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ENTRE OS PLANOS HUMANO E DIVINO: UMA ANÁLISE DE DISCURSOS RELIGIOSOS NA MÍDIA* * Para a elaboração deste artigo utilizamos dados coletados e análises realizadas na dissertação de mestrado de um dos autores (Patriota, 2003).

BETWEEN THE DIVINE AND THE HUMAN PLANES: AN ANALYSIS OF THE RELIGIOUS DISCOURSE IN THE MEDIA

ENTRE LES PLANS HUMAINS ET DIVINS: UNE ANALYSE DE DISCOURS RELIGIEUX DANS LES MÉDIAS

ENTRE LOS PLANES HUMANO Y DIVINO: UN ANÁLISIS DE DISCURSOS RELIGIOSOS EN LA MIDIA

Resumo

O presente trabalho relata uma pesquisa e aporta reflexão sobre um gênero discursivo específico: o sermão midiático. Os sermões, que em um período anterior, se limitavam aos púlpitos dentro dos templos, hoje contam com os grandes suportes tecnológicos da comunicação de massa, tais como o rádio e a televisão, fazendo surgir na mídia novos formatos e novas regras para o discurso religioso.

Palavras-chave:
sermão; gênero discursivo; religião; mídia

Abstract

This paper discusses a specific speech genre known as mediatic sermons. In former times sermons were limited in their expression to the pulpit, at the temples. Nowadays they are supported by mass communication means such as radio and television. As a result new media formats and new rules have been generated for religious discourse.

Keywords:
sermon; genre; religion; media

Résumé

Ce travail fait le rapport d’une recherche et apporte des réflexions sur un genre discursif spécifique: le sermon médiatique. Les sermons qui autrefois se limitaient aux chaires, dans les temples, aujourd’hui comptent avec de grands supports technologiques de communication de masse, telles que la radio et la télévision, faisant apparaître dans les médias de nouveaux formats et de nouvelles règles pour le discours religieux.

Mots-clés:
sermon; genre discursif; religion; médias

Resumen

Este trabajo relata una investigación y aporta reflexión acerca de un género específico de discurso: la prédica midiática. Las prédicas, anteriormente limitadas a los púlpitos en el interior de los templos religiosos cuentan, en la actualidad, con los grandes soportes tecnológicos de la comunicación de masas, como la radio y la televisión, de lo que resultan nuevas configuraciones y nuevas reglas al discurso religioso en la midia.

Palabras-clave:
prédica; género discursivo; religión; midia

1 APRESENTAÇÃO

A proposta neste artigo é analisar alguns discursos religiosos veiculados na mídia, a partir de um estudo delimitado pelas teorias de Gêneros do Discurso, observando o que está tematizado nos sermões midiáticos bem como, a forma que tais sermões são transmitidos nos mass media. Por séculos, tal discurso foi mantido exclusivamente dentro das quatro paredes dos templos ou, no máximo, nas escassas pregações em praças públicas. Agora, este discurso milenar assume novos contornos e não se conforma mais em ser pronunciado apenas àqueles que buscam escutá-lo. Ele vai além, e, sem cerimônia alguma, invade milhões de lares através da televisão e do rádio, incorporando características de outros domínios discursivos, como o midiático.

2 METODOLOGIA DA ANÁLISE

A noção de discurso é imprescindível para a compreensão deste nosso trabalho. Entendemos que o discurso, além da lingüística, também é alvo das outras ciências sociais e humanas, e nesse percurso, toma uma configuração diferenciada e não apenas pára, necessariamente, na materialidade da linguagem:

...os conceitos de discurso vão da mais estrita descrição lingüística-textual, em que discurso é simplesmente “um período contínuo de [...] linguagem maior do que a sentença” (CRYSTAL, 1985, p. 96), que pode ser falado ou escrito, ou ambos, e é de autoria única ou dialógico, até macroconceitos que tentam definir teoricamente formações ideológicas ou “discursivas” que organizam sistematicamente o conhecimento e a experiência e reprimem alternativas através de seu domínio. (OUTHWAITE e BOTTOMORE, 1996OUTHWAITE, William; BOTTOMORE, Tom (Eds.). Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996., p. 214)

Se tentarmos analisar o conceito de discurso, percebemos que não se trata simplesmente de aplicar a lingüística sobre as ciências sociais, nem muito menos aplicar as ciências sociais à lingüística, afinal, temos o conhecimento de que a linguagem é desnudada pela lingüística não só no aspecto da língua, mas também na sua exterioridade, semelhantemente, tal exterioridade é exposta através das ciências sociais.

Outro aspecto que devemos enfatizar, diz respeito à sua própria condição de produção, ou seja, onde, como e quando o discurso é produzido. Segundo Volosinov (1926), o discurso, no sentido em que nasce por meio de indivíduos socialmente organizados, é ideológico. Dessa forma, não pode ser compreendido fora do seu contexto.

De forma similar, Orlandi (1988______. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 1988.) argumenta que, para a compreensão de um discurso, é necessário estar atento às condições em que foi produzido e considerar a linguagem como “interação, vista esta na perspectiva em que se define a relação necessária entre o homem e realidade natural e social” (ibid., p. 17). Para a autora, o dizer de um texto não se origina somente no desejo do ator em cena, mas nasce de outros discursos:

Do ponto de vista discursivo, as palavras, os textos, são partes de formações discursivas que, por sua vez, são partes de formação ideológica. Como as formações discursivas determinam o que pode e deve ser dito a partir de uma posição dada em conjuntura dada, assim é que se considera o discurso como fenômeno social. (ORLANDI, 1987ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2. ed. Campinas: Pontes Editores, 1987., p. 158)

Dessa forma, ao interrogarmos a transparência da linguagem, fazemos a ligação entre o discurso e o seu contexto sócio-histórico, sem a pretensão de interpretar literalmente o conteúdo, mas ao mesmo tempo percebendo que o discurso em questão traz em sua superfície a evidente marca da sua historicidade e ideologia, expondo, assim, a relação constitutiva da linguagem com o social.

Maingueneau (1998, p. 52) argumenta que “o discurso é uma organização situada para além da frase”, não que todo discurso se realize por uma seqüência de palavras necessariamente superiores à frase, mas mobilizando estruturas de uma outra ordem que as da frase, afinal, existem discursos que formam uma unidade plena, completa, mesmo que construídos numa única frase:

Os discursos enquanto unidades transfrásticas estão submetidos a regras de organização vigentes em um grupo social determinado: regras que governam uma narrativa, um diálogo, uma argumentação; regras relativas ao plano de texto (um fait divers não pode ser dividido como uma dissertação ou como um manual de instruções); regras sobre a extensão do enunciado etc. (ibid., p. 52)

Devemos perceber que o discurso é orientado, e isso não ocorre apenas porque o mesmo é concebido na perspectiva de um interlocutor, mas também porque os discursos se inserem linearmente no tempo, construindo-se a partir de uma finalidade e se dirigindo a algum lugar (MAINGUENEAU, op.cit).

Como o discurso religioso na mídia sempre foi foco de nosso interesse, resolvemos tomar como corpus inicial da pesquisa, um conjunto de 113 sermões proferidos na sede internacional da Igreja Apostólica Renascer em Cristo, em São Paulo, entre março de 1999 a fevereiro de 2001, por diversos pastores, pastoras, bispos, bispas, incluindo o apóstolo Estevam Hernandes. Os referidos sermões foram transmitidos ao vivo em cadeia nacional pela Rádio FM Manchete Gospel e pela Rede Gospel de TV a cabo para os assinantes de São Paulo. Por interesse pessoal, havíamos gravado estes sermões a partir da transmissão feita pela rádio.

Optamos em trabalhar apenas com os sermões proferidos pelo apóstolo Estevam Hernandes e pela bispa Sônia Hernandes. Ambos foram escolhidos por serem os fundadores da Igreja Renascer e porque toda a orientação estrutural da instituição parte da direção da autoridade dos dois. Dividimos o corpus restrito em três de sermões do apóstolo Estevam e três sermões da bispa Sônia, que versam sobre os temas mais comumente pregados na Igreja Renascer no período acima citado. A análise mais detalhada dos sermões, de caráter qualitativo, resumiu-se ao corpus restrito.

3 GÊNEROS DISCURSIVOS

Hoje, a noção de gêneros discursivos1 1 Quanto à noção de gênero, Maingueneau (1987) entende gêneros como dispositivos de comunicação sóciohistoricamente definidos, isto é, atividades de linguagem mais ou menos ritualizadas e submetidas a regras que as constituem: as coerções genéricas, referentes ao estatuto do enunciador e co-enunciador, às circunstâncias temporais e locais da enunciação, ao suporte e aos modos de difusão e aos temas que podem ser abordados, entre outras. se estende a todos os tipos de produções verbais. Os gêneros discursivos são fenômenos históricos, ou seja, estão necessariamente atrelados ao contexto cultural e social. Todavia, os gêneros discursivos não podem simplesmente ser tomados como “estruturas” ou “roteiros” que se encontram disponíveis, para que o locutor utilize-os como molduras para o seu enunciado.

Como fruto de um trabalho coletivo, os gêneros discursivos proporcionam o ordenamento e a estabilização de todas as atividades comunicativas do cotidiano. Trata-se, portanto, de formas discursivas que colaboram sobremaneira para a instituição de qualquer situação comunicativa.

Contudo, mesmo evidenciando seu poder preditivo e interpretativo na formulação dos discursos, os gêneros não impossibilitam ou inviabilizam o processo criativo do enunciador. Mesmo que alinhados a um formato “padrão”, apresentamse igualmente maleáveis, versáteis, assumindo contornos, por diversas vezes, bem diferenciados.

Isso ocorre pela própria necessidade de ajustamento sócio-cultural na relação comunicativa que se desenvolve entre interlocutores. Para comprovar este aspecto, basta que verifiquemos a quantidade de gêneros discursivos que hoje existem em relação a sociedades anteriores à comunicação escrita.

Assim, é possível, numa breve observação, percebermos o surgimento de um conjunto consideravelmente grande de novos gêneros discursivos, principalmente os relacionados à nossa era tecnológica com novos suportes de comunicação, que possibilitam o aparecimento de novos gêneros, que em sua maioria são herdeiros de gêneros pré-existentes, comprovando uma das principais características genéricas, a herança sócio-histórica.

Os gêneros discursivos surgem, situam-se e integram-se de maneira funcional nas culturas em que se desencadeiam. Neste contexto, acabam por caracterizar-se por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais no processo comunicativo, transcendendo, conseqüentemente, seus formatos lingüísticos e estruturais. Assim sendo, torna-se difícil uma definição formal e limitada.

Os gêneros discursivos são caracterizados como práticas sócio-discursivas e, assim como surgem, podem desaparecer.

Importante ressaltar que a competência comunicativa de lidar com os gêneros é partilhada pelos membros de uma determinada comunidade, assegurando a possibilidade de comunicação verbal. A isso, Maingueneau (1998, p. 43-44) denomina também de competência genérica e afirma que:

Mesmo não dominando certos gêneros, somos geralmente capazes de identificá-los e de ter um comportamento adequado em relação a eles. Cada enunciado possui um certo estatuto genérico, e é baseando-se nesse estatuto que com ele lidamos: é a partir do momento em que identificamos um enunciado como um cartaz publicitário, um sermão, um curso de língua etc., que podemos adotar em relação a ele a atitude que convém. [...] A maior parte dos membros de uma sociedade é capaz de produzir enunciados no âmbito de um certo número de gêneros de discurso [...] Mas nem todo mundo sabe redigir uma dissertação filosófica...

O nosso corpus é caracterizado por um gênero discursivo específico, desenvolvido dentro de uma comunidade também específica. Este corpus sofre interferência das novas tecnologias, especificamente as ligadas à área da comunicação de massa, que, como já dissemos, inegavelmente tem propiciado o aparecimento de novos gêneros discursivos.

É claro que não são as tecnologias, apenas, que originam e criam os gêneros, mas não se pode negar que a potencialidade e a intensidade dos seus usos acabam por interferir nas atividades comunicativas diárias.

4 OS SERMÕES MIDIÁTICOS

O nosso corpus, composto unicamente de sermões, (gênero discursivo que em um período anterior limitava-se aos púlpitos dentro dos templos), hoje conta com os grandes suportes tecnológicos da comunicação, tais como o rádio e a televisão, assumindo contornos bastante característicos, já que o suporte influencia nos gêneros.

Bakhtin (1979BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad. de Maria Ermantina G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1979.) esclarece sobre a ‘transmutação’ dos gêneros, que nada mais é do que a assimilação de um gênero por outro, gerando novos gêneros. No nosso caso, os sermões continuam sermões, entretanto assumem formatos próprios que emergem das características inerentes ao discurso midiático.

É válido lembrar que a atividade de pregar ou proclamar a religião cristã através de sermões ou pregações é uma atividade efetiva de reformulação. Afinal, sempre se restaura o conteúdo de um texto fonte, que é a própria Bíblia, e a partir dele é trazido à tona uma interpretação. Como nos esclarece Orlandi (1996______. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.), a interpretação não é apenas um simples gesto que decodifica e apreende os sentidos, na verdade, o ato de interpretar é o de exposição à opacidade do texto, ou seja, tentativa de explicar como um objeto simbólico pode produzir seus sentidos.

Todavia, no caso que estamos analisando, a interpretação acaba por acarretar o processo hermenêutico que se dá no próprio ato de leitura da Bíblia, gerando um parafraseamento acatado e aceito como verdadeiro pelos receptores do referido discurso.

Estes interlocutores são formados e constituídos por fiéis que almejam uma interpretação convincente dos textos contidos nas Escrituras. Para que isso ocorra, estabeleceu-se no meio religioso a crença de que há porta-vozes de Deus que reinterpretam e explicam os mistérios e revelações presentes na Bíblia. Podemos validar tal comportamento pelo que vemos nas mais diversas igrejas, onde seus fiéis sentam-se para ouvir os padres ou pastores discorrerem sobre os textos bíblicos, sempre trazendo contextualizadas interpretações. Ferreira (2001FERREIRA, M. Glossário de termos do discurso. Porto Alegre: Instituto de Letras da UFRGS, 2001., p. 19-20) diz que:

A interpretação sempre pode ser outra, mas o movimento interpretativo não é um movimento caótico, não regido. As condições de produção e a própria possibilidade de abertura impõem determinações, limites a esse movimento, o que significa dizer que a interpretação pode ser múltipla, mas não qualquer uma.

Quando falamos aqui em interpretação, estamos nos referindo à interpretação do texto fonte, a Bíblia, tornando-se importante pontuar que a pessoa dotada de autoridade para interpretar a Bíblia é elevada a uma situação peculiar, pois, de acordo com a concepção religiosa, trata-se de alguém previamente preparado intelectualmente, através do estudo específico dos textos bíblicos e devidamente escolhido por Deus para tal anúncio (essa é uma crença comum aos que pertencem a comunidades religiosas em geral). Isto também é respaldado lingüisticamente. É o que nos diz Maingueneau (1993MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. 2. ed. Trad. de Freda Indursky. Campinas: Pontes, 1993 [1987]./1987, p. 97):

Remetendo ao Código lingüístico e/ou saber que ela presume, a paráfrase coloca aquele que a ela recorre em posição de enunciador “autorizado”, capaz de dominar signos. Enquanto o enunciador comum contenta-se em dizer, aquele que pode lembrar o que as palavras significam e retornar ao fundamento se apresenta como o que tem acesso, ultrapassando as armadilhas e imperfeições da linguagem, a este lugar onde o discurso reencontraria a própria casa.

Traçando um paralelo com os sermões, é importante esclarecer que ao falarmos em interpretação e em domínio de signos, referimo-nos a hermenêutica presente nestes discursos. Entendemos que não existe uma única interpretação da Bíblia, ela está necessariamente atrelada aos diversos aspectos presentes na percepção de quem procede à interpretação, como o lugar na vida, suas experiências e os instrumentos que dispõe, além da intenção de quem interpreta. Isso pode explicar também, a existência de diversas religiões cristãs que usam, inclusive, a mesma Bíblia.

Neste caso, a interpretação do texto fonte (a Bíblia) procura achar o caminho que se aproxime ou reflita a própria verdade de Deus. Esta verdade passará a estar disponível quando os enunciadores transformam-se em intérpretes do texto sagrado. Vemos isso claramente nos objetos analisados, quando os enunciadores reclamam para si a inspiração divina. Vejamos alguns casos:

(1) E eu tenho uma palavra do Senhor, eu ministrei na quinta-feira e eu quero ministrar para vocês. (Bispa Sônia Hernandes - Sermão 01)

(2) O Espírito Santo Ministrou ao meu coração neste dia: “A natureza aguarda com expectativa a manifestação dos filhos de Deus”. Sabe que significa? Que nós somos agentes curadores desta terra. (Apóstolo Estevam Hernandes - Sermão 01)

Na Igreja Renascer, e em todas as igrejas com teologia neopentecostal2 2 Corrente doutrinária que prega prosperidade financeira e espiritual na terra através de líderes carismáticos que anunciam suas posições de ministros e profetas de Deus. Trata-se de um discurso religioso que prima, acima de tudo, por uma teologia pragmática, repleta de símbolos do sucesso terreno. , o discurso é alicerçado no lugar onde é estabelecido um contrato implícito de troca simbólica de enunciados com os destinatários, conferindo assim ao falante, a condição de ser autorizado a falar daquilo que fala e do modo que fala (FOUCAULT, 1971). Ou seja, através do gênero analisado, os enunciadores do discurso religioso, em nosso caso os fundadores da Igreja Renascer, produzem claramente nas suas falas as condições para a codificação e interpretação de um discurso tido como portador de autoridade divina: “E eu tenho uma palavra do Senhor...” ou “Sabe que significa? Que nós somos agentes curadores desta terra”. Com efeito, isso é possível graças à preparação prévia intelectual, bem como pela legitimidade social de que goza o campo religioso.

Assim podemos dizer que a voz de Deus se fala no pregador (do sermão), como se Deus falasse: a voz do pregador é a voz de Deus. A esse respeito Orlandi (1987ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2. ed. Campinas: Pontes Editores, 1987., p. 243) afirma que:

Partindo, então, da caracterização do discurso religioso como aquele que fala a voz de Deus, começaria por dizer que, no discurso religioso, há um desnivelamento fundamental na relação entre locutor e ouvinte: o locutor é do plano espiritual (o Sujeito, Deus) e o ouvinte é do plano temporal (os sujeitos, os homens). Isto é, locutor e ouvinte pertencem a duas ordens de mundo totalmente diferentes e afetadas por um valor hierárquico, por uma desigualdade em sua relação: o mundo espiritual domina o temporal. O locutor é Deus, logo, de acordo com a crença, imortal, eterno, infalível, infinito e todo-poderoso; os ouvintes são humanos, logo mortais, efêmeros falíveis, finitos, dotados de poder relativo. Na desigualdade, Deus domina os homens.

No nosso corpus, o enunciador pleiteia um lugar privilegiado, de autoridade divina - alguém que interpreta e discerne a revelação das palavras de Deus. Portanto, alguém que teoricamente não pode ser questionado, muito pelo contrário, é necessário acatá-lo, ouvi-lo e segui-lo. Apesar disso, ressalte-se, ao que parece, a maioria dos receptores (os fiéis) sabe que está diante de representantes de Deus e não do próprio Deus, mesmo assim tais representantes, como dito, gozam de legitimidade perante essa comunidade e proferem seus sermões valendo-se desse crédito:

(3) Eu tenho duas revelações mesmo, de Deus para entregar para você hoje. (Bispa Sônia Hernandes - Sermão - 01)

(4) Senhor, me revela! Pessoas que não conseguem dormir na cama com seu marido, nem o marido com a esposa... uma coisa horrível [...] Eu estou vendo pessoas agora falando: “Meu Deus, eu to aqui também nesse culto, me visita! O Senhor tá te visitando! O Senhor está te visitando! Aleluia! Aleluia! Aleluia! (Bispa Sônia Hernandes - Sermão - 03)

(5) Você está livre, o Senhor me mostra aqui... Pessoas sendo libertas de doenças que estavam trazendo esterilidade, irmãs que aqui não podiam

Ter filhos, o Senhor vai te curar hoje! (Apóstolo Estevam Hernandes - Sermão - 01)

Uma das características mais marcantes do discurso da Igreja Renascer, bem como do discurso neopentecostal propriamente dito, é que suas ênfases são dadas nas revelações diretas (Deus falando diretamente ao profeta - pregador), nas curas, na batalha espiritual, e particularmente numa maneira sobrenatural de encarar a realidade espiritual. É isso que observamos nos trechos acima.

É óbvio que nem todo sermão constitui-se em um gênero discursivo que apresenta idênticas particularidades. Nos discursos da Igreja Renascer, por exemplo, a interpretação dos sermões é caracterizada por uma leitura das Escrituras e da realidade, sempre alicerçada pela ação sobrenatural de Deus.

As revelações, pleiteadas pelos pregadores da igreja, fazem com que Deus seja percebido somente em termos de sua ação extraordinária. Para os fiéis, é repassado que Deus os guia em suas vidas diárias através de impulsos, sonhos, visões e palavras proféticas, dando sempre as soluções aos seus problemas de forma miraculosa (“O Senhor está te visitando!”), como libertações (“Você está livre, o Senhor me mostra aqui...”), livramentos, exorcismos e curas (“...o Senhor vai te curar hoje!”).

5 O DITO DE DEUS E O DIZER DO HOMEM

Na representação da voz de Deus pelos pregadores, instaura-se uma relação característica entre o falante e o ouvinte mantendo um claro e peculiar distanciamento entre o dito de Deus e o dizer do homem” (ORLANDI, 1987ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2. ed. Campinas: Pontes Editores, 1987., p. 245). Em outras palavras, existe uma definida separação entre a significação divina e a linguagem humana. Conforme argumenta Orlandi, “separação essa que deriva da dissimetria entre os planos”. Ou seja, a obscuridade do discurso religioso apresenta uma significação inacessível, por vezes incompreensível, mas que desencadeia no ouvinte um desejo de conhecimento e obediência, mesmo que isso só seja possível através da crença.

Essa dissimetria entre os planos humano e divino é respaldada pela necessidade da fé em uma espécie de círculo paradoxal: só através da atitude de crer, independentemente do que é explicável ou visível, é possível contemplar o mover de Deus na vida dos fiéis. Dessa forma, a dissimetria forjada no discurso se sustenta pela fé, que, por sua vez, é construída discursivamente, na instituição e na pregação. Inclusive, segundo a Bíblia: “De sorte que a fé é pelo ouvir, e o ouvir pela palavra de Deus” (BÍBLIA - Epístola de Paulo aos Romanos 10:17).

O homem apenas diz o que Deus quer que Ele diga. Só os que crerem, poderão ser alvos da benção que Deus libera. Por isso, nos sermões da Renascer, vemos repetidamente a inserção do verbo “crer”, que funciona como um ato de fala poderoso que instaura em si mesmo as possibilidades de mudança:

(6) Crê nisso! Crê que o Senhor te chamou nessa chuva hoje para falar isso com você? Crê que o Senhor tirou você da cama hoje para falar isso com você? Não é possível que Deus tenha feito isso com você para nada! (Bispa Sônia Hernandes - Sermão - 01)

(7) Será que você crê que Deus pode fazer isso com você?

[...] Um milagre na sua vida! (Bispa Sônia Hernandes - Sermão - 02)

(8) “Crê no Senhor Jesus Cristo e será salvo tu e a tua casa”. Creia no Senhor Jesus Cristo! Você vai ser salvo do inferno [...] Crê no Senhor Jesus, creia, creia! Fala: Jesus para ti não há nada impossível. (Bispa Sônia Hernandes - Sermão - 03)

(9) Você crê que o Senhor pode abrir as janelas do céu sobre a tua vida? Você crê mesmo que a tua oração agora pode mudar a tua sorte? Então deixe o Espírito Santo do Senhor te tocar! (Apóstolo Estevam Hernandes - Sermão - 02)

Assim verificamos que, mesmo regulada, a interpretação da palavra de Deus, pode fazer surgir, em seus diferentes enunciados, a indução de comportamentos e crenças. A atitude de crença é, no discurso da Igreja Renascer e nos demais discursos religiosos, o único instrumento para a obtenção das bênçãos divinas. Ou seja, o que não é visto, tocado, materializado ou tangível, deve, impreterivelmente, ser crido para que se possa, de fato, ser experimentado.

6 OS ENUNCIADOS DIVINOS

É possível verificar, quando analisamos sermões, que de um mesmo texto bíblico, interpretado por diferentes igrejas, podem surgir significados totalmente distintos. Neste sentido, Almeida (1998ALMEIDA, J. Polissemia e paráfrase nas falas de Lula e FHC sobre o Real. Trabalho apresentado no II Lusocom (Encontro Lusófono de Ciências da Comunicação). UFS, Aracaju, 28 a 30 de abril de 1998.), argumenta que “uma mesma frase, um mesmo encadeamento de formas lingüísticas significantes, pode dar origem a enunciados diferentes”.

Nos sermões analisados do nosso corpus, vemos a instrução religiosa totalmente exposta ao jogo das interpretações, mesmo que a finalidade do sermão seja ensinar, aconselhar, admoestar, converter e orientar a partir dos princípios divinos. Podemos dizer que surgem assim os “enunciados divinos”, afinal, é Deus quem fala e o ser com quem se fala.

No caso dos discursos religiosos da Renascer, todos eles são recheados de orações intercessórias. Esta premissa dá sentido a dois atos rituais característicos dos sermões neopentecostais: a oração e a libertação. Por isso, os pregadores ao se dirigirem a Deus intercedem, suplicam, clamam, “determinam” ou profetizam sobre as vidas dos fiéis. Assim, normalmente, a própria fala do pregador é ritualizada. Segundo Orlandi (1987ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2. ed. Campinas: Pontes Editores, 1987.), “dada de antemão”:

Há fórmulas para se falar com Deus, mesmo quando se caracteriza essa relação de fala pela familiaridade, pela informalidade. Isso porque, quando se fala com Deus, se o faz por orações ou por expressões mais ou menos cristalizadas (como: Ó meu Deus! Faça com que...). (op cit., 1987, p. 247)

Podemos observar nos sermões que analisamos, essa formatação peculiar. O nosso corpus obedece a uma ritualização que incorpora expressões cristalizadas. Verificamos dois tipos de enunciados cristalizados: no primeiro, os pregadores falam diretamente com os fiéis (“levanta a mão”, “fala assim...”) e suas falas configuramse em uma ação. No segundo tipo de enunciado, vemos os pregadores falarem em nome dos fiéis, assim, falam diretamente com Deus (“Eu te peço Senhor..”). Ou seja, são posicionamentos discursivos diferentes.

Observamos em diversos trechos, que as expressões cristalizadas correspondem principalmente a petições: “Senhor...”, “Eu te peço...”, “me lava”, “me libera”, “tira”, “dá-me”, ou a expressões bem peculiares aos discursos neopentecostais: “eu não aceito”, “eu repreendo” ou “eu declaro”. Outra evidência de um falar “dado” com antecedência é o fato da constante orientação para que os fiéis levantem suas mãos: “levanta a sua mão para o céu”, neste ato de fala, que implica em uma ação, percebemos em sua “fórmula” a preocupação com um referente que está em cima (Deus no céu), configurando a crença de “consagração”, fruto de rituais de religiosidade.

Um outro aspecto que vale ser ressaltado é o de que, no caso do sermão, ele sempre partirá de um falante autorizado (padres, pastores, bispos, apóstolos etc) onde se supõe que tais autoridades eclesiásticas detenham um saber especial para o exercício do “ministério” da Palavra divina, e assim estas autoridades podem dirigir este saber a um público que supostamente não é portador de tal saber, e ainda ministrar bênçãos sobre ele.

Neste contexto, ainda há dois aspectos relevantes à interpretação das palavras, a pertinência das regras em relação aos planos temporal (os sujeitos, os homens) e espiritual (o sujeito, Deus) (ORLANDI, 1987ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2. ed. Campinas: Pontes Editores, 1987.). Isso os pregadores da Renascer conseguem estabelecer com bastante clareza. Na ordem temporal, os pregadores, que são os agentes de interpretação dos textos sagrados, apresentam-se como a própria “encarnação” da proposta de prosperidade em qualquer segmento terreno e finito: familiar, financeiro, pessoal ou profissional. Os exemplos abaixo mostram isso:

(10) Segundo a unção do Senhor na minha vida! Eu reparto com a tua vida! Segundo a bênção no meu casamento, eu reparto no teu casamento! Segundo as vitórias que o Senhor tem dado do meu ministério, eu reparto contigo, nesta noite! (Apóstolo Estevam Hernandes - Sermão 01)

(11) Agora, uma coisa eu sempre ouvi falar, depois que eu entreguei minha vida pra Jesus, e isso sempre foi verdade... nunca me faltou nada!

E a hora que eu mais preciso veio o livramento de Deus, e em horas que eu nem espero, Deus abre uma porta grande, que transborda, que sobeja, que vem que é porção transbordante de Deus. Amém? (Apóstolo Estevam Hernandes - Sermão 03)

Como podemos observar nestes trechos, os pregadores se colocam como sujeitos referenciais: “depois que eu entreguei minha vida pra Jesus,[...] nunca me faltou nada!”. A experiência do pregador(a) passa a respaldar a estrutura discursiva das suas próprias falas. Dessa forma, o plano temporal é marcado pelo espontaneísmo dos pregadores que falam sobre si mesmos, substituindo o lugar da reflexão teológica. Ao apresentarem-se como modelos, também aboliram os tradicionais e estereotipados usos e costumes de santidade; e se definem pela tríade: cura, exorcismo e prosperidade.

Com esta forma de falar com a platéia, carregada de emoção e de “testemunho”, vemos a estrutura discursiva apresentar, como fio condutor, o ensino sobre a prosperidade e vitórias: “Segundo as vitórias que o Senhor tem dado do meu ministério...”, desencadeando a formação de um peculiar modo de ser, que visa propor a substituição gradativa do estilo de vida anterior do fiel.

Já na ordem espiritual, como os evangélicos não aceitam a mediação entre os santos, como ocorre na Igreja Católica Romana, algumas vezes, surgem em meio aos sermões, a evocação dos anjos como enviados de Deus: “Não se apavore! O Senhor vai enviar anjos!” ou “Peça: Senhor envia os teus anjos! Os teus anjos ministradores!”. Entretanto, tais anjos não podem ser considerados como mediadores ou exemplos. Os pregadores enfatizam que estes seres angélicos nada mais são do que enviados de Deus. Muito embora verifiquemos que os anjos não têm lugar em todos os sermões. O que não ocorre com Jesus Cristo. Não há um único sermão da Igreja Renascer em que o nome de Jesus Cristo não seja a ancoragem de toda a argumentação, principalmente daquela em que é necessária a interferência de um poder sobrenatural que vem do alto. Então nessa hora, surge a mediação peculiar de Jesus Cristo: “Em nome de Jesus”:

(12) E você vai voltar Domingo para dar o testemunho, em nome de Jesus! (Bispa Sônia Hernandes - Sermão 01)

(13) Espírito Santo cada um que está aqui, cada um que assiste esse culto,seja liberado agora, pra receber a tua palavra, pra ser cheio do teu poder, pra sair daqui edificado, transformado, em nome de Jesus, seja sobre nós a tua graça, o poder abundante do teu Espírito, em nome de Jesus Cristo! Amém. (Bispa Sônia Hernandes - Sermão - 02)

(14) Sê bendito, em nome de Jesus Cristo! Amém Senhor! Amém? Glória a Deus! Em nome de Jesus! (Apostólo Estevam Hernandes - Sermão 02)

(15) E em nome de Jesus, se você precisa nessa semana de uma orientação, Deus vai te dá orientação. (Apostólo Estevam Hernandes - Sermão - 03)

Entretanto, mesmo que evocado em todos os sermões como o único detentor de todo poder e glória, Jesus Cristo ocupa um lugar diferenciado. Para o cristianismo, Jesus é o Deus que habitou entre os homens, não podendo, portanto, ser considerado um mero representante dele, nem muito menos um simples mediador. O nome de Jesus evocado em todos os sermões apresenta uma natureza particular, pois trata-se do próprio Deus, na figura do filho. Partindo daí a intensa recorrência do seu nome. “E em tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai” (BÍBLIA - Colossenses 3:17).

7 O LUGAR DO SERMÃO

Maingueneau (1998), defende que todo gênero do discurso implica em um certo lugar e um certo momento:

Não se trata de coerções “externas”, mas algo constitutivo. Suponhamos que um padre reze uma missa numa praça pública ou que um professor dê uma aula em um bar: são lugares normalmente ilegítimos para esses gêneros de discurso. Em conseqüência, a transgressão pode ser significativa: no primeiro exemplo, pode-se tratar de legitimar um espaço normalmente ilegítimo (mostrando que a Igreja deve abrir-se para o mundo); no segundo, pode ser, ao contrário, para protestar contra a falta de locais de ensino. (idem ibid, p. 66)

Os sermões neopentecostais, por exemplo, são ministrados dentro dos templos e retransmitidos pelos veículos de comunicação de massa. Outra coisa interessante a observar é que mesmo quando dizem respeito a denominações religiosas distintas, os sermões das igrejas neopentecostais mantém pontos em comum. É o caso da forte carga emocional e o anúncio dos testemunhos e milagres.

Os profetas ou pregadores detêm um carisma capaz de atrair e convencer seus ouvintes, mesmo com uma racionalidade “pobre”. No nosso corpus, a emocionalidade que floresce nas falas do apóstolo e da bispa garantem este lugar característico. Todavia, tal lugar sofre alterações em outras circunstâncias. Nas igrejas protestantes tradicionais, por exemplo, a força do sagrado, do sobrenatural, cedeu lugar dentro dos sermões, para a teologia. Neste caso, a relação é pautada em doutrinas e não no entrelaçamento emocional com os pregadores.

A forma como é ministrada a “palavra” nos sermões da Renascer, apresenta significativas diferenças dos sermões evangélicos tradicionais. No lugar de uma pregação hermética, sem praticamente nenhuma emoção, observamos cultos sensacionalistas. Não é difícil ver os pregadores da Igreja Renascer em lágrimas (principalmente a bispa Sônia), alternando seu choro com palavras carinhosas e cheias de intimidade, acabando por promover a percepção de um Deus que está falando com seus fiéis, como um pai fala com seus filhos:

(16) Pega o seu dedo indicador... põe assim bem em direção ao seu olho...

faz um favor, coça aqui bem a retina do olho assim... enfia? Não, né?

Pois é, você é a menina dos olhos do Deus vivo!

Você é a menina dos olhos! A menina dos olhos do Senhor!

O Senhor está com você! Quando você sair para a guerra, não fique desesperado, isso é muito menor do que o poder de Deus na sua vida. (Bispa Sônia Hernandes - Sermão - 02)

Ao analisarmos discursos como este transcrito acima, vemos que no lugar de um Deus duro, que castiga, como anteriormente era pregado pelos cristãos tradicionais, o discurso da Renascer apresenta um Deus pai, que se refere a todos como “filhos” ou “menina dos olhos”, desejando abençoá-los com sua bondade, seu amor e seu poder.

Assim, os discursos da Igreja Renascer sabem otimizar e potencializar o lugar de sua enunciação e o contexto no qual são proferidos. Vemos em todos os sermões analisados, o forte apelo ao sobrenatural.

Quando os pregadores da Igreja Renascer falam “vamos entrar embaixo desse mover do Espírito...”, fazem-no com o propósito de levar os seus ouvintes a experimentarem este mesmo Espírito, vivenciando, conseqüentemente, seus efeitos na mente e no corpo (“...algo poderoso vai acontecer. Eu vou contar até três...”).

Percebemos então, nos enunciados analisados, uma constante preocupação com o desenvolvimento de um discurso menos racional, onde a emoção e o sobrenatural ocupem maior destaque. Assim, a experiência do êxtase e da catarse coletiva é favorecida pelo culto menos centrado na objetividade e no intelecto.

Em suas falas positivas e cheias de declarações de poder, os locutores-pregadores dão forte ênfase na imanência, presença viva de Deus no culto: “E você vai ser muito abençoado, vai cair é chuva de fogo do céu na tua vida hoje. Esquentar o seu coração!

Deus vai te honrar nessa atitude! Isso é tremendo! Tá diante de Deus!”.

Discursivamente levam os fiéis a crerem que Deus está presente no culto para um encontro extraordinário: “Visita teu povo com poder esta noite!”. Assim, diante do extraordinário, a resposta comunitária é sempre percebida através de expressões corporais como o levantar de mãos, o bater palmas ou gritos. Nessa manobra discursiva de indução de comportamentos, os fiéis parecem se apossar do transcendente, e como resultado, o discurso acaba por resultar no êxtase do sobrenatural divino.

Assim, o sermão, principal produto na conquista de novos adeptos, é pregado nos púlpitos dos templos das Igrejas Renascer em Cristo, mas também é transmitido pelo rádio e pela televisão, lugares estes anteriormente não associados a este gênero de discurso. Neste contexto, as noções de “coletividade”, “momento” e “lugar” sofrem reconfigurações. Ou seja, o sermão proferido no amplo espaço midiático tem um público potencialmente indeterminado (qualquer pessoa que ligue o rádio ou a TV no momento de sua transmissão). Portanto, é bastante provável que os ouvintes ou telespectadores não reajam da mesma forma que os fiéis que se deslocaram até o templo. Isso pode ser observado na medida que em determinados momentos dos sermões analisados, vemos a instalação de um caráter interativo com o público presente nas dependências do templo:

(17) Eu sei que nós estamos com muita gente aqui. E eu sei que não será possível que todos venham aqui à frente, mas logo após o encerramento, os nossos pastores, os nossos bispos, eles vão estar ungindo com óleo as pessoas que vierem aqui à frente... (Apóstolo Estevam Hernandes - Sermão - 01)

(18) Você que entrou aqui, ou que tem vivido dias em que você está tão cheio de guerra, que parece que você vai explodir... (Apóstolo Estevam Hernandes - Sermão - 01)

(19) Quem está nos visitando hoje pela primeira vez? Levante a mão, faça sinal com a mão, amém! (Apóstolo Estevam Hernandes - Sermão - 03)

Ao pedirem venham aqui na frente, por exemplo, os enunciadores instauram uma modalidade interativa que não pode ser expressa nos telespectadores e nem nos ouvintes do rádio. Entretanto, esta não é sua única limitação. Os líderes da Igreja Renascer, sabedores que a transmissão é simultânea para os meios de comunicação de massa, tentam ajustar suas falas quando se referem aos que os assistem, ou aos que escutam:

(20) E há algo tremendo aqui que o Espírito Santo vem ministrando ao meu coração: há muitos cristãos que estão aqui, estão me ouvindo pela rádio, estão me assistindo pela televisão; você não tem vivido como um filho de Deus... (Apóstolo Estevam Hernandes - Sermão - 01)

(21) E esse mover está na rádio! Eu tou vendo pessoas agora falando: “Meu Deus, eu to aqui também nesse culto, me visita!” O Senhor tá te visitando! O Senhor está te visitando! Aleluia! Aleluia! Aleluia! (Bispa Sônia Hernandes - Sermão - 03)

Com efeito, quando percebemos na enunciação de um sermão o reflexo da apropriação do espaço midiático para dar forma e instituir um novo tipo de discurso religioso, compreendemos que há um ajustamento nas regras da própria enunciação religiosa. Dessa forma, encontramos um discurso que surge na formulação das novas técnicas de imbricamento entre o sagrado (templo) e o profano (mídia), possibilitando o aparecimento de um novo lócus e de uma peculiar transmutação do gênero sermão.

REFERÊNCIAS

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  • BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad. de Maria Ermantina G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1979.
  • BÍBLIA. Português. Bíblia de estudo de genebra. Revista e atualizada. Trad. de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Cultura Cristã, 2000. 1707p.
  • FERREIRA, M. Glossário de termos do discurso. Porto Alegre: Instituto de Letras da UFRGS, 2001.
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  • ______. Análise de textos de comunicação. 2. ed. Trad. de Cecília P. de Souza-e-Silva e Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2002 [1998].
  • OUTHWAITE, William; BOTTOMORE, Tom (Eds.). Dicionário do pensamento social do século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
  • PATRIOTA, K. O fenômeno do marketing religioso: análise do discurso da igreja renascer na mídia. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - UFPE, Recife, 2003.
  • ORLANDI, E. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 2. ed. Campinas: Pontes Editores, 1987.
  • ______. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 1988.
  • ______. Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
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  • *
    Para a elaboração deste artigo utilizamos dados coletados e análises realizadas na dissertação de mestrado de um dos autores (Patriota, 2003).
  • 1
    Quanto à noção de gênero, Maingueneau (1987) entende gêneros como dispositivos de comunicação sóciohistoricamente definidos, isto é, atividades de linguagem mais ou menos ritualizadas e submetidas a regras que as constituem: as coerções genéricas, referentes ao estatuto do enunciador e co-enunciador, às circunstâncias temporais e locais da enunciação, ao suporte e aos modos de difusão e aos temas que podem ser abordados, entre outras.
  • 2
    Corrente doutrinária que prega prosperidade financeira e espiritual na terra através de líderes carismáticos que anunciam suas posições de ministros e profetas de Deus. Trata-se de um discurso religioso que prima, acima de tudo, por uma teologia pragmática, repleta de símbolos do sucesso terreno.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2006

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2005
  • Aceito
    05 Nov 2005
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