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REVISITANDO A FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA MATERNA: TEORIA, PRÁTICA E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES

RE-THINKING THE TRAINING OF FIRST LANGUAGE TEACHERS: THEORY, PRACTICE AND THE CONSTRUCTION OF IDENTITIES

RÉVISITANT LA FORMATION DE PROFESSEURS DE LANGUE MATERNELLE: THÉORIE, PRATIQUE ET CONSTRUCTION D’IDENTITÉS

REEXAMINANDO LA FORMACIÓN DE PROFESORES DE L1: TEORÍA, PRÁCTICA Y CONSTRUCCIÓN DE IDENTIDADES

Resumo

Este artigo revisita a formação de professores de língua materna, questionando a relação teoria e prática, a partir de um olhar sobre as grades curriculares de cursos de licenciatura em Letras. Discutimos os vários sentidos atribuídos à teoria e como são construídas algumas formas de identidade pedagógica. Nossa tese é a de que uma prática reflexiva, crítica, não pode se construir à margem dos saberes de referência. Para tanto, exemplificamos esse nosso argumento com relação ao ensino da língua escrita e a construção de um produtor, autor de seu próprio texto.

Palavras-chave:
teoria; prática; identidade; formação de professor; língua materna

Abstract

This paper discusses the formative process of L1 teachers by questioning the relation between theory and practice in the curriculum of undergraduate courses in language teaching. We discuss the many senses that are attributed to theory, and the way some pedagogical identities are built. Our thesis is that a reflexive and critical practice cannot be constructed disconnected from theoretical knowledge. The teaching of writing is taken as an example of a possible relation between theory and practice, which could lead to the construction of text producers who are also authors of their texts.

Keywords:
theory; practice; identity; teacher’s training; L1

Résumé

Cet article révisite la formation de professeurs de langue maternelle, tout en discutant la relation entre la théorie et la pratique, à partir d’un regard sur les contenus curriculaires de cours en licence de Lettres. On discute plusieurs sens attribués à la théorie et comment sont construits quelques formes d’identité pédagogique. Notre thèse constate qu’une pratique réfléxive, critique, ne peut pas être construite en marge des savoirs de référence. Pour cela, on explique cet argument par rapport à l’enseignement de la langua écrite et la construction d’un producteur, auteur de son propre texte.

Mots-clés:
théorie; pratique; identité; formation de professeur; langue maternelle

Resumen

Este artículo reexamina la formación de profesores de L1, cuestionando la relación teórica y práctica, tras examinar los datos curriculares de cursos de graduación en Letras. Examinamos los varios sentidos atribuidos a la teoría y la construcción de algunas formas de identidad pedagógica. Nuestra tesis defiende que una práctica reflexiva y crítica no puede construirse teniendo al margen los conocimientos de referencia. Para ello, ejemplificamos nuestro argumento con relación a la enseñanza de la lengua escrita y la construcción de un productor, autor de su propio texto.

Palabras-clave:
teoría; práctica; identidad; formación de profesor; L1

1 INTRODUÇÃO

Discutir a formação de professores pressupõe caminhar em duas direções diferenciadas e complementares. Uma delas diz respeito ao professor como aluno, o outro ao professor como docente. Em termos de objeto de estudo, isto significa dizer que o foco das investigações sobre essa temática pode encaminhar-se para os processos formativos iniciais ou para aqueles da formação continuada. Evidentemente, estas duas direções não são excludentes apenas delimitam campos, implicando, algumas vezes, em caminhos metodológicos diferenciados na exploração de temáticas diversas, até em interfaces com outras ciências, eventualmente, também distintas.

Em uma breve revisão da literatura sobre a formação de professores de línguas, seja em bancos de teses e dissertações, seja em trabalhos apresentados em Congressos, seja em artigos publicados em revistas especializadas, a questão da formação continuada tem merecido um maior destaque e uma maior preocupação. Emergem, nesse contexto, como temáticas privilegiadas, as discussões e investigações sobre a formação de professores reflexivos, de professores autônomos e de professores pesquisadores, em uma opção claramente definida para o estudo das práticas de sala de aula, privilegiando-se a pesquisa ação ou a pesquisa colaborativa.

Acompanhando uma tendência global, essas pesquisas surgem em um contexto de crítica aos processos formativos de professores como “transmissores de conteúdos” e, sem sombra de dúvidas, vêm trazendo contribuições valiosas no campo do conhecimento das opções didático-pedagógicas, da atuação em sala de aula, dos processos interativos entre professores e alunos, enfim todo um conhecimento sobre o cotidiano da escola e sobre o desempenho dos docentes, inserindo-se em um paradigma convencionalmente chamado de “epistemologia da prática”.

Refletem estas pesquisas as críticas ao conhecimento científico, acompanhadas em geral da valorização de outros, principalmente, daqueles provenientes do cotidiano e da experiência, que passam a ser considerados como lugar privilegiado da construção de saberes. Parodiando Fridman (2000FRIDMAN, L. C. Vertigens pós-modernas: configurações institucionais contemporâneas. Rio de Janeiro: Relumé e Dumará, 2000.), diríamos que, no âmbito acadêmico, a crítica à razão e à ciência conquista “corações e mentes”, ganhando realce àquelas dirigidas à racionalidade técnica, às verdades absolutas, à objetividade tipologizante e às generalizações que ocultam as singularidades dos eventos, dos fatos, dos sujeitos. Constroem-se essas pesquisas no curso das características da própria contemporaneidade, desmanchando o que antes era sólido, fazendo emergir as esferas do cotidiano, as individualidades, mas, a nosso ver, com um certo risco de criar outros mitos para além daqueles que se pretende combater, como por exemplo, a ilusão de que a observação e a reflexão sobre a sala de aula, por si só trariam contribuições para a compreensão da prática docente, ou como diz Sacristan (2002SACRISTAN, J. G. Tendências investigativas na formação de professores . In: PIMENTA, S. G.; GHEDIN, E. (Orgs.). Professor reflexivo no Brasil: gênese e crítica de um conceito. São Paulo: Cortez Editora, 2002.), como se a prática fosse inventada pelos práticos. Em síntese, diríamos que essas pesquisas trazem à baila, com toda força, no bojo do questionamento sobre o conhecimento científico, a questão da relação teoria e prática.

No caso específico das pesquisas sobre formação de professores, esse fato evidencia-se na valorização da orientação para estudos que discutem a prática reflexiva dos docentes “em ação”, privilegiando os “saberes oriundos dessa prática” como essenciais para a construção da profissão docente, em uma crítica explícita ao papel emancipador do saber elaborado, conforme postulado pela modernidade “iluminista” e que teria resultado em um superdimensionamento dos conhecimentos teóricos sobre aqueles originados no senso comum.

De nosso ponto de vista, no entanto, embora concordando com todo o avanço que essa direção investigativa traz ao tema da formação de professores, consideramos necessário e indispensável até, repensar uma epistemologia de conteúdos. Interessanos, pois, nesse artigo refletir sobre o processo formativo inicial dos professores de língua materna, exemplificados nas grades curriculares dos Cursos de Licenciatura em Letras, rediscutindo o papel do conhecimento científico no contexto da relação teoria e prática e da construção de identidades pedagógicas.

2 TEORIA , PRÁTICA E FORMAÇÃO DE PROFESSORES DE LÍNGUA MATERNA

A relação teoria e prática surge nos debates acadêmicos, na pesquisa, mesmo no cotidiano, como tema recorrente, embora, um olhar mais atento faça perceber que aos conceitos de teoria e prática nem sempre são atribuídos os mesmos sentidos. Ao nível do senso comum, muitas vezes, a prática coincide com a experiência obtida em um dado campo de atividade, ou mesmo como técnicas, como um fazer em si (OLIVEIRA, 1998OLIVEIRA, M. F. de. As vozes e os efeitos de sentido da “prática” no discurso de professoras sobre sua formação. Linguagem e Ensino, Pelotas: Educat, v. 1, n. 2., 1998.), que, associada à idéia de ação, ganha uma dimensão positivamente valorada. Ao sentido de “teoria”, o senso comum, geralmente, faz acrescer a idéia de “abstração”, de um pensar autônomo, descolado da realidade ou da “prática”, como dizem alguns.

No mundo acadêmico, ao se pensar a relação teoria e prática, é inevitável que essa discussão faça emergir o campo do conhecimento científico. Isto porque, as teorias são construtos próprios desse universo, as quais são atribuídas um sentido de modelo representativo da realidade, portador da verdade, criando uma simbiose entre poder e conhecimento, nos limites de um paradigma herdeiro da tradição iluminista. Discutindo as teorias e o conhecimento científico que as pressupõem, Morin (1986MORIN, E. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986.) afirma que a noção de paradigma que vem guiando o conhecimento científico da contemporaneidade é aquele centrado em mecanismos de rejeição ao pensamento alheio, através de estratégias que variam da desqualificação do outro até o diversionismo, de forma que o conhecimento científico produz cada vez menos para ser pensado e cada vez mais para ser acumulado pelos computadores. Nesse processo, diz ele, tornando-se incapaz de pensar e conceber a noção de sujeito e a natureza da sociedade atual. Para aquele autor, a alternativa a essa forma de produzir conhecimento seria não se fechar em sistemas teóricos únicos, evitando que as teorias se tornem doutrinas e que as doutrinas congelem-se em dogmas.

Esta noção hegemônica do conceito de teoria construiu-se a partir de definições advindas de duas correntes centrais da filosofia, uma delas, de base cartesiana, que considera a teoria como um conjunto de conhecimentos “não ingênuos, que apresentam graus diversos de sistematização e credibilidade, e que se propõem explicar, elucidar, interpretar ou unificar um dado domínio de fenômenos ou de acontecimentos que se oferecem à atividade prática”; e, outra, ancorada no platonismo, que consiste em conceber as teorias como “[...] entidades eternas e imutáveis que seriam objeto do conhecimento verdadeiro e de que as coisas do mundo sensível constituíam pálidos reflexos” (FERREIRA, 2004FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 3. ed. rev. e atual. Paraná: Positivo, 2004. 2120 p., p. 1367).

Em síntese, podemos dizer que as definições acima citadas congregam os elementos que constituem o sentido hegemônico atribuído à teoria, isso é, um misto de um “conjunto de conhecimentos sistematizados” combinado com o “caráter doutrinário, imutável do mundo sensível”, acrescentando-se a eles, a compreensão aristotélica, para quem a teoria relaciona-se à busca da verdade, enquanto que a prática seria uma atividade concreta, através da qual os seres humanos se afirmam no mundo, modificam a realidade objetiva. Um outro componente, portanto, da relação entre teoria e prática, envolvendo dessa vez o conceito de verdade, mas uma verdade, no caso, que por ser universal, vale igualmente para todos.

O fato é que há uma crítica ao conhecimento científico e sua razão calcada na herança do paradigma iluminista, crítica essa extensiva às teorias, desqualificadas face à prática, herdeira de uma filosofia da ação. Nesse processo, prática e teoria disjuntam-se e adquirem valores diferenciados.

Inserindo-se pois cada vez mais em uma “epistemologia da prática”, os estudos sobre o processo formativo de professores pautam-se, a nosso ver, por um conceito negativo da teoria e do conhecimento científico, na direção do que afirmamos anteriormente. Ou seja, o foco principal das pesquisas desloca-se para a prática dos professores, em um processo que notoriamente descarta a discussão sobre o papel da teoria, no caso aqui, os conhecimentos científicos, base para os “conteúdos” que se organizam nas disciplinas, estruturadas em uma grade curricular. É, nesse sentido, que concordamos com Pimenta (1999PIMENTA, S. G. Saberes pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cortez Editora, 1999.), que alerta para os riscos de que esses estudos podem resvalar para um praticismo, criando outros mitos, para além daqueles que se pretende combater, fortalecendo a ilusão de que a observação e a reflexão da e na sala de aula, por si só, trariam subsídios para a compreensão da prática docente. Em outras palavras, criando a ilusão de que a reflexão sobre a prática ou ainda a reflexão na ação dispensa a reflexão sobre a teoria e o conjunto de conhecimentos dela derivado, a partir da idéia de que o conhecimento científico, transformado em conteúdos de disciplinas, é inoperante na orientação e sustentação de práticas. Um ponto de vista, que no dizer de Duarte (2003______. Conhecimento tácito e conhecimento escolar na formação do professor (Por que Donald Schön não entendeu Luria). Educação e Sociedade, Campinas, n. 83, 2003.), crítico severo da “epistemologia da prática”, representa claramente um momento de “recuo da teoria”, face a todo um movimento de desconstrução da noção iluminista de conhecimento científico. O cerne da crítica, contudo, não reside em um “saudosismo”, uma “volta ao passado”, qual seria o de conferir ao conhecimento científico papel central na superação dos atributos negativos do “senso-comum” mas o de evidenciar uma preocupação com o fato de deixar-se de considerar a sala de aula como lugar privilegiado de fazer introduzir os alunos, futuros profissionais docentes, no mundo dos sistemas de referências formais. Estas colocações ancoram-se em uma determinada compreensão da escola como um lugar não de aprofundamento da ciência, mas da construção de uma base de saber que, ao articular as várias faces de um dado objeto de ensino e aprendizagem, ultrapassa portanto a idéia de dominar conteúdos abstratamente (VADERMARIN, 1998; DUARTE, 1998DUARTE, N. Concepções afirmativas e negativas sobre o ato de ensinar. Cadernos Cedes, Campinas, n. 44, 1998.). Concebem esses autores o ato de ensinar como um posicionamento afirmativo, considerando que a capacidade do ser humano, perante o ser animal, consiste, entre outros fatores, em sua capacidade de acumular, produzir e transmitir experiências, entre estas, o conhecimento científico acumulado pelas gerações, questionando a visão negativa que é atribuída a idéia de “transmissão de conhecimentos”, vista como uma ação cujo destinatário é um receptor passivo, que não interage com esse conhecimento.

Nessa direção é que compartilhamos com Shulman (1986SHULMAN, L. Those who understand: knowledge growth in teaching. Educational researcher, n. 15, 1986.), o entendimento de que é necessário que o professor domine os conteúdos específicos de sua área, além de ter a clareza de como esses conteúdos transformam-se em objetos de ensino, seja pelos mecanismos de “transposição didática” (CHEVALLARD, 1985CHEVALLARD, A. La transposition didactique: du savoir savant au savoir enseigné. Grénoble: La Pensée Suavage, 1985.; BRONCKART e GIGER, 1996BRONCKART, J. P.; GIGER, I. P. La transposition didactique: histoire et perspectives d’une problematrice fondatrice. Pratiques, ns. 97-98, 1996.), seja pela “mediação pedagógica” (VADEMARIN, 1998VADEMARIN, V. O discurso pedagógico como forma de transmissão de conhecimento. Cadernos Cedes, Campinas, n. 44, 1998.; DUARTE, 1998DUARTE, N. Concepções afirmativas e negativas sobre o ato de ensinar. Cadernos Cedes, Campinas, n. 44, 1998.), seja pelo conhecimento articulado dos saberes disciplinares e saberes curriculares (GAUTHIER, 1998GAUTHIER, C. Por uma teoria da pedagogia. Ijuí: Editora Unijuí, 1998. ). Ainda nesse sentido, Moyses e outros (2002) sugerem que a idéia de conhecimentos como objeto transmissível seja substituída pela idéia de conhecimento e saberes constituídos nos e pelos processos discursivos. Para tanto, afirmam, no processo formativo de professores, a ênfase essencial deveria centrar-se na questão da relação teoria e abordagem metodológica, o que em outras palavras significa discutir que teorias orientam tais ou quais práticas. Isso sem desconhecer que o conhecimento científico não é a única fonte de saber necessário e constitutivo da formação do profissional docente, mas sem criar um abismo entre o mundo da ciência e o mundo da vida.

Nesse sentido é que os estudiosos filiados aos pressupostos do paradigma histórico-cultural, buscam resgatar o valor dos saberes oriundos do conhecimento científico, desqualificados, em favor de processos valorativos das informalidades, das racionalidades técnicas, formas mascaradas da ilusão democrática do saber (FAIRCLOUGH, 2001FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: Editora da UNB, 2001.) e, que, na verdade, atendem aos modismos e praticidades, o usar e jogar fora, tão a gosto do modo de operar da sociedade contemporânea. É esse processo, seja ele de desconhecimento, seja de ocultação do valor do conhecimento científico, um dos responsáveis por instalar, progressivamente, na escola e no imaginário dos professores, a idéia de uma pedagogia do simples, quando, a escola, por definição, deveria constituir-se em espaço privilegiado para o exercício de uma “pedagogia do complexo” (MEIRIEU, 2002MEIRIEU, P. Rumo a uma escola de cidadania. In: APAP, Georges (e Cols.). A construção dos saberes e da cidadania. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.).

Em outras palavras, a produção do conhecimento que busca a revalorização dos saberes de referência, tem como pressuposto a idéia de que o processo formativo de professores deveria possibilitar a este profissional o acesso a conhecimentos variados, que dialoguem e se complementem, entendendo que o domínio da matriz disciplinar dos conhecimentos específicos de sua área não significa o retorno à velha identidade do professor como “transmissor de conteúdos”, pois como diz Nóvoa (1992NÓVOA, A. Os professores e a sua formação. Portugal: Publicações Dom Quixote Ltda., 1992., p. 35), “[...] o saber de referência da profissão docente não pode ser construído à margem da lógica da produção científica das várias disciplinas”.

A partir dessas colocações, a nosso ver, a discussão sobre teoria e prática assume outra dimensão. Não se fecha em posições dicotômicas, oscilando entre uma epistemologia da prática ou uma epistemologia de conteúdos, mas em uma epistemologia que evidencie as orientações práticas que cada teoria possibilita.

Nesse momento, vamos até os Cursos de Licenciatura em Letras no sentido de interrogar quais os fundamentos teóricos e que concepção de linguagem subsidiam os estudos lingüísticos presentes em suas grades curriculares.

3 CURRÍCULOS E IDENTIDADES PROFISSIONAIS

A pesquisa sobre os cursos de formação inicial de professores tem demonstrado que estes cursos desenvolvem um currículo com conteúdos e estágios distanciados da realidade da escola, contribuindo pouco para gerar uma nova identidade para este profissional (PIMENTA, 1999PIMENTA, S. G. Saberes pedagógicos e atividade docente. São Paulo: Cortez Editora, 1999.). Para essa autora, à construção de identidades dos docentes, não bastam os saberes advindos da experiência, são necessários ainda os saberes advindos do conhecimento científico, bem como aqueles de sua prática pedagógica.

Em um passeio pelas pesquisas que investigam a formação de professores de língua materna, encontramos, com freqüência, dizeres dos profissionais que se referem aos conteúdos de seus cursos de formação inicial, como sendo de natureza meramente teóricos, ou seja, não orientadores de práticas. Por outro lado, as pesquisas que relatam as observações de sala de aula apontam no sentido exatamente inverso, isto é, há uma prática sistemática do ensino da língua materna em sala de aula, que faz corresponder exatamente a uma “transposição” das teorias aprendidas em seus cursos de formação inicial, reforçando a idéia de que a prática que é exercitada decorre exatamente do conceito de língua presente em seus processos formativos. O fato que se evidencia, portanto, não é que os cursos de formação inicial deixem de orientar práticas, o constatado é que estas práticas lhes fazem inserir em identidades às quais conscientemente rejeitam, pois são práticas consideradas ultrapassadas que remetem para uma identidade profissional do professor “transmissor de conhecimentos” (OLIVEIRA, 2001______. O ensino da produção textual: o saber e o fazer das professoras. In: PASSEGGI, L.; OLIVEIRA, M. S. (Orgs.). Lingüística e educação: gramática, discurso e ensino. São Paulo: Terceira Margem, 2001.).

Isso porque, a base teórica dos estudos lingüísticos, presente na maioria das grades curriculares dos cursos de Licenciatura em Letras e que vem formando gerações e gerações de professores de língua materna, parte de uma concepção de língua como sistema estruturado em níveis, consolidado em uma variante, a norma culta, que é responsável pela orientação das práticas docentes, viabilizadas e visibilizadas através de observações de sala de aula, acompanhamentos, entrevistas, entre tantas outras formas de registro. Não é pois que os conteúdos teóricos dos cursos de formação inicial não orientem práticas. O que vem acontecendo ainda, malgrado todo o desenvolvimento da pesquisa, é que o processo formativo inicial de professores de língua materna ainda é regido por uma concepção de linguagem e língua entendidas ora como mera representação do pensamento, ora como um sistema estruturado em níveis. Em outras palavras, uma concepção de linguagem cujas características são aquelas descritas por Voloshinov (1978VOLOSHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1978.) como o “objetivismo abstrato”, modelo este que, pelos seus pressupostos epistemológicos, apenas pode orientar práticas que desenvolvam habilidades concernentes ao domínio das relações entre signos e não aquelas entre signos e a realidade vivida, concreta, na qual a língua se constitui e constitui sujeitos falantes e escreventes.

Esta é a realidade com a qual nos defrontamos quando percorremos as diretrizes que orientam os estudos da língua da maioria das grades curriculares dos Cursos de Licenciatura em Letras, da maioria das Universidades Federais do país. As disciplinas, presentes nas grades curriculares desses cursos com relação ao conteúdo da Língua Portuguesa, encontram-se distribuídas em no mínimo 06 e no máximo 08 disciplinas obrigatórias, revelando, ainda, as ementas e as bibliografias, que mais de 80% dos conteúdos dessas disciplinas são dirigidos para estudos descritivos da língua, em seus diversos níveis estruturais, aliados a concepções das gramáticas prescritivas e a uma visão normativa de língua. As disciplinas da área de conhecimento da Lingüística, por sua vez, organizam-se em um máximo de 03 períodos obrigatórios e os conteúdos não diferem significativamente daqueles encontrados ao se analisar os conteúdos da língua materna, isto é, cerca de 75 a 80% das disciplinas obrigatórias tratam de modelos lingüísticos que abordam a língua a partir de uma visão estruturalista ou gerativista, restando às propriedades discursivas e enunciativas da língua, no máximo 15% da carga horária das disciplinas obrigatórias, quando não ausentes totalmente (OLIVEIRA, 2004______. Discutindo a formação inicial de professores de língua materna: o processo de disciplinarização dos saberes de referência. CONGRESSO NACIONAL DE LINGÜÍSTICA APLICADA, 6. Anais em CD-rom... São Paulo: Alab, 2004.).

Portanto, uma grade curricular organizada de forma que a maioria da carga horária destinada aos estudos da língua e da linguagem é preenchida com conteúdos que obedecem a uma certa visão, ainda dominante, de que os conteúdos necessários para formar professores de língua materna cingem-se ao domínio da língua entendida como sistema estruturado e normativo. Visões que, a nosso ver, infelizmente, ainda povoam o imaginário coletivo da sociedade, nela incluídos os intelectuais, pesquisadores, professores e professoras. Em síntese, acompanhando a formulação de Foucault (1996______. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.) sobre a ordem do discurso, poderíamos dizer que o conjunto de práticas discursivas dos Cursos de Licenciatura em Letras firma-se na idéia de que à escola cabe ensinar a língua correta, geralmente identificada com a norma culta, e, esta ordem do discurso exerce papel decisivo na seleção de conteúdos.

As razões para a hegemonia dessa concepção de linguagem e de língua nas grades curriculares inventariadas não são casuais. Ou seja, decorrem do fato de que o currículo de um curso não é um instrumental técnico e sim um artefato social e cultural, atravessado por relações de poder, transmitindo visões sociais particulares, interessadas e historicamente situadas das diversas áreas do conhecimento, que orientam os processos seletivos dos conteúdos e saberes de referência a se fazerem presentes nas grades curriculares (SILVA, 1999SILVA, T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.). Afastada, portanto, a idéia de que, nos currículos, os conhecimentos seriam apenas representações autônomas de áreas, de modos de conhecer, consolidando-se o entendimento de que os conhecimentos distribuídos nas grades curriculares não são ingênuos, nem neutros, nem, muito menos, independentes de uma valoração social.

Voltando ao caso específico das disciplinas obrigatórias da área da Lingüística, por exemplo, o processo de disciplinarização de seus conteúdos e a sua organização ainda hegemônica nas grades curriculares vinculam-se à própria história das idéias lingüísticas e a formação da Lingüística como ciência. No caso, a uma Teoria Lingüística Estruturalista, a qual é difundida na área acadêmica não como uma teoria “a mais” sobre a língua, mas como um verdadeiro patrimônio, que no dizer de Chiss e Puech (1998CHISS, J. L.; PUECH, C. De l’émergence disciplinaire à la didactisation des saviors linguistiques: le tournant des années 60 et ses suites. Langue Française, Paris: Larousse, n. 117, 1998.), transformou-se em um paradigma que assume o lugar da memória, constituindo-se como matriz constitutiva para os saberes disciplinares daquela disciplina. Talvez seja essa a explicação, diz Kerbracht- Orechhioni (1998), da dificuldade que os estudos lingüísticos encontram ainda hoje para levar em consideração o objeto língua em seu funcionamento autêntico.

Em síntese, à luz das reflexões de Bernstein (1999BERNSTEIN, B. Official knowledge and pedagogic identities. In: CHRISTIE, F. (Ed.). Pedagogy and the shaping of consciousness. London: Continuum, 1999.), poderíamos dizer que estes modelos de currículos constituem matéria-prima para a formação de identidades profissionais “fundamentalistas” e “elitistas”, cujas relações com o conhecimento, provavelmente, exigem fidelidade a uma concepção lógico-gramatical da língua, aliada a uma concepção elitista de cultura, configurando-se como diz Bornheim (1987BORNHEIM, G. O conceito de tradição. In: ______. Tradição e contradição. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1987.), como uma “tradição conservadora”. Em outras palavras, uma tradição que se pensa perene, eterna, imutável e que, exatamente, por este motivo recusa a mudança, regendo-se, diríamos, por práticas discursivas hierarquizadas, com limites e fronteiras bem demarcadas, evitando, desta forma, a contaminação e a ameaça advindas de outras fontes.

O desafio que se coloca seria a formulação de currículos que favorecessem a construção de identidades “re-centradas”, aquelas que apontando para o futuro, não desprezam o presente nem as tradições que se renovam, que não se dicotomizam, que não trafegam pelo isso ou aquilo (BERNSTEIN, 1999BERNSTEIN, B. Official knowledge and pedagogic identities. In: CHRISTIE, F. (Ed.). Pedagogy and the shaping of consciousness. London: Continuum, 1999.).

A nosso ver, pois a discussão da relação teoria e prática não pode dispensar uma discussão sobre a organização curricular dos saberes de referência, os saberes disciplinares, que subjazem aos cursos de licenciatura em Letras, entendendo os currículos como instrumentos de viabilização de políticas públicas, lugar onde são processados, produzidos e transmitidos conhecimentos, construindo subjetividades e identidades, espaços privilegiados de seleção dos conhecimentos. Em outras palavras, significa pensar o currículo de cursos de formação de professores comprometidos com uma “metaformação”, uma formação consciente, a partir de uma visão de educação que questione o “fazer” pedagógico, no caso específico dos professores de língua materna, formando profissionais comprometidos não apenas com o ensino da estrutura de línguas, mas também com o entendimento do funcionamento da linguagem como uma prática discursiva de natureza social.

4 UMA OUTRA RELAÇÃO TEORIA E PRÁTICA É POSSÍVEL?

Retomando a idéia inicial desse artigo, qual seja o de discutir a relação entre teoria e prática e nossa afirmação de que, até então, as pesquisas, apesar dos dez anos de PCN, continuam a apontar a prática docente de sala de aula fundada em orientações de modelos e de teorias lingüísticas cujas concepções de linguagem permanecem herdeiras do estruturalismo, do gerativismo e seus desdobramentos, nesse último item, pretendemos refletir sobre que conhecimentos científicos poderiam oferecer outras contribuições para a organização dos saberes de referência nas grades curriculares dos cursos de Licenciatura em Letras. Nossa reflexão prende-se apenas a um aspecto do processo de ensino da língua escrita e, mais especificamente, pensando nas últimas séries do ensino fundamental e do ensino médio, objetivamos contribuir com o processo de formação do produtor e autor de seu próprio texto, como uma forma de avançar nas atividades escolares relacionadas à produção textual escrita que em sua maioria ainda encerram-se no “exercitar contínua e repetidamente”, as estruturas gramaticais da língua. Enquanto que na vida, diz Bakhtin (1992BAKHTIN,M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.), os textos são produzidos em resposta a outros textos. Em resumo, poderíamos pensar que da mesma forma que a razão instrumental, no processo de libertar a razão dos mitos, tornou o homem seu escravo, uma concepção de linguagem que dispense os sujeitos e sua historicidade aprisiona a língua e sua prática em sala de aula, impedindo aos alunos de deixar “rastros” em seus textos, de serem autores, tornando-os prisioneiros de um processo de repetição de idéias alheias, esvaziandose seus textos de suas histórias, de seus conteúdos vivenciais, de seus pontos de vista.

Desta forma, é que tentaremos nos guiar pela seguinte indagação “há conhecimentos produzidos no âmbito dos estudos da linguagem que podem vir a subsidiar o ensino da língua escrita no espaço escolar, com vistas a formação do produtor/autor de seu próprio texto?.

A questão da autoria vem sendo discutida nos estudos da linguagem, principalmente, na visão de M. Foucault (1989FOUCAULT, M. O que é um autor. Portugal:Vega Editora, 1989., 1996), para quem a autoria relacionase à instauração da discursividade, portanto, o autor é aquele responsável pelos textos chamados de constituintes ou fundadores. Um outro caminho é proposto por Orlandi (1988ORLANDI, E. Nem escritor, nem sujeito, apenas autor. In: ______. Discurso e Leitura. São Paulo: Cortez, 1988.) que, ancorada em propostas ducrotianas sobre a distribuição de enunciadores no texto, considera a função -autor como mais uma função do sujeito no texto, ou seja, aquela que atribui ao sujeito a responsabilidade pelo seu próprio texto. Outra compreensão segue a interpretação de Chartier (1994CHARTIER, R. A ordem dos livros. Brasília: Editora da UNB, 1994.), que estuda a questão da autoria relacionando-a à circulação de textos no mercado e, mais recentemente, Possenti (2002POSSENTI, S. Indícios de autoria. Perspectiva, Florianópolis: Edufsc, v. 20, n. 1, 2002.), que aponta como indícios de autoria o fato do produtor do texto assumir duas atitudes, quais sejam a de dar voz a outros enunciadores e manter distância em relação ao seu próprio texto. Para esse autor, as verdadeiras marcas de autoria são, pois, da ordem do discurso e não do texto ou da gramática. Gostaríamos, contudo, de comentar uma outra visão sobre a questão da autoria e de suas possíveis contribuições ao ensino da produção textual escrita, à luz de colocações advindas de alguns escritos de M.Bakhtin e de L.V. Vigotsky.

Em “O autor e o herói”, M.Bakhtin (1992BAKHTIN,M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.) afirma que autor é aquele participante da obra literária e que nela vê e conhece para além daquilo que cada personagem em particular e todas as personagens juntas enxergam e conhecem. Em princípio, o autor é aquele que conhece, portanto, algo que é inacessível às personagens, exatamente porque ao autor é atribuído “um excedente de visão, possibilitado pela sua posição “exotópica”, pelo seu “estar de fora”. Entra em cena na discussão da temática sobre autoria um conceito, essencial à formulação de Bakhtin, o conceito de exotopia, que, poderíamos dizer corresponde ao fato de que o meu olhar sobre o outro não coincide com o olhar que o outro tem de si mesmo, exatamente porque meu “excedente de visão” possibilita-me ver no outro aquilo que ele não pode ver. Bakhtin vai trabalhar com esse conceito em relação à construção do todo espacial, temporal e significante do herói, apontando a diferença na relação entre o vivido - pelo herói - e o criado, pelo autor.

Portanto, se quisermos fazer uma analogia entre o que diz Bakhtin e outros teóricos, poderíamos dizer que a função autor em Bakhtin realiza-se quando há um distanciamento entre o autor e o personagem e, neste sentido, é que podemos entender a idéia de que, para Bakhtin, a consciência do autor é aquela que abarca e dá acabamento a consciência do outro, podendo-se dizer que o autor é para o herói, aquilo que o outro é para mim, ou seja, é o ponto de vista do outro que me dá acabamento.

Em Bakhtin, portanto, ao autor é atribuído a realização de uma atividade estética, atividade esta que se realiza apenas entre duas consciências, que é da ordem do “criado “ e não do “vivido”, cuja “modo de operar” principal é a de “dar acabamento” ao todo. Ou seja, a atividade estética exige um distanciamento do autor, do objeto, do tema para poder permitir-lhe a percepção do todo e exatamente por essa posição exotópica dar o acabamento necessário à personagem. Por outro lado, ao realizar-se apenas entre duas consciências não coincidentes, a atividade estética não dispensa a instauração da alteridade, pois apenas “outro” pode receber acabamento espacial, temporal e de sentido.

Destacam-se, pois, como fundamentais nesse conceito de autoria as noções de exotopia, distanciamento, criação e acabamento. Resumidamente, portanto, interessa-nos à nossa discussão a idéia de que ao conceito de autor está relacionada à realização de uma atividade estética, que por sua vez é da ordem de duas consciências, que é “criativa” e não “vivenciada”, exigindo um distanciamento para que as “operações” de acabamento da obra concretizem-se.

Dos escritos de Vygotsky, gostaríamos de destacar duas contribuições principais. A primeira delas, pode ser encontrada em “ A Pré-história da Escrita” (VYGOTSKY, 1984VYGOTSKY, L. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.), quando esse autor afirma da necessidade de que a escola assuma a escrita como simbolismo de primeira ordem, aquilo que ele chama de “autonomia” da escrita. Em outras palavras isto significa que a modalidade de língua escrita necessita liberar-se de sua dependência de outras materialidades, orais ou pictóricas, de forma que seja possível atribuir sentidos ao texto escrito sem a recorrência a outras materialidades, ou seja, a aprendizagem da língua escrita deve atender as propriedades da linguagem em todas as suas dimensões, das notacionais, estruturais, textuais até as discursivas e enunciativas. Nesse processo de aprendizagem, Schneuwly (1985SCHNEUWLY, B. La construction sociale du langagem écrit chez l´enfant. In: SCHNEUWLYET, B.; BRONCKART, J. P. (Eds.). Vygotsky aujourd’hui. Paris: Delachaux et Niestlé, 1985.) chama a atenção para o fato de que a escola deveria pensar o ensino da escrita em suas duas dimensões, a “comunicacional”, implicando na exploração da escrita orientada para o outro, para um interlocutor concreto, real ou virtual a quem nos dirigimos e que constitui também o nosso dizer, e a “representacional”, aquela mais apropriadamente compreendida como a escrita para si, cujo funcionamento é de exercer atividade mediada nos processos cognitivos superiores, como por exemplo, no processo de memorização, materializando-se na elaboração de listas, de resumos, ou, ainda, como mediadora na resolução de problemas e no próprio planejamento da produção textual. Este uso da língua escrita, em sua função de internalização, de auto-regulação e de auto-organização, torna-se significativo quando se pensa na questão do produtor de texto como autor de seu próprio texto, porque, a escrita para si, muitas vezes, pode ser o ponto de partida para a escrita para o outro, funcionando, como um rascunho mental. No dizer de Vygotsky, essa idéia de rascunho tem a ver ainda com as versões que são elaboradas de um texto antes de ser “entregue ao público”, mecanismo esse utilizado por todos produtores de texto, mesmo aqueles considerados competentes e maduros.

A outra contribuição teórica dos trabalhos de Vygotsky que gostaríamos de destacar diz respeito à sua afirmação de que a língua escrita possibilita ao autor do texto, pelo distanciamento temporal entre a produção do texto e seu acesso pelo interlocutor destinatário, uma relação de metatextualidade. Ou seja, aquela relação que possibilita ao produtor reformular seu texto tantas vezes quantas considerar necessárias, antes de submetê-lo à apreciação de outro.

A partir dessas colocações de ordem teórica, passemos agora a fazer um exercício do que seria uma prática pedagógica decorrente destes fundamentos.

Retomando o pensamento de Bakhtin poderíamos dizer que o ensino da produção textual que favoreceria a formação da autoria deveria assentar-se em alguns princípios. O primeiro dele diz respeito a que o produtor do texto para ser autor do seu texto deveria ser-lhe dado condições efetivas, de ordem temporal mesmo, para que ele pudesse distanciar-se do “vivido/produzido”, para poder começar a exercer a atividade estética de “criar/autorar”. Olhando para o seu texto de fora, como se fosse um “outro” e, nesse processo “dando acabamento” ao seu texto, ou seja, trabalhando no seu texto, aqueles elementos, característicos da propriedade “acabamento” do enunciado (BAKHTIN, 1992BAKHTIN,M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.). Desta forma, o aluno afastar-se-ia de sua situação de produtor, aquele que vivenciou o acontecimento da produção, assumiria a posição de autor, passa a exercer uma atividade estética que “cria” seu texto, dando-lhe acabamento na medida em que “opera” sobre o exaurir de seu objeto do sentido, a manifestação de seu querer-dizer, inserindo seu texto no gênero discursivo apropriado.

Sem dúvidas que a essas operações muito teriam a contribuir as idéias de Vygotsky sobre a relação de metatextualidade, na qual a atividade estética de dar acabamento ao texto é complementada por uma atividade cognitiva, realizada através de operações de reformulação textual, operações essas que, no caso da sala de aula, podem ser mediadas pelo próprio professor, pelos pares, ou pelo próprio produtor do texto.

E, então perguntamos, se, na atividade estética o autor da obra literária dá acabamento ao seu herói nos aspectos espaciais, temporais e do sentido, em relação ao autorar do aluno, em sala de aula, quais os aspectos que ele deve levar em conta para “dar acabamento” ao seu texto? A nosso ver, deveriam ser levados em consideração os aspectos que incorporam tanto os aspectos de organização estrutural da língua, respeitando a norma culta e sua inserção em um gênero do discurso apropriado, assim como as propriedades enunciativas e discursivas da língua, deixando os indícios e fazendo circular como propõe Possenti (2002POSSENTI, S. Indícios de autoria. Perspectiva, Florianópolis: Edufsc, v. 20, n. 1, 2002.), as vozes e as posições de sujeito.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Iniciamos esse artigo trazendo a discussão sobre a relação teoria e prática na formação de professores de língua materna, concluindo pela necessidade de uma epistemologia que não dicotomize o pensar e o agir, considerando as teorias como orientadores de práticas. Continuamos tecendo considerações sobre essa relação e os currículos dos cursos de licenciatura em Letras, evidenciando nesse percurso quais as teorias ou os modelos teóricos, que subjazem às grades curriculares desses cursos de licenciatura e para qual construção identitária profissional apontam, tendo clareza que as dificuldades com o processo formativo de professores de língua materna não se restringem a conteúdos presentes ou ausentes em seus processos formativos, sejam estes iniciais ou continuados. A fotografia, que brevemente apresentamos, sugere que o processo de disciplinarização dos conteúdos opera pela representação de pontos de vista, interesses, em nenhum momento ingênuos, exercendo a hegemonia de uma determinada linhagem teórica que forma profissionais, a partir de um conceito de língua, que, nesse processo, tem silenciado, quase que sistematicamente, a outra face da língua, aquela que ao se constituir no diálogo da vida, instaura sujeitos e porta valores (BAKHTIN, 1992BAKHTIN,M. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.). A orientação para outras práticas, a nosso ver, exigiria uma outra relação com a tradição, uma tradição que, ao encontrar a história (KRAMER, JOBIM e SOUZA, 1996KRAMER, S.; JOBIM e SOUZA, S. (Orgs.). Histórias de Professores: leitura, escrita e pesquisa. São Paulo: Ática, 1996.), incorpore ao conjunto dos saberes de referência, uma outra concepção de língua que não se limita à fixidez de um sistema de normas imutáveis (VOLOSHINOV, 1978VOLOSHINOV, V. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1978.). Uma concepção de língua, compreendida como uma realidade semiótica complexa, estruturada, porém plena de indeterminações, polissemias, atravessada pela condição dos seres históricos que a fazem emergir e dos quais é constitutiva (FARACO, 2003FARACO, C. A. [entrevista]. In: XAVIER, A. C.; CORTEZ, S. (Orgs.). Conversa com Lingüistas: virtudes e controvérsias da Lingüística. São Paulo: Parábola, 2003.). Afinal, como é possível a um professor, que não tem acesso em seu processo formativo a conteúdos que explicitem o modo enunciativo e discursivo de funcionamento da linguagem, exercer uma prática que contemple esta concepção?

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2006

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2005
  • Aceito
    04 Nov 2005
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