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AUTORIA E ESTILO EM DIÁRIOS DE LEITURAS DE ESTUDANTES DO ENSINO MÉDIO

AUTHORSHIP AND STYLE IN HIGH SCHOOL STUDENTS’ READING JOURNALS

AUTORÍA Y ESTILO EM DIARIOS DE LECTURAS DE ESTUDIANTES DE SECUNDARIA

Resumo

Este artigo aborda a autoria em diários de leituras produzidos por estudantes do Ensino Médio do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe (IFS) em uma experiência didática para a disciplina Língua Portuguesa. Investiga-se especificamente um diário cujos textos apresentaram resultados de tendências estilísticas menos dependentes de prescrições comuns para textos escolares. A orientação teórica é de perspectiva discursiva. Em Orlandi (2006), observa-se o entendimento sobre o discurso pedagógico; em Furlanetto (2008, 2011, 2014, 2015), Orlandi (2007, 2008) e Possenti (2009, 2013) observam-se as concepções sobre autoria e memória; em Possenti (2008, 2009, 2013), em articulação com Bakhtin (2010, 2013), examinam-se as questões referentes ao estilo. A experiência com o diário parece favorecer enunciados geralmente à margem da ordem do discurso pedagógico instituído e do ensino convencional de língua.

Palavras-chave:
Autoria; Discurso; Estilo

Abstract

This paper approaches authorship in reading journals produced by students attending High School at Sergipe Federal Institute of Education, Science and Technology during didactic experience for Portuguese Language classes. The examined reading journal presented texts with results of stylistic trends less dependent on common guidance for school texts. The theoretical perspective is a discursive one. The understanding of pedagogical discourse is based on Orlandi (2006). In addtion, the conceptions about authorship and discursive memory in Furlanetto (2008, 2011, 2014, 2015), Orlandi (2007, 2008) and Possenti (2009, 2013) substantiate the research which also takes as basis the issues related to style in Possenti (2008, 2009, 2013), in connection with concepts in Bakhtin (2010, 2013). The experience with reading journals seems to favor utterances which are generally outside the order of the instituted pedagogical discourse and conventional language teaching.

Keywords:
Authoship; Discourse; Style

Resumen

Este artículo aborda la autoría en diarios de lecturas producidos por estudiantes de Secundaria del Instituto Federal de Educación Ciencia y Tecnología de Sergipe (IFS) en una experiencia didáctica para la asignatura Lengua Portuguesa. Se investiga especificamente un diario cuyos textos mostraron resultados de tendencias estilísticas menos dependientes de prescripciones comunes para los textos escolares. La orientación teórica tiene una perspectiva discursiva. En Orlandi (2006), se observa la comprensión del discurso pedagógico; en Furlanetto (2008, 2011, 2014, 2015), Orlandi (2007, 2008), y Possenti (2009, 2013) se observan las concepciones de autoría y memoria discursiva; en Possenti (2008, 2009, 2013), en conjunto con Bakhtin (2010, 2013), se examinan cuestiones relacionadas con el estilo. La experiencia con el diario parece favorecer enunciados generalmente fuera del orden del discurso pedagógico instituido y de la enseñanza convencional de la lengua.

Palabras clave:
Autoría; Discurso; Estilo

1 INTRODUÇÃO

Em 2020, sob a orientação da professora Maria Marta Furlanetto, defendemos nossa tese de doutorado Vozes participantes na escola: a autoria em diários de leituras de estudantes do ensino médio na linha de pesquisa Texto e Discurso do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem (PPGCL) da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Deixamos aqui o importante registro de nossa imensa gratidão à querida professora Maria Marta, que homenageamos com a publicação deste artigo.

A pesquisa de doutorado se relaciona com nosso trabalho docente na disciplina Língua Portuguesa, ministrada para turmas do Ensino Médio do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe (IFS), do campus de Aracaju-SE. Em nossa prática, sempre nos questionamos sobre o que/como os estudantes escreveriam se tivessem amplo grau de liberdade. A montagem histórica da educação escolar, o discurso pedagógico tradicional e a maneira convencional de ensinar língua materna repercutem em nossa prática docente. Instâncias imensuráveis determinam práticas localizadas, de poder diminuto na comparação com o que as determina. Isso nos traz contínua inquietação, impulsionando a busca por alternativas que em alguma medida permitam aos estudantes experiências de leitura e escrita com mais autonomia autoral e menos restrições para se contrapor de alguma forma às históricas amarras escolares do ensino de língua materna. Assim movidos, chegamos à experiência didática com o diário de leituras.

Na pesquisa de doutorado, buscamos compreender a autoria nos diários de leituras dos participantes da experiência. A redução do monitoramento docente, previsto para a experiência, associada à abertura enunciativa do gênero, abriu caminho para a heterogeneidade de tendências estilísticas como base linguística para ethé discursivos. O ethos ofereceu pistas para a investigação de filiações discursivas dos autores. Alguns participantes pouco escreveram; outros, talvez conduzidos pela memória escolar, produziram textos em que a singularidade permaneceu toldada, gerando dificuldade ou impossibilidade para apontar um estilo. Houve, contudo, textos emblemáticos da constituição do estilo, projetando ethé discursivos e fortalecendo a hipótese de que com alguma abertura é possível autoria heterodoxa. Assim, textualizam-se, entre outros aspectos, saberes linguísticos extraescolares que o mais das vezes ficam à margem da escrita no Ensino Médio. Foi sobre esse material que nos detivemos na pesquisa de doutorado para observar o que é atípico na escrita escolar mais monitorada.

O presente artigo retoma particularmente a discussão da tese sobre o estilo na sua relação com a autoria. Uma das hipóteses era a de que alguns autores produziriam, conscientes ou não, um estilo singularizado transcendendo padrões escolares. Assim, apontaremos como se constituem as tendências estilísticas em um dos diários. Trata-se de um exemplar dos representativos da enunciação atípica conjecturada na comparação com o texto escolar mais monitorado1 1 A redação escolar padrão Enem é um exemplo. . Para melhor percebermos a abertura do gênero na análise, cotejamos eventualmente excertos de redações escolares do autor do diário com recortes de seu próprio diário na expectativa de isso permitir notar a mudança no comportamento enunciativo-discursivo.

Pesquisadores filiados à análise do discurso orientam teoricamente o estudo. Sobre o discurso pedagógico, acompanhamos Orlandi (2006ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 2006.); acerca da autoria, orienta-nos Furlanetto (2008FURLANETTO, M. M. Gêneros e autoria: relação, possibilidades e perspectivas de ensino. In: CÍRCULO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO SUL (CELSUL), 8., 2008, Porto Alegre. Anais do VIII Encontro do Celsul. Porto Alegre: 2008. Disponível em: http://www.leffa.pro.br/tela4/Textos/Textos/Anais/CELSUL_VIII/generos_e_autoria.pdf Acesso em: 20 mar. 2015.
http://www.leffa.pro.br/tela4/Textos/Tex...
, 2011, 2014, 2015), Orlandi (2007, 2008) e Possenti (2009POSSENTI, S. Questões para analistas do discurso. São Paulo: Parábola, 2009., 2013). Especialmente sobre o estilo, o norte é a pesquisa de Possenti (2008, 2009, 2013). Interdisciplinarmente, noções do Círculo de Bakhtin (2010BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. de Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010., 2013) pautam o estudo.

2 O DIÁRIO DE LEITURAS

A pesquisa de doutorado da professora da PUC Anna Rachel Machado O Diário de leituras: a introdução de um novo instrumento na escola (1998MACHADO, A. R. O Diário de leituras: a introdução de um novo instrumento na escola. São Paulo: Martins Fontes, 1998.) é pioneira no Brasil sobre esse gênero textual. O estudo fundamenta-se no interacionismo sociodiscursivo e apresenta a análise de diários produzidos nos anos 1990 por seus alunos do curso de jornalismo da PUC de São Paulo. Além da análise, a obra caracteriza um diário em sentido amplo, como categoria composta por diversos estilos de diário, e descreve seu percurso histórico. Para Machado (1998), a prática histórica a que chama de diarismo, inclui os diários íntimo, de pesquisa, de adolescente, de viagem, de ideias, de campo e de leituras.

A obra Trabalhos de pesquisa: diário de leitura para a revisão bibliográfica (Machado; Lousada; Abreu-Tardelli, 2007MACHADO, A.R.; LOUSADA, E; ABREU-TARDELLI, L. Trabalhos de pesquisa: diários de leitura para revisão bibliográfica. 2. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.) é um trabalho de Anna Rachel Macahdo em parceria com as pesquisadoras Eliane Lousada e Lília Santos Abreu-Tardelli. Na obra, é apresentado o conceito de diário reflexivo de leituras2 2 Empregamos somente a expressão ‘diário de leituras’. O pressuposto é de que há reflexão quando um texto é escrito acerca de outro que foi lido e interpretado. Acreditamos que o processo reflexivo esteja presumido na expressão. : “[...] um texto que vai sendo produzido por um leitor, normalmente em primeira pessoa, enquanto vai lendo outro texto, tendo como objetivo maior o estabelecimento de um diálogo, de uma ‘conversa’ com o autor do texto lido, de forma reflexiva” (2007, p. 109).

Conforme Machado (1998MACHADO, A. R. O Diário de leituras: a introdução de um novo instrumento na escola. São Paulo: Martins Fontes, 1998.), em todos os estilos de diário, um aspecto fundamental é a escrita pessoal ou subjetiva, a escrita de si, primordialmente da esfera privada. São textos que não pretendem um acabamento. Antes, apresentam aspecto ensaístico como exercício da escrita e do pensar, com expressão de sensações e emoções, dadas as poucas restrições enunciativas em comparação com outros gêneros. Esses textos são marcados pela descontinuidade e diversidade temática. Nos estilos de diário, enunciados típicos de outros gêneros podem surgir. Não raramente, os próprios estilos de diário se frequentam: em um diário de viagens, a intimidade pode aparecer; em um diário íntimo, viagens podem ser relatadas. Critério possível de diferenciação entre os diários é a observação de traços estilísticos preponderantes. Mas heterogeneidade composicional ampla é sempre possível, a ponto de impossibilitar classificações. Nesse caso, o gênero é apenas diário ou o chamado diário total, segundo Lourau (1988 apud Machado, 1998, p. 39).

Historicamente, os diários não são textos escolares. Machado (1998MACHADO, A. R. O Diário de leituras: a introdução de um novo instrumento na escola. São Paulo: Martins Fontes, 1998.) diagnosticou o preconceito acerca de sua utilização como instrumento didático à época da publicação do estudo pioneiro. A resistência docente possivelmente ocorreria devido ao desconhecimento de como empregá-lo ou por temor de perda de controle sobre o discurso dos estudantes (Machado, 1998). Apesar dos relatos de ações didáticas com o gênero e das pesquisas desde a obra inaugural de Machado (1998), a inserção do diário nas aulas de língua do Ensino Médio ainda parece inconsistente.

3 A EXPERIÊNCIA

Fizemos a interposição do diário em duas turmas do Ensino Médio Integrado3 3 Curso que engloba a formação geral do Ensino Médio e formação técnica específica. do IFS: o segundo ano em Edificações (2ºIEDF) e o segundo ano em Alimentos (2° IALM). A sequência didática se iniciou com atividade e roteiro de leitura, adaptados de Machado, Lousada e Abreu-Tardelli (2007MACHADO, A.R.; LOUSADA, E; ABREU-TARDELLI, L. Trabalhos de pesquisa: diários de leitura para revisão bibliográfica. 2. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2007.) para o contexto das turmas. A atividade apresentou textos de estilos de diários e outros gêneros para as diferenças serem percebidas. O roteiro de leitura elencou passos estimulando a autonomia autoral. Alguns exemplos são: “Discorra sobre o que você sentiu, pensou ou imaginou”; “você está livre para concordar, discordar, criticar positiva ou negativamente o texto que estiver lendo”; “Destaque em seu texto o que lhe pareceu mais importante e escreva suas ideias e pensamentos sobre o assunto.”

Foi solicitado um caderno à parte para funcionar como diário de leituras enquanto suporte. A seleção oficial de textos para leitura e produção do diário ficou a nosso cargo, mas os participantes também ficaram livres para escrever sobre textos de sua escolha. Disponibilizamos um texto por semana, totalizando quatorze. A conferência ocorria eventualmente sem estabelecimento de datas.

Solicitamos que a leitura dos textos e a escrita do diário fossem extraclasse. A variedade genérica pautou nossa seleção de textos para leitura: reportagens, anúncios, artigos de opinião, entrevistas, entre outros. Quanto aos temas, selecionamos textos sobre aspectos de interesse geral: questões sociais, tecnologia, meio ambiente, entre outras temáticas. Não foi obrigatório participar da experiência, entregar o diário ou permitir a leitura do professor. Dezoito estudantes entre os quarenta do 2° IEDF e onze entre os vinte e cinco do 2°IALM cederam os cadernos, totalizando vinte e nove diários.

Nossa postura para favorecer a autenticidade da interpretação textualizada foi não corrigir, avaliar, pontuar ou dar nota; ler os diários apenas com permissão; emitir opinião apenas se solicitada; utilizar os diários em pesquisa com autorização dos autores e aprovação dos pais e/ou responsáveis via assinatura em termo de concessão para pesquisa.

A postura descrita não significa ausência absoluta de orientação. Como dissemos, entregamos o roteiro e aplicamos atividades prévias, mas é uma assistência de tipo particular, objetivando mitigar constrições escolares e favorecer dizeres com valor de autenticidade.

4 REFERENCIAL TEÓRICO

4.1 AUTORIA E ESTILO

Em análise do discurso, não há discurso sem sujeito (Pêcheux, 2009PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. de Eni P.Orlandi et al. 4. ed. Campinas: Ed. da Unicamp, 2009.), mas os sujeitos não criam o discurso, pois os dizeres os antecedem. A anterioridade não é percebida e, assim, o sujeito se põe na origem do dizer, afetado pelo esquecimento estruturante. Em Pêcheux (2009, p.161-162), a noção é bipartida em esquecimentos 1 e 2. O esquecimento 1 é a ilusão do sujeito de se achar no início do próprio dizer; o esquecimento 2 é a ilusão de que há um sentido único, proveniente de suas filiações, cuja circunstância de precedência o sujeito não percebe em função do esquecimento. O que alicerça o esquecimento é a ideologia. Orlandi diz (2007ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 5. ed. Campinas: Pontes, 2007., p. 31) que a ideologia é “[...] interpretação do sentido em certa direção [...]”. A ideologia fixa os sentidos e sua aparente evidência.

A autoria é função do sujeito que, como autor, permanece afetado pelo esquecimento e pela ideologia. O autor também se põe imaginariamente no limiar do texto e de seu sentido. Vê-se e é visto como criador, e seu texto deve ser recebido como criação concluída. Em análise do discurso, a noção de função-autor de Foucault (2009FOUCAULT, M. O que é um autor? In: MOTTA, M. B. (Org.). Estética: literatura e pintura, música e cinema. Trad. de Inês Autran Dourado. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.) é reformulada. Para Orlandi (2007ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 5. ed. Campinas: Pontes, 2007.), a função-autor não se restringe aos autores de grandes obras. Em textos variados é possível perseguir os indícios da função. Conforme Orlandi (2012, p. 65), na função-autor o sujeito trabalha sobre a coesão, coerência, extensão, não contradição, clareza e objetividade, produzindo efeito de acabamento. A autoria é uma organização do que emana da memória discursiva afetada pelo esquecimento. É a tentativa de controle sobre os dizeres antecedentes da filiação autoral.

Possenti (2009POSSENTI, S. Questões para analistas do discurso. São Paulo: Parábola, 2009.) também vê a autoria como tentativa do controle sobre a materialização dos dizeres de uma memória discursiva. O pesquisador, porém, faz acréscimos à noção, elencando aspectos cujos indícios podem ser encalçados: avaliações, tomada de posição, associações; a voz de outros em outros textos, opiniões, discursos; a manutenção da distância, com o retorno sobre os próprios dizeres; a variação e o evitar da mesmice; e o aspecto estilístico, pois “[...] é impossível pensar na questão do autor sem considerar de alguma forma a noção de singularidade, que, por sua vez, não poderia escapar de uma aproximação - bem-feita - com a questão do estilo[...]” (Possenti, 2009, p. 106).

As concepções de estilo em Possenti (2008POSSENTI, S. Discurso, estilo e subjetividade. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.) partem da abordagem de Granger (1974GRANGER, G-G. Filosofia do estilo. Trad. de Scarlett Zerbetto Marton. São Paulo: Perspectiva, 1974.) cujas noções de trabalho e escolha passam a ser pensadas em perspectiva discursiva. O sujeito trabalha sobre o preexistente da linguagem, sobre o que está mais ou menos estabilizado, mas apresenta brechas para uma singularização. Trabalho e escolha se constituem, pois o trabalho é também trabalho para escolher. A escolha não se faz entre recursos criados por uma individualidade. Escolhe-se entre recursos de linguagem previamente disponíveis e desenvolvidos historicamente pelo trabalho coletivo dos sujeitos sobre a língua. Analogamente, Bakhtin diz: “Por isso um enunciado singular, a despeito de toda a sua individualidade e do caráter criativo, de forma alguma pode ser considerado uma combinação absolutamente livre de formas da língua [...]”. (2010, p. 285, itálico no original). O gesto é designado ‘escolha’ por uma razão simples: escolher pressupõe excluir. Quando o autor escolhe uma palavra exclui todas as outras disponíveis. Disso resulta o estilo e seu efeito de singularidade do enunciado.

Para Possenti (2009POSSENTI, S. Questões para analistas do discurso. São Paulo: Parábola, 2009.), estilo é mais que um conjunto de formas recorrentes, pois as escolhas resultam da relação valorativa que o autor tem com o objeto de sua interpretação. Como o sujeito não é um criador original, suas filiações discursivas determinam suas valorações, afetando o estilo. Bakhtin (2010BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. de Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.) se aproxima da ideia: “[...] um enunciado absolutamente neutro é impossível. A relação valorativa do falante com o objeto do seu discurso (seja qual for esse objeto) também determina a escolha dos recursos lexicais, gramaticais e composicionais do enunciado” (p. 289). Mas as valorações não são necessariamente conscientes, como o estilo também não é: “É secundário avaliar se a marca do trabalho linguístico reflete uma atividade consciente ou inconsciente, se um recurso de expressão foi empregado calculadamente, para a obtenção de um efeito específico, ou se isso se deu inconscientemente. O que importa é que haja um trabalho da (e sobre) a língua” (Possenti,1993, p. 203 apud Mayrink-Sabinson, 2002, p. 126).

Possenti (2013POSSENTI, S. Notas sobre a questão da autoria. Matraga. Rio de Janeiro, v. 20, n. 32, p. 239-250, 2013. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/matraga/article/view/19851/14283. Acesso em: 12 set. 2015.
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) está de acordo que autor não é somente o que tem uma obra. É função do sujeito. O pesquisador pensa a autoria focalizando a escrita escolar para além dos textos que evitam riscos, classificação sua para a redação de seleções universitárias. Entende que o estilo é fator importante a ser observado na autoria escolar: “Para propor algum tipo de autoria de escreventes que não são autores (que não têm obra), minha opção foi valorizar os traços de estilo, ou seja, da manifestação de algum tipo de singularidade, que, eventualmente, pode subverter ou, pelo menos, tangenciar o domínio de tipo escolar do texto” (Possenti, 2013, p. 242).

Neste estudo, consideramos estilo subjetivo arranjos e acréscimos de caráter sintático, preferências lexicais e enunciativas, extensão dos enunciados, relações entre blocos de enunciados, modos de pontuar ou de organizar o texto e demais disposições na superfície textual. Já o estilo de gênero concerne à tipicidade de cada gênero textual, definida pelas regularidades enunciativas. Chega-se à clássica definição de Bakhtin (2010BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. de Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.) de gêneros como enunciados relativamente estáveis. Quando estabilidade e tipicidade permitem reconhecer um determinado gênero, ao mesmo tempo delineiam a diferença dos gêneros entre si.

Para Furlanetto (2015FURLANETTO, M. M. Formação discursiva, autoria, filiações e metáfora. Fórum linguístico. Florianópolis, v.12, n.1, p. 595-610, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/forum/article/view/1984-8412.2015v12n1p595/29750. Acesso em: 15 set. 2018.
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), a autoria também é uma questão de controle do texto, do domínio possível da dispersão constitutiva do discurso. Destacamos de seu trabalho a observação sobre a memória discursiva na relação com a autoria. Em princípio, a memória é um amálgama de filiações discursivas, algumas preponderantes, mas sob tensão constante entre discursos que incidem sobre o sujeito. A tensão sobre a memória discursiva se prolonga no processo de autoria. Por isso, o exame atento sobre o texto pode ser capaz de encalçar rastros de uma heterogeneidade discursiva toldada por um efeito de homogeneidade:

Espaços de linguagem, na realização autoral, são plenos de efeitos de transversalidade, de marginalidade, de matizes como em tecido urdido com muitos tipos de fios. Não é, de fato, à toa que falamos em tessitura para a formulação textual, trazendo por imagem um tapete oriental urdido com milhares de nós que produzem o efeito, em superfície, de uma pintura aveludada (Furlanetto, 2015FURLANETTO, M. M. Formação discursiva, autoria, filiações e metáfora. Fórum linguístico. Florianópolis, v.12, n.1, p. 595-610, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/forum/article/view/1984-8412.2015v12n1p595/29750. Acesso em: 15 set. 2018.
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, p. 608).

Para a pesquisadora, o trabalho do autor sobre a dispersão da linguagem não equivale necessariamente à organização de um conteúdo previamente conhecido. A memória discursiva não corresponde a lembranças conscientes. Além disso, tal como os outros pesquisadores revisados, Furlanetto (2008FURLANETTO, M. M. Gêneros e autoria: relação, possibilidades e perspectivas de ensino. In: CÍRCULO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO SUL (CELSUL), 8., 2008, Porto Alegre. Anais do VIII Encontro do Celsul. Porto Alegre: 2008. Disponível em: http://www.leffa.pro.br/tela4/Textos/Textos/Anais/CELSUL_VIII/generos_e_autoria.pdf Acesso em: 20 mar. 2015.
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) não limita a autoria a circunstâncias especiais do modo como faz Foucault (2009FOUCAULT, M. O que é um autor? In: MOTTA, M. B. (Org.). Estética: literatura e pintura, música e cinema. Trad. de Inês Autran Dourado. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.). Para a pesquisadora, autoria é função de todo sujeito e a escrita é modalidade indispensável na observação do processo: “Se se pode reconhecer autoria na textualização oralizada, penso que não se pode abrir mão da escrita para desenvolver a autoria.” (Furlanetto, 2014, p. 68, itálico no original).

Em seu trabalho, Furlanetto (2014FURLANETTO, M. M. Ler, escrever, “pontuar”: a construção da autoria. Leia Escola, Campina Grande, v.14, n.1, p. 61-73, 2014. Disponível em: http://revistas.ufcg.edu.br/ch/index.php/Leia/article/view/328/258 Acesso em: 15 mar. 2015.
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) também discorre sobre a autoria em contexto escolar, refletindo acerca do estilo de gênero, que requer iteração, o retorno ao mais ou menos estabilizado quanto às regularidades. A contrapartida é a alteração, a possibilidade da polissemia, do efeito de novidade resultante do investimento em galgar patamares de autoria na escola. A alteração pode levar ao que chamamos neste estudo de estilo subjetivo, tema contemplado em Furlanetto (2008, p. 17, itálico no original):

O texto a produzir é como uma malha (rede) recebida em fragmentos na qual cada sujeito escolhe incrustar ‘ornamentos’ de sua escolha fazendo as ligações que julga necessárias para se fazer ouvir e produzir uma marca: o gênero tem um estilo (coletivo); cada sujeito cria seu estilo (singular).

Furlanetto (2011FURLANETTO, M. M. Ensino de língua portuguesa: focalizando as práticas discursivas. Uniletras, Ponta Grossa, v. 33, n. 1. jan./jun. 2011, p.43-59. Disponível em: https://www.revistas2.uepg.br/index.php/uniletras/article/view/3547/2530 Acesso em: 15 mar. 2015.
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) destaca que trabalhar com autoria na escola demanda tempo, mediação docente comprometida e consistência dos momentos de escrita.

4.2 O DISCURSO PEDAGÓGICO

Os fundamentos sobre o discurso pedagógico são provenientes de Orlandi (2006ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 2006.). A pesquisadora explica que a escola e o discurso pedagógico se legitimam mutuamente; a primeira reconhece e autoriza o segundo e vice-versa, produzindo uma circularidade. Quando o discurso é assim, o referente está ausente, o objeto de conhecimento se apaga, restando apenas os enunciados sobre ele, frequentemente para fins de memorização. Significa que, nesse discurso, o importante é a metalinguagem. Em geografia, o conteúdo não é o relevo; em biologia, não é a célula, em física, não é a velocidade; o conteúdo são as frases sobre o relevo, a célula e a velocidade.

Orlandi (2006ORLANDI, E. P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 4. ed. Campinas: Pontes, 2006.) afirma não haver interlocução verdadeira. O professor, posto como autoridade máxima, não reverte a palavra aos alunos, que não reconstroem o caminho do conhecimento, mas devem assimilar passivamente os enunciados prontos. Ademais, sustenta-se uma imagem ideal de professor, aquele que assume a autoridade, o detentor do saber legítimo. Parte disso se deve à transferência da imagem de cientista ao professor, mascarando o papel de mediador. Em contrapartida, sustenta-se a imagem social do aluno: o que não sabe. O material didático é outro elemento deformado, pois vai da condição de instrumento à de objeto: “Como objeto, ele se dá em si mesmo, e o que interessa é saber o material didático (como preencher espaços, fazer cruzinhas, ordenar sequências, etc.)” (Orlandi, 2006, p. 22, itálico no original). Esse discurso mascara a reprodução da ideologia dominante e da estrutura social, mas é importante lembrar Althusser (2003ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos de Estado: notas sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Tradução de Walter Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. 9. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.), quando explica que a luta de classes também ocorre nos aparelhos ideológicos de Estado, a exemplo da escola. Não se trata de uma reprodução mecânica ad aeternum, mas de um processo afetado pelas contradições das relações sociais.

A metalinguagem do discurso pedagógico gera recortes, como as disciplinas. Na escola, Língua Portuguesa corresponde ao recorte que chamamos aqui de ensino convencional de língua. Há algumas décadas, o ensino das disciplinas escolares no Brasil tem apresentado nuances um pouco mais progressistas, mas há momentos de reação conservadora, provocando retrocessos no campo educacional. A obra de Orlandi, fundamento das considerações desta seção, data de 1983. Apesar de alguns avanços, a montagem educacional instituída se mantém em boa medida reproduzindo um discurso pedagógico mais autoritário. Orlandi (2006) propõe a adoção de uma postura docente que reflita um discurso pedagógico polêmico, distanciando-se do registro autoritário. Polêmico aqui não tem a acepção negativa de ‘chocante’ ou ‘duvidoso’. Significa abertura às vozes estudantis para que o aluno seja um interlocutor real.

5 METODOLOGIA

O roteiro de leitura pretendeu alguma desestabilização das circunstâncias enunciativas do ensino convencional, mas isso não é a supressão do discurso pedagógico. A experiência surge na instituição escolar, os papéis de professor e aluno não são apagados. Pretendemos, contudo, uma orientação mais polêmica, para o roteiro e para nossa postura diante da experiência.

Os enunciados do roteiro e as condições da experiência determinam os textos do diário, mas para estimular gestos de respostas mais autênticos. Então questiona-se: sem seguir prescrições rígidas para elaboração de um texto, como são as escolhas do autor do diário? Essas escolhas sinalizam também posição polêmica do autor? São recorrentes, para se poder pensar em um estilo polêmico e heterodoxo, distanciando-se do texto escolar monitorado?

Em Orlandi (2007ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. 5. ed. Campinas: Pontes, 2007.), a orientação geral para análise consiste na remissão ao discurso por meio da superfície textual. Depois disso, é possível examinar o aspecto discursivo. Na superfície do texto, observamos o funcionamento da autoria, focalizando as tendências estilísticas, pois parte significativa de aspectos estilísticos é destacável desse nível. A emergência de estilos contrastantes com textos monitorados convencionalmente é um dos aspectos esperados como índice da abertura enunciativo-discursiva do diário para dizeres de orientação mais polêmica.

Integramos orientações de Abaurre, Fiad e Mayrink-Sabinson (2006ABAURRE, M.B.M.; FIAD, R.S.; MAYRINK-SABINSON, M.L.T. Cenas de aquisição da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 2006.), que no campo da linguística aplicada estudam o estilo na escrita infantil. De seus trabalhos, aproveitamos o tipo de investigação, que consiste no levantamento de dados singulares reiterados entre textos diferentes de um mesmo autor. Basicamente, a investigação é feita de releituras dos textos de um diário para perceber quais dados são reiterados, sinalizando um investimento em expressividade menos convencional em situação escolar. A forma de examinar corresponde ao antigo modelo abdutivo de investigação indiciária, retomado em Ginzburg (2016GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad. de Federico Carotti. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.). Em nosso estudo, escolhas linguísticas e enunciativas recorrentes englobam vocábulos, expressões, verbos, fatores de modalização, recursos de argumentatividade, entre outros elementos que compõem a textualização da interpretação. A investigação do estilo pode fornecer pistas de dizeres ou mais polêmicos ou, ao contrário, ainda determinados amplamente por um discurso pedagógico de índole autoritária.

6 ANÁLISE

6.1 OBJETIVIDADE E DESINIBIÇÃO

O autor do diário escreve de uma forma que vai tendencialmente direto ao ponto, como se estivesse à vontade com a escrita, delineando uma imagem de desinibição. Presume-se então que esse autor esteja entre os que não se sentiram acanhados durante a experiência. Ele discorda, critica textos que leu, assume incertezas abertamente em alguns momentos e é assertivo em outros. Não deve ser então coincidência que o estilo subjetivo tenha se constituído tendencialmente com formulações de períodos breves4 4 Não há convenção precisa determinando diferenças entre formulações curtas e longas. Como abordamos a questão, vamos arriscar hipóteses. As formulações consideradas longas comumente apresentam enunciados intercalados ou justapostos, locuções adverbiais, uso de termos cuja eliminação não altera radicalmente o sentido, gerúndio, ou outro recurso, conectando, em um mesmo enunciado, segmentos que poderiam ser enunciados “independentes”, excesso de conectivos, entre outras situações. O oposto dessas características geralmente produz formulações consideradas concisas. e economia de conectivos5 5 Empregamos Ø para marcar a ausência de conectivo no interior do segmento. entre enunciados concluídos pelo ponto continuativo:

(1) Logo que li o título, pensei que o texto fosse exatamente o contrário do que ele é. Ø Mais um clichê arraigado na cabeça de todo esse mundo capitalista e consumista: Ø pra ser feliz, você não pode ter segurança, responsabilidade ou juízo. (sobre a reportagem Curtir cada dia de vida como se fosse o último é uma filosofia de vida furada)6 6 Reportagem com discurso comportado que defende a rotina, simplicidade, relações estáveis em oposição ao que se considera no texto uma vida extravagante, acelerada e irresponsável.

O tom tendencialmente desinibido e objetivo nos parece consonante com as escolhas de ordem sintática; para ser direto, a frase curta e a economia de conectivos. Trata-se mais ou menos de dizer o que precisa ser dito com o necessário que isso demanda. Essa regularidade não corresponde necessariamente a textos curtos em sua totalidade, mas sim à enunciação sem rodeios, não importando a extensão textual total. Ocorrem enunciados mais longos, todavia os concisos não são simplesmente episódicos. São mais regulares, constituindo uma tendência estilística. Apresentamos a seguir outros exemplos de outros textos do diário desse autor. Além dos períodos de conclusão rápida, chamamos a atenção para a economia de conectivos:

(2) Cada um vê beleza onde quer. Ø O eu lírico da música viu na tal morena, eu poderia não vê. (Sobre a letra da canção Salão de beleza7 7 Letra de canção de Zeca Baleiro sobre a ideia de beleza feminina padronizada e as exigências sociais em torno disso. ).

(3) Ø Meu objetivo na vida é ser um Lula Molusco. Ø Ser um trabalhador, apreciar e fazer arte, ser um bom amigo, ser respeitoso e etc. Ø Estar entre os extremos é quase sempre o segredo, porque tudo em excesso é danoso. Mas estar deprimido numa BMW não soa tão mal assim. (Sobre a crônica Patético8 8 Crônica de Luiz Felipe Pondé acerca de uma suposta hipocrisia das pessoas em sua relação com o dinheiro. ).

A ocorrência reduzida de conectivos não corresponde à supressão total em todos os textos do diário, mas a uma economia. Nesses casos, na leitura do diário, a coesão e coerência produzidas por um potencial leitor ocorrem por meio de inferências espontâneas possíveis.

Em relação à textualidade e inteligibilidade, os conectivos iniciando um período seguinte não são imprescindíveis. A progressão entre os enunciados fornece pistas suficientes para a produção de sentido. Em situação escolar convencional, os conectivos são um tópico nas aulas de redação para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e vestibulares. É comum os professores disponibilizarem listas de conjunções, advérbios e locuções conectivas. Seu emprego é preconizado, com alta ocorrência em textos de seleções universitárias.

Mas as tendências estilísticas do autor do diário se distanciam do estilo da redação escolar padrão Enem. Por outro lado, suas próprias redações escolares dão as pistas da força conformativa do discurso pedagógico que incide sobre tal gênero no contexto do ensino convencional de escrita. Vejamos um recorte de uma redação escolar do autor do diário com o emprego consistente de conectivos clássicos nesse tipo de texto e com enunciados mais extensos do que os do diário:

(4) Há poucas décadas, o acesso ao atendimento básico de saúde era extremamente complicado para as comunidades mais distantes das grandes cidades. [...] No entanto, vários programas sociais, como o Mais Médicos, têm trazido avanços significativos para o cuidado dessas famílias, apesar de ainda haver muito a ser feito. [...] / Portanto, é bem claro que ainda precisamos nos desenvolver em alguns aspectos para melhorar o Programa Mais Médicos e ampliar os seus benefícios. [...] Dessa maneira, poderemos garantir o bem-estar de todos os brasileiros. (Redação escolar do autor do diário sobre o tema Os impactos do Programa Mais Médicos na saúde brasileira9 9 Material de arquivo pessoal. ).

A frequência de conectivos nas redações dos estudantes não é somente das formas mais comuns. Os de tom mais formal também são consistentes, tais como: ‘nesse sentido’, ‘nesse cenário’, ‘com efeito’, ‘sob esse viés’, ‘outrossim’, ‘destarte’, ‘não obstante’, ‘em primeira análise/em segunda análise’, entre outros. É importante apresentar aos alunos a diversidade dos conectivos, as possiblidades de coesão, a tipicidade dos gêneros argumentativos, mas normalmente esses fatores se mostram como determinações ao invés de figurar como alternativas que se prestem à autonomia autoral com variação estilística real. O problema então está em arregimentar esses elementos para uma fórmula de redação engessada.

O afrouxamento normativo do diário conduz a escrita por outros caminhos. O autor do diário intervém no elemento imediato do arranjo enunciativo, a superfície sintática, que tem restrições próprias - não aquelas da gramática normativa. É onde o autor parece fazer escolhas com menos dificuldade, comprimindo os períodos e economizando conetivos, o que corresponde a duas tendências do estilo subjetivo. É uma tentativa de controlar a forma de dizer. Possenti observa que: “[...] os locutores não criam recursos expressivos. Mas isso não significa que os repita pura e simplesmente.” (2008, p. 269). O enunciado curto e a economia de conectivos ajudam o autor do diário a ir sem rodeios direto ao assunto. Mas esse é um caso. Importante lembrar que um mesmo discurso pode se materializar em enunciados muito diversos.

O traço estilístico, consciente ou não, é também projeção de uma memória do dizer. No caso do estilo subjetivo observado, a tendência pode ser resultado de uma memória estilística do conjunto das leituras, interações e experiências, constituídas não somente na escola, mas também fora dela. Com a autonomia da escrita, é essa memória que parece funcionar também, pois o estilo subjetivo se distancia do estilo da redação quando o autor do diário economiza conectivos, comprime os enunciados e dispensa a solenidade para enunciar com menos autocensura. São indícios de um discurso cujo sujeito assume posição mais polêmica, o que parece repercutir em suas escolhas estilísticas.

6.2 LÉXICO E HUMOR

Um princípio da produção do humor é o contraste, o descompasso produtor da surpresa da comicidade. Bakhtin (2015BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015., p.123), estudando os gêneros cômico-sérios, atesta o contraste característico: “Caracterizam-se pela politonalidade da narração, pela fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico [...] observa-se a fusão do discurso da prosa e do verso, inserem-se dialetos e jargões vivos (e até o bilinguismo direto na etapa romana) [...]”.

Estudando o Risível, Suassuna (2009SUASSUNA, A. Iniciação à estética. 10. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.) excursiona por noções que vão de Aristóteles a Hobbes, de Kant a Freud, de Schopenhauer a Bergson. Retifica pontos desses autores e define: “[...] o Risível é uma desarmonia de forma, de significado, de caráter, de valor ou de procedimento, na qual o inesperado, pelo disparate, pela abstração, pela desumanização ou pela idealização em sentido inverso, as pessoas, as ações e as idéias são apresentadas como se tivessem sido retiradas de uma ordem lógica, real ou pressuposta [...]”.

No diário, há um tipo de “desarmonia” lexical com o irrompimento de expressões coloquiais de variedades linguísticas diversas:

(5) Estou ficando cada vez mais sem ter o que escrever nesse diário, e nesse momento estou apenas enchendo linguiça. [...] Vish, hoje não é meu dia. (Sobre a reportagem Americano vive sem dinheiro há 15 anos… e diz que nunca foi tão feliz!10 10 Reportagem sobre a vida de Daniel Suelo, americano que por questões religiosas vive sem dinheiro e trabalha em troca somente do que precisa para suprir as necessidades mais básicas. ).

(6) [...] o Bob e o Patrick são vizinhos chatos pra chuchu. (Sobre a crônica Patético).

(7) [...] ele é o diferentão sem instintos. (Sobre a entrevista O humano na idade da técnica11 11 Entrevista com o filósofo italiano Umberto Gallimberti sobre o advento da técnica e suas implicações para as sociedades. )

(8) Essa galera que compõe adora um título meio louco. (Sobre a letra de canção Epitáfio12 12 Letra de canção da banda Titãs que preconiza um tipo de vida com satisfação de desejos e menos impedimentos. ).

Há expressões mais localizadas ou regionais 13 13 Os exemplos são formas de expressividade de falares diversificados da Região Nordeste. Lembramos que a experiência ocorreu em um instituto federal de um dos estados da região. . São também coloquiais, contrastando com segmentos vizinhos de registro diferente.

(9) Que peste é um epitáfio? (Sobre a letra de canção Epitáfio).

(10) Eita. Agora a música tem outro sentido pra mim. (Sobre a letra de canção Epitáfio).

Comum em vasta gama de variedades linguísticas, aparecem também no diário os palavrões, que em alguns grupos sociais soam imorais ou agressivos e não são interpretados como cômicos. O oposto disso é, porém, possiblidade igualmente verdadeira, legitimando exemplos como potenciais formas humorísticas:

(11) Precisa viver cada dia cagando pro resto[...] (Sobre a reportagem Curtir cada dia como se fosse o último é uma filosofia de vida furada).

(12) [...] o Daniel é o Bob Esponja, que tá pouco se fudendo pra porra nenhuma e só quer ficar fumando bolhinha de sabão. (Sobre a crônica Patético).

6.3 VOZES E CONTRASTES NO HUMOR

Outra forma de o autor produzir humor no diário é aproximar referências de âmbitos variados. Ele não necessariamente alude a obras, autores ou textos. É o próprio texto de outro lugar, na forma de um slogan, ditado popular ou palavra de ordem, que participa do diário ao modo de uma heterogeneidade enunciativa (Authier-Revuz, 2004). Abordando a função-autor, Furlanetto (2008FURLANETTO, M. M. Gêneros e autoria: relação, possibilidades e perspectivas de ensino. In: CÍRCULO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO SUL (CELSUL), 8., 2008, Porto Alegre. Anais do VIII Encontro do Celsul. Porto Alegre: 2008. Disponível em: http://www.leffa.pro.br/tela4/Textos/Textos/Anais/CELSUL_VIII/generos_e_autoria.pdf Acesso em: 20 mar. 2015.
http://www.leffa.pro.br/tela4/Textos/Tex...
, p.14) comenta: “Todo trabalho projetado por um querer-dizer envolve, discursivamente, vozes correspondentes a enunciados próximos e distantes, e, no fluxo da tecedura, convoca autores, ou, simplesmente o ‘rumor’ contínuo da língua.”

A aproximação entre referências por si só implica contraste, produzindo efeito de humor. É frequente também o contraste no texto de tom reflexivo que modula repentinamente para o humor mediante construções desencadeadoras do efeito:

(13) A partir do momento em que colocarmos aquele discurso igualitarista em prática, poderemos salvar a nossa casa e cuidar de todos os que precisam de cuidados num instante. Eu sei que isso não tem nada a ver com o que eu falava no início, mas eu estou com muita preguiça e vai ser isso aí mesmo. Poder ao povo. Vai, planeta! Adeus, mundo cruel. Sigam-me os bons. (Sobre a entrevista Ninguém precisa abandonar a tecnologia, mas é necessário experimentar momentos de desconexão14 14 Entrevista com David Baker, cofundador da revista de tecnologia, ciência e cultura Wired Magazine, sobre a necessidade de uma relação equilibrada com a tecnologia. ).

(14) Cadê a tão famigerada magia do Natal? Que tal comemorar o aniversário de Jesus, que é o significado da festa? É muito fácil encontrar fotos de presentes natalinos no Facebook nessa época do ano, mas ninguém posta #HappyBDayJesus ou “Feliz 2.0.1.6, Jê !!!!Nem os cristãos. (Sobre o instrucional 5 passos para comprar os presentes de Natal sem pirar15 15 Texto instrucional que elenca passos para evitar transtornos nas compras de Natal. ).

Nos dois excertos, o tom sério se mantém até certo ponto e então muda repentinamente, produzindo atmosfera cômica. Em (13), isso ocorre com o autor assumindo suposta incoerência entre momentos distintos do seu texto; depois reconhece a falta de disposição em prosseguir e então recepciona enunciados de lugares discursivos diferentes, produzindo uma combinação nonsense: a palavra de ordem do âmbito político - poder ao povo; os bordões da comunicação de massa - Vai planeta (Animação de TV Capitão Planeta) e Sigam-me os bons (seriado de humor Chapolin Colorado); a “nota de suicídio” da expressividade popular bastante incorporada a textos humorísticos - Adeus mundo cruel.

Em (14), a inflexão é suscitada na figura de um Jesus comicamente encarnado a quem se poderia felicitar pelo aniversário. O aspecto religioso se emaranha com tipicidades enunciativas das redes sociais e dos rituais de felicitações - ‘#HappyBDayJesus’. Em seguida, associa-se à coloquialidade familiar na forma do apelido e ainda à simulação de ritual enunciativo da cultura com o voto de feliz ano novo: ‘Feliz 2006, Jê!!!!’. No excerto em questão, há uma crítica à religião, assinalando experiência do autor com a religiosidade que não vê manifestada nas redes: ‘Nem os cristãos’.

Como traços de uma autoria em processo, as tendências estilísticas não são aleatórias. Certos pressupostos da função-autor definidos em Possenti (2009POSSENTI, S. Questões para analistas do discurso. São Paulo: Parábola, 2009.) - avaliação, associações e tomada de posição - ocorrem no diário mediante inflexão para o humor com cruzamento de referências. São pistas de uma memória condicionada a uma época em que coexistem comunicação e discursos para as massas, avanços tecnológicos e religião. São referências legítimas, indicando saberes antecedentes com diferentes vozes sociais da herança discursiva concreta. Essa herança se constitui, entre outras coisas, pelos rudimentos de memória das leituras realizadas ao longo do tempo. São pistas de uma história de leituras do autor do diário (Orlandi, 2008ORLANDI, E. P. Discurso e leitura. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2008.). Diferentemente, a redação escolar padrão Enem resulta de práticas artificiais, como as listas de citações de filósofos, sociólogos, cientistas e ficcionistas para contemplar a exigência do processo seletivo por demonstração de repertório sociocultural.

As tendências estilísticas orientadas ao humor funcionam à maneira da jocosidade cáustica e despojada, por um lado; e por outro, ao modo do humor escandaloso e “indecente”. São modos de dizer à margem da ordem do discurso pedagógico no ensino convencional de língua, pois são trabalhados de uma posição polêmica do sujeito em função-autor. É o que esbarra na experiência escolar com a linguagem que tende à artificialidade.

6.4 O NÃO SABER ASSUMIDO E A MODALIZAÇÃO DOS DIZERES

A abertura enunciativo-discursiva do diário de leitura possibilita que a interpretação do que foi lido se textualize em formulações semelhantes, por exemplo, às da crônica, dos textos de opinião, das cartas, ou pode ser um compósito com regularidades desses gêneros e outros mais, incluindo outros estilos de diário. Associada à abertura do diário, a concepção flexível da experiência possibilitou a incorporação de traços de diário íntimo ao exemplar estudado. São remissões à família, à cidade natal ou ao cotidiano. Outro fator regular em diários íntimos que também ocorre no diário de leituras estudado é a modalização dos dizeres. Nos textos observados, embora a assertividade seja bastante regular, há também muitas passagens destoantes, significando incerteza, dúvida, estranhamento ou assunção de um não saber, de um desconhecimento, que remete à chamada escrita de si, própria dos diários íntimos. Não há, todavia, o mesmo aprofundamento na intimidade que constitui esses últimos. Assim, no diário de leituras estudado, confessar incertezas não corresponde à exposição de detalhes sensíveis da esfera íntima. Não corresponde também à imagem social do aluno que não sabe no discurso pedagógico autoritário. É um não saber de outra ordem, inclusive por poder ser assumido logo de saída, mas igualmente por parecer uma resignação leve e desinteressada, favorecida pela percepção de que não há problema em não saber tudo e que um texto não precisa sempre atestar convicção.

Entre as regularidades estilísticas assemelhadas àquelas de um diário íntimo, vamos observar a seguir a modalização que faz certas passagens polarizar com um tom mais assertivo. Indica um autor que diante do que lê não se preocupa em estar sempre certo, ser sempre coerente, ter uma resposta para todas as questões, ou dispor de capacidade para resolver qualquer problemática.

(15) É pouco texto pra fazer um diário, não sei se vai dar pra fazer algo decente, mas vamos na fé de nosso querido Yahweh. (Sobre anúncios da L'Oréal e do Boticário).16 16 Anúncios de cosmético da L'Oréal e de maquiagem do Boticário.

(16) Que peste é um epitáfio? Essa galera que compõe adora uns títulos meio loucos. Chico Science e sua Afrociberdelia, Raul Seixas e sua Gita, Renato Russo e seu Veraneio Vascaína... Não sei se é o meu vocabulário que tá muito pobre, mas que isso dificulta minha vida, dificulta. (Sobre a letra de canção Epitáfio).

(17) Teve umas referências nesse texto aí que eu não consegui pegar. “Linda Evangelista” e “Isabelle Adjani” devem ser mulheres bonitas de quem eu nunca ouvi falar. Vou até no Google ver... É isso mesmo. Modelos famosas. (Sobre a letra da canção Salão de beleza).

(18) Zeca Baleiro é um desses caras que eu recomendo ouvir, mas nunca ouvi, na verdade. (Sobre a letra da canção Salão de beleza).

(19) Fiquei deveras surpreso ao saber que o livro mais vendido no Brasil e no resto do mundo numa determinada semana era um livro de colorir. (Sobre a reportagem Vendo Livros)17 17 Reportagem do portal Uol sobre o hábito de ler.

(20) Como o racismo acontece no meu convívio social? O que eu tenho feito para combatê-lo? Tenho eu sido racista? Creio que esse tipo de reflexão seja importante e construtivo [...]

Trazemos novamente uma redação padrão Enem produzida pelo autor do diário. Para possibilitar uma noção da mudança no comportamento enunciativo-discursivo entre a autoria dos textos do diário e a da redação padrão Enem, seguem destacados modalizadores que indicam a assertividade que comentamos:

(21) Assim sendo, fica clara a necessidade de um controle maior das pessoas em relação ao conteúdo por elas postado no ambiente virtual. ONGs, escolas e universidades podem organizar palestras e programas a fim de orientar a população sobre os riscos do mundo online. É necessário também que o governo ofereça melhores e mais seguras opções de lazer, como praças, parques e bibliotecas, para diversificar os espaços de diversão dos indivíduos. A internet não deve monopolizar nossa atenção. (Redação escolar do autor do diário sobre o tema A exposição exagerada no ambiente virtual18 18 Material de arquivo pessoal. ).

Sob a lente do discurso, Furlanetto (2015FURLANETTO, M. M. Formação discursiva, autoria, filiações e metáfora. Fórum linguístico. Florianópolis, v.12, n.1, p. 595-610, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/forum/article/view/1984-8412.2015v12n1p595/29750. Acesso em: 15 set. 2018.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/for...
, p. 604) revisa a noção de identidade em Zygmunt Bauman e nos diz que “[...] identidade não se descobre, ela aparece como algo a ser inventado [...]”. É possível pensar em estilo como trabalho com a linguagem para compor uma identidade enunciativa, algo próximo à imagem do autor em Bakhtin (2010BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. de Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.) ou ao ethos discursivo em Maingueneau (2018MAINGUENEAU, D. Ethos, cenografia, incorporação. In: AMOSSY, Ruth (Org.). Imagens de si no discurso: a construção do ethos. Trad. de Sírio Possenti. 2. ed. Contexto: São Paulo, 2018. p. 69-92.). A comparação ente os dizeres do diário e os da redação padrão Enem do autor do diário sinaliza o contraste na constituição de uma identidade. Interpelado por discursos diferentes, o mesmo autor esboça identidades distintas entre um e outro texto.

O discurso pedagógico tradicional, de tendência autoritária, ritualizado no ensino convencional de língua materna, impele à constituição de uma identidade enunciativa pautada pela homogeneidade, artificialidade e excesso de regras. A leitura de diversos textos de vários autores que contemplam o padrão Enem no máximo faz pensar em um candidato treinado, competindo por uma vaga universitária. É esse o caso em (21). Na redação padrão, o autor precisa saber tudo, não pode ter dúvidas, deve estar sempre seguro e ser assertivo para “bem” argumentar. O texto dever ter no máximo trinta linhas, divididas em quatro parágrafos, com enunciação tendencialmente impessoal, elaboração de teses e argumentos que as defendam, além de emprego de conetivos, entre outros fatores. Há também necessidade de apresentação obrigatória de uma solução possível para a problemática que o tema da redação traz. O estilo predominante é o de gênero, enquanto qualquer texto mais singularizado pode não ser aceito. Além disso, é um treino para um processo seletivo de tema surpresa, muitas vezes sobre o qual na verdade pouco ou nada se sabe caso não tenha havido a sorte de adivinhá-lo ao longo do ano letivo. Quando solicitada a produção de redações padrão Enem, o autor do diário estudado sempre buscou acomodar seu texto às regras definidas.

Em seu diário, a postura muda. De nossa parte, buscamos na experiência conscientemente aderir a um discurso pedagógico tendencialmente polêmico. A mudança abriu espaço para alguns participantes desenvolverem um comportamento estilístico e discursivo mais autêntico e menos dependente do preconizado para a redação escolar tradicional. Exemplo disso é a regularidade estilística por meio da qual o autor do diário modaliza seus dizeres, rompendo, por vezes, a enunciação assertiva, e se permitindo expressar não só os saberes escolares, mas também aqueles de sua história de leituras. Daí resulta uma imagem diferente daquela que se projeta do ideal do candidato. É uma identidade que vai se delineando nas escolhas linguísticas do texto, quando remete a um autor despojado e desinibido, ao mesmo tempo que é sarcástico, áspero e assertivo, mas que também não se furta de apresentar dúvidas, surpresa e de assumir desconhecer tópicos dos textos para leitura e produção do diário. Em suma, trata-se de uma identidade autoral tendencialmente polêmica e autêntica.

7 CONSIDERAÇÕES: A ESCOLA A PARTIR DA EXPERIÊNCIA

Um diário de leituras pode ser empregado sob perspectivas didáticas diversas com diferentes resultados. Para nós, a experiência com o diário serviu, entre outros aspectos, como um diagnóstico, pois nos fez notar que a emergência de tendências estilísticas menos dependentes de uma orientação convencional é possível. Do ponto de vista didático, o aproveitamento dessas tendências passa por uma abordagem que inicie os estudantes no investimento de voz própria nos textos, ou no reconhecimento de indícios de estilo já existentes, com potencial para serem lapidados. Isso requer a posição polêmica também do professor, pois estamos falando da emergência de estilos que projetam histórias de leituras extraescolares incompatíveis com posições pedagógicas mais autoritárias. Uma abordagem muito convencional pode gerar restrições sobre o gênero, diminuindo o potencial de abertura à heterogeneidade enunciativo-discursiva. Não foi o nosso caso, pois tínhamos em vista o favorecimento da autoria discursivamente polêmica que suscitasse o extraescolar.

A experiência até encontra alguma simetria com o previsto em parte do discurso oficial que orienta o modelo educacional, pois em várias passagens os PCNs e a LDB defendem um processo educacional abrangente e integral, voltado para a formação do sujeito ético, crítico, criativo e que exerça a cidadania. Mas em número considerável de escolas essa orientação é ofuscada pela hegemonia da correção, com foco no erro e nos elementos formais, sobretudo quando os estudantes avançam no Ensino Médio. Quando muito, os princípios do pensamento crítico, da ética, cidadania e criatividade convertem-se apenas em diretrizes prosaicas para produzir textos comportados ou redações condizentes com exigências do Enem, o que nos lembra Maingueneau (2008MAINGUENEAU, D. Cenas da enunciação. POSSENTI, S.; SOUZA-E-SILVA, M.C.P. de (Org.). São Paulo: Parábola Editorial, 2008., p. 69), retomando Benveniste e comentando os “[...] textos em que parece que ‘ninguém fala’”.

Mas no diário estudado parece que “alguém fala”, ou melhor, vozes exteriores falam e em certos momentos o que enunciam pode soar engraçado, irônico e despojado; em outros, o que é dito pode parecer seco, atrevido ou questionador. Todos esses aspectos fazem funcionar um discurso polêmico, inclusive estilisticamente, algo ainda difícil de encaixar nos propósitos da escola do modo como a instituição permanece estruturada.

O sistema escolar é paradoxal. Almeja a cidadania, a ética e a liberdade do estudante, mas no fim das contas é fortemente determinado por seleções universitárias e pela necessidade que se ergue diante de todos nós de um lugar no exaustivo e tedioso mercado de trabalho para garantir sobrevivência no capitalismo. E por sermos obrigados a esse encaixe, pode-se questionar a relevância de se desenvolver um estilo subjetivo ou de deixar funcionar a memória que de fora da instituição escolar fecunde o texto. Escrever com estilo próprio e criatividade não leva à aprovação em seleções universitárias. A certa altura do Ensino Médio, só importa desenvolver a competência para um estilo de gênero, o dissertativo-argumentativo. Cabe então manter vivo o antigo debate sobre o modelo escolar e as instâncias que o determinam.

A questão obviamente não é nova. A instituição escolar no Brasil e no mundo esteve sempre em litígio. Não só pedagogos, professores, gestores e pais têm participado desse debate infinito sobre o que a escola deve ser. Filósofos, sociólogos, historiadores e pensadores em geral há muito também discutem o papel da escola. Uma das análises que julgamos acertadas é a de Mészáros (2008MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. Trad. de Isa Tavares. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2008.): “[...] o capital é irreformável porque pela sua própria natureza, como totalidade reguladora sistêmica, é totalmente incorrigível. [...] É por isso que é necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente. (p. 27, itálico no original).”

A força do argumento de Mészáros (2008MÉSZÁROS, I. A educação para além do capital. Trad. de Isa Tavares. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2008.) deve ser admitida, mas mesmo sabendo que sem mudança de sistema de produção todo o restante pouco muda, é por uma questão de ética e de respeito aos estudantes que alguns professores não se furtam a lhes oferecer alternativas didáticas que prestigiem sua personalidade, o pensamento, a reflexão e a crítica, inclusive sobre as instituições. Tal postura pode auxiliar o desenvolvimento de uma espécie de sensibilidade intelectual, que se sozinha está longe do suficiente para deflagrar processos objetivos de transformação, pode, ao menos, evitar a submissão completa de alguns dos sujeitos ao automatismo das condições modernas de vida social. Assim é importante haver terreno para discursos pedagógicos polêmicos, abertos à heterogeneidade discursiva e social, com potencial não só para acolher o diferente, mas inclusive para direcionar o olhar estudantil à conjuntura política e social, ou mesmo para questionar a própria instituição escolar e os papéis sociais aí definidos.

REFERÊNCIAS

  • ABAURRE, M.B.M.; FIAD, R.S.; MAYRINK-SABINSON, M.L.T. Cenas de aquisição da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 2006.
  • ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos de Estado: notas sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Tradução de Walter Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. 9. ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2003.
  • AUTHIER-REVUZ, J. Entre a transparência e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Trad. de Alda Scher e Elsa Maria Nitsche. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
  • BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. de Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
  • BAKHTIN, M. Questões de estilística no ensino da língua. Trad. de Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Ed. 34, 2013. p. 23-43.
  • BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. de Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
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  • FURLANETTO, M. M. Gêneros e autoria: relação, possibilidades e perspectivas de ensino. In: CÍRCULO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS DO SUL (CELSUL), 8., 2008, Porto Alegre. Anais do VIII Encontro do Celsul. Porto Alegre: 2008. Disponível em: http://www.leffa.pro.br/tela4/Textos/Textos/Anais/CELSUL_VIII/generos_e_autoria.pdf Acesso em: 20 mar. 2015.
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  • SUASSUNA, A. Iniciação à estética. 10. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
  • 1
    A redação escolar padrão Enem é um exemplo.
  • 2
    Empregamos somente a expressão ‘diário de leituras’. O pressuposto é de que há reflexão quando um texto é escrito acerca de outro que foi lido e interpretado. Acreditamos que o processo reflexivo esteja presumido na expressão.
  • 3
    Curso que engloba a formação geral do Ensino Médio e formação técnica específica.
  • 4
    Não há convenção precisa determinando diferenças entre formulações curtas e longas. Como abordamos a questão, vamos arriscar hipóteses. As formulações consideradas longas comumente apresentam enunciados intercalados ou justapostos, locuções adverbiais, uso de termos cuja eliminação não altera radicalmente o sentido, gerúndio, ou outro recurso, conectando, em um mesmo enunciado, segmentos que poderiam ser enunciados “independentes”, excesso de conectivos, entre outras situações. O oposto dessas características geralmente produz formulações consideradas concisas.
  • 5
    Empregamos Ø para marcar a ausência de conectivo no interior do segmento.
  • 6
    Reportagem com discurso comportado que defende a rotina, simplicidade, relações estáveis em oposição ao que se considera no texto uma vida extravagante, acelerada e irresponsável.
  • 7
    Letra de canção de Zeca Baleiro sobre a ideia de beleza feminina padronizada e as exigências sociais em torno disso.
  • 8
    Crônica de Luiz Felipe Pondé acerca de uma suposta hipocrisia das pessoas em sua relação com o dinheiro.
  • 9
    Material de arquivo pessoal.
  • 10
    Reportagem sobre a vida de Daniel Suelo, americano que por questões religiosas vive sem dinheiro e trabalha em troca somente do que precisa para suprir as necessidades mais básicas.
  • 11
    Entrevista com o filósofo italiano Umberto Gallimberti sobre o advento da técnica e suas implicações para as sociedades.
  • 12
    Letra de canção da banda Titãs que preconiza um tipo de vida com satisfação de desejos e menos impedimentos.
  • 13
    Os exemplos são formas de expressividade de falares diversificados da Região Nordeste. Lembramos que a experiência ocorreu em um instituto federal de um dos estados da região.
  • 14
    Entrevista com David Baker, cofundador da revista de tecnologia, ciência e cultura Wired Magazine, sobre a necessidade de uma relação equilibrada com a tecnologia.
  • 15
    Texto instrucional que elenca passos para evitar transtornos nas compras de Natal.
  • 16
    Anúncios de cosmético da L'Oréal e de maquiagem do Boticário.
  • 17
    Reportagem do portal Uol sobre o hábito de ler.
  • 18
    Material de arquivo pessoal.

Editores de Seção:

Fábio José Rauen e Andreia da Silva Daltoé

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Jul 2023
  • Aceito
    11 Dez 2023
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