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O PROCESSO DE RETEXTUALIZAÇÃO A PARTIR DO GÊNERO TEXTUAL FÁBULA: UMA PESQUISA PARTICIPATIVA COM ALUNOS DO 3º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL

THE RETEXTUALIZATION PROCESS FROM THE FABLE GENRE: A PARTICIPATIVE RESEARCH WITH 3RD GRADERS IN ELEMENTARY SCHOOL

LE PROCÈS DE RETEXTUALISATION À PARTIR DU GENRE TEXTUEL FABLE: UNE RECHERCHE PARTICIPATIVE AVEC DES ÉLÈVES DE LA 3ÈME ANNÉE DE L’ENSEIGNEMENT FONDAMENTAL

EL PROCESO DE RETEXTUALIZACIÓN A PARTIR DEL GÉNERO TEXTUAL FÁBULA: UNA INVESTIGACIÓN PARTICIPATIVA CON ALUMNOS DEL 3ER AÑO DE ENSEÑANZA FUNDAMENTAL

Resumo

Esse artigo apresenta os resultados de uma pesquisa em ensino de Língua Portuguesa, realizada com uma 3ª série do ensino fundamental de uma escola municipal em Minas Gerais. Baseada no referencial teórico sobre coesão e coerência, oralidade e escrita, focaliza os processos de retextualização, inscrevendo-se na Lingüística Textual. Desenvolveu-se uma seqüência didática com a fábula “A cigarra e as formigas”, de Esopo, como norteadora das atividades pedagógicas. Metodologicamente, trata-se de uma pesquisa participativa, de caráter qualitativo, em que o professor investiga sua própria prática, a partir de um corpus de narrativas orais escritas pelos alunos. Na análise de dados, detectaram-se várias dificuldades dos alunos no processo de retextualização, por desconhecimento de elementos pertinentes à modalidade escrita. Por isso, utilizam-se de recursos da fala, que lhes são mais familiares. O problema de retextualização mais recorrente no corpus diz respeito ao uso da pontuação. A seqüência didática desenvolvida mostrou-se eficaz e produtiva, pois contribuiu para o desenvolvimento da escrita dos alunos.

Palavras-chave:
gênero textual; ensino; Língua Portuguesa; retextualização; fábula

Abstract

This paper presents research results on Portuguese teaching with 3rd graders at a public school in Minas Gerais, Brazil. Based on the theoretical framework of cohesion and coherence, oral and written discourse, it focuses on the retextualization processes from the theoretical perspective of Text Linguistics. A didactic sequence was developed upon the tale “The locust and the ant”, from Esopo, which directed the pedagogical activities. The principle of qualitative actionresearch guided our research methodology, through which the teacher investigates his own practice, based on a corpus of written oral narratives produced by the students. Data analysis evidenced some difficulties in the retextualization process, mainly by virtue of the students’ lack of knowledge of the proper devices for the written mode. Due to this lack of knowledge they used oral resources familiar to them. The most recurrent retextualization problem was the punctuation marks. The didactic sequence proved to be efficient and productive as it contributed to the development of the students’ writing skills.

Keywords:
genre; teaching; Portuguese Language; retextualization; tale

Résumé

Cet article présente les résultats d’une recherche dans l’enseignement de la Langue Portugaise, réalisée avec des élèves d’une troisième année de l’enseignement fondamental d’une école communale de Minas Gerais. Fondée dans le référentiel théorique sur la cohésion et la cohérence, l’oralité et l’écriture, elle focalise les procès de retextualisation, tout en s’inscrivant dans la Linguistque Textuelle. On a développé une séquence didactique avec la fable “La cigale et les Fourmis”, d’Ésope, qui guide les activités pédagogiques. Méthodologiquement, il s’agit d’une recherche participative, ayant un caractère qualitatif, à travers lequel l’enseignant recherche attentivement sa propre pratique, à partir d’un corpus de récits oraux/écrits faits par des élèves. Dans l’analyse des données, on a signalé plusieurs difficultés des élèves dans le procès de retextualisation, à cause de leur méconnaissance d’éléments appartenants à la modalité écrite. Ainsi, on a utilisé des outils de la parole, qui sont plus familiers pour eux. Le problème de la retextualisation le plus récurrent dans le corpus concerne l’usage de la ponctuation. La séquence didactique développée s’est démontrée efficace et productrice, puisqu’elle a contribué au développement de l’écriture des élèves.

Mots-clés:
genre textuel; enseignement; Langue Portugaise; retextualisation; fable

Resumen

El artículo presenta los resultados de una investigación en enseñanza de Lengua Portuguesa, llevada a cabo con alumnos de 3er año de educación básica de una escuela pública de Minas Gerais, Brasil. Fundada en el marco teórico acerca de la cohesión y coherencia, discurso oral y escrito, enfoca los procesos de retextualización, asentándolos en la Lingüística Textual. Se ha desarrollado una secuencia didáctica con la fábula “La cigarra y las hormigas”, de Esopo, como marco orientador de las actividades pedagógicas. Metodológicamente, se trata de una investigación participativa, de carácter cualitativo, por la cual el profesor investiga su propia práctica, partiendo de un corpus de narraciones orales, convertidas en textos escritos por los alumnos. En el proceso de retextualización, se han detectado varias dificultades de los alumnos, por su desconocimiento de elementos pertinentes a la modalidad escrita. Por esa razón, utilizan recursos propios de la conversación, los cuales les resultan familiares. El problema de retextualización más recurrente en el corpus concierne a la utilización de los signos de puntuación. La secuencia didáctica desarrollada se revela eficaz y productiva en el desarrollo de la modalidad escrita de los alumnos.

Palabras-clave:
género textual; enseñanza; Lengua Portuguesa; retextualización; fábula

1 INTRODUÇÃO

Os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN’s - propõem que o ensino da Língua Portuguesa hoje esteja pautado na noção de gêneros textuais. Com isso, objetivase uma mudança de paradigma do ensino da Língua Portuguesa, que antes se fundamentava na gramática normativa (BRASIL, 1998). Diversos autores, como Bakhtin (2000BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. Trad. de Maria Ermantina Galvão; rev. da tradução Maria Appenzeller. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.), Dolz e Schneuwly (2004DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros e progressão em expressão oral e escrita - elementos para reflexões sobre uma experiência suíça (francófana). In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. São Paulo: Mercado das Letras, 2004. p. 41-70.), Marcuschi (2001MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.), Val (2001VAL, Maria das Graças Costa. O desenvolvimento do conhecimento lingüístico-discursivo: o que se aprende quando se aprende a escrever? Veredas, v. 5, n. 1. 2001.), ressaltam a importância e pertinência dos gêneros textuais para o aprendizado da língua materna.

Este estudo, em consonância com essa literatura, fundamenta-se na concepção enunciativa de língua proposta por Bakhtin (2000BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. Trad. de Maria Ermantina Galvão; rev. da tradução Maria Appenzeller. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000.), a qual pressupõe linguagem como ação social. Sob essa ótica, a língua é pensada como discurso, enunciação. Como ressalta o próprio Bakthin (2000, p. 282), “o nosso pensamento se origina e se forma no processo de interação e luta com pensamentos alheios, o qual não pode deixar de refletir-se na forma da expressão verbal do nosso”. Os PCN’s, que também incorporam essa visão de linguagem, apresentam dois enfoques para o ensino da Língua Portuguesa: um que diz respeito ao uso, por meio de práticas de leitura e de produção de textos orais e escritos, e outro que visa à reflexão sobre a Língua Portuguesa.

Certamente a adoção da abordagem de Bakhtin nos PCN’s e a indicação de alguns gêneros para a prática de leitura e produção textos orais e escritos abrem perspectivas para o tratamento da linguagem como ação social, na medida em que evidenciam a necessidade de se desenvolverem com os alunos práticas sociointeracionais mediadas pela linguagem (seja oral seja escrita), que vão instrumentalizá-los para os usos efetivos de linguagem no seu meio social.

Sendo assim, a escola deveria conduzir os alunos ao aprendizado de práticas sociais de leitura e de escrita comuns no seu dia-a-dia, ou seja, de diversos gêneros textuais existentes na sociedade, para que eles não só aprendam, mas também sintam o prazer de ler e escrever e, de forma reflexiva e participativa, possam exercer plenamente a sua cidadania. É, neste sentido, que, neste artigo, pretende-se mostrar resultados de uma pesquisa sobre o processo de retextualização do gênero textual fábula, realizada com alunos da 3ª série do Ensino Fundamental.

A escolha desse gênero textual deveu-se ao fato de que, no agrupamento do narrar, esse é um dos gêneros adequados para construção de uma progressão curricular nas primeiras séries do Ensino Fundamental. Isso ocorre porque o contar faz parte do mundo das crianças dessa faixa etária, ainda muito atraídas pelo fantástico, pelos contos de fada, pelas narrativas infantis de um modo geral. As fábulas apresentam um narrador onisciente, que esclarece fatos e relações, assim como em outras narrativas infantis, e também disponibiliza uma moral da história que traz um ensinamento com caráter educativo para as crianças (ROJO, 2000ROJO, Roxane Helena Rodrigues (Org.). A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCN’s. São Paulo: EDUC; Campinas: Mercado das Letras, 2000.).

Segundo Cardoso (2000CARDOSO, Cancionila Janzkovski. Da oralidade à escrita: a produção do texto narrativo no contexto escolar. Cuiabá: UFMG; INEP; MEC, 2000.), a criança interage com a narrativa desde o nascimento; primeiro ela escuta histórias e depois ela produz seu próprio discurso narrativo oral. Por conseguinte, a escola opta por trabalhar com narrativa nas séries iniciais do Ensino Fundamental, uma vez que pressupõe que, dentre os vários textos a serem trabalhados, este é o tipo textual que mais se aproxima da experiência da criança com a linguagem. A fantasia é parte integrante e fundamental do ser e estar delas no mundo.

Em outro viés de justificativa, destaca-se a importância de ensinar às crianças o processo da passagem do texto oral para o escrito, tarefa central do ensino de Língua Portuguesa na escola, uma vez que, nessa fase da vida, a escrita que a criança desenvolve é marcada pela fala, tornando-se, assim, necessária a intervenção do professor no processo, por meio do trabalho de retextualização, para que os alunos identifiquem as marcas de oralidade em seus textos e dêem conta de substituí-las adequadamente por elementos próprios do mundo da escrita.

2 REFERENCIAL TEÓRICO

A pesquisa reportada neste artigo foi informada basicamente por trabalhos que podem ser situados no âmbito da Lingüística Textual. Referimo-nos ao seguinte referencial teórico: a noção de coesão e coerência, o tratamento da oralidade e da escrita e os processos de retextualização. No âmbito dos gêneros textuais, tratamos da narrativa, especialmente das fábulas. Começamos pela narrativa.

2.1 O texto narrativo

Labov (1972LABOV, William. The Transformation of Experience in Narrative Syntax. In: ______. Language in the inner city. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 1972.) apresenta os componentes que governam a estrutura narrativa, a saber: resumo, o qual se constitui geralmente de uma ou duas cláusulas que fazem uma síntese de toda a história. É um recurso para despertar o interesse do ouvinte pelo discurso que se vai seguir; orientação, que tem a função de situar o leitor em relação à pessoa, lugar, tempo e situação comportamental por meio das respostas às indagações o quê? com quem? quando? onde?; ação complicadora, considerada o corpo propriamente dito da narrativa, é constituída formalmente por cláusulas ordenadas temporalmente e vai praticamente até o clímax do acontecimento, terminando quando tem início a resolução; resolução, que apresenta o desenlace dos acontecimentos; avaliação, em que se faz uma análise sobre a relevância do acontecido; e coda, que é um mecanismo funcional que faz com que a perspectiva verbal volte ao momento presente e apresenta a moral da história, o fecho. O resumo e a coda são opcionais, mas a ação complicadora, a orientação e a avaliação são partes integrantes do esquema narrativo, sendo que estas duas últimas podem perpassar toda a narrativa (RIBEIRO, LIMA e DUTRA, 2001RIBEIRO, Branca Teles; LIMA, Cristina Costa; DUTRA, Maria Tereza Lopes (Orgs.). Narrativa, identidade e clínica. Rio de Janeiro: Edição IPUB-CUCA, 2001.). É preciso dizer que é possível que uma dessas fases fique pressuposta, ou que, num texto narrativo, ocorra o encadeamento de várias seqüências.

Ressalta-se que o estabelecimento da coesão textual nas narrativas pode-se dar por meio das relações entre tempos verbais nas diversas partes do texto, ou seja, a transição temporal é extremamente importante para a evidência da relação coesão/ coerência num texto narrativo. Elas podem demarcar blocos no texto, os quais compõem as partes da narrativa, que já se explicitaram anteriormente (BASTOS, 1985BASTOS, Lúcia Kopschitz Xavier. Coesão e coerência em narrativas escolares escritas. Campinas: Ed. da Unicamp, 1985.).

Quanto às fábulas, destaca-se que os textos desse gênero textual são normalmente uma narrativa breve, de natureza simbólica, por isso de fácil assimilação por parte dos leitores. Proporcionam distração e reflexão, uma vez que apresentam um provérbio que os conclui, sendo este o maior atrativo das fábulas, além dos diálogos e do fato de seus personagens serem, geralmente, animais, cujas reações são comparadas às dos seres humanos.

2.2 Coesão e coerência

No que concerne ao nível microtextual da narrativa, faz-se relevante apresentar o conceito de coesão, a qual é explicitamente revelada através de marcas lingüísticas, índices formais na estrutura da seqüência lingüística e superficial do texto, sendo, portanto, de caráter linear, já que se manifesta na organização seqüencial do texto. É nitidamente sintática e gramatical, mas é também semântica, pois, como afirmam Halliday e Hasan (1976, apud KOCH e TRAVAGLIA, 2003______; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e coerência. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2003.), a coesão é a relação semântica entre um elemento do texto e um outro elemento crucial para sua interpretação.

As principais formas remissivas (ou referenciais) em português, segundo a classificação de Kallmeyer et. al. (1974, apud KOCH, 1991KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 1991.), são: a) formas remissivas referenciais e não-referenciais; b) formas presas e livres. Chama-se coesão referencial aquela em que um componente da superfície do texto faz remissão a outro(s) elemento(s) do universo textual. A noção do elemento referência é, neste sentido, bastante ampla, podendo ser representado por um nome, um sintagma, um fragmento de oração, uma oração ou todo um enunciado. A remissão pode ser feita para trás, constituindo uma anáfora, ou para frente, constituindo uma catáfora.

Por meio da estratégia de referenciação anafórica, pode-se reativar referentes em um texto, formando-se cadeias coesivas. Retomam-se referentes principais ou temáticos, por exemplo, protagonista e antagonista em narrativas (KOCH, 2003______; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e coerência. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2003.).

As formas não-referenciais não fornecem ao leitor/ouvinte quaisquer instruções de sentido, mas apenas instruções de conexão (por exemplo, concordância de gênero e número) e podem ser presas ou livres. As formas remissivas nãoreferenciais presas são: os artigos definidos e indefinidos; os pronomes adjetivos; os numerais cardinais e ordinais. As formas remissivas não-referenciais livres são: pronomes pessoais de 3ª pessoa; pronomes substantivos; numerais; advérbios “pronominais”; expressões adverbiais; formas verbais remissivas.

Dar-se-á maior atenção à modalidade de coesão textual denominada coesão seqüencial ou seqüenciação, tendo em vista o gênero textual a ser trabalhado. Essa forma de coesão diz respeito aos procedimentos lingüísticos por meio dos quais se estabelecem, entre segmentos do texto (enunciados, partes de enunciados, parágrafos e mesmo seqüências textuais), diversos tipos de relações semânticas e/ou pragmáticas, à medida que se faz o texto progredir.

Segundo Fávero (1991FÁVERO, Leonor Lopes. Coesão e coerência textuais. São Paulo: Ed. Ática, 1991. (Série Princípios)), os mecanismos de coesão seqüencial podem ocorrer por seqüenciação temporal e por conexão. O termo seqüenciação temporal dá-se para indicar o tempo do “mundo real”. Tal seqüenciação pode ser obtida por ordenação linear dos elementos, por meio de expressões que assinalam a ordenação ou continuação das seqüências temporais, de partículas temporais (amanhã, logo, etc.) e de correlação dos tempos verbais. Já a seqüenciação por conexão dá-se por meio do uso de operadores do tipo lógico, operadores discursivos e pausas.

O conceito de coerência forma com o de coesão uma espécie de par opositivo/ distintivo. A coerência teria a ver com a “boa formação” do texto, mas num sentido que não tem nada a ver com a noção de gramaticalidade, usada no nível da frase, sendo mais ligada, talvez, a uma boa formação em termos da interlocução comunicativa. Portanto, a coerência é algo que se estabelece na interação, na interlocução, numa situação comunicativa entre dois usuários (KOCH e TRAVAGLIA, 2003______; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e coerência. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2003.).

A coerência é que faz com que uma seqüência lingüística qualquer seja vista como um texto, porque permite o estabelecimento de relações - sintático-gramaticais, semânticas e pragmáticas - entre os elementos da seqüência (morfemas, palavras, expressões, frases, parágrafos, capítulos, etc.), possibilitando construí-la e percebêla, na recepção, como constituindo uma unidade significativa global. Portanto, é a coerência que dá textura ou textualidade à seqüência lingüística, entendendo-se por textura ou textualidade aquilo que converte uma seqüência lingüística em texto.

2.3 As relações entre fala e escrita

A atividade de retextualização envolvida nesta pesquisa abarca, necessariamente, a discussão acerca das relações entre fala e escrita, que são duas modalidades pertencentes ao mesmo sistema lingüístico: o sistema da Língua Portuguesa. Considera-se que entre elas há diferenças estruturais, porque diferem nos seus modos de aquisição, nas suas condições de produção, transmissão, recepção e uso, e nos meios através dos quais os elementos de estrutura são organizados.

Tem-se evidenciado que há contextualização e descontextualização, tanto na comunicação oral como na escrita, e isto é determinado pelo maior ou menor envolvimento que se tem com aquilo de que se está falando ou sobre o que se está escrevendo. É possível se ter uma mesma narrativa organizada de formas bem diferenciadas: no oral, ela pode apresentar-se altamente envolvente e contextualizada; na escrita, ela pode apresentar-se distanciada, explícita, descontextualizada.

As diferenças entre fala e escrita não se esgotam nem têm seu aspecto mais relevante no problema de representação física (grafia x som), já que entre a fala e a escrita medeiam processos de construção diversos. Muitos autores, como Marcuschi (2001MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.) e Fávero et al. (2003______; ANDRADE, M. C. V. O; AQUINO, Z. G. O. Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino da Língua Materna. São Paulo: Cortez. 2003 [1999].), dedicaram-se a observar a escolha do vocabulário e da estrutura léxica como método para distinguir a linguagem falada da escrita. Na verdade, tanto a fala como a escrita abarcam um continuum, que vai do nível mais informal ao mais formal, passando por graus intermediários.

Segundo Fávero et al. (2003______; ANDRADE, M. C. V. O; AQUINO, Z. G. O. Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino da Língua Materna. São Paulo: Cortez. 2003 [1999].), o fato de a fala ser planejada localmente faz com que seja fragmentada, contrastando com a integração, que é mais acentuada na escrita, devido ao tempo de que se dispõe para a sua elaboração. Além disso, a rapidez com que os interlocutores fazem seu texto proporciona uma descontinuidade do fluxo informacional, enquanto a escrita mostra somente o texto final e oculta o percurso de sua produção. Mas o texto falado, como afirma Koch (2003______; TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Texto e coerência. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2003., p. 81), “não é absolutamente caótico, desestruturado, rudimentar. Ao contrário, ele tem uma estruturação que lhe é própria, ditada pelas circunstâncias sociocognitivas de sua produção e é à luz dela que deve ser descrito e avaliado”.

Outra característica da língua falada, que se opõe ao afastamento inerente à escrita, é o envolvimento. Este pode ocorrer em relação ao falante consigo mesmo, com o ouvinte ou com o tópico em desenvolvimento. No texto escrito, tendo em vista o fato de a interação dar-se à distância, há um envolvimento do autor com o texto, com um leitor imaginário ou com o tópico em questão (FÁVERO et al., 2003______; ANDRADE, M. C. V. O; AQUINO, Z. G. O. Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino da Língua Materna. São Paulo: Cortez. 2003 [1999].).

As marcas de envolvimento/distanciamento parecem ocorrer de forma variada, também de acordo com o gênero do texto focalizado. Portanto, tanto a fala como a escrita apresentam um continuum de variações, ou seja, ambas variam. Podemos concluir com Marcuschi (2001MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.) que a língua se realiza essencialmente como heterogeneidade e variação, e não como sistema único e abstrato.

Com base nesses parâmetros, Marcuschi (1993, p. 53, apud FÁVERO et al., 2003______; ANDRADE, M. C. V. O; AQUINO, Z. G. O. Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino da Língua Materna. São Paulo: Cortez. 2003 [1999].), apresenta quatro gêneros textuais dentro de um contínuo, como se pode visualizar no quadro 1.

Fig. 1
Grau de envolvimento/distanciamento na fala e na escrita.

Distanciamento e envolvimento dizem respeito à relação que o escritor ou falante mantém com seus interlocutores. A idéia central a se captar é que os gêneros textuais tratados nos exemplos são tomados como protótipos ideais de representação dos atributos da fala e da escrita, podendo, no entanto, apresentar gradações dos atributos e mescla deles. Por exemplo, no texto científico, em uma conferência, um orador pode optar por um estilo mais pessoal, entremeando seu discurso com exemplificações da própria vida pessoal, em nítida estratégia de envolvimento e proximidade com a platéia, compartilhando sua “intimidade” com ela.

Daí ser relevante a afirmação de Marcuschi (2001MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001., p. 42), segundo a qual “o contínuo dos gêneros textuais distingue e correlaciona os textos de cada modalidade (fala e escrita) quanto às estratégias de formulação que determinam o contínuo das características que produzem as variações da estruturas textuais-discursivas, seleções lexicais, estilo, grau de formalidade etc., que se dão num contínuo de variações, surgindo daí semelhanças e diferenças ao longo de contínuos sobrepostos”.

Fávero et al. (2003______; ANDRADE, M. C. V. O; AQUINO, Z. G. O. Oralidade e escrita: perspectivas para o ensino da Língua Materna. São Paulo: Cortez. 2003 [1999].) salientam que, para analisar adequadamente um texto (falado ou escrito), é preciso identificar os componentes que fazem parte da situação comunicativa (ou seja, papéis e características dos participantes, relações entre os participantes, contexto, propósito, tópico discursivo, avaliação social, relação dos participantes com o texto, aspectos lingüísticos e paralingüísticos), suas características pessoais (personalidade, interesses, crenças, modos e emoções) e de seu grupo social (classe social, grupo étnico, sexo, idade, ocupação, educação, entre outros), pois eles favorecem a interpretação dos papéis dos interlocutores (falante - ouvinte - audiência [esta pode ocorrer ou não]/escritor-leitor) num evento particular, determinado, dados os componentes lingüísticos desse texto.

2.4 Retextualização

À passagem do texto falado para o texto escrito denomina-se retextualização. A retextualização não é um processo mecânico, já que a passagem da fala para a escrita não se dá naturalmente no plano dos processos de textualização. Trata-se de um processo que envolve operações complexas, que interferem tanto no código como no sentido e evidenciam uma série de aspectos nem sempre bemcompreendidos da relação oralidade-escrita. A passagem do texto oral para o escrito vai receber interferências mais ou menos acentuadas a depender do que se tem em vista, mas não por ser a fala insuficientemente organizada. Portanto, a passagem da fala para a escrita não é a passagem do caos para a ordem: é a passagem de uma ordem para outra ordem, como salienta Marcuschi (2001MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.).

O aprendizado das operações de transformação do texto falado para o escrito coloca-se como imprescindível para o melhor domínio da produção escrita pelos alunos, a qual tem-se mostrado problemática.

Marcuschi (2001MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.) destaca algumas operações de produção do texto escrito a partir do texto falado, a saber: eliminação de marcas estritamente interacionais e inclusão da pontuação; apagamento de repetições, de redundância e de autocorrecões e introdução de substituições; substituição de turnos por parágrafos; diferenciação no encadeamento sintático dos tópicos; tratamento estilístico com seleção do léxico e da estrutura sintática, num percurso do menos para o mais formal.

3 METODOLOGIA

Esta pesquisa pode ser qualificada como um tipo de pesquisa-ação, por considerar o professor um agente ativo envolvido no processo de produção de conhecimento em sua própria prática de sala de aula, interferindo na forma como o conhecimento é produzido e disseminado, no contexto particular em que atua (cf. MOITA LOPES e FREIRE, 1998MOITA LOPES, Luiz Paulo; FREIRE, Alice Maria da Fonseca. Looking back into an actionreseach project: teaching/learning to reflect on the language. The Especialist, v. 19, n. 2, p. 145-167, 1998.; MCNIFF, 1988MCNIFF, J. What action Research is: its uses and limitations. In: ______. Action Research. London: Macmillan, 1988.). Ou seja, um dos autores deste artigo era o professor da turma.

Os participantes do estudo são alunos da 3ª série do Ensino Fundamental de uma escola municipal de Minas Gerais, num total de 25 que participaram da experiência. Procedeu-se à elaboração de uma seqüência didática, que, segundo DOLZ e SCHNEUWLY (2004DOLZ, J.; SCHNEUWLY, B. Gêneros e progressão em expressão oral e escrita - elementos para reflexões sobre uma experiência suíça (francófana). In: SCHNEUWLY, B.; DOLZ, J. Gêneros orais e escritos na escola. São Paulo: Mercado das Letras, 2004. p. 41-70., p. 51), é “uma seqüência de módulos de ensino, organizados conjuntamente para melhorar uma determinada prática de linguagem. As seqüências didáticas instauram uma primeira relação entre um projeto de apropriação de uma prática de linguagem e os instrumentos que facilitam essa apropriação”. Assim, propôs-se trabalhar com o gênero textual fábula, a fim de possibilitar aos alunos a oportunidade de construir e reconstruir esse gênero, dominando-o tanto na modalidade oral quanto na escrita [quadro 1].

Primeiramente, focalizando o aspecto oral, foi contada para os alunos a fábula “A cigarra e as formigas”, de Esopo (LA FONTAINE, 1998LA FONTAINE, Jean de. Fábulas de Esopo. Adaptação de Lúcia Tulchinsky. São Paulo: Scipione, 1998.). A seguir, a professora buscou averiguar o entendimento da história pelas crianças, por meio da interação com elas, fazendo algumas indagações acerca da narrativa, tais como: qual é o gênero textual apresentado? Quem são os personagens? Quem é(são) o(s) principal(is) personagem(ns)? Qual é a trama da história? Qual foi o desfecho? Que lição a história traz? À medida que os alunos foram respondendo às perguntas, ela foi montando um esquema de ações da narrativa no quadro, para que eles copiassem. Depois disso, pediu-se aos alunos que recontassem, oralmente, a mesma fábula. Neste momento, as atenções foram voltadas para uma única aluna, que se apresentou como voluntária para a realização da tarefa. Esses procedimentos foram gravados em áudio para, posteriormente, serem analisados através de uma comparação entre a transcrição do texto oral do aluno com o texto que foi escrito pelos alunos, a pedido da professora. Buscou-se identificar a presença ou não de marcas da oralidade no texto escrito.

Quadro 1

Em seguida, a professora solicitou aos alunos que escrevessem a história que contaram, tarefa através da qual tiveram a oportunidade de elaborar a retextualização da fábula. Foi escolhido um total de dez textos dentre os 25, considerando-se os de alunos que apresentaram um bom desempenho na escrita e os de alunos que tinham um pouco mais de dificuldade nessa atividade, para que se procedesse à análise dos dados.

Na aula seguinte, a professora retomou a tarefa da aula anterior, apresentando no quadro os resultados da análise das produções dos alunos, mostrando-lhes as principais dificuldades encontradas, tarefa a partir da qual as diferenças entre um texto oral e um texto escrito foram trabalhadas. Em seguida, foi solicitado que os alunos reescrevessem a fábula, com base no que aprenderam sobre os aspectos do gênero em estudo, bem como nos passos apresentados pela professora quanto à introdução da pontuação no texto. Novamente foram coletados dez textos, dos mesmos alunos escolhidos anteriormente, para que se procedesse à avaliação dessa produção. Assim, poder-se-ia verificar se houve progresso dos alunos na escrita de um texto narrativo do gênero fábula. Ou seja, no total, foram analisados 20 textos, 10 em cada um dos dois momentos de produção.

4 ANÁLISE DE DADOS

Para efeitos de análise substancial, neste artigo, optou-se por focar nas produções da aluna que se prontificou a narrar oralmente a fábula. Apesar de pertencer ao grupo dos alunos com menos dificuldades, sua produção apresentou problemas comuns a todos os alunos. Sendo assim, espelha os problemas mais gerais encontrados na análise dos 20 textos. Como análise complementar, abordaremos também alguns dos problemas encontrados nos dois grupos. Para uma análise completa do material, remetemos a Coelho e Viera (2004COELHO, C. C. de Souza; VIEIRA, L. S. L. Processo de retextualização: um estudo com o gênero textual fábula. 54 fl. Monografia (Especialização em Ensino de Língua Portuguesa) - Universidade Federal de Juiz de Fora, Faculdade de Letras, Juiz de Fora, 2004.).

A análise é mostrada nos diferentes momentos do processo dessa experiência didática: momento 1) a narração da estória pela primeira vez pela professora; momento 2) a narrativa da aluna na situação de interação com a professora; momento 3) a primeira produção escrita da aluna; momento 4) a segunda produção escrita, após o trabalho de intervenção da professora com base na análise da primeira produção dos alunos.

Momento 1 - narrativa da professora:

Era uma vez uma cigarra jovem, que só queria cantar na porta do formigueiro, enquanto as formigas trabalhavam sem parar, carregando pedaços de folhas para forrar o berçário das formigas recém-nascidas e também carregavam grãos para se alimentar quando o inverno chegar. Bom! Então, enquanto a cigarra ficava só cantando na porta do formigueiro, as formigas trabalhavam sem parar, nê?

E aí, o inverno chegou! O frio era tamanho que a cigarra quase ficou congelada. Então, a cigarra bateu na porta do formigueiro procurando comida e abrigo e aí... o que acontece? A formiga guardiã, que abriu a porta, falou com ela: - O QUÊ? Enquanto nós trabalhávamos duro, você só queria se divertir. Pois então, boa diversão! - E bateu a porta na cara da cigarra. A cigarra teve que procurar uma outra freguesia para cantar.

Momento 2 - narrativa da aluna a partir da interação com a professora:

  • Professora: Como começa?

  • Aluna: Que... havia uma cigarra e uma formiga.

  • Professora: Isso!

  • Aluna: A formiga estava fazendo a casa dela e só trabalhando, trabalhando, trabalhando... pro inverno, quando

  • ele chegasse. E... a... cigarra só queria saber de cantar.

  • Professora: Isso!

  • Aluna: Aí chegou o inverno, a cigarra não tinha o que comer e nem na onde morar porque ela gostava só de se

  • divertir. Ela foi atrás das formigas para pedir abrigo, mas as formigasrecusaram a dar abrigo a ela e comida.

  • Ela foi ... e foi embora.

  • Professora: Muito bem, isso mesmo!

Com relação ao texto oral produzido pela aluna, trata-se de uma síntese da história, fundamentada no discurso indireto, próprio dos resumos, com eliminação dos diálogos, no que a aluna demonstrou um bom desempenho.

Competentemente, apresenta o resumo da fábula, consciente do conhecimento prévio da história por parte dos interlocutores, tornando possível a fala abreviada. Utilizase de um discurso bastante próximo da escrita, mas que apresenta mesmo assim recursos próprios da modalidade oral: fragmentação (“Ela foi... e foi embora” - linhas 9 - “E... a... cigarra” - linha 5), uso de pausas (“Que ... havia uma cigarra e uma formiga.” - linha 2), repetição (“só trabalhando, trabalhando, trabalhando” - linha 4), marcas conversacionais (“Aí chegou o inverno” - linha 7) e utilização de encadeamento sintático comum à fala (“... trabalhando ... pro inverno, quando ele chegasse.” - linhas 4 e 5, sendo que a ordem adequada à escrita desse período seria: ... trabalhando para, quando o inverno chegasse, ...).

Num terceiro momento, como uma outra tarefa solicitada pela professora, os alunos procederam à produção escrita da narrativa. Tendo em vista a opção de análise do texto produzido pela aluna que se ofereceu para narrar a fábula, transcreveu-se, a seguir, o texto escrito pela aluna em questão, preservando-se todas as características do texto original.

Momento 3 - primeira produção escrita:

  • A cigarra e as formigas

  • Era uma vez uma cigarra que era muito pregiçosa e inquanto ela so ficavacantando as formigas so trabalhavão

  • para forrar os berssos dos recém nacidos e pegar migalhas para quandoo inverno chegar.

  • O inverno chegou e as formigas foram para dentro do formigeiro e acigarra bateu na porta e falanram as

  • formigas não você não pode entra enquanto nos trabalhamos você soqueria se divertir e a cigarra teve que ir 6 para outro lugar.

Ressalta-se que essa aluna faz parte do grupo que apresenta um bom desempenho na escrita e, portanto, mostrou-se competente na realização da estrutura da narrativa proposta por Labov e já discutida no referencial teórico deste artigo. Na passagem do texto oral para o escrito, ela conseguiu executar operações necessárias à retextualização: eliminou as repetições, as marcas conversacionais, a fragmentação, próprias da oralidade. Outro ponto a se destacar é o reconhecimento do gênero textual em questão e a explicitação do mesmo para o leitor, que se realiza logo no início, na linha 2, com a expressão “Era uma vez”, típica de fábulas, rementendo ao mundo do imaginário, do maravilhoso.

Entretanto, nessa atividade, demonstrou grande dificuldade no emprego dos sinais de pontuação - extremamente importante para o processo de retextualização -, assim como os demais alunos participantes desta pesquisa, o que prova ser essa uma competência não adquirida ainda por tal grupo. Podemos observar que a aluna não consegue utilizar os sinais de pontuação, por exemplo, necessários à separação das falas do narrador e dos personagens (“e a cigarra bateu na porta e falaram as formigas não você não pode entra enquanto nos trabalhamos você so queria se divertir e a cigarra teve que ir para outro lugar” - linhas de 4, 5 e 6), assim como não sabe utilizá-los para expressar uma frase exclamativa (“não ...” - linha 5).

Tendo em vista o fato de que o texto dessa aluna representa um exemplo do grupo de alunos que apresenta um desempenho bom na escrita, optou-se por reproduzir, também, um trecho de um texto produzido por um aluno do grupo que demonstrou maior dificuldade na passagem do oral para o escrito.

  • ... a cigarra so ficava se divertindo so cantando e so cantando não gostavade trabalhar ela so ficava cantando

  • perto do formigueiro e chegou o inverno a cigarra estava com muito frioguase congelando e foi na nó

  • formigueiro bateu na porta aí a lider das formigas falou

  • - O que voce quer abrigo e comida voce so ficava na marantragem e socantando e a formiga falou

  • - va casa abrigo em outro lugar e bateu a porta.

Com base no texto acima, pode-se verificar que o aluno traz, em sua escrita, marcas da oralidade, como repetições (“so ficava se divertindo so cantando e so cantando” - linha 1), marcadores conversacionais (“aí a lider ...” - linha 3) e expressões coloquiais (“va casa abrigo em outro lugar” - linha 5). Ressalta-se, ainda, que, como os demais, esse texto apresenta problemas relacionados ao uso da pontuação, recurso que a língua escrita oferece para marcar, por exemplo, a intuição fornecida pela entoação das falas dos personagens (“- va casa abrigo em outro lugar ...” - linha 5).

Na análise do corpus desta pesquisa, detectaram-se várias dificuldades que os alunos encontraram na passagem da narrativa oral para a escrita. Dentre elas, podemse citar: problemas quanto à ortografia; presença de lacunas na expressão do pensamento; dificuldade de introduzirem uma informação nova e uma já conhecida do leitor, por meio dos artigos definidos e indefinidos, para o estabelecimento da coesão; concordância verbal inadequada; como já apresentado, falta de pontuação; entre outras.

Diagnosticou-se que o uso da pontuação era o problema de retextualização mais abrangente ao todo do corpus da pesquisa. Portanto, foram feitas intervenções direcionadas da professora para solucionar ou, pelo menos, atenuar esse problema. Desenvolveram-se atividades pedagógicas por meio da seqüência didática apresentada na metodologia, a qual mostrou-se eficiente e produziu resultados bastante positivos. Os textos que foram novamente escritos pelos alunos, após a realização das atividades propostas pela professora, mostraram-se mais bem pontuados, contribuindo para a coesão e coerência da narrativa, como se pode verificar no trecho reproduzido, a seguir, do texto do aluno supracitado, o qual faz parte do grupo de alunos daquele universo estudado que têm uma maior dificuldade com a escrita.

Então, chegou o inverno. E as formigas ficou la dentro do formigueiro e ouviu bate na porta Toc! Toc! Toc! e a lider das formigas abriu a porta e a cigarra falou:

- Deixe-me entrar formigas! Eu estou com muita fome e frio.

- Entra? Você não fez na so ficou cantando então vai casa outro rumo Tchau!

Como se pode constatar, houve uma sensível melhora na escrita do aluno em questão. O mesmo verificou-se com a produção escrita do restante da classe, o que nos leva a pensar na eficiência da seqüência didática proposta.

5 ENCAMINHAMENTOS

A partir do que se viu aqui, podemos afirmar que o trabalho de retextualização permite que os alunos atinjam uma melhor compreensão de como se dá a produção dos textos escritos e falados, bem como de que, dependendo do gênero textual, há diferenças maiores ou menores entre fala e escrita.

Assim, o papel do professor no trabalho de retextualização de textos narrativos infantis é o de mostrar à criança a diferença entre os aspectos pragmáticos do oral e da escrita, mostrando seu impacto na produção textual.

Com os resultados deste estudo, conclui-se que a proposta dos PCN’s de que o ensino da gramática deve-se dar amparado nos gêneros textuais, uma vez que eles são o meio pelo qual a língua funciona, é adequada e possível de ser executada.

Como proposta para o trabalho com outras seqüências didáticas baseadas em gêneros textuais, cita-se a criação de uma legenda pelo professor que dê conta dos problemas apresentados pelos alunos nos textos produzidos por eles, com a qual os alunos se familiarizem. Este procedimento trará ganhos tanto para o professor como para os alunos, uma vez que o professor economizará tempo, já que ele dispõe de pouco tempo para desenvolver os conteúdos a serem trabalhados e essa legenda agilizaria a correção dos textos e daria oportunidade aos alunos de refazerem seus textos guiando-se por ela e de obtê-los novamente corrigidos, e os alunos ganhariam em autonomia na correção de seus textos.

Tendo em mente as possibilidades de aplicação dessas reflexões ao ensino da Língua Portuguesa nas escolas, consideram-se dois pontos fundamentais: a) os alunos constroem seu conhecimento sobre a configuração e o funcionamento dos diversos gêneros textuais escritos a partir do que já sabem sobre os gêneros orais, b) aquilo que parece óbvio para o adulto leitor e escritor proficiente não é nada óbvio para o aprendiz da escrita; pelo contrário, pode representar um conhecimento a ser conquistado no desenvolvimento de suas habilidades lingüísticas.

Pode-se, então, concluir, que há um trabalho a ser realizado pelo professor de Português no sentido de tornar explícitas para os alunos as especificidades dos processos de produção dos diversos gêneros textuais escritos e orais e de criar oportunidades para que eles possam exercitar e aguçar sua sensibilidade lingüística, sua capacidade de reflexão lingüística, com vistas a ampliar suas possibilidades de expressão verbal.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2006

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2005
  • Aceito
    22 Set 2005
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