “escrita, prazer e sofrimento”, “escrita e incompletude”, “escrita, fantasia e experiência de elaboração”; por fim, porém sem concluir, pontuamos sobre a escrita de si por meio da Memória Educativa como dispositivo autoformativo e de pesquisa.
2 FREUD: UM ESCRITOR DE VÁRIOS ESTILOS E O LUGAR DA ESCRITA DE SI
A psicanálise, com sua aposta na cura pela palavra, só poderia ter sido criada por um grande escritor, Sigmund Freud [1856-1939]. Como pontua Lazzarini (2011LAZZARINI, E. R. Borges, a escrita criativa e o estatuto do leitor em psicanálise. Polifonia, Cuiabá, v. 18, n. 24, 2011, p. 43-52. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/polifonia/article/view/36. Acesso em: 10 maio 2022.
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, p. 44), “ainda que a prática fundante da psicanálise esteja na suposição de que o inconsciente é um saber falado”, a escrita sempre esteve presente de uma maneira marcante desde o começo da formulação e desenvolvimento da teoria psicanalítica: “Freud dedicou atenção especial à escrita, sendo um escritor contumaz, atento à sua produção, cuidadoso e crítico, e seus textos, mesmo os mais técnicos, eram muitas vezes escritos em forma de romance, enlevando fileiras de admiradores”.
A paixão do “pai da Psicanálise” pela escrita pode ser percebida em entrevista concedida por Freud ao escritor italiano Giovanni Papini em 1934:
Eu sou um cientista por necessidade e não por vocação. Sou, na verdade, por natureza, artista [...] e disso existe uma prova irrefutável: em todos os países onde a Psicanálise tem penetrado, tenho sido melhor compreendido e aplicado pelos escritores e artistas que pelos médicos. Meus livros, de fato, se parecem mais a obras de imaginação que a tratados de patologia [...]. Eu tenho podido cumprir meu destino por uma via indireta e realizar meu sonho: seguir sendo um homem de letras, mesmo que sob a aparência de um médico. Em todo grande homem de ciência está o gérmen da fantasia; mas nenhum propõe, como eu, traduzir a teorias científicas a inspiração que a Literatura moderna oferece. Na Psicanálise, o senhor encontrará reunidas, mesmo que transformadas em jargão científico, as três grandes escolas literárias do século XIX: Heine, Zola e Mallarmé estão reunidos em minha obra sob o patrocínio de meu velho mestre, Goethe (Freud, 1934 apudAnsermet, 1989ANSERMET, F. Prefácio. In: GROSRICHARD, A.; MÉLA, C. (org.). La psychose dans le texte. Trad. de Ana Paula Ávila Pinto. Paris: Navarin, 1989., n.p.).
Como “cientista por necessidade” e “artista/homem de letras” por vocação, movido pelo desejo de saber, Freud dedicou-se arduamente aos estudos clínicos de seus pacientes e à autoanálise como tentativa de compreender o psiquismo humano e explicar a si mesmo, colocando-se, pois, ele próprio, como objeto de estudo à disposição da Psicanálise que formulava, como fizera por exemplo em A interpretação dos Sonhos (1900), uma de suas obras mais importantes, na qual analisa seus próprios sonhos:
No próprio trabalho se notará por que todos os sonhos relatados na literatura ou coletados por desconhecidos seriam inúteis para os meus fins; tive de escolher entre meus próprios sonhos e os de meus pacientes em tratamento psicanalítico. Não pude servir-me deste último material porque nele os processos do sonho estavam sujeitos a uma complicação indesejada, devido à presença de características neuróticas. Na comunicação de meus próprios sonhos, contudo, mostrou-se necessário revelar a desconhecidos mais intimidades da minha vida psíquica do que podia ser do meu agrado e do que cabe a um autor que não é poeta, mas homem de ciência. Isso foi embaraçoso, porém inevitável; sujeitei-me a isso para não ter que desistir da demonstração dos meus resultados psicológicos (Freud, 2019FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2019 [1900]., p. 15-16).
Como grande escritor, e um escritor de vários estilos, como sublinham Pontalis e Mango (2012PONTALIS, J-B.; MANGO, E. Freud com os escritores. Trad. de Andre Telles. São Paulo: Três Estrelas, 2012.), Freud desde jovem já percebia seu desejo de saber e de contribuir com a construção do conhecimento humano, como revela em Algumas reflexões sobre a psicologia escolar (1914) quando resgata lembranças de seu passado escolar e os primeiros contatos com as Ciências:
E pareço relembrar que, durante todo esse tempo, tinha a premonição de uma tarefa futura, até que esta encontrou expressão manifesta na minha redação de despedida da escola, como um desejo de que pudesse, no decurso de minha vida, contribuir com algo para o nosso conhecimento humano. Mais tarde tornei-me médico - ou antes, psicólogo - e pude criar uma nova disciplina psicológica, conhecida como ‘psicanálise’, que desperta atualmente um interesse excitado e é acolhida com louvores e ataques (Freud, 1976FREUD, S. Algumas reflexões sobre a psicologia escolar. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, V. XIII. Trad. de Órizon Carneiro Muniz. Rio de Janeiro: Imago, 1976 [1914]. p. 283-289., p. 285-286).
Lembra-nos Giovannetti (2011GIOVANNETTI, M. Considerações sobre a escrita psicanalítica. Ide, São Paulo, v. 34, n. 53, 2011, p. 243-248. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062011000200021. Acesso em: 25 maio 2022.
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), em diálogo com Benjamin (1985BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. Trad. de Sergio Paulo Rouanet e Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1985.), que Freud foi um narrador insciente e não onisciente ou informativo: no processo de descobertas psicanalíticas sobre a psique humana, ele vai se constituindo enquanto narra e ao narrar mergulha o objeto-guia da narração em sua própria vida, para em seguida retirá-la de si mesmo. Lajonquière (2010LAJONQUIÈRE, L. Figuras do infantil: a psicanálise na vida cotidiana das crianças. Petrópolis: Vozes, 2010.) comenta que a psicanálise, como sua invenção, é a doença mesma de Freud, produto de uma experiência pessoal, de uma escrita de si e dos outros, ética e rigorosamente elaborada:
[...] ela é simplesmente o produto de uma experiência pessoal, qual seja, a própria cura de Sigmund Freud, desdobrada inclusive em ressonância com aquela de seus pacientes. Por isso, por exemplo, o complexo de Édipo não é descoberto nem “nos pacientes”, nem “nele mesmo”. Ele é elevado à categoria de peça metapsicológica no decorrer de uma experiência de simbolização d’isso mesmo que resta no interior do campo da palavra e da linguagem e do qual todo sujeito goza (Lajonquière, 2010LAJONQUIÈRE, L. Figuras do infantil: a psicanálise na vida cotidiana das crianças. Petrópolis: Vozes, 2010., p. 43).
Herrmann (2002HERRMANN, F. A infância de Adão e outras ficções freudianas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.) enfatiza o lugar de centralidade que Freud ocupa nas produções em psicanálise, não apenas por ele ser o inventor dessa “ciência do inconsciente”, mas por ter abordado ao longo de sua vasta obra temas cujas discussões não se esgotam ainda hoje. Sua escrita não tem ponto final, não cessa de se escrever (Lacan, 1985LACAN, J. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Trad. de M. D. Magno. Rio de janeiro: Zahar, 1985.). Por isso, mais de um século de psicanálise e com dezenas de milhares de psicanalistas espalhados pelo mundo, além de profissionais de outras áreas do conhecimento implicados com leituras e produções acadêmicas, a escrita freudiana se mantém viva, pulsante, sendo lida e relida, escrita, reescrita e traduzida, em diálogos com variados campos do saber.
3 POR QUE ESCREVEMOS?
Para Calvino (2015CALVINO, I. Mundo escrito e mundo não escrito. Trad. de Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.), a escrita pode ser motivada por diferentes razões: o sujeito escreve para aprender algo que não sabe (logo, escreve porque deseja ser e saber), escreve porque é uma necessidade humana registrar e compartilhar ideias, escreve como tentativa de libertar-se de angústias, escreve para ensinar e divertir ou divertir-se, para capturar ao menos o vestígio de um saber ou de uma sabedoria que, na vida, apenas tangencia e logo perde. Nessa linha de pensamento, quando perguntam sobre o que impulsiona nossas mãos quando nos propomos a escrever, Oz e Hadad (2019OZ, A.; HADAD, S. Do que é feita a maçã: seis conversas sobre amor, culpa e outros prazeres. Trad. de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.) sublinham que escrevemos, dentre outros motivos, porque supomos saber e desejamos/necessitamos satisfazer curiosidades (o que muitas vezes é impossível). Para Giovannetti (2011GIOVANNETTI, M. Considerações sobre a escrita psicanalítica. Ide, São Paulo, v. 34, n. 53, 2011, p. 243-248. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062011000200021. Acesso em: 25 maio 2022.
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, p. 247), “no ato da escrita, ato solitário por excelência, a palavra se encontra em seu estado agonizante, é letra quase morta, por assim dizer, e seu poder comunicativo deve ser resgatado”. Assim, “na sessão, a palavra necessita de um tratamento ‘via di levare’ e na escrita, ‘via di porre’”; ou seja, “na sessão, para que a escuta possa ser realizada, é necessária a tolerância à presença excessiva do outro. Na escrita, é a ausência do outro que deve ser tolerada”. Portanto, a escrita possui um poder comunicativo que extrapola a lógica da troca de informações entre dois ou mais interlocutores.
Sob a ótica lacaniana de traço e linguagem, Bento (2004BENTO, C. A. A escrita e o sujeito: uma leitura à luz de Lacan. Psicologia USP, v. 15, 1/2, 2004, p. 195-214. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-65642004000100020. Acesso em: 10 maio 2022.
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) sustenta a ideia de escrita como um dos possíveis constituintes do homem, e questiona seu papel. Para a autora, a finalidade da escrita transcende as abordagens meramente instrumentais que tendem a reduzi-la ao entendimento de ferramenta de comunicação, criada para servir à transmissão de mensagens e atender às demandas de mercado: numa perspectiva psicanalítica, a escrita vai além dessa dimensão prática, se relaciona ao desejo e gozo, é uma forma de o sujeito expressar sua subjetividade, pensar e se posicionar face às vicissitudes da vida.
Como elemento constitutivo de seu ser, a escrita guarda uma proximidade com o sujeito que a mera instrumentalização das sociedades globalizadas, por exemplo, não resolvem. A idéia da escrita apenas como memória dos homens também não. A escrita não se resolve nessa função prática apenas, nessa referência aos meandros da pragmática do mercado. A escrita, como linguagem, é uma das formas do sujeito exercitar a sua subjetividade por meio da alteridade. À semelhança de um espelho, a escrita permite ao homem pensar, mirar a sua fratura. Ela é o outro desse si, que se interpõe entre ele e o mundo (Bento, 2004BENTO, C. A. A escrita e o sujeito: uma leitura à luz de Lacan. Psicologia USP, v. 15, 1/2, 2004, p. 195-214. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-65642004000100020. Acesso em: 10 maio 2022.
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Nesta perspectiva, parafraseando Kupfer (2013KUPFER, M. C. Educação para o futuro: psicanálise e educação. São Paulo: Escuta, 2013., p. 124, acréscimo nosso), pensamos que, dentre outros motivos, escrevemos porque como sujeitos do desejo, marcados e movidos pela falta, estamos sempre às voltas “com o desejo de buscar e encontrar respostas para o enigma de [nossa] presença no mundo”. Assim, o ato de escrever pode se alimentar de impulsos entrelaçados a múltiplos fatores: escrevemos para entrar em contato com nossas faltas, dores, angústias, sintomas e mal-estar e/ou para produzir e difundir conhecimentos acerca de questões que nos inquietam e sobre as quais supomos saber ou desejamos saber.Calvino (2015CALVINO, I. Mundo escrito e mundo não escrito. Trad. de Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.) pontua que escrever para divulgar nossas próprias ideias pode ser perigoso, pois toda escrita dessa natureza pode estar contaminada pela dimensão do equívoco. Afinal, “a Verdade” não existe e, portanto, nossas convicções são sempre provisórias e atravessadas pela dimensão do não-todo. Destarte, parece-nos que essa impossibilidade de tudo dizer ou de, com a escrita, capturar o real move o sujeito pelo processo criativo.
Na mesma direção assumida por Bento (2004BENTO, C. A. A escrita e o sujeito: uma leitura à luz de Lacan. Psicologia USP, v. 15, 1/2, 2004, p. 195-214. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-65642004000100020. Acesso em: 10 maio 2022.
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), para a qual a função da escrita transcende o lugar da comunicação, Radaelli (2007RADAELLI, J. O sujeito e a ficção da escrita: uma articulação entre psicanálise, literatura e educação. 2007, 191 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.) observa:
[...] ao seguir o percurso da Psicanálise, cruzando os destinos do inconsciente, percebemos que o ato de ler/escrever não corresponde apenas a uma função comunicativa, que transmitem apenas saberes absolutos, verdades universais e iguais para todos, mas, ao contrário, percebemos a multiplicidade de saberes que vão sendo construídos pela subjetividade dos sujeitos e tecidos pela história pessoal de cada um (Radaelli, 2007RADAELLI, J. O sujeito e a ficção da escrita: uma articulação entre psicanálise, literatura e educação. 2007, 191 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007., p. 11).
Deste modo, ao situar-se entre o que sente, sabe e não sabe, aquele que escreve nutre seu desejo de saber e de escrever. Assim, toda escrita é uma experiência especialmente singular para cada sujeito, que, ao escrever, se escreve e inscreve, consciente e/ou inconscientemente.
4 UM TRAÇO QUE INSISTE: O ESTRANHO EM NÓS OU A ESCRITA À PROVA DO INCONSCIENTE
A língua constitui a marca cultural de um povo: por meio dela nos comunicamos e identificamos como grupo. Neste sentido, pontua Willemart (2009WILLEMART, P. Os processos de criação na escritura, na arte e na psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2009., p. 97) que o homem, como ser essencialmente relacional, se define pelo grupo social do qual faz parte: “o si mesmo se apropria e se reconhece no que o distingue de outros grupos” e a língua(gem), nesse sentido, possui múltiplas relações com a cultura e a constituição da subjetividade, sendo traço criador de nossa identidade, pois o sujeito, inserido no campo da cultura e da palavra, é dividido pela linguagem. Sob a ótica lacaniana, se o mundo é organizado pela linguagem e se o lugar do inconsciente é o lugar da linguagem, é com e a partir dela que nos tornamos sujeitos.
Selligman-Silva (2005, p. 140), ao falar sobre as novas linguagens midiáticas de nossos tempos, sugere que o mundo, hoje, pode ser “escrito e lido” de muitas maneiras - através de textos técnicos, poesias e poemas, pinturas, fotografias, áudios, vídeos, dentre outros - e que, portanto, “se quisermos compreender a sociedade, deveríamos olhar para os artistas da sociedade”, atentos às múltiplas possibilidades de expressão humana. Ao discorrer sobre a teoria da escritura de Walter Benjamin, o autor retoma a questão da relação entre escritura e inconsciente, e cita o cinema como exemplo de invenção humana por meio da qual “podemos aprender a ler de um modo muito palpável, ‘tátil’, o nosso inconsciente” - este que está por trás da linguagem e diz-não-dizendo (2005, p. 135).
Willemart (1995WILLEMART, P. Além da psicanálise: a literatura e as artes. São Paulo: Nova Alexandria, 1995., 140) afirma que “a escrita é a cena da história e jogo do mundo e ultrapassa a psicologia e o sujeito do inconsciente”. Ao retomar Freud para pensar sobre possíveis aproximações entre os processos de escrita e o inconsciente, o autor sinaliza que tanto o analista como o crítico buscam segredos escondidos na palavra falada e na palavra escrita: embora “a intervenção do inconsciente no consultório ou na atividade crítica não se caracteriza evidentemente da mesma maneira”, há pontos em comum, dentre os quais o fato de “tanto o crítico como o analista interpreta[rem] a escritura de tal autor ou a fala do analisando como se fossem escritas misteriosas, reveladoras de um outro discurso” (1995, p. 136). Na fala e na escrita o sujeito deixa “as mensagens” de seu inconsciente; este que, embora esteja sempre em movimento de fuga, como dito, escapa pelas fissuras da linguagem: “a letra insiste no inconsciente e desenha a borda na falha do saber, mas o inconsciente comanda essa função da letra pela linguagem” (1995, p. 142).
A esse respeito, Lazzarini (2011LAZZARINI, E. R. Borges, a escrita criativa e o estatuto do leitor em psicanálise. Polifonia, Cuiabá, v. 18, n. 24, 2011, p. 43-52. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/polifonia/article/view/36. Acesso em: 10 maio 2022.
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, p. 45) assinala que “em psicanálise, a escuta do analista deve voltar-se para o relato, no sentido da forma como este é trazido em análise” e que “essa atenção vai propiciar uma ampliação do conteúdo ao colocar luz no que é dito e no como é dito” na fala ou na escrita, pois “é por este meio, de acordo com Freud, que o analista (e em contrapartida o escritor, o poeta, o artista) consegue abrir uma via singular e própria de comunicação com o inconsciente permitindo penetrar neste território desconhecido”. Noutras palavras, “todos nós, escritores ou críticos, somos trabalhados pela escrita, deixamos a escrita dizer ou desvelar o que somos” (Willemart, 2009WILLEMART, P. Os processos de criação na escritura, na arte e na psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2009., p. 95), de tal modo que, ao escrever, rascunhamos conforme nosso desejo, num processo em que o escritor, quando escreve, lê e se relê. Com sua marca pessoal como autor(a), ou seja, com um estilo próprio, “o escritor se entrega à escritura como o pintor nas cores, o escultor na pedra, o músico nas escalas musicais, o analisando no seu discurso, e se deixa levar pelo material usado” (2009, p. 104).
Sendo, nessa perspectiva, a escritura uma forma de expressão do sujeito artista/escritor, visto que ela vem de seu psiquismo, Willemart (1995WILLEMART, P. Além da psicanálise: a literatura e as artes. São Paulo: Nova Alexandria, 1995., p. 82) assinala que o autor “fala” pelos personagens e que “seus heróis representam as correntes conflitantes da própria vida mental do autor”, de modo que “o desejo do artista e seus fantasmas estão diluídos sob o efeito da escritura” (1995, p. 85). Assim sendo, nos variados tipos e gêneros textuais, dentre eles a escrita de si, podemos pensar que “a mão que escreve é mais uma mão que fuça a linguagem que falta” (Willemart, 2014, p. 9) e que, ao escrever, “o sujeito alternadamente se mostra e se esconde, pela pulsação do inconsciente” (2014, p. 15).
Quando o sujeito marca o papel, algo vai junto; ou seja, pela escrita, se diz, desvela quem é/o que é e o que deseja (mesmo sem saber). Ainda de acordo com Willemart (2014WILLEMART, P. O tempo lógico e as rodas da escritura e da leitura. São Paulo: Fapesp, 2014.), o escritor, estimulado pela pulsão, observa e sente, numa experiência que envolve olhar externo e olhar interno: olhares de si sobre o mundo e do mundo sobre si e sobre o objeto acerca do qual escreve, assim como olhares de si sobre si que, mesmo sem desejar colocá-los no papel - ou até mesmo inconsciente deles -, estão lá, ainda que aparentemente invisíveis, como a experiência do bloco mágico freudiano. Assim, ao escrever sobre si - através da voz, do corpo, do texto, da pintura, do silêncio que muito revela -, o desejo se verbaliza, o inconsciente comparece.
Como pontua Lazzarini (2011LAZZARINI, E. R. Borges, a escrita criativa e o estatuto do leitor em psicanálise. Polifonia, Cuiabá, v. 18, n. 24, 2011, p. 43-52. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/polifonia/article/view/36. Acesso em: 10 maio 2022.
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, p. 44), escrita e inconsciente encontram-se indissociáveis em Freud, para quem “é na forma de uma escrita enigmática que o inconsciente se manifesta”: em A interpretação dos sonhos (1900), por exemplo, “mesmo sem abordar diretamente o tema da escrita, Freud dedica atenção especial à relação entre escrita e inscrição psíquica quando pensa exatamente o inconsciente como um sistema de inscrição”. A autora assinala que em todo texto - e neste caso, destacamos a escrita de si - “existe uma ausência, e também um subentendido”, o que nos coloca perante a necessidade de escutar e ler os ditos manifestos e latentes (d)escritos entre as linhas, pois “o saber inconsciente aparece nas brechas, nas entrelinhas, que escapam a toda intenção do dizer e justamente por isto é um saber que não se sabe, mas que se dá a conhecer” (2011, p. 45).
Conforme Willemart (2014WILLEMART, P. O tempo lógico e as rodas da escritura e da leitura. São Paulo: Fapesp, 2014., p. 15), nem tudo a palavra alcança, e “é quando o todo da linguagem para, na proporção que falhou, que a palavra verdadeira surge. Então esta palavra diz mais do que significa e mostra mais do que exprime”. Assim, provoca-nos para ler o silêncio ou o que não foi escrito, o que está escrito nas entrelinhas, pois o melhor pode ser exatamente os “não ditos” ditos sob os sussurros do inconsciente.
Para Pontalis e Mango (2012PONTALIS, J-B.; MANGO, E. Freud com os escritores. Trad. de Andre Telles. São Paulo: Três Estrelas, 2012., p. 227), “a força criadora de um autor nem sempre obedece ao seu querer” e, portanto, uma obra é portadora de inscrições que o escritor e o leitor podem ignorar, mas a escrita ou leitura de um texto pode reavivar inscrições subjetivas (tanto do autor como do leitor), pois “escrever é entregar-se a uma influência secreta, inconsciente, que deixa vestígios que o pesquisador descobre e não quer apagar” (2012, p. 221). O próprio Freud psicanalista-médico-escritor, em carta endereçada a Wilhelm Fliess em 7 de julho de 1898, evidencia possíveis efeitos do inconsciente no processo de escrita, uma escrita que começa sem saber como, aonde terminar e que é atravessada pelas resistências, mas que é movida pelo desejo, por uma força interna que o impulsiona a escrever:
Aqui está. Foi difícil eu me decidir a deixar que saísse de minhas mãos. A intimidade pessoal não teria sido uma razão suficiente; foi preciso também nossa honestidade intelectual um com o outro. Ele segue completamente os ditames do inconsciente, segundo o célebre princípio de Itzig, o viajante dominical: “- Itzig, para onde você vai? - E eu sei? Pergunte ao cavalo”. Não iniciei um só parágrafo sabendo onde ele iria terminar. É claro que o livro não foi escrito para o leitor; depois das duas primeiras páginas, desisti de qualquer tentativa de cuidar do estilo. Por outro lado, é claro que acredito nas conclusões. Ainda não tenho a mínima idéia da forma que finalmente assumirá o conteúdo (Masson, 1986MASSON, J. M. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess: 1887-1904. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Imago, 1986., p. 320).
Radaelli (2007RADAELLI, J. O sujeito e a ficção da escrita: uma articulação entre psicanálise, literatura e educação. 2007, 191 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007.) assim reflete sobre esse sentido da escrita:
Quando se pensa sobre os referenciais da Psicanálise, a escrita é um texto que vai se formando, como se estivesse caindo na cabeça do escritor que, assim, se deixa levar pelo ritmo dos sons e das palavras sobre as quais não tem controle. O autor é conduzido por uma escrita que o antecede e que, ainda por cima é plástica, capaz de mudar de sentido a qualquer momento, dando ao autor, muitas vezes, a impressão de que seu texto foi escrito por outra pessoa (Radaelli, 2007RADAELLI, J. O sujeito e a ficção da escrita: uma articulação entre psicanálise, literatura e educação. 2007, 191 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007., p. 176).
Nesta direção, para Lacan (1986LACAN, J. Seminário 1: os escritos técnicos de Freud. Trad. de Betty Milan. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.) é um equívoco acreditar que os seres pensam o que dizer/escrever, pois não somos senhores de nós mesmos: a linguagem e o inconsciente nos dominam. Para o autor, o eu nasce em referência ao tu, numa relação em que o outro lhe manifesta ordens, demandas, desejos. Nesse sentido, nossos desejos se relacionam com o desejo do Outro e o inconsciente, portanto, apresenta-se como escrita. Uma escrita cifrada. Como pontua Radaelli (2007RADAELLI, J. O sujeito e a ficção da escrita: uma articulação entre psicanálise, literatura e educação. 2007, 191 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007., p. 170), o inconsciente, para Freud, “é constituído por traços - que ele chamou de traços mnêmicos - armazenados, formando um texto ou uma escrita que se torna o tecido do inconsciente. Dessa forma, torna-se possível observar como inconsciente e escrita podem se encontrar e se enlaçar”. Segundo a autora, na perspectiva freudiana o traço é apresentado “como uma marca indelével deixada no aparelho psíquico por meio da experiência vivida pelo sujeito [...] se estrutura pela representação, entendida como uma trama ou um emaranhado de associações, formando uma cadeia”, o que permite-nos sinalizar que “esses traços marcam o aparelho psíquico como se fosse uma escrita” (2007, p. 170).
5 DO SOFRIMENTO AO PRAZER DE ESCREVER
Escrever envolve prazer e sofrimento, deleite e consternação. Para alguns, uma atividade que pode até ser simples; para outros, difícil ou complexa demais. Talvez incomplexo seria se escrever fosse apenas juntar letras e transformá-las em palavras e frases, mas marcar o papel, registar nele nossa assinatura, embora à primeira vista possa parecer uma atividade simples, se constitui uma tarefa laboriosa que exige investimento libidinal, coragem, e implica grande responsabilidade, pois escrever é se posicionar, imprimir sentimentos, lidar com forças internas.
Escrever é um movimentar carregado de instabilidades, riscos, incertezas, rejeição e aceitação; é um vai e vem que faz, desfaz e refaz palavras, ideias, imagens, atos. Nessa tentativa de construção, que mescla prazer e sofrimento, o escritor é atravessado pela impossibilidade de tudo dizer e em tudo ser compreendido pelo outro. Entretanto, parece-nos que essa dimensão estruturalmente faltante pode, ao mesmo tempo que angustia, desafogar, trazer apaziguamento; ou seja, pode tanto levar o sujeito a temer a página em branco ou se angustiar com sua “escrita faltosa” quanto mobilizá-lo no sentido de haver-se com sua incompletude, para “fazer as pazes” com ela e “aceitar” sua escrita de hiatos, vazios, faltas. Assim, talvez a “relação gulosa” do sujeito com as palavras ou sua falta de apetite para escrever encontrem na dimensão da impossibilidade de tudo dizer e no desejo de saber do sujeito inconsciente elementos que sustentem sua manifestação face à experiência singular de escrita.
Como assinalam Oz e Hadad (2019OZ, A.; HADAD, S. Do que é feita a maçã: seis conversas sobre amor, culpa e outros prazeres. Trad. de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.), é difícil escrever sem excessos - mesmo em textos sinópticos - e o desejo de (tudo) dizer pode contaminar a escrita com gorduras supérfluas. Assim, pensamos que o desejo de tudo dizer por meio da escrita pode inconscientemente representar para o sujeito que escreve uma maneira peculiar de se encontrar com a completude impossível da linguagem e do desejo.
O ato de escrever exige concessões, reedições; e apagar as próprias ideias pode doer, incitar sentimentos de luto. Dunker (2020DUNKER, C. Paixão da ignorância: a escuta entre psicanálise e educação. São Paulo: Contracorrente, 2020., p. 317) ressalta que “as reduções e emagrecimentos serão sentidos como perdas melancólicas”, às quais o sujeito tende a resistir com fervor no processo de escrita, mas que podem ser necessárias para que seu texto não fique lento, perca agilidade e morra “como um elefante preso na areia movediça, perecendo miseravelmente de hemorragia libidinal”. Assim, sugere o autor que o escritor “seja psicanalista de seu próprio texto”, ou seja, que “escute-o, reconheça insistências, sintomas, inibições, mensagens que retornam invertidas desde o Outro” e que, principalmente, sustente os significantes introduzidos (2020, p. 311, grifos do autor).
Graciliano Ramos, escritor e jornalista brasileiro, considerado um dos principais nomes da literatura nacional, em entrevista concedida em 1948 a um jornal evidencia o prazer e o sofrimento como dois polos oscilantes presentes na arte de escrever:
Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer (Ramos, 1948 apudLevino, 2014LEVINO, Z. Graciliano Ramos: “a arma do escritor é o lápis”. Jornal A Verdade, 2014. Disponível em: http://averdade.org.br/2014/02/graciliano-ramos-arma-escritor-e-o-lapis/. Acesso em: 15 maio 2022.
http://averdade.org.br/2014/02/gracilian... , online).
Escrever é, pois, um trabalho que, assim como o ofício das lavadeiras, demanda implicação, dedicação, constância, persistência. Exige reflexão, criatividade e também delicadeza. De maneira análoga ao lavar roupas sujas na beira do rio, escrever pode não ser fácil, como também pode não ser difícil. Cada um(a) lida com as palavras de um jeito, produz num ritmo próprio. Ainda que suponhamos ser um trabalho simples, escrever é uma atividade intelectualmente laboriosa, pois o escritor precisa fazer com seu texto o mesmo que faz a lavadeira com a roupa suja à beira do rio. Se higienizar a roupa requer molhar, ensaboar, molhar novamente e torcer repetidas vezes, para molhar de novo, ensaboar, torcer, surrar na laje, enxugar até não pingar do pano uma só gota, como reflete Graciliano Ramos, escrever também é um exercício de repetições: escrevemos, lemos, apagamos, escrevemos novamente e relemos várias vezes para reestruturar as ideias que quase sempre parecem carecer de reedições e novas lavagens para limpar os excessos ou preencher exiguidades. Para Dunker (2020DUNKER, C. Paixão da ignorância: a escuta entre psicanálise e educação. São Paulo: Contracorrente, 2020.):
[...] o principal vilão desta história é o texto ele mesmo. Achar as palavras. E dentro do texto o pior inimigo não é a ignorância, mas uma coisa louca que começa a crescer nos nossos ombros, como um daimon socrático, só que do mal, sussurrando baixinho (no começo) e depois berrando folgado e sem peias, impropérios indecentes sobre a qualidade, relevância e sentido do que estamos fazendo. A voz do supereu e seu comparsa incitador, o Ideal do eu, é a voz da deslealdade e a fonte e origem, da angústia [da escrita] (Dunker, 2020DUNKER, C. Paixão da ignorância: a escuta entre psicanálise e educação. São Paulo: Contracorrente, 2020., p. 295-296).
De acordo com Bento (2004BENTO, C. A. A escrita e o sujeito: uma leitura à luz de Lacan. Psicologia USP, v. 15, 1/2, 2004, p. 195-214. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-65642004000100020. Acesso em: 10 maio 2022.
https://doi.org/10.1590/S0103-6564200400...
, p. 211), “no ato reiterado de escrever, na repetição não há a unicidade, mas há certamente um gozo, um prazer fascinante e difícil de discernir. Assim, a escrita repete a repetição como forma de busca incessante, sinaliza o gozo perdido, mas ansiado”. Nas palavras da autora, “não há, exceto como quimera, a possibilidade de uma suposta totalidade por meio da escrita”, pois “ela indica uma opacidade, um outro que deixa inviável a completude”; porém, “como opacidade, resistência a um desejo de unicidade, ela nos conclama à repetição [...] nos atrai de formas diversas. Atrai-nos a escrever textos ficcionais, atrai-nos a escrever sobre nós, como se as outras escritas não o fizessem” (2004, p. 210-211).
Assim, atravessado pela dimensão do gozo, mesmo após a decisão do autor pelo ponto final, a escrita pede para ser reescrita, conclama à repetição. Retomando Graciliano Ramos, a lavadeira sabe que, após seu árduo trabalho, mesmo depois de pendurar ao sol a roupa limpa para secar, eventualmente o processo de lavagem precise se repetir, pois uma sujeira foi percebida, talvez em decorrência de um descuido, do produto que usou, de um animal que se aproximou ou da própria água do rio. Com aquele que escreve algo parecido habitualmente pode acontecer: “pequenas sujeiras” invocam ao processo de reescrita do texto, pois a escrita não tem ponto final. Ela é reticência...
6 O ESCRITOR/LEITOR E O (SEU) TEXTO SEM PONTO FINAL
Para Lacan (1986LACAN, J. Seminário 1: os escritos técnicos de Freud. Trad. de Betty Milan. Rio de Janeiro: Zahar, 1986., p. 275), “atrás do que diz um discurso, há o que ele quer dizer e, atrás do que quer dizer, há ainda um outro querer-dizer, e nada será nunca esgotado”. Isto é, toda palavra tem sempre um mais-além, um dizer não todo para o sujeito do desejo submetido ao campo da linguagem e à linguagem do inconsciente. Tomando a clínica como exemplo, sugere que “o último sentido da palavra do sujeito diante do analista é sua relação existencial diante do objeto do seu desejo” (1986, p. 276).
Conforme Giovannetti (2011GIOVANNETTI, M. Considerações sobre a escrita psicanalítica. Ide, São Paulo, v. 34, n. 53, 2011, p. 243-248. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062011000200021. Acesso em: 25 maio 2022.
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
, p. 247), “a escrita psicanalítica, para merecer esse nome, deverá atestar em sua própria tessitura que seu produtor está cônscio de que ninguém, em tempo ou lugar algum, terá a última palavra sobre a Psicanálise” ou sobre qualquer objeto. Sendo toda escrita marcada por concessões, segundo Oz e Hadad (2019OZ, A.; HADAD, S. Do que é feita a maçã: seis conversas sobre amor, culpa e outros prazeres. Trad. de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.) um texto possui pelos menos três textos: o texto que o leitor lê, o texto que o autor escreve - que precisa ser diferente do texto lido pelo outro - e o texto que o autor escreveria se tivesse “força o suficiente”.
Como dito anteriormente, essa ideia de incompletude do dizer, ou seja, de escrita não toda, atravessa a vasta obra freudiana, que se situa “num constante refazer” e aponta sempre para o inacabado, para uma escrita viva que não cessa de se escrever (Lacan, 1985LACAN, J. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Trad. de M. D. Magno. Rio de janeiro: Zahar, 1985.). No percurso de formulação e desenvolvimento de suas teorias sobre a psique humana, Freud retomava ideias anteriores, revendo-as quando necessário ou reatualizando-as. A Interpretação dos Sonhos, por exemplo, sofrera modificações em suas sucessivas edições, “em geral no sentido de ‘atualizações’, mas também com supressões, troca de trechos no corpo da obra por nota de rodapé e vice-versa, e finalmente a extensa bibliografia, que acabou ficando a cargo de um de seus discípulos, a partir da quarta edição”, como afirma Andrade (2005ANDRADE, M. C. Para que serve a escrita? Freud escreve(-se). Aletria: Revista de Estudos de Literatura, v. 12, 2005, p. 31-41. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/aletria/article/view/17995. Acesso: 20 maio 2022.
https://periodicos.ufmg.br/index.php/ale...
, p. 39). Noutras palavras, podemos afirmar que a escrita de Freud é movida por essa dimensão da escrita como reticência: “Freud deseja e trabalha intensamente; sonha, interpreta-se e escreve [...]. Abandona, retoma, escreve, reescreve. Sonha e escreve: analisa-se e escreve” (2005, p. 39). Radaelli (2007RADAELLI, J. O sujeito e a ficção da escrita: uma articulação entre psicanálise, literatura e educação. 2007, 191 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007., p. 173) observa:
O texto [...] vai adquirindo múltiplos sentidos aos olhos do leitor e conteúdos são adicionados ou retirados, conforme a relação que esse texto vai tendo com o texto inconsciente de cada um. O leitor vai conversando com o texto e escrevendo com sua leitura um novo texto, por isso, a cada releitura de um texto, pode-se sempre extrair dali algo de novo, fazer novas articulações com elementos que sempre estiveram ali, mas que se poderia jurar que foram introduzidos posteriormente. Quando um texto se transforma em escritura pela emergência do inconsciente, há sempre uma indicação de brecha, de falta no encadeamento lógico. E essa é a condição para que o leitor se implique a partir daquilo que falta ao texto: esse, ao dizer algo surpreendente, mobiliza o inconsciente e se transforma numa escritura que ensina pelo efeito inconsciente que se produz.
Neste sentido, acrescenta-se:
[...] existem diferenças de escrita: diferenças entre uma escrita mais automática, na qual o escritor coloca no papel palavras que vão surgindo em sua cabeça, como se fosse uma associação livre; e uma escrita na qual, o escritor trabalha e retrabalha o texto, corrige, insere e apaga fragmentos do escrito, em uma tentativa de esconder a “matéria bruta” (Radaelli, 2007RADAELLI, J. O sujeito e a ficção da escrita: uma articulação entre psicanálise, literatura e educação. 2007, 191 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007., p. 179).
Destarte, o trabalho de escrita, para a autora, “torna-se um conjunto de enunciados, excluindo aí a sua enunciação, diferentemente do que ocorre na fala, na qual, a palavra, depois de pronunciada, não pode mais ser apagada, ou seja, apenas se pode desdizê-la”; entretanto, “por mais trabalhado que um texto possa ser, ele não perde sua condição de outro sobre o qual o autor sofre o efeito de estranhamento” (2007, p. 179), haja vista que os significantes depositados no papel, para além do registro consciente, obedecem a um Outro (discurso), o inconsciente, que faz o sujeito escrever sobre o não-sabido e até mesmo estranhar quando lê aquilo que escreveu.
7 ESCRITA (DE SI) E FANTASIA: QUANDO ESCREVER TRADUZ A EXPERIÊNCIA DE ELABORAÇÃO
É por meio da palavra e da linguagem que o homem “cria mundos” e traduz, a seu modo, o mundo em que vive, endereçando para si e para os outros seu olhar sobre a vida e as coisas que o cercam: pela via da palavra e da linguagem, ele nomeia e (re)cria coisas, fantasia e transforma imagens sensoriais, sentimentos e mal-estares da alma humana em figuras de linguagem, em dizeres poéticos e artísticos, dentre outros (Pontalis; Mango, 2012PONTALIS, J-B.; MANGO, E. Freud com os escritores. Trad. de Andre Telles. São Paulo: Três Estrelas, 2012.). Para Calvino (2015CALVINO, I. Mundo escrito e mundo não escrito. Trad. de Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.) e Willemart (1995WILLEMART, P. Além da psicanálise: a literatura e as artes. São Paulo: Nova Alexandria, 1995.), ao “brincar” com as palavras, o homem, que tem seu cotidiano atravessado por um mosaico de linguagens, interage com suas fantasias e compartilha com o outro (analista, professor, pai, mãe, aluno, etc.) seus anseios, angústias, desejos. Dito de outro modo, nessas tentativas de dichtung (criação literária), o dichter (poeta, narrador, escritor, pintor) se diz; ou seja, algo de si, da verdade do inconsciente, lhe escapa e penetra sua produção.
Inspirados em Freud, Pontalis e Mango (2012PONTALIS, J-B.; MANGO, E. Freud com os escritores. Trad. de Andre Telles. São Paulo: Três Estrelas, 2012.) sinalizam que a criação de uma obra, seja ela literária ou de outra natureza, parece sempre manter relação íntima com as “fantasias do desejo” de seu autor e que através da Dichtung pode-se ter acesso privilegiado à verdade psíquica do sujeito. Nas palavras de Calvino (2015CALVINO, I. Mundo escrito e mundo não escrito. Trad. de Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 108), “o uso de uma linguagem [pode] fazer frente ao silêncio do mundo”; esse mundo que, segundo ele, “é feito de palavras usadas segundo as técnicas e as estratégias próprias da linguagem”, as quais cada autor utiliza a seu modo, imprimindo sua marca.
Segundo Freud (2018FREUD, S. O poeta e o fantasiar. In: IANNINI, G. Arte, literatura e os artistas: obras incompletas de Sigmund Freud. Trad. de Ernani Chaves. Belo Horizonte: Autêntica, 2018 [1908]. p. 53-68.), todos nós, crianças e adultos, fantasiamos; assim como o poeta, criamos um “mundo próprio”. Para lidar com a pesada carga imposta pelo real, que é a vida, o adulto cria um mundo de fantasias (mundo esse que ele leva muito a sério): “as forças motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, e toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfeita” (Freud, 2018, p. 216). Partindo do pressuposto de que o adulto dificilmente abdica de um prazer, mas o troca por outra coisa (ao invés de brincar, por exemplo, como fazia na infância, o adulto fantasia, ou seja, devaneia), o autor interroga: podemos considerar válido comparar o poeta ao “sonhador em plena luz do dia” e suas criações com os devaneios?
Afinal, como o mundo se apresenta a nossos olhos de escritores? Sob a ótica desses questionamentos, outros nos parecem oportunos: se o fantasiar que dá prazer ao homem na vida adulta e o ajuda a suportar o “peso do real do mundo” pode ser uma substituição/continuação do seu brincar infantil, seria coerente dizer que a obra literária (Dichtung), comparada aos devaneios, poderia ser uma espécie de continuação, ou de um substituto, do que foi o “jogo infantil” para esse criador literário (Dichter)? E em relação à escrita de si, o que d’Isso a atravessa?
Ora, toda escrita é atravessada pela dimensão da fantasia e constitui uma experiência de elaboração que é única para cada sujeito. Cada autor, com seu estilo, apresenta aos olhos e sentimentos do outro (e de si mesmo) o que seus próprios olhos capturam e fantasiam. Pela linguagem, o homem (escritor, pintor, etc.) enlaça o mundo e, a seu modo, o lê, escuta, sente. Entretanto, como lembra-nos Calvino (2015CALVINO, I. Mundo escrito e mundo não escrito. Trad. de Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 114), ele jamais será capaz de dar a última palavra sobre o mundo e capturá-lo em sua totalidade: o homem pouco sabe, ainda que pense muito saber, e o impulso que o faz escrever “está ligado à falta de algo que queira conhecer e possuir, mas que nos escapa”. Ao escrever sobre o mundo não escrito, ou sobre si próprio, o homem fantasia e escreve sobre algo que não sabe, animado pelo desejo, este que se articula às fantasias.
Como efeito da posição de sujeito do desejo na linguagem, o ato de escrever demanda implicação subjetiva: o escritor “não é senhor absoluto de sua escritura”, ele “está em constante batalha com a linguagem” e em conflito consigo mesmo, com as manifestações do inconsciente, que lhe escapa, mas que está presente o tempo todo (Willemart, 2014WILLEMART, P. O tempo lógico e as rodas da escritura e da leitura. São Paulo: Fapesp, 2014., p. 60-61). Como sugere Lazzarini (2011LAZZARINI, E. R. Borges, a escrita criativa e o estatuto do leitor em psicanálise. Polifonia, Cuiabá, v. 18, n. 24, 2011, p. 43-52. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/polifonia/article/view/36. Acesso em: 10 maio 2022.
https://periodicoscientificos.ufmt.br/oj...
, p. 50), a escrita de um texto “só se realiza graças a um incansável trabalho de elaboração ou perlaboração e de uma eterna volta sobre os vestígios do objeto perdido. O reencontro com o objeto primário faz-se a partir das marcas - inscritas na psique - de suas relações originárias”.
Assim, em se tratando da escrita de si, escrever ganha contornos sui generis, pois trata-se de uma escrita implicada que conduz o sujeito pelos labirintos do Eu, convocando-o a “se mostrar”, desvelar-se pelo avesso, acessar memórias, (des)afetos, marcas subjetivas, enfim, os vestígios do objeto perdido do desejo.
Nesta direção e para além, Carvalho (2017CARVALHO, A. C. Escrita: remédio ou veneno? In: RIVERA, T.; SOUZA, E.; CELES, L. (org.). Coleção ensaios brasileiros contemporâneos: psicanálise. Rio de Janeiro: Funarte, 2017. p. 321-335., p. 329) questiona quais seriam os limites da escrita como sublimação: “toda escrita fracassa, assim como toda escrita é bem sucedida”. Ao falar sobre escrita e fantasia, escrita literária, escrita criativa e escrita científica, reflete sobre o poder da palavra, falada ou escrita: ela pode nos excluir, seduzir, esvaziar, preencher, acalentar, instilar segurança, alegria, atiçar o desejo, a dúvida, a curiosidade de saber. Enfim, pensamos ser possível esse encontro entre o autor/leitor e as (suas) narrativas, como expomos a seguir, a partir de um dispositivo singular de escrita de si: a Memória Educativa.
8 MEMÓRIA EDUCATIVA: IMPLICAÇÕES NA FORMAÇÃO E CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA DO EU PROFESSOR
A escrita de si produz subjetividades. Afinal, quem sou eu (como me vejo) quando “me escrevo” e “me leio”? Nas palavras de Lazzarini (2011LAZZARINI, E. R. Borges, a escrita criativa e o estatuto do leitor em psicanálise. Polifonia, Cuiabá, v. 18, n. 24, 2011, p. 43-52. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/polifonia/article/view/36. Acesso em: 10 maio 2022.
https://periodicoscientificos.ufmt.br/oj...
, p. 50):
Acreditamos que a escrita no papel é efeito de um discurso, de uma fala criativa onde o que se diz, ou melhor, o que se escreve, ganha significação num momento posterior. A letra lançada no papel, se retomada, lida e relida desde uma outra posição, de uma exterioridade, instaura as possibilidades para a constituição de uma lacuna, o aparecimento de uma entrelinha, em cujo intervalo, cavado pela separação, o sujeito emerge.
Ao falar da relação entre literatura e psicanálise, destacando que os próprios textos clínicos de Freud muitas vezes se aproximavam da escrita do tipo ficcional e de um gênero bastante específico, o conto, Lazzarini (2011LAZZARINI, E. R. Borges, a escrita criativa e o estatuto do leitor em psicanálise. Polifonia, Cuiabá, v. 18, n. 24, 2011, p. 43-52. Disponível em: https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/polifonia/article/view/36. Acesso em: 10 maio 2022.
https://periodicoscientificos.ufmt.br/oj...
, p. 45) sugere-nos que as produções literárias, se consideradas “como uma fala do desejo, pode[m] manifestar uma mensagem com valor de verdade, mas que tem, contudo, uma estrutura de ficção”, haja vista que “sua especificidade é a escrita, mas não uma escrita qualquer, e sim uma escrita única, com a marca de quem a produziu, pois o que ficou escrito vai além das intenções do autor, porque há o inconsciente, ou melhor, o saber produzido pelo inconsciente”. Para Squarizi, Almeida e Bittencourt (2020, p. 214), “tanto na escuta do sujeito quanto nas histórias em forma de narrativas escritas, ocorre uma enunciação mínima, o sujeito inconsciente comparece”.
Numa perspectiva foucaultiana, Larrosa (1994LARROSA, J. Tecnologias do eu e a educação. In: SILVA, T. T. (Org.) O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 35-86., p. 47) sublinha que através das construções narrativas os sujeitos produzem verdades sobre si:
[...] o que somos ou, melhor ainda, o sentido de quem somos, depende das histórias que contamos e das que contamos a nós mesmos. Em particular, das construções narrativas nas quais cada um de nós é, ao mesmo tempo, o autor, o narrador e o personagem principal. Por outro lado, essas histórias estão construídas em relação às histórias que escutamos, que lemos e que, de alguma maneira, nos dizem respeito na medida em que estamos compelidos a produzir nossa história em relação a elas. Por último, essas histórias pessoais que nos constituem estão produzidas e mediadas no interior de práticas sociais mais ou menos institucionalizadas.
Neste sentido, pensamos que o mesmo ocorre nas narrativas escritas de professores (memória educativa, autobiografia, histórias de vida, memorial acadêmico, dentre outras), “reconhecidas como produtoras de sentidos e significados para o desenvolvimento e constituição subjetiva docente com possíveis implicações na experiência educativa” (Squarizi; Almeida; Bittencourt, 2020, p. 206). Ao narrar, o sujeito coloca-se subjetivamente. Neste sentido, a escuta do professor por meio dessas narrativas escritas contém sentido de inscrição: ao escrever sobre si, suas experiências, história de vida e de formação escolar/extraescolar, “o sujeito vai se inscrevendo na ordem discursiva na medida em que procura dar conta de uma história que lhe é anterior, ‘constituindo-se’ subjetivamente e recuperando as relações originárias” (2020, p. 207).
Almeida (2012ALMEIDA, I. M. A memória educativa na formação do educador: da metáfora freudiana à leitura psicanalítica. In: ALMEIDA, I. M. (Org.). O lugar da memória educativa na formação de professores: uma leitura psicanalítica. Curitiba: CRV, 2012. p. 9-19., p. 11), que trabalha com a escrita da Memória Educativa como dispositivo de pesquisa e de mediação pedagógica em experiências formativas com professores, pontua que “essa escrita se constitui como uma rede de significantes e produz uma narrativa não apenas inteligível para o Outro a quem endereça quanto para si mesmo”. Deste modo, como ressalta Santos (2023SANTOS, S. M. Impasses no aprender e ensinar Ciências Exatas: o saber e a profissão professor(a) entre o desejo e a renúncia - uma leitura pela Psicanálise-Educação. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de Brasília, Brasília, 2023.), ao colocar o sujeito em posição de palavra o dispositivo da Memória Educativa constitui-se em espaço biográfico e de reflexão, que possibilita ao sujeito professor(a) inscrever-se como pessoa, “escutar-se” e “ler-se”: configura-se, assim, como uma “escrita-leitura de si” que permite ao sujeito professor(a) se (re)posicionar subjetivamente na medida em que historiciza suas experiências escolares ou extraescolares e ressignifica a própria história.
Neste sentido:
O dispositivo da memória educativa sugere que o pesquisador permita ao sujeito pesquisado retornar ao passado. Nesse processo, lembranças referentes ao cenário pedagógico são reavivadas, de modo que seja permitido um re-olhar sobre sua trajetória discente e/ou docente. Assim, momentos, pessoas, experiências, situações são resgatadas na memória. Esse movimento de retorno, possibilita ao sujeito sistematizar criticamente suas representações e seus sentimentos, a partir de sua experiência como aluno, em relações educativas pessoais e/ou profissionais como docente (Bittencourt et al., 2021BITTENCOURT, C. P.; ALMEIDA, I. M.; PATO, C. M.; SQUARISI, K. M. Memória Educativa como dispositivo de pesquisa: tecendo laços na Universidade. Revista Educação, Santa Maria, v. 46, p. 2-24, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/reveducacao/article/view/40682. Acesso em: 4 dez. 2023.
https://periodicos.ufsm.br/reveducacao/a... , p. 8-9).
Como sublinham Squarizi, Almeida e Bittencourt (2020, p. 210), “quando se propõe compreender e pensar a formação do professor a partir do uso de dispositivos narrativos, admitimos que o professor traz nos escritos marcas de linguagem que produzem efeitos de sentidos como um furo”. Desse modo, para as autoras, “os dispositivos narrativos contribuem para que o professor, ao narrar, escrever e discorrer sobre sua história repense a trajetória profissional docente e pessoal”, ou, ainda, “reconfigure a posição identitária enquanto sujeito singular e social diante dos fatos históricos que permeiam sua carreira inicial, continuada ou em conclusão, que circunda o seu próprio Eu” (2020, p. 213). Ou seja, as narrativas de professores proporcionam um olhar subjetivo sobre a própria caminhada: “trazem experiências pessoais e profissionais guardadas como marcas na memória e na própria história para trazer ao real situações simbólicas que se manifestam em traços que os fazem recordar o passado e constituir a trajetória pessoal, profissional e social” (2020, p. 215-216).
Face ao exposto, a Memória Educativa enquanto “escrita-leitura de si” possibilita fazer descobertas sobre si mesmo, encontrar o estranho-familiar que nos habita, haver-se com ele. Como afirma Lajonquière (1999LAJONQUIÈRE, L. Infância e ilusão (psico)pedagógica: escritos de psicanálise e educação. Petrópolis: Vozes, 1999.), o sujeito necessita conhecer o passado para não morrer subjetivamente. Desse modo, as narrativas escritas, entendidas como espaços de reconstrução das experiências subjetivas, possibilitam um elo entre o passado e o presente do ser professor(a): podem produzir efeitos sobre o sujeito que escreve, com possíveis implicações na práxis educativa.
9 PARA (IN)CONCLUIR A ESCRITA
Após releituras, percebemos que, ao escrever sobre o escrever à luz da psicanálise, repetiu-se ao longo da tessitura deste texto a noção de escrita como um dizer que nunca atinge a finalização. Retomamos Calvino (2015CALVINO, I. Mundo escrito e mundo não escrito. Trad. de Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 131: “[escrevo] porque estou insatisfeito com o que já escrevi e gostaria de corrigi-lo de alguma maneira, de completá-lo, propor uma alternativa” e, neste sentido, “não houve uma ‘primeira vez’ em que me pus a escrever”, pois “escrever sempre foi tentar apagar alguma coisa já escrita e pôr no lugar dela algo que ainda não sei se vou conseguir escrever”. Oz e Hadad (2019OZ, A.; HADAD, S. Do que é feita a maçã: seis conversas sobre amor, culpa e outros prazeres. Trad. de Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.) sugerem que terminar uma escrita, independentemente de sua natureza, e despedir-se dela é uma decisão criativa muito difícil, pois o sujeito que escreve sabe da impossibilidade de aprimorá-la até o infinito. Por isso, goza, num processo de repetição - como evidencia a própria escrita deste texto para seus autores.
Assim, parece-nos que escrevemos porque “algo” nos convoca, provoca; e essa inquietação - cuja gênese pode estar associada a diferentes questões que uma análise talvez possa ajudar a clarear - se faz presente na escrita, conduzindo o processo de elaboração de nossas memórias autobiográficas e educativas, dos artigos e livros que produzimos, das pesquisas acadêmicas que realizamos, das mensagens de amor ou desamor que ao outro endereçamos. Para além, parece-nos que escrevemos porque o mundo e “seus por quês” nos colocam perante “certezas sempre provisórias”; porque, diante da falta-a-ser, necessitamos encontrar a nós mesmos (um encontro impossível, mas que a possível dimensão elaborativa que permeia a escrita parece proporcionar); porque a criança que nos habita - como sugere a psicanálise - convoca-nos para “fazer as pazes” com ela, como se ao levarmos nós mesmos nos textos estivéssemos numa espécie de “acerto de contas” com o passado e com as “marcas” que nos constituem. Noutras palavras, “somos a escrita dos traçados dos outros que passaram por nós”, como disse-nos um colega certa vez em aula da disciplina Tópicos Especiais em Psicanálise: a escrita do psicanalista, e então pensamos que de alguma forma - latente ou manifesta - esses traçados do outro e grande Outro comparecem na escrita de nossos textos.
Para (não) finalizar, que o desejo seja relançado e outros textos sejam escritos a partir das provocações que incitaram essa escrita: afinal, por que/para que escrevemos? O que impulsiona nossas mãos quando escrevemos? Marcamos o papel a partir de marcas inscritas em nosso inconsciente? Quais os possíveis efeitos da escrita sobre o sujeito que escreve? Para que serve a escrita de si? Que outras reflexões e questões possam emergir...
REFERÊNCIAS
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Fev 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
02 Jun 2022 -
Aceito
18 Dez 2023