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ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS DA DESINFORMAÇÃO SOBRE COVID-19: INTERDISCURSIVIDADE E EFEITOS DE VERDADE EM VÍDEOS NO YOUTUBE

Discursive Strategies of Disinformation about Covid-19: Interdiscursivity and Truth Effects in Youtube Videos

Estrategias discursivas de la desinformación sobre covid-19: interdiscursividad y efectos de verdad en videos de YouTube

Resumo

Com base em aportes teóricos da Análise do Discurso (AD) de linha francesa, sobretudo a partir de Maingueneau (2008, 2010), este artigo investiga as formas de interdiscursividade por meio das quais enunciados desinformativos sobre covid-19 buscaram interagir com o campo discursivo científico. O corpus é constituído por vídeos publicados entre fevereiro e março de 2020 em três canais brasileiros no YouTube que, segundo estudo de Machado et al. (2020), integravam as principais redes de desinformação sobre o tema no início da pandemia. A análise do corpus evidenciou duas estratégias discursivas: a emulação enunciativa de estruturas do discurso científico e a incorporação descontextualizada de fragmentos de enunciados científicos. Em ambos os casos, as articulações discursivas visavam à produção de efeitos de verdade, a fim de legitimar os enunciados desinformativos perante um destinatário presumido pouco familiarizado com as regras do campo discursivo científico.

Palavras-chave:
Análise do Discurso; Desinformação; Interdiscursividade; Covid-19; YouTube

Abstract

Based on theoretical contributions from French Discourse Analysis (DA), especially from Maingueneau (2008, 2010), this article investigates the forms of interdiscursivity through which disinformative utterances about COVID-19 aimed to interact with the scientific discursive field. The corpus consists of videos published between February and March 2020 on three Brazilian YouTube channels, which were part of the main disinformation networks on COVID-19 at the beginning of the pandemic, according to Machado et al. (2020) study. The analysis evidenced two discursive strategies: the enunciative emulation of structures from scientific discourse and the decontextualized incorporation of fragments of scientific utterances. In both cases, the discursive articulations aimed to produce truth effects to legitimize disinformative utterances to a presumed audience who is not very familiar with the rules of the scientific discursive field.

Keywords:
Discourse analysis; Disinformation; Interdiscursivity; Covid-19; YouTube

Resumen

Basado en contribuciones teóricas del Análisis del Discurso (AD) de línea francesa, especialmente a partir de Maingueneau (2008, 2010), este artículo investiga las formas de interdiscursividad a través de las cuales las declaraciones desinformativas sobre covid-19 buscaban interactuar con el campo discursivo científico. El corpus está compuesto por videos publicados entre febrero y marzo de 2020 en tres canales brasileños de YouTube que, según el estudio de Machado et al. (2020), formaban parte de las principales redes de desinformación sobre el tema al comienzo de la pandemia. El análisis del corpus reveló dos estrategias discursivas: la emulación enunciativa de estructuras del discurso científico y la incorporación descontextualizada de fragmentos de enunciados científicos. En ambos casos, las articulaciones discursivas buscaban producir efectos de verdad para legitimar las declaraciones desinformativas ante un destinatario presunto poco familiarizado con las reglas del campo discursivo científico.

Palabras clave:
Análisis del Discurso; Desinformación; Interdiscursividad; Covid-19; YouTube

1 INTRODUÇÃO

Ao lado da propagação do coronavírus (o Sars-Cov-2), responsável pela pandemia de covid-19, o período de março de 2020 a maio de 2023 foi marcado por outro tipo de “surto” destacado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como potencialmente perigoso à saúde pública. Tratava-se da “infodemia” - fenômeno entendido, nos termos de Richtel (2020RICHTEL, M. OMS combate uma epidemia além do Coronavírus - uma ‘infodemia’. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 07 fev. 2020. Saúde. [S. p.]. Disponível em: https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,oms-combate-uma-epidemia-alem-do-coronavirus-uma-infodemia,70003189336. Acesso em: 15 ago. 2021.
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), como disseminação de mentiras e rumores1 1 Do ponto de vista discursivo, o efeito de rumor ou efeito-rumor - diferentemente do entendimento de “rumor”, corrente no senso comum, como “mentira” ou “não-verdadeiro” - diz respeito a uma das formas pelas quais sujeitos se (re)apropriam do espetáculo midiático, instituindo um deslocamento do “boca a boca” para a ordem do ordinário midiatizado (Silveira, 2015). Em um contexto marcado pelo processo de midiatização, o efeito-rumor se vincula a formas específicas de constituir e fazer circular discursos que levam à produção de indistinção entre oralidade e escrita e ao embaralhamento dos critérios de legitimação dos discursos (Gallo; Silveira; Pequeno, 2019). No caso do objeto em foco neste artigo, vê-se que o efeito-rumor esteve ligado, de acordo com a proposição teórica de Silveira (2015), à produção de confrontação de formações dominantes do campo científico. que comprometem o acesso a dados respaldados por cientistas e autoridades sanitárias.

Parte de um cenário mais amplo de propagação generalizada da desinformação, a infodemia pode ser entendida como a produção e a difusão de informações imprecisas e falsas sobre diferentes aspectos da doença, desde a origem do vírus e de seus mecanismos de propagação até as formas de tratamento adequadas para a covid-19, como apontou a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas, 2020). Ainda segundo a entidade, a desinformação poderia levar as pessoas a correrem riscos maiores, o que “torna a pandemia muito mais grave, afetando mais pessoas e comprometendo o alcance e a sustentabilidade do sistema global de saúde” (Opas, 2020, online).

Embora fuja à proposta deste artigo realizar uma vasta recuperação das formas como a desinformação tem sido discutida e conceituada nas ciências humanas e sociais, convém apontar os principais sentidos que o conceito assume em trabalhos recentes dedicados ao assunto. Destacamos, especialmente, proposições realizadas por estudos no campo da Comunicação, que concentra o maior número de pesquisas sobre o tema. Segundo Paganotti (2018PAGANOTTI, I. “Notícias falsas”, problemas reais: propostas de intervenção contra noticiários fraudulentos. In: COSTA, Maria Cristina Castilho; BLANCO, Patrícia (org.). Pós-tudo e crise da democracia. São Paulo: ECA/USP, 2018. p. 96-105.), o termo “desinformação” é mais abrangente e preferível ao popular “fake news”, já que este último passou por uma captura discursiva, sobretudo pela extrema direita, sendo utilizado por autoridades políticas para desqualificar veículos jornalísticos que as criticam.

Como aponta Wardle (2020WARDLE, C. Understanding Information Disorder. In: First Draft. [S. l.], 22 set. 2020. Disponível em: https://firstdraftnews.org/long-form-article/understanding-information-disorder/. Acesso em: 15 ago. 2021.
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), desinformação diz respeito a conteúdos intencionalmente falsos produzidos com a finalidade de gerar ganhos econômicos, propiciar influência política e/ou causar algum tipo de dano. Ainda conforme a autora, uma estratégia comumente empregada por agentes propagadores de conteúdos desinformativos consiste na utilização de conteúdo genuíno reformulado de maneiras novas e enganosas. Da mesma forma, a definição proposta por Don Fallis (2015FALLIS, D. What Is Disinformation? Library Trends, Maryland, v. 63, n. 3, p. 401-426, 2015.) considera desinformação como uma informação enganosa que tem a função de enganar - ressalva importante para diferenciar conteúdos deliberadamente desinformativos de equívocos cometidos por jornalistas na produção de notícias, por exemplo, já que as regras do campo jornalístico pressupõem que o erro seja acidental neste segundo caso e determinam que ele seja reconhecido e retificado publicamente.

Neste trabalho, empregamos a expressão desinformação por ser considerada mais adequada, tanto por comunicadores quanto por pesquisadores do campo da Comunicação, em comparação a termos correlatos que circulam em discussões no espaço público, como é o caso da popular fake news. Nesse sentido, em diálogo com a distinção weberiana entre categorias nativas e analíticas (Weber, 1982WEBER, M. Ensaios de sociologia. São Paulo: LTC Editora, 1982.), a expressão desinformação é aqui entendida não como ferramenta teórico-metodológica para cotejar o fenômeno em análise (categoria analítica), mas como recurso ligado a uma ordem conceitual forjada e constantemente reelaborada por diferentes agentes sociais diante das contingências de sua experiência discursivo-social (categoria nativa).

Não obstante, como destacam Gallo, Silveira e Pequeno (2019GALLO, S.; SILVEIRA, J.; PEQUENO, V. Normatização, midiatização e espaços enunciativos informatizados ou: o que torna possível o efeito de sentido de fakenews. In: IX SEAD - Seminário de Estudos em Análise do Discurso, 2019, Recife. Anais... Recife: UFPE, 2019. p. 1-5.), deve-se ter em mente o interesse específico do termo fake news para a Análise do Discurso, já que a expressão coloca em jogo a disputa em torno do que pode ou não ser considerado verdadeiro que emerge com o advento do digital e a consequente desorganização da memória discursiva ligada a elementos da materialidade técnica e concreta da circulação da notícia jornalística nos meios analógicos: “Não se tem a mesma materialidade para garantir a veracidade de um fato pela via da legitimidade, e é justamente por essa razão que a divisão verdadeiro/falso precisa ser tematizada na forma da expressão fakenews” (Gallo, Silveira, Pequeno, 2019, p. 4). Ainda segundo os autores, considerando as especificidades da materialidade técnica digital do ponto de vista tanto da normatização quanto da circulação discursiva, a produção do efeito de desinformação ou efeito de fake news opera, através do efeito-rumor (Silveira, 2015), na desestabilização dos sentidos de enunciados informativos, que deslizam de posições institucionais legitimadas, como aquelas dos discursos jornalístico ou científico - este, de modo particularmente decisivo no caso do objeto em foco neste artigo.

Apesar da gravidade de suas potenciais consequências práticas para a tomada de decisões por parte dos cidadãos em um contexto de crise sanitária, a disseminação de informações falsas, imprecisas e descontextualizadas sobre o então novo coronavírus, que ganhou espaço em redes sociais digitais a partir de fevereiro de 2020, não constituiu fato novo ou isolado. Em sentido amplo, a infodemia pode ser relacionada a um cenário de crise do campo científico (Coelho, 1996COELHO, M. Um sorriso medonho. In: NOVAES, Adauto (org.). A crise da razão. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 329-349.; Bellino, 1998BELLINO, F. Filosofia da ciência e religião. In: PENZO, Giorgio; GIBELLINI, Rosino (org.). Deus na filosofia do século XX. São Paulo: Loyola, 1998. p. 567-580.; Libânio, 1998LIBÂNIO, J. B. O sagrado na pós-modernidade. In: CALIMAN, Cleto (org.). A sedução do sagrado: o fenômeno religioso na virada do milênio. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 61-78.), e integra uma situação sistêmica que tem sido identificada pelo termo “pós-verdade” - isto é, um contexto no qual crenças pessoais e emoções adquirem papel mais decisivo na definição da opinião pública do que evidências e fatos (Paganotti, 2018PAGANOTTI, I. “Notícias falsas”, problemas reais: propostas de intervenção contra noticiários fraudulentos. In: COSTA, Maria Cristina Castilho; BLANCO, Patrícia (org.). Pós-tudo e crise da democracia. São Paulo: ECA/USP, 2018. p. 96-105.).

A própria crise de legitimidade da ciência, por sua vez, pode ser compreendida como parte de um contexto mais amplo de falência de narrativas estruturantes da modernidade. Não deixa de ser sintomático que a desconfiança em relação à ciência se dê em um contexto de descredibilização também da política (Roque, 2020ROQUE, T. O negacionismo no poder. Revista Piauí. São Paulo, 01 fev. 2020. Questões da pós-verdade. p. 28-32.): de fato, discursos anticiência não raro são encampados por governantes que também abraçam discursos de negação da própria política como espaço de articulação de respostas e ações coletivas, a exemplo dos ex-presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump.

Ao mesmo tempo, a crise das grandes narrativas orientadoras da modernidade é abordada nas discussões sobre o “fim do universal”, vastamente presentes na literatura pós-moderna. Segundo Jean-François Lyotard (1998LYOTARD, J. F. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1998.), por exemplo, vivemos um momento de crise de “metanarrativas” como um todo - narrativas totalizadoras que teriam sido substituídas pelos pequenos relatos de vocação localizada e particularista. Esse contexto favorece não apenas a contestação do campo científico em sua proposta de totalização e universalismo, mas também o surgimento de manifestações discursivas que incluem fenômenos como a emergência de pseudociências (Shermer, Gould, 2011SHERMER, M. Por que as pessoas acreditam em coisas estranhas: pseudociências e outras confusões dos nossos tempos. São Paulo: JSN Ed., 2011.; Pracontal, 2004PRACONTAL, M. A impostura científica em dez lições. São Paulo: Unesp, 2004.; Pigliucci, Boudry, 2013PIGLIUCCI, M.; BOUDRY, M. Philosophy of Pseudoscience: Reconsidering the Demarcation Problem. Chicago: The University of Chicago, 2013.).

Assim, no que diz respeito aos processos de produção discursiva da desinformação, os conteúdos falsos, imprecisos ou descontextualizados sobre a pandemia de covid-19 que circularam em plataformas digitais devem ser considerados à luz de uma crise mais ampla de confiança em relação ao saber científico. Nesse contexto, criaram-se as condições sociopolítico-discursivas que levaram à emergência de negacionismos, tais como os caracterizam Camargo Jr. e Coeli (2020), os quais conquistaram - e continuam conquistando - a aderência de vastas parcelas da população de diferentes países, desempenhando papel privilegiado em suas disputas políticas. Nesse sentido, para Caponi (2020CAPONI, S. Covid-19 no Brasil: entre o negacionismo e a razão neoliberal. Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 99, p. 209-223, maio/ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2020.3499.013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/tz4b6kWP4sHZD7ynw9LdYYJ/. Acesso em: 15 ago. 2021.
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), o negacionismo científico é um dos fatores que antecederam a crise sanitária deflagrada em 2020 e, ao mesmo tempo, agravaram-se com ela, devendo ser levado em conta para a compreensão das razões que conduziram ao total descontrole da pandemia de covid-19 no Brasil. Não à toa, diferentes expedientes de distorção do discurso científico próprios dos processos de negacionismo caracterizaram o debate público em torno da pandemia2 2 Segundo Camargo Jr. e Coeli (2020), os aspectos que caracterizam o negacionismo científico incluem: teorias conspiratórias; recorrência a falsos experts; seletividade de fontes científicas, com a priorização daquelas que contrariam o consenso no campo científico; criação de expectativas inalcançáveis para a pesquisa científica, a fim de desacreditá-la; e uso de falácias lógicas. No contexto brasileiro, Caponi (2020) identifica a adoção de uma postura negacionista pelo governo Bolsonaro desde sua campanha eleitoral, em que ficou evidente seu desprezo pelas universidades, pela pesquisa e pela ciência. Essa postura se agravou durante a pandemia de covid-19, com a adoção de medidas sem validade científica (como o incentivo ao do uso de medicamentos como a hidroxicloroquina e a ivermectina) e a defesa de formas de intervenção - como o “isolamento vertical” - em desacordo com as posições sustentadas pela Organização Mundial da Saúde. .

Para além das intenções por trás da produção da desinformação e dos impactos decorrentes de sua disseminação, este artigo aborda as estratégias discursivas por meio das quais enunciados desinformativos sobre a pandemia de covid-19 buscaram legitimar-se e, dessa forma, produzir sentidos. Sob essa perspectiva, o trabalho tem como objetivo examinar as estratégias pelas quais vídeos desinformativos veiculados na plataforma digital YouTube no início de 2020 posicionaram-se em relação ao campo científico, entendido como campo discursivo (Maingueneau, 2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008.), estabelecendo com ele relações interdiscursivas, a fim de produzirem efeitos de verdade. Para tal, recorremos a aportes metodológicos da Análise do Discurso de linha francesa, com destaque para conceitos propostos por Dominique Maingueneau (2008, 2010) a respeito da heterogeneidade constitutiva do discurso e as formas da interdiscursividade.

O corpus da pesquisa é constituído por vídeos publicados em 2020, primeiro ano de pandemia, no YouTube, plataforma que tem assumido papel importante no consumo informativo da população brasileira3 3 O YouTube tem assumido papel relevante, ainda que informal, na disseminação de conhecimento no Brasil, especialmente em regiões onde o ensino formal é precário e entre as classes menos escolarizadas (Machado et al., 2020). Assim, ao lado das redes de desinformação sobre o novo coronavírus, a plataforma se destacou pela presença de vídeos produzidos por cientistas, especialistas e pesquisadores. Foi esse o caso dos canais de Átila Iamarino (1,51 milhões de inscrições em 15 de agosto de 2021) e Drauzio Varella (2,94 milhões de inscrições em 15 de agosto de 2021), cujos conteúdos sobre a pandemia de covid-19 alcançaram números expressivos de visualização. . Por outro lado, elementos tais como a constituição audiovisual dos conteúdos, a facilidade de compartilhamento dos vídeos em outras plataformas e os algoritmos de sugestões (Abul-Fottouh; Song; Gruzd, 2020) fazem com que o YouTube seja uma plataforma particularmente propícia para a propagação da desinformação4 4 Destaca-se ainda o fato de o YouTube ser um ambiente menos controlado do que outras redes sociais, como o Facebook, que em 2018 retirou do ar centenas de páginas brasileiras que promoviam conteúdo falso. Ao mesmo tempo, estudos sobre o WhatsApp indicam uma proeminência de links para vídeos do YouTube entre as mensagens enviadas pela plataforma de mensagens instantâneas (Machado et al., 2020). Da mesma forma, em um estudo sobre canais terraplanistas, Albuquerque e Quinan (2019) identificam o YouTube como espaço ideal para a divulgação em massa de materiais sobre teorias da conspiração e pseudociência tendo em vista a facilidade de upload na plataforma, a disponibilidade de tecnologia acessível para edição de vídeo e a permissividade para se manter no ar, divulgar e repercutir tais conteúdos. . Ao mesmo tempo, optamos por escolher neste momento uma única plataforma digital como universo de investigação porque, dessa forma, torna-se possível partir da delimitação de hipergêneros específicos (“canais”), com aspectos de cenografia mais ou menos estabilizados (Maingueneau, 2010MAINGUENEAU, D. Doze conceitos em análise do discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2010.).

Para a construção do corpus, baseamo-nos no mapeamento de redes de desinformação sobre a pandemia de covid-19 no YouTube realizado por Machado et al. (2020MACHADO, C. C. V.; DOURADO, D. A.; SANTOS, J. G.; SANTOS, N. Ciência Contaminada. Analisando o contágio de desinformação sobre coronavírus via YouTube. Salvador: INCT.DD, 2020. Disponível em: https://laut.org.br/ciencia-contaminada.pdf. Acesso em: 15 ago. 2021.
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)5 5 Referimo-nos ao estudo Ciência Contaminada, parte integrante do projeto Democracia Infectada e resultante de uma parceria entre o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT), o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD), sediado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), e o Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa). Divulgados em maio de 2020, os resultados da pesquisa baseiam-se na análise de mais de onze mil vídeos do YouTube sobre o novo coronavírus, localizados por meio de buscas realizadas entre 1º de fevereiro e 17 de março de 2020. . De modo a contemplar as principais características dessas redes - que incluíam tanto canais de (supostos) médicos que vendiam produtos, tratamentos e soluções “milagrosas” contra o coronavírus, quanto canais de temática religiosa, muitos dos quais protagonizados por líderes religiosos (ou político-religiosos) -, selecionamos vídeos publicados, entre fevereiro e março de 2020, em três canais do YouTube identificados por Machado et al. (2020) como responsáveis pela propagação de enunciados desinformativos sobre a pandemia: o canal Dr. Gabriel Azzini6 6 Em 15 de agosto de 2021, o canal Dr. Gabriel Azzini registrava 1,79 milhões de inscritos. , o canal Programa NEWSTART7 7 Em 15 de agosto de 2021, o canal Programa NEWSTASRT tinha 62,7 mil inscritos. No caso desse canal, cabe observar que optamos por manter a grafia de seu nome tal qual se encontrava na plataforma Youtube. e o canal Silas Malafaia Oficial8 8 Em 15 de agosto de 2021, o canal Silas Malafaia Oficial possuía 1,41 milhões de inscritos. . Longe de constituir um recorte exaustivo, o corpus assim constituído permitiu-nos identificar e caracterizar estratégias discursivas voltadas à produção de efeitos de verdade presentes em canais brasileiros no YouTube que integraram as principais redes de desinformação no início da pandemia.

2 ALGUMAS FORMULAÇÕES METODOLÓGICAS: UM DIÁLOGO COM DOMINIQUE MAINGUENEAU

Um regime de verdade, segundo Michel Foucault (2004FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004., p. 12), diz respeito a uma “política geral” da verdade em uma sociedade, isto é, aos tipos de discurso que essa sociedade “acolhe e faz funcionar como verdadeiros”. Trata-se de modos de organização do dizer a partir de regras que determinam o que pertence à ordem do verdadeiro, regras estas que dizem respeito a um conjunto de relações às quais se atribui a verdade do que é dito. Sob essa perspectiva, a verdade, de caráter relacional, é produzida como efeito de sentido de determinados regimes discursivos.

Se, por um lado, podemos falar em efeito de informação como um efeito de sentido pelo qual enunciados produzidos em determinadas condições de legitimidade são lidos como “verdadeiros” em contextos discursivos específicos, é possível pensar também na produção de um efeito de desinformação próprio da materialidade técnica das redes digitais (Gallo, Silveira, Pequeno, 2019GALLO, S.; SILVEIRA, J.; PEQUENO, V. Normatização, midiatização e espaços enunciativos informatizados ou: o que torna possível o efeito de sentido de fakenews. In: IX SEAD - Seminário de Estudos em Análise do Discurso, 2019, Recife. Anais... Recife: UFPE, 2019. p. 1-5.). No caso do efeito de desinformação, enunciados que deslizam de posições enunciativas legitimadas em contextos outros de produção discursiva - como os contextos institucionais do jornalismo e da ciência, por exemplo - passam a ser reconhecidos como “verdadeiros”, gerando uma desestabilização das condições de legitimidade ligadas à produção do efeito de informação.

Assim, para que enunciados midiáticos baseados em efeitos de desinformação sejam percebidos como legítimos por parte de seus leitores/espectadores, eles devem mobilizar estratégias discursivas voltadas à produção de efeitos de verdade. Um desses critérios, por exemplo, diz respeito ao que Gallo (2018) denomina notoriedade por quantificação, ligada à visibilidade produzida algoritmicamente em função de índices de interação em plataformas digitais. No caso deste artigo, interessam-nos as formas pelas quais enunciados baseados em efeitos de desinformação - que denominamos aqui enunciados desinformativos9 9 Se entendermos efeito de informação como o processo que “se verifica quando um enunciado se produz em uma determinada discursividade, e que dela é retirado para ser transportado para outra discursividade, perdendo, nesse movimento, sentidos pré-construídos” (Gallo, Silveira, Pequeno, 2019, p. 1), os vídeos de YouTube analisados neste trabalho podem ser considerados como fenômenos, lato sensu, informativos. Com isso, queremos dizer que as denominações desinformação e desinformativo, entendidas como categorias nativas empregadas por comunicadores (sobretudo jornalistas) e pesquisadores da área de Comunicação, constituem expressões valorativas que buscam diferenciar enunciados conformados pelas condições técnicas e materiais de produção das redes digitais em relação a enunciados cujas condições de produção remetem às materialidades institucionais do campo jornalístico. É pertinente, nesse sentido, a distinção entre informação e notícia, uma vez que “uma notícia contém informação, embora a recíproca nem sempre se confirme” (Lemos, Nassif, 2011). Em outras palavras, como destacam Lemos e Nassif (2011), embora informação e notícia sejam construções sociais da realidade, a segunda é resultado de condições de produção determinadas pelas materialidades institucionais do campo jornalístico, que envolvem aspectos como condições de trabalho e rotinas profissionais; de fato, a produção do efeito de informação como imperativo do discurso jornalístico vincula-se ao modelo de jornalismo do século XX, quando a notícia se tornou mercadoria (Flores, 2016). Entendemos, portanto, que a palavra desinformação materializa mediações valorativas ligadas à posição do discurso jornalístico em relação à disputa em torno das condições de legitimidade da informação no contexto dos espaços enunciativos das mídias digitais. Ainda assim, e sem desconsiderar essa dimensão da opacidade constitutiva da expressão desinformação (e de seus termos correlatos), optamos por empregá-la, neste artigo, tendo em vista não apenas sua vasta circulação, como categoria nativa, em discussões estabelecidas em espaços públicos sobre a pandemia de covid-19, mas também o fato de o corpus analisado ser composto por vídeos de YouTube previamente categorizados como desinformativos (Machado et al., 2020). Ao mesmo tempo, a desinformação é aqui compreendida no sentido de efeito de desinformação, isto é, efeito de sentido, próprio da materialidade técnica das redes digitais, produzido por enunciados que deslizam de posições enunciativas legitimadas em contextos de produção discursiva definidos por condições técnicas distintas daquelas dos espaços enunciativos das plataformas digitais (Gallo, Silveira, Pequeno, 2019). - interagem com o regime de verdade da ciência, política da verdade determinante na produção, legitimação e hierarquização de discursos na modernidade ocidental.

Entre enunciados desinformativos relacionados à pandemia de covid-19 que circularam na plataforma YouTube entre fevereiro e março de 2020, identificamos vídeos que buscavam afirmar-se como verdadeiros por meio de estratégias discursivas voltadas à produção de efeitos de sentido ora de diferença, ora de identidade em relação ao discurso científico. Neste último caso, predominante no corpus, como veremos, encontramos enunciados que emulavam estruturas semânticas próprias de modos de restrição discursiva que caracterizam o regime de verdade da ciência.

Ao mesmo tempo, identificamos enunciados que incorporavam - de maneira descontextualizada e, portanto, ressignificada - fragmentos discursivos do campo científico (conceitos, expressões, textos etc.). Neste caso, o efeito de sentido visado, por meio da negociação em torno de sentidos tanto de identidade quanto de diferença em relação ao discurso científico, era o de produção de uma “falsa simetria” em relação à ciência - como se, ao incorporar fragmentos de seu discurso, enunciadores (alheios ao campo científico) estivessem habilitados a ocupar posições enunciativas análogas às ocupadas por agentes desse campo e, portanto, pudessem interagir no nível da polêmica intracampo10 10 Por “polêmica intracampo”, referimo-nos às formas de interação discursiva estabelecidas no interior de um campo discursivo que assumem a forma do que Maingueneau (2008) define como “relações polêmicas” entre enunciados concorrentes que se definem mutuamente. , isto é, a partir de posições supostamente validadas pelo regime de verdade da ciência.

Central à discussão aqui proposta, o conceito de campo discursivo, como postulado por Dominique Maingueneau (2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008.), constitui construto teórico fundamental à Análise do Discurso (AD) e à compreensão dos níveis de concretização da interdiscursividade. Dialogando com o pensamento do chamado Círculo de Bakhtin11 11 A nomeação “Círculo de Bakhtin” corresponde à forma como tem sido chamada a perspectiva teórica compartilhada pelos pensadores russos Mikhail Bakhtin, Valentin Volóchinov e Pável N. Medviédev. Sua adoção se justifica em virtude da reconhecida convergência entre os trabalhos dos três autores, ao mesmo tempo que possibilita lidar com a controvérsia em torno da autoria das principais obras desses pensadores. , a ideia de campo discursivo foi proposta por Maingueneau nos anos 1970 como forma de transpor o conceito de Bourdieu de campo para o contexto da Análise do Discurso: “quando alguém se inscreve no projeto da análise do discurso, não pode se contentar em raciocinar em termos de atores, de posições e de lutas pela autoridade. É preciso traduzir isso em termos de identidade enunciativa” (Maingueneau, 2010, p. 50). Nesse sentido, o campo discursivo deve ser entendido como um espaço no interior do qual interagem diferentes posicionamentos enunciativos, isto é, fontes de enunciados que integram os embates impostos pela natureza do campo, buscando definir e legitimar seu próprio lugar de enunciação.

É a partir do primeiro nível de estabelecimento de interdiscursividade descrito por Maingueneau (2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008.) - isto é, do universo discursivo (extensão máxima, conjunto, inapreensível em sua totalidade, de formações discursivas de diferentes tipos que interagem em uma conjuntura histórico-social dada) - que o analista do discurso define os domínios e recortes suscetíveis de análise: os campos discursivos. Assim, enquanto segundo componente da interdiscursividade, o campo discursivo corresponde a um “conjunto de formações discursivas que se encontram em concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do universo discursivo” (Maingueneau, 2008, p. 33).

Neste trabalho, a diferenciação entre campos discursivos é fundamental ao exame das estratégias discursivas voltadas à produção de efeitos de verdade em vídeos desinformativos sobre a covid-19. Isso porque não estamos diante de discursos em concorrência no interior de um mesmo campo (discursos desinformativos em plataformas digitais e discursos científicos diferem do ponto de vista de sua função social e de suas condições de produção). Em outras palavras, os conteúdos em circulação em plataformas digitais examinados como parte do corpus desta pesquisa, inclusive aqueles que buscavam revestir-se de suposta cientificidade como estratégia de produção de efeito de verdade, devem ser considerados como fenômenos alheios ao campo científico.

É o que se verifica quando consideramos enunciados desinformativos sobre a pandemia disponibilizados em canais de líderes religiosos e indivíduos que se apresentam como “experts” no YouTube, os quais se destacaram entre as principais formas de desinformação sobre covid-19 na plataforma nos primeiros meses de pandemia (Machado et al., 2020MACHADO, C. C. V.; DOURADO, D. A.; SANTOS, J. G.; SANTOS, N. Ciência Contaminada. Analisando o contágio de desinformação sobre coronavírus via YouTube. Salvador: INCT.DD, 2020. Disponível em: https://laut.org.br/ciencia-contaminada.pdf. Acesso em: 15 ago. 2021.
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). Em casos como estes, estão em jogo materialidades discursivas inscritas em processos de produção, circulação e consumo próprios do campo midiático. Esse dado tem reflexos sobre as formas de materialização sociolinguística dos enunciados, que podem ser vistos como se organizando, nos termos de Maingueneau (2010MAINGUENEAU, D. Doze conceitos em análise do discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2010., 2013), segundo características do mídium12 12 Por “mídium” (sic), Maingueneau se refere, em Análise de textos de comunicação, a um processo de mediação da linguagem que, por investir uma ideia de força material, deve ser considerado como parte do dispositivo comunicacional, ao lado do gênero e do canal material stricto sensu do enunciado (Maingueneau, 2013). em que são produzidos (internet) e dos hipergêneros em que se inscrevem (canais no YouTube).

Outro conceito fundamental da Análise do Discurso para a discussão proposta neste trabalho é o de formação discursiva. A formação discursiva é entendida por Maingueneau (2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008.) em sentido próximo àquele presente na obra de Foucault, ainda que com nuances singulares. Assim, em conformidade com o linguista francês, entendemos a formação discursiva como um “sistema de restrições de boa formação semântica”, que se opõe à superfície discursiva, que, por sua vez, diz respeito ao “conjunto de enunciados produzidos de acordo com esse sistema”, isto é, de acordo com o sistema de restrições da formação discursiva (Maingueneau, 2008, p. 20).

Como o próprio autor destaca, é possível traçar uma analogia entre seu conceito de superfície discursiva e o de discurso em Foucault, já que ambos compreendem um conjunto de enunciados decorrentes de uma mesma formação discursiva. Por conseguinte, em Maingueneau (2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008.), o conceito de discurso faz referência à relação entre formação discursiva e superfície discursiva, aproximando-se do uso coloquial que fazemos da palavra “discurso”. Dito de outro modo, o discurso diz respeito ao conjunto virtual de enunciados que podem ser produzidos a partir das restrições de uma formação discursiva dada.

Embora possa parecer, à primeira vista, um pormenor pouco relevante, a distinção proposta por Maingueneau (2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008.) para o conceito de discurso em relação à tomada foucaultiana do termo é indicativa de um aspecto fundamental do modelo de análise discursiva proposto pelo autor: para ele, o analista do discurso pode considerar, na constituição de seus corpora, não apenas o que de fato foi dito, mas também o que pode ser dito a partir da análise de uma formação discursiva, em seus aspectos semânticos próprios:

Se o jogo das restrições que definem a “língua”, a de Saussure e dos linguistas, supõe que não se pode dizer tudo, o discurso, em outro nível, supõe que, no interior de um idioma particular, para uma sociedade, para um lugar, um momento definido, só uma parte do dizível é acessível, que esse dizível constitui um sistema e delimita uma identidade (Maingueneau, 2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008., p. 16).

Com efeito, para Maingueneau (2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008.), as unidades do discurso constituem sistemas significantes a que correspondem tanto uma semiótica textual quanto estruturas de sentido historicamente inscritas. Em outras palavras, trata-se de objetos a um só tempo integralmente linguísticos e integralmente históricos, perspectiva a partir da qual o autor situa a possibilidade do não-dito, aberta à interpretação.

Com base em sua concepção de formação discursiva, Maingueneau (2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008.) apresenta o conceito de competência discursiva, o qual possibilita articular aspectos relacionados à dimensão histórica da linguagem a uma noção cognitiva, discutindo e recolocando papel do sujeito nos fenômenos discursivos. Com esse conceito, reforça-se a possibilidade de analisar o que pode ser dito, e não apenas o que de fato foi dito, a partir da análise de uma formação discursiva, em seus aspectos semânticos próprios. O autor defende, dessa forma, a hipótese de que os discursos são inscritos social e historicamente, inscrição esta que passa pelo sistema de restrições semânticas de cada formação discursiva.

Voltando ao objeto de estudo, tanto a emulação de restrições semânticas do discurso científico quanto a incorporação de fragmentos de enunciados científicos em vídeos desinformativos no YouTube só se tornam possíveis quando os sujeitos do discurso são capazes de identificar (ao menos, em parte) as restrições semânticas que caracterizam uma formação discursiva, produzindo enunciados (parcialmente, uma vez mais) em conformidade com essas regras. Como veremos, essa “adequação” às regras enunciativas da ciência, dado seu caráter fragmentário ou “não sistemático”, configura-se como efeito de sentido ligado a arranjos semânticos pontuais na superfície discursiva.

3 REFLEXÕES A PARTIR DA ANÁLISE DO CORPUS

O exame do corpus considerado neste trabalho possibilitou a identificação de duas estratégias discursivas por meio das quais produziram-se os efeitos de verdade de enunciados desinformativos presentes em canais no YouTube: a emulação de modos de restrição próprios do discurso científico a partir de aspectos semânticos que se manifestam em diferentes planos do enunciado; e a desancoragem de elementos do discurso científico, em uma incorporação descontextualizada de fragmentos enunciativos.

Segue uma caracterização detalhada de cada uma dessas estratégias discursivas.

3.1 A EMULAÇÃO DE ESTRUTURAS ENUNCIATIVAS DO DISCURSO CIENTÍFICO

Primeira estratégia discursiva observada no corpus, a emulação de estruturas do discurso científico foi encontrada nos canais Dr. Gabriel Azzini e Programa NEWSTART. Ao mesmo tempo, considerando as redes de desinformação identificadas por Machado et al. (2020MACHADO, C. C. V.; DOURADO, D. A.; SANTOS, J. G.; SANTOS, N. Ciência Contaminada. Analisando o contágio de desinformação sobre coronavírus via YouTube. Salvador: INCT.DD, 2020. Disponível em: https://laut.org.br/ciencia-contaminada.pdf. Acesso em: 15 ago. 2021.
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) no YouTube, é possível supor que tal estratégia tenha comparecido em outros vídeos e canais baseados na figura de (supostos) experts, como médicos e/ou profissionais de saúde, que apresentam “dicas” para fortalecer a imunidade, sugerem alimentos para “prevenir infecções” e indicam soluções caseiras para “curar” o coronavírus.

Para compreender como a tentativa de emular estruturas do discurso científico se processou, é preciso considerar, como aponta Maingueneau (2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008.), que a identidade de uma formação discursiva se manifesta nos diversos planos constitutivos dos enunciados produzidos de acordo com seu sistema de restrições. Ou seja, a apreensão dos traços identitários de um um discurso deve considerar uma semântica global característica dos enunciados. Dada a impossibilidade de apresentar análise minuciosa de todos os elementos apontados pelo autor13 13 Maingueneau (2008) identifica sete planos discursivos nos quais se manifesta o sistema de restrições semânticas globais de um discurso. São eles: a intertextualidade, tanto a interna (memória discursiva interior a um campo) quanto a externa (relações que um discurso define sobre outros campos); o vocabulário; os temas; o estatuto do enunciador e do enunciatário, posto que cada discurso define o estatuto que os enunciadores devem atribuir a si mesmos e a seus enunciatários a fim de legitimar seu dizer; a dêixis enunciativa, considerada em sua dupla modalidade espacial e temporal, ligada à definição de uma instância de enunciação legítima e à delimitação da cena e da cronologia que o discurso mobiliza para legitimar sua própria enunciação; o modo de enunciação, isto é, uma maneira específica de dizer, ligada a um gênero e a um tom, uma “corporalidade” espalhada por todos os planos discursivos, que faz o enunciador “encarnar-se” no corpo textual; e o modo de coesão, que se liga à interdiscursividade e recobre fenômenos como o recorte discursivo e os encadeamentos. , destacamos a seguir quatro planos em que se pode observar, com particular clareza, a emulação: temas, vocabulário, modo de enunciação e estatuto do enunciador.

Em relação aos temas (ou enquadramento semântico dos temas de um discurso), a própria abordagem da pandemia sugere uma aproximação em relação a objetos de estudo de diferentes disciplinas do campo científico. Não obstante, alguns enquadramentos temáticos específicos podem ser destacados por sua recorrência. Ao abordar questões relacionadas à covid-19, os enunciados desinformativos privilegiaram supostos tratamentos e medidas terapêuticas contra a doença, bem como formas de prevenção por meio do consumo de determinados alimentos que, por suas características nutricionais, aumentariam a imunidade contra o coronavírus. Trata-se de eixos temáticos que remetem ao discurso de certos campos científicos e compareceram como forma de proposição de condutas e orientação do comportamento, como evidenciam os títulos dos vídeos “Dicas de como evitar CORONAVÍRUS” (Programa NEWSTART, 2020) e “COMO BLINDAR SEU CORPO CONTRA O CORONAVÍRUS” (Dr. Gabriel Azzini, 2020DR. GABRIEL AZZINI. Como blindar seu corpo contra o coronavírus. [S. l.], 2 mar. 2020. YouTube: Dr. Gabriel Azzini. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AiC_6hWhTt8. Acesso em: 15 ago. 2021.
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)14 14 Optamos por manter a grafia dos títulos de vídeos tal qual se apresentavam no Youtube. . Mostrou-se recorrente também a tentativa de afirmar uma filiação ao campo científico por meio do enquadramento de temas: nos segundos iniciais do vídeo de 2 de fevereiro de 2020 do canal Programa Newstart o apresentador, identificado como Dr. Jea Myung Yoo, afirma: “mais uma segunda-feira, aquela notícia do mundo científico” (Programa NEWSTART, 2020, online) - jargão presente em diversas produções do canal.

Quando nos referimos ao plano discursivo constituído pelo vocabulário, não devemos falar na existência de léxicos exclusivos de certos discursos, da mesma forma que palavras tomadas isoladamente não são significativas para uma análise discursiva. Não obstante, as unidades lexicais tendem a adquirir o estatuto de signos de pertencimento (Maingueneau, 2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008.): é neste sentido que vídeos desinformativos sobre covid-19 adotaram palavras próprias do discurso científico, como nomenclaturas de anatomia humana, termos relacionados a componentes nutricionais, nomes científicos de organismos vivos e conceitos específicos, como “mutação” e “imunidade”. Não obstante, tais unidades lexicais constituem marcas de cientificidade isoladas em enunciados repletos de “lacunas” informativas, comparecendo de modo impreciso, descontextualizado e, muitas vezes, incorreto, como em “o que você pode fazer para melhorar a proteção do seu corpo contra esse vírus, que nada mais é do que uma infecção respiratória alta, que é como se fosse uma gripe, só que é um vírus modificado” (Dr. Gabriel Azzini, 2020DR. GABRIEL AZZINI. Como blindar seu corpo contra o coronavírus. [S. l.], 2 mar. 2020. YouTube: Dr. Gabriel Azzini. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AiC_6hWhTt8. Acesso em: 15 ago. 2021.
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, online, grifos nossos).

Quanto aos modos de enunciação, relacionados à voz própria de um discurso (Maingueneau, 2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008.), os vídeos caracterizaram-se por um tom de “autoridade” como revestimento para a fala dos (supostos) especialistas que os protagonizavam: além do uso recorrente de construções verbais no modo imperativo, os conteúdos articulavam-se como espaço de disponibilização de “dicas”, isto é, informações “práticas” que deveriam ser levadas para o cotidiano de seu público. Evidentemente, como se tratava de produções em uma plataforma digital - e muitas vezes associadas à divulgação de produtos e serviços -, o tom de autoridade dos “especialistas” mesclava-se a um tom “descontraído” e de “autoajuda”, marcado pela reiteração de falas “positivas” ou eufemizadoras da gravidade da pandemia - como em “o novo coronavírus está sendo mais famoso no mundo inteiro, mas será que o coronavírus é algo tão cruel assim?” e “essa questão de coronavírus, no meu modo de analisar, é tão simples” (Programa NEWSTART, 2020, online). Essa dupla articulação de tom (uma voz de “autoridade” associada a uma voz de “otimismo”) é um dos elementos que, quando se consideram as condições de produção enunciativa à luz de dinâmicas próprias de cada campo discursivo, denunciam o distanciamento dos vídeos em relação a discursos produzidos e validados no/pelo campo científico.

Um dos aspectos mais decisivos à emulação de estruturas do discurso científico, o estatuto do enunciador, enquanto plano discursivo, diz respeito aos diversos modos de subjetividade enunciativa apreendidos pela competência discursiva (Maingueneau, 2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008.). Nos vídeos que buscaram emular estruturas do discurso científico, o enunciador costumava ser apresentado como “especialista”: é o caso, dos canais Programa NEWSTART e Dr. Gabriel Azzini, em que os indivíduos se apresentavam como “doutores”. No segundo caso, além do título que remete à profissão médica, apresentava-se um locutor vestindo jaleco branco em um ambiente que fazia lembrar o espaço de um consultório.

Dessa forma, quando falamos na produção de efeito de verdade por meio da emulação de estruturas semânticas que se desdobram em diversos planos discursivos, referimo-nos a uma tentativa de legitimação de enunciados desinformativos por meio da apresentação de um ethos específico. Conceito coextensivo a toda enunciação, o ethos diz respeito ao processo por meio do qual “o destinatário é necessariamente levado a construir uma representação do locutor, que este último tenta controlar, mais ou menos conscientemente e de maneira bastante variável” (Maingueneau, 2010MAINGUENEAU, D. Doze conceitos em análise do discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2010., p. 79).

Assim, embora a representação que se buscasse construir, nos vídeos que integraram a rede de desinformação formada por canais de autodeclarados médicos e profissionais de saúde, dissesse respeito à imagem de um enunciador detentor de saber científico, supostamente autorizado a enunciar de acordo com o regime de verdade da ciência, diversos aspectos denunciavam a imprecisão desses enunciados do ponto de vista de sua adequação às regras enunciativas do campo científico. Essas “lacunas” iam desde imprecisões e generalizações até a descontextualização de dados e a ausência de correspondência em relação a pesquisas científicas atualizadas e qualificadas.

Nos termos de Maingueneau (2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008.), as principais inconsistências revelam-se nos planos discursivos correspondentes à intertextualidade (modos como um discurso cita outros discursos, do mesmo e de outros campos) e aos modos de coesão (redes de remissão por meio das quais se constitui a interdiscursividade de um discurso). Isso porque, nos vídeos analisados, chamou a atenção a ausência de referências a fontes fidedignas ou estudos científicos atuais e validados; ao mesmo tempo, mesmo nos casos em que estudos científicos foram citados, as referências eram pouco precisas, incompletas e/ou descontextualizadas - aspectos que contrariam modos de coesão (ou seja, a dimensão anafórica) do discurso científico. É o que se observou, por exemplo, em vídeos que citavam estudos sobre modos de fortalecimento da imunidade contra uma doença que não a covid-19 para explicar como poderíamos nos proteger contra o novo coronavírus. Da mesma forma, há casos de vídeos fazendo referência a “pesquisas” sem informações elementares como autoria, instituição de origem, metodologia, amostragem, revista ou veículo de publicação do estudo.

Finalmente, a presença dessas “lacunas” justamente em enunciados que buscavam legitimar-se através de um ethos de cientificidade produzido mediante um efeito de sentido de identidade em relação ao discurso científico é reveladora do estatuto do destinatário presumido nesses conteúdos: alguém em busca de informações sobre saúde, propenso a aceitar a autoridade de um especialista/perito, mas certamente pouco familiarizado com o funcionamento do campo científico, suas dinâmicas de reconhecimento e métodos de produção do conhecimento.

3.2 INCORPORAÇÃO DESCONTEXTUALIZADA E DESANCORAGEM DE FRAGMENTOS ENUNCIATIVOS

Segunda estratégia discursiva identificada no corpus, a apropriação descontextualizada de fragmentos de discurso científico foi identificada no canal Silas Malafaia Oficial. A despeito de não termos realizado uma análise exaustiva das redes de desinformação no YouTube, é possível que tal estratégia ocorresse em outros vídeos que apresentavam interpretações religiosas e/ou teorias conspiratórias sobre a pandemia de covid-19. Segundo Machado et al. (2020MACHADO, C. C. V.; DOURADO, D. A.; SANTOS, J. G.; SANTOS, N. Ciência Contaminada. Analisando o contágio de desinformação sobre coronavírus via YouTube. Salvador: INCT.DD, 2020. Disponível em: https://laut.org.br/ciencia-contaminada.pdf. Acesso em: 15 ago. 2021.
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), canais que traziam lideranças religiosas e/ou político-religiosas como locutores e interpretavam evidências científicas à luz de perspectivas religiosas integravam uma importante rede de desinformação no YouTube, com ocorrência de “casos em que o discurso religioso empregado nos vídeos serve para desqualificar elementos da ciência ligados à pandemia, muito embora a ciência não esteja completamente ausente das discussões” (Machado et al., 2020, p. 27).

No caso do canal Silas Malafaia Oficial, a incorporação de fragmentos de discursos científicos se deu pela negociação em torno de sentidos de convergência e diferença em relação à ciência: por um lado, buscava-se fundamentar as ideias apresentadas em evidências científicas fragmentadas, distorcidas e/ou seletivamente recortadas; por outro, referências a discursos científicos eram demarcadas como citações de um “discurso outro”, o que talvez represente a principal diferença em relação à estratégia discursiva anteriormente descrita. O reconhecimento dessa alteridade enunciativa em relação à ciência é reforçado pela representação da corporeidade do locutor, que assumia uma identidade ligada ao campo religioso, materializada no plano audiovisual.

Com base em achados de Machado et al. (2020MACHADO, C. C. V.; DOURADO, D. A.; SANTOS, J. G.; SANTOS, N. Ciência Contaminada. Analisando o contágio de desinformação sobre coronavírus via YouTube. Salvador: INCT.DD, 2020. Disponível em: https://laut.org.br/ciencia-contaminada.pdf. Acesso em: 15 ago. 2021.
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) e pela observação do corpus os principais tipos de fragmentos discursivos reunidos nos vídeos dizem respeito a (a) dados provenientes de estudos científicos citados de modo a corroborar pontos de vista não científicos; (b) documentos e declarações emitidos por instituições científicas ou autoridades médico-sanitárias a respeito da pandemia de covid-19, citados de modo parcial e/ou descontextualizado; e (c) conceitos ligados às ciências biológicas e da saúde retirados de seu contexto de enunciação original.

Muitos exemplos de fragmentos de enunciados científicos foram encontrados no canal Silas Malafaia Oficial durante os primeiros meses de 2020. Embora predominasse uma visão “fatalista” sobre a crise sanitária apoiada em interpretações bíblicas, houve momentos em que Malafaia citou dados oriundos de fontes científicas estrategicamente recortados: além de recorrer a documentos da OMS para minimizar o impacto da pandemia no mundo, o vídeo de 27 de fevereiro de 2020 mostrou o pastor examinando trechos de uma nota da Sociedade Brasileira de Infectologistas. Malafaia recorreu ao documento para defender que não deveria haver isolamento social em cidades com menos de 1000 casos confirmados, ao mesmo tempo que ignorava outras recomendações da mesma nota.

Extrapolando nosso corpus, chama a atenção que articulações discursivas com incorporação descontextualizada de fragmentos do discurso científico se fizeram presentes também em declarações de autoridades políticas sobre a pandemia emitidas ao longo do ano de 2020. Esse tipo de ocorrência ganhou notoriedade no debate público a partir de declarações do deputado federal Osmar Terra, que recorreu à expressão “imunidade de rebanho” para defender o fim das medidas de isolamento social nos primeiros meses de pandemia. Segundo verificação divulgada pelo Projeto Comprova em 28 de outubro de 2020,

São enganosos os tuítes do deputado federal Osmar Terra (MDB-RS) afirmando que as pandemias acabam por meio da disseminação da doença, não com vacinas. Ele declara, entre outros pontos, que “não há registro histórico de pandemia de um novo vírus que termina com vacina! Isso só acontece com a imunidade de rebanho” (Comprova, 2020, online).

A referência a “imunidade de rebanho” em declarações como a do deputado ilustra a incorporação de um fragmento semântico do discurso científico-epidemiológico em contexto discursivo totalmente diverso daquele em que se dá, originalmente, sua produção. O próprio conceito em questão diz respeito a uma estratégia de imunização que pressupõe a vacinação de amplas parcelas da população, segundo a OMS (Comprova, 2020). Apropriações similares foram identificadas ainda em declarações do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro sobre o uso da hidroxicloroquina como forma de tratamento da covid-19.

Tais estratégias visavam obter legitimidade por meio da produção de um efeito de sentido de “simetria” ou “equivalência” em relação ao discurso científico: como se, ao incorporar fragmentos de discursos da ciência, enunciados desinformativos fizessem parte do campo científico e, portanto, interagissem com enunciados deste campo segundo suas formas próprias de concorrência discursiva, para usar os termos de Maingueneau (2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008.) - isto é, como se o que estava em jogo fossem interações entre posições discursivas delimitando-se reciprocamente por meio de relações polêmicas no interior de um mesmo campo discursivo. Buscava-se, dessa forma, autorizar os conteúdos em questão a enunciar sobre saúde, contribuindo ao mesmo tempo para alimentar a incompreensão e a desconfiança em relação ao campo científico.

Dessa forma, tais enunciados, ao buscar impregnar-se da historicidade ou estoque discursivo atrelado a discursos científicos, produziram o que Marie-Anne Paveau denomina como des-memória discursiva, isto é, “um conjunto de fenômenos de desligamento das lembranças e inserções dos nomes no fio memorial do discurso” (Paveau, 2013, p. 156). De acordo com a autora, que buscou formular uma interpretação cognitiva para a noção de memória (inter)discursiva, a memória atua como operador pré-discursivo e discursivo elaborado no desenrolar da história. Assim,

O elo memorial é parâmetro fundamental na produção dos discursos, a distribuição dos saberes e crenças voltando-se para o eixo diacrônico: os “ancestrais”, os que falaram antes de nós, são agentes humanos de distribuição, como o conjunto dos “lugares de memória” discursivos ou artefatuais que sustentam a transmissão (Paveau, 2013PAVEAU, A. M. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. EI&DA - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 137-161, dez. 2013. Disponível em: http://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/441/446. Acesso em: 15 ago. 2021.
http://periodicos.uesc.br/index.php/eide...
, p. 152).

Elementos discursivos - especialmente palavras e expressões - evocam sentidos e valores que passam pelos “canais” da memória cognitivo-discursiva, isto é, por linhagens discursivas, entendidas como “dispositivos representacionais internos e externos que permitem acolher e transmitir conteúdos semânticos ligados aos saberes, crenças e práticas” (Paveau, 2013PAVEAU, A. M. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. EI&DA - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 137-161, dez. 2013. Disponível em: http://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/441/446. Acesso em: 15 ago. 2021.
http://periodicos.uesc.br/index.php/eide...
, p. 152). Ainda segundo a autora, quando ocorrem conflitos entre memórias, significantes podem ser extraídos de suas linhas lexicais de origem: foi este o caso da incorporação de fragmentos de discursos da ciência por enunciados desinformativos que circularam no YouTube durante os primeiros meses da pandemia de covid-19. No embate entre uma memória (mais antiga) dos discursos científicos, de um lado, e uma memória (mais recente) de discursos negacionistas acionada nos vídeos de YouTube, de outro, pode-se observar uma revisão de linhagens discursivas característica da produção de des-memória.

Entre os muitos processos a serviço da des-memória, os enunciados desinformativos aqui examinados parecem ter operado principalmente pela ancoragem ‘de certos discursos na forma de um outro” (Paveau, 2013PAVEAU, A. M. Memória, des-memória, a-memória: quando o discurso volta-se para seu passado. EI&DA - Revista Eletrônica de Estudos Integrados em Discurso e Argumentação, Ilhéus, n. 5, p. 137-161, dez. 2013. Disponível em: http://periodicos.uesc.br/index.php/eidea/article/view/441/446. Acesso em: 15 ago. 2021.
http://periodicos.uesc.br/index.php/eide...
, p. 156). Assim, através de uma espécie de “sequestro” de memória, as estratégias discursivas da desinformação instituem transferências semânticas e culturais por meio de tecnologias discursivas - das quais vídeos compartilhados em plataformas digitais, como o YouTube, têm se mostrado exemplares.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao abordar algumas estratégias discursivas que caracterizaram vídeos desinformativos sobre covid-19 publicados em 2020 no YouTube, buscamos descrever como seus enunciados buscavam produzir efeitos de verdade por meio de modos específicos de interação com o discurso científico. Ao mesmo tempo, tais estratégias discursivas vinculavam-se à desestabilização - ora da legitimidade do regime de verdade da ciência como um todo, ora da credibilidade de agentes e instituições que integram o campo científico.

Com base na análise empreendida neste trabalho, chama a atenção o fato de que vídeos desinformativos, ao incorporarem fragmentos de enunciados científicos ou emularem restrições semânticas do discurso científico, aproximaram-se deste último no plano do enunciado - mas não da enunciação. Por isso, as relações dos enunciados com uma suposta “cientificidade” não passam de um efeito de sentido inscrito na superfície textual, sem correspondência no nível das condições sociopolíticas de produção discursiva.

Assim, por meio da produção de simulacros - conceito entendido aqui como proposto por Maingueneau (2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008.) - do discurso científico, vídeos desinformativos encenaram a instauração de zonas instáveis de trocas semânticas em relação a enunciados da ciência: foi precisamente a abertura desse ambiente forçado de trocas que legitimou tais enunciados e contribuiu para desestabilizar a economia política da verdade científica, interpelando integrantes desse campo a explicar-se e a prestar contas de seus métodos. No entanto, como se tratava de um espaço forjado essencialmente como forma de encenação da desinformação, o (desejável) adensamento dos diálogos estabelecidos entre sistema de peritos e sociedade não encontrou, ao menos por essa via, meios de se completar.

Finalmente, é importante observar que a emulação de estruturas enunciativas do discurso científico e a apropriação de fragmentos discursivos do campo científicos não parecem constituir estratégias discursivas de vídeos exclusivamente sobre covid-19 no YouTube: na verdade, ainda que assumindo contornos potencialmente singulares, elas comparecem também em outros tipos de conteúdos que têm sido apontados como desinformativos por agências jornalísticas de checagem e verificação de fatos. Trata-se de um dado relevante na medida em que sugere uma transversalidade de tais estratégias discursivas, que demandam aprofundamento em estudos futuros.

Por fim, considerando que o destinatário presumido nos vídeos analisados, parece ser alguém em busca de informações sobre saúde, propenso a aceitar a autoridade de um especialista/perito mas pouco familiarizado com a dinâmica discursiva do campo científico, reforça-se a importância do investimento em educação sobre métodos científicos como forma de combater a desinformação. Medida já apontada por outros pesquisadores (Paganotti, 2018PAGANOTTI, I. “Notícias falsas”, problemas reais: propostas de intervenção contra noticiários fraudulentos. In: COSTA, Maria Cristina Castilho; BLANCO, Patrícia (org.). Pós-tudo e crise da democracia. São Paulo: ECA/USP, 2018. p. 96-105.), esse tipo de ação educativa torna-se particularmente relevante como forma de enfrentamento de cenários “infodêmicos” como o que vivenciamos com a pandemia de Sars-Cov-2.

REFERÊNCIAS

  • ABUL-FOTTOUH, D.; SONG, M. Y.; GRUZD, A. Examining Algorithmic Biases in YouTube’s Recommendations of Vaccine Videos. International Journal of Medical Informatics, Amsterdam, v. 140, p. 104175, ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.1016/j.ijmedinf.2020.104175. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1386505619308743?via%3Dihub Acesso em: 15 ago. 2021.
    » https://doi.org/10.1016/j.ijmedinf.2020.104175. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S1386505619308743?via%3Dihub
  • ALBUQUERQUE, A.; QUINAN, R. Crise epistemológica e teorias da conspiração: o discurso anti-ciência do canal “Professor Terra Plana”. Revista Mídia e Cotidiano, Niterói, v. 13, n. 3, p. 83-104, set./dez. 2019. Disponível em: https://periodicos.uff.br/midiaecotidiano/article/view/38088/22345 Acesso em: 15 ago. 2021.
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    » https://www.youtube.com/watch?v=xF9Bz1LQOJs
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    » https://firstdraftnews.org/long-form-article/understanding-information-disorder
  • WEBER, M. Ensaios de sociologia. São Paulo: LTC Editora, 1982.
  • 1
    Do ponto de vista discursivo, o efeito de rumor ou efeito-rumor - diferentemente do entendimento de “rumor”, corrente no senso comum, como “mentira” ou “não-verdadeiro” - diz respeito a uma das formas pelas quais sujeitos se (re)apropriam do espetáculo midiático, instituindo um deslocamento do “boca a boca” para a ordem do ordinário midiatizado (Silveira, 2015SILVEIRA, J. Rumor(es) e humor(es) na circulação de hashtags do discurso político ordinário no Twitter. Tese (Doutorado em Letras). Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2015.). Em um contexto marcado pelo processo de midiatização, o efeito-rumor se vincula a formas específicas de constituir e fazer circular discursos que levam à produção de indistinção entre oralidade e escrita e ao embaralhamento dos critérios de legitimação dos discursos (Gallo; Silveira; Pequeno, 2019GALLO, S.; SILVEIRA, J.; PEQUENO, V. Normatização, midiatização e espaços enunciativos informatizados ou: o que torna possível o efeito de sentido de fakenews. In: IX SEAD - Seminário de Estudos em Análise do Discurso, 2019, Recife. Anais... Recife: UFPE, 2019. p. 1-5.). No caso do objeto em foco neste artigo, vê-se que o efeito-rumor esteve ligado, de acordo com a proposição teórica de Silveira (2015), à produção de confrontação de formações dominantes do campo científico.
  • 2
    Segundo Camargo Jr. e Coeli (2020), os aspectos que caracterizam o negacionismo científico incluem: teorias conspiratórias; recorrência a falsos experts; seletividade de fontes científicas, com a priorização daquelas que contrariam o consenso no campo científico; criação de expectativas inalcançáveis para a pesquisa científica, a fim de desacreditá-la; e uso de falácias lógicas. No contexto brasileiro, Caponi (2020CAPONI, S. Covid-19 no Brasil: entre o negacionismo e a razão neoliberal. Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 99, p. 209-223, maio/ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2020.3499.013. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/tz4b6kWP4sHZD7ynw9LdYYJ/. Acesso em: 15 ago. 2021.
    https://doi.org/10.1590/s0103-4014.2020....
    ) identifica a adoção de uma postura negacionista pelo governo Bolsonaro desde sua campanha eleitoral, em que ficou evidente seu desprezo pelas universidades, pela pesquisa e pela ciência. Essa postura se agravou durante a pandemia de covid-19, com a adoção de medidas sem validade científica (como o incentivo ao do uso de medicamentos como a hidroxicloroquina e a ivermectina) e a defesa de formas de intervenção - como o “isolamento vertical” - em desacordo com as posições sustentadas pela Organização Mundial da Saúde.
  • 3
    O YouTube tem assumido papel relevante, ainda que informal, na disseminação de conhecimento no Brasil, especialmente em regiões onde o ensino formal é precário e entre as classes menos escolarizadas (Machado et al., 2020MACHADO, C. C. V.; DOURADO, D. A.; SANTOS, J. G.; SANTOS, N. Ciência Contaminada. Analisando o contágio de desinformação sobre coronavírus via YouTube. Salvador: INCT.DD, 2020. Disponível em: https://laut.org.br/ciencia-contaminada.pdf. Acesso em: 15 ago. 2021.
    https://laut.org.br/ciencia-contaminada....
    ). Assim, ao lado das redes de desinformação sobre o novo coronavírus, a plataforma se destacou pela presença de vídeos produzidos por cientistas, especialistas e pesquisadores. Foi esse o caso dos canais de Átila Iamarino (1,51 milhões de inscrições em 15 de agosto de 2021) e Drauzio Varella (2,94 milhões de inscrições em 15 de agosto de 2021), cujos conteúdos sobre a pandemia de covid-19 alcançaram números expressivos de visualização.
  • 4
    Destaca-se ainda o fato de o YouTube ser um ambiente menos controlado do que outras redes sociais, como o Facebook, que em 2018 retirou do ar centenas de páginas brasileiras que promoviam conteúdo falso. Ao mesmo tempo, estudos sobre o WhatsApp indicam uma proeminência de links para vídeos do YouTube entre as mensagens enviadas pela plataforma de mensagens instantâneas (Machado et al., 2020MACHADO, C. C. V.; DOURADO, D. A.; SANTOS, J. G.; SANTOS, N. Ciência Contaminada. Analisando o contágio de desinformação sobre coronavírus via YouTube. Salvador: INCT.DD, 2020. Disponível em: https://laut.org.br/ciencia-contaminada.pdf. Acesso em: 15 ago. 2021.
    https://laut.org.br/ciencia-contaminada....
    ). Da mesma forma, em um estudo sobre canais terraplanistas, Albuquerque e Quinan (2019ALBUQUERQUE, A.; QUINAN, R. Crise epistemológica e teorias da conspiração: o discurso anti-ciência do canal “Professor Terra Plana”. Revista Mídia e Cotidiano, Niterói, v. 13, n. 3, p. 83-104, set./dez. 2019. Disponível em: https://periodicos.uff.br/midiaecotidiano/article/view/38088/22345. Acesso em: 15 ago. 2021.
    https://periodicos.uff.br/midiaecotidian...
    ) identificam o YouTube como espaço ideal para a divulgação em massa de materiais sobre teorias da conspiração e pseudociência tendo em vista a facilidade de upload na plataforma, a disponibilidade de tecnologia acessível para edição de vídeo e a permissividade para se manter no ar, divulgar e repercutir tais conteúdos.
  • 5
    Referimo-nos ao estudo Ciência Contaminada, parte integrante do projeto Democracia Infectada e resultante de uma parceria entre o Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT), o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD), sediado na Universidade Federal da Bahia (UFBA), e o Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa). Divulgados em maio de 2020, os resultados da pesquisa baseiam-se na análise de mais de onze mil vídeos do YouTube sobre o novo coronavírus, localizados por meio de buscas realizadas entre 1º de fevereiro e 17 de março de 2020.
  • 6
    Em 15 de agosto de 2021, o canal Dr. Gabriel Azzini registrava 1,79 milhões de inscritos.
  • 7
    Em 15 de agosto de 2021, o canal Programa NEWSTASRT tinha 62,7 mil inscritos. No caso desse canal, cabe observar que optamos por manter a grafia de seu nome tal qual se encontrava na plataforma Youtube.
  • 8
    Em 15 de agosto de 2021, o canal Silas Malafaia Oficial possuía 1,41 milhões de inscritos.
  • 9
    Se entendermos efeito de informação como o processo que “se verifica quando um enunciado se produz em uma determinada discursividade, e que dela é retirado para ser transportado para outra discursividade, perdendo, nesse movimento, sentidos pré-construídos” (Gallo, Silveira, Pequeno, 2019GALLO, S.; SILVEIRA, J.; PEQUENO, V. Normatização, midiatização e espaços enunciativos informatizados ou: o que torna possível o efeito de sentido de fakenews. In: IX SEAD - Seminário de Estudos em Análise do Discurso, 2019, Recife. Anais... Recife: UFPE, 2019. p. 1-5., p. 1), os vídeos de YouTube analisados neste trabalho podem ser considerados como fenômenos, lato sensu, informativos. Com isso, queremos dizer que as denominações desinformação e desinformativo, entendidas como categorias nativas empregadas por comunicadores (sobretudo jornalistas) e pesquisadores da área de Comunicação, constituem expressões valorativas que buscam diferenciar enunciados conformados pelas condições técnicas e materiais de produção das redes digitais em relação a enunciados cujas condições de produção remetem às materialidades institucionais do campo jornalístico. É pertinente, nesse sentido, a distinção entre informação e notícia, uma vez que “uma notícia contém informação, embora a recíproca nem sempre se confirme” (Lemos, Nassif, 2011LEMOS, A. B.; NASSIF, M. E. Informação e notícia: conexões no âmbito da Ciência da Informação e da Comunicação Social. DataGramaZero, v. 12, n. 3, p. A03, 2011. Disponível em: https://brapci.inf.br/index.php/res/v/7374. Acesso em: 25 out. 2023.
    https://brapci.inf.br/index.php/res/v/73...
    ). Em outras palavras, como destacam Lemos e Nassif (2011), embora informação e notícia sejam construções sociais da realidade, a segunda é resultado de condições de produção determinadas pelas materialidades institucionais do campo jornalístico, que envolvem aspectos como condições de trabalho e rotinas profissionais; de fato, a produção do efeito de informação como imperativo do discurso jornalístico vincula-se ao modelo de jornalismo do século XX, quando a notícia se tornou mercadoria (Flores, 2016FLORES, G. G. B. A discursividade da lei da imprensa no Brasil: uma análise do periódico província de São Paulo. Estudos da Língua(gem), v. 14, n. 2, p. 155-167, dez. 2016. Disponível em: https://periodicos2.uesb.br/index.php/estudosdalinguagem/article/view/1320. Acesso em: 25 out. 2023.
    https://periodicos2.uesb.br/index.php/es...
    ). Entendemos, portanto, que a palavra desinformação materializa mediações valorativas ligadas à posição do discurso jornalístico em relação à disputa em torno das condições de legitimidade da informação no contexto dos espaços enunciativos das mídias digitais. Ainda assim, e sem desconsiderar essa dimensão da opacidade constitutiva da expressão desinformação (e de seus termos correlatos), optamos por empregá-la, neste artigo, tendo em vista não apenas sua vasta circulação, como categoria nativa, em discussões estabelecidas em espaços públicos sobre a pandemia de covid-19, mas também o fato de o corpus analisado ser composto por vídeos de YouTube previamente categorizados como desinformativos (Machado et al., 2020MACHADO, C. C. V.; DOURADO, D. A.; SANTOS, J. G.; SANTOS, N. Ciência Contaminada. Analisando o contágio de desinformação sobre coronavírus via YouTube. Salvador: INCT.DD, 2020. Disponível em: https://laut.org.br/ciencia-contaminada.pdf. Acesso em: 15 ago. 2021.
    https://laut.org.br/ciencia-contaminada....
    ). Ao mesmo tempo, a desinformação é aqui compreendida no sentido de efeito de desinformação, isto é, efeito de sentido, próprio da materialidade técnica das redes digitais, produzido por enunciados que deslizam de posições enunciativas legitimadas em contextos de produção discursiva definidos por condições técnicas distintas daquelas dos espaços enunciativos das plataformas digitais (Gallo, Silveira, Pequeno, 2019).
  • 10
    Por “polêmica intracampo”, referimo-nos às formas de interação discursiva estabelecidas no interior de um campo discursivo que assumem a forma do que Maingueneau (2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008.) define como “relações polêmicas” entre enunciados concorrentes que se definem mutuamente.
  • 11
    A nomeação “Círculo de Bakhtin” corresponde à forma como tem sido chamada a perspectiva teórica compartilhada pelos pensadores russos Mikhail Bakhtin, Valentin Volóchinov e Pável N. Medviédev. Sua adoção se justifica em virtude da reconhecida convergência entre os trabalhos dos três autores, ao mesmo tempo que possibilita lidar com a controvérsia em torno da autoria das principais obras desses pensadores.
  • 12
    Por “mídium” (sic), Maingueneau se refere, em Análise de textos de comunicação, a um processo de mediação da linguagem que, por investir uma ideia de força material, deve ser considerado como parte do dispositivo comunicacional, ao lado do gênero e do canal material stricto sensu do enunciado (Maingueneau, 2013).
  • 13
    Maingueneau (2008MAINGUENEAU, D. Gênese dos discursos. Curitiba: Criar Edições, 2008.) identifica sete planos discursivos nos quais se manifesta o sistema de restrições semânticas globais de um discurso. São eles: a intertextualidade, tanto a interna (memória discursiva interior a um campo) quanto a externa (relações que um discurso define sobre outros campos); o vocabulário; os temas; o estatuto do enunciador e do enunciatário, posto que cada discurso define o estatuto que os enunciadores devem atribuir a si mesmos e a seus enunciatários a fim de legitimar seu dizer; a dêixis enunciativa, considerada em sua dupla modalidade espacial e temporal, ligada à definição de uma instância de enunciação legítima e à delimitação da cena e da cronologia que o discurso mobiliza para legitimar sua própria enunciação; o modo de enunciação, isto é, uma maneira específica de dizer, ligada a um gênero e a um tom, uma “corporalidade” espalhada por todos os planos discursivos, que faz o enunciador “encarnar-se” no corpo textual; e o modo de coesão, que se liga à interdiscursividade e recobre fenômenos como o recorte discursivo e os encadeamentos.
  • 14
    Optamos por manter a grafia dos títulos de vídeos tal qual se apresentavam no Youtube.

Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2021
  • Aceito
    07 Mar 2024
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