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VOZES SOCIAIS CITADAS E SOBREPOSTAS: A POLIFONIA E A DIALOGIA

QUOTED AND SUPERPOSED SOCIAL VOICES: POLYPHONY AND DIALOGY

DES VOIX SOCIALES CITÉES ET SUPERPOSÉES: LA POLYPHONIE ET LE DIALOGISME

VOCES SOCIALES CITADAS Y SUPERPUESTAS: LA POLIFONÍA Y LA DILOGÍA

Resumo

O presente trabalho aborda a relação de discurso e contexto, focando especialmente as dimensões e a importância do que se entende, em geral, por determinações sociais do discurso. E por ter como referência teórica principal a voz de Bakhtin, a reflexão operacionaliza a noção de contexto como vozes sociais que, na relação com o discurso de um dado enunciante, efetivam um encontro dialógico e polifônico com o social. A dimensão dialógica e polifônica do discurso, por sua vez, coloca em cena o que se entende por citação, cuja operacionalização se faz, no texto, tomando, seguidas vezes, como exemplo, a ironia.

Palavras-chave:
discurso; contexto; interação

Abstract

The present work analyses the relation between discourse and context, focusing especially on the dimensions and importance of what is understood, in general, by social determinations of discourse. And because our main theoretical reference is Bakhtin, the reflection interprets the notion of context as social voices, which cause a dialogic encounter between the social and the polyphonic in its relation with the discourse of a given speaker. The social and polyphonic dimensions of discourse, in their turn, put at play what we understand as quotation, whose functioning is present in the text through repeated examples of irony.

Keywords:
discourse; context; interaction

Résumé

Ce travail aborde le rapport entre discours et contexte, surtout les dimensions et l’importance de ce que l’on entend, en général, par les déterminations sociales du discours. Et, par le fait d’avoir comme référence théorique principale la voix de Bakhtine, la réflexion opérationnalise la notion de contexte comme des voix sociales dont, dans la relation avec l’énonceur, effectuent une rencontre dialogique et polyphonique du discours, de son côté met en scène ce que l’on entend par citation, dont l’opérationnalisation se fait, dans le texte, prennant, plusieurs fois, à titre d’exemple, l’ironie.

Mots-clés:
discours; contexte; interaction

Resumen

El presente trabajo hace un abordaje sobre relación de discurso y contexto, enfocando especialmente las dimensiones y la importancia de lo que generalmente se entiende por determinaciones sociales del discurso. Por tener como principal referencia teórica la voz de Bakhtin, la reflexión opera la noción de contexto como voces sociales que, en la relación con el discurso de un dado emisor, llevan a cabo un encuentro dialógico y polifónico con lo social. La dimensión dialógica y polifónica del discurso, a su vez, pone en escena lo que se entiende por citación, cuya manera de operar en el texto se hace frecuentemente poniendo como ejemplo, la ironía.

Palabras-clave:
discurso; contexto; interação

General, o homem é muito útil.
Sabe voar, sabe matar.
Tem, porém, um defeito:
Ele sabe pensar. (BRECHT)

1 INTRODUÇÃO

A relação de discurso e contexto faz parte, desde o início dos estudos da enunciação, quer seja na Pragmática, quer seja na disciplina conhecida como Análise do Discurso. Na verdade, foi Foucault (1971) quem, com impressionante lucidez, deu partida às investigações sobre o que se entende por determinações sociais do discurso .

Não é, pois, novo o tema que é objeto do presente estudo. Ao retomar o que diz respeito à relação entre o enunciado de alguém e o contexto, entendido como um conjunto de vozes sociais (MEY, 2001MEY, J. L. As vozes da sociedade. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2001.), o objetivo é, tanto quanto um espaço como o de uma revista o permitir, ampliar a compreensão desse processo polifônico que dá forma ao discurso e que necessariamente prevê a citação . Quer dizer: se vozes sociais estão presentes em qualquer discurso é porque, de forma explícita ou não, um ato de fala pressupõe necessariamente não apenas a manifestação da voz do enunciante, mas também a inclusão dos ditos dos outros, o que permite concordar com Amorim (2001AMORIM, M. O pesquisador e seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. São Paulo: Musa, 2001.), quando afirma que “[...] a citação é própria do humano. Contar ou reproduzir a um terceiro o que me disseram e que eu mesma não vi é uma atividade estruturante de minha humanidade”. E se a citação pode ser considerada “estruturante de minha humanidade”, explicita-se a função mais importante da linguagem para o gênero humano, ou seja, na citação - porque reproduz - realiza-se um dos processos de socialização do indivíduo. Ampliam-se, conseqüentemente, com essa concepção, as possibilidades do estudo do discurso:

Encontramos justamente nas formas do discurso citado um documento objetivo que esclarece [...e] dá-nos indicações, não sobre os processos subjetivo-psicológicos passageiros e fortuitos que se passam na “alma” do receptor, mas sobre as tendências sociais estáveis características da apreensão ativa do discurso de outrem que se manifestam nas formas da língua. (BAKHTIN, 1986BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986., p. 146)

Bakhtin, aliás, privilegia, nos seus textos, essa concepção da linguagem como reflexo social e desenvolve, a partir daí, duas noções fundamentais para o estudo do discurso: a de polifonia e a de dialogia. Os conceitos falam da multiplicidade de vozes presentes no discurso e das relações que entre elas se estabelecem obrigatoriamente. E as múltiplas formas de citação do enunciado de outrem, como, por exemplo, no humor irônico, são exemplo e excelente material para o estudo da interação verbal, o que estudos, como os de Maingueneau (1996MAINGUENEAU, D. Elementos de lingüística para o texto literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996.), Brait (1996BRAIT, B. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas: Unicamp, 1996.) e, também, de Possenti (1998______. Os humores da língua. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1998.), confirmam, ou seja, “[...] as formas de construção, manifestação e recepção do humor, configurado ou não pela ironia, podem auxiliar o desvendamento de momentos ou aspectos de uma dada cultura, de uma sociedade” (BRAIT, 1996BRAIT, B. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas: Unicamp, 1996., p.15).

Ora, a ironia é um modo particular de uso da citação, ou seja, segundo Sperber e Wilson (1981SPERBER, D.; WILSON, D. Irony and the use-mention distinction. In: COLE, P. (ed.). Radical Pragmatics. New York: Academic Press, 1981. p. 295-318.), o enunciante cita a si mesmo com o objetivo de implicitar uma informação ou um julgamento sobre o próprio enunciado. E se aquele que produz a ironia, por um lado, busca construir uma cumplicidade com um determinado interlocutor, também manifesta a intenção de agredir algo ou alguém.

A particularidade da ironia, porém, é o fato de que ela não dá à vítima nenhuma possibilidade de reação responsiva, de modo que o produtor da ironia parece não visar, especificamente, ao que se entende por interação, mas a um riso cúmplice que deve silenciar a voz de alguém, o que corresponde, na verdade, a um obstáculo à dimensão dialógica do discurso.

Observe-se que dizer, por exemplo, “Político Fulano, para não perder o costume, roubou a cena no debate” pode tanto estar elogiando, como sugerindo, ironicamente, que Fulano é conhecido por sua desonestidade. A segunda interpretação, porém, protege o enunciante de eventuais efeitos responsivos, pois o modo de enunciar lhe permitiria alegar que estaria querendo apenas elogiar. As vozes, porém, que, na ironia, o enunciante convida à interação, são aquelas que, pelo fato de operarem com os mesmos instrumentos de interpretação e de avaliação, tornam-se cúmplices da voz que critica e, assim, fortalecem os efeitos da agressão.

E é essa cumplicidade que multiplica a força de uma voz, o que explica que a ironia é, antes de tudo, a manifestação de uma ou outra voz social de que o enunciante se apropriou para firmar a posição de que ele também não está de acordo com certos valores e finalidades. E a tentativa de encontrar cúmplices representa um esforço que faz o enunciante, conforme diz Lukács (1972LUKÁCS, G. Zur Ontologie des gesellschaftlichen Seins. V. 1 e 2. Neuwied: Luchterhand, 1972., Vol.II, p. 46), para “induzir outra pessoa (ou um grupo de pessoas) a formular e adotar [...] determinadas posições teleológicas”, explica que ele, na objetivação, atua com determinadas pressuposições, uma das quais é fundamental para armar estratégias e modos de enunciação: a de que os indivíduos podem ter como meta diferentes posições teleológicas e que só poderá atuar sobre elas com sucesso se conhecer os valores e as referências com que operam o(s) outro(s).

A pressuposição contém, pois, a noção de alteridade, ou seja, o enunciante deve considerar que o receptor pode também atuar com referências diferentes das dele. E é precisamente isso que sinaliza a ironia: a ironização do enunciado de outrem significa que o enunciante acionou dadas referências para compreender, sim, o dito citado, mas abandona essas referências e escolhe outras orientações para construir e manifestar um julgamento. E o modo como o enunciante manifesta seu julgamento, ou seja, a opção pela ironia indica um tipo de estratégia para evitar possíveis réplicas que poderiam criar-lhe dificuldades ou embaraços.

Em outros termos, em qualquer tipo de interação, seja ela mediada pela ironia ou não, “a palavra do outro impõe ao homem a tarefa de compreender esta palavra” o que torna a atividade discursiva uma “complexa relação com a palavra do outro, em todas as esferas da cultura e da atividade [...]” (BAKHTIN, 1992______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992., p.384).

A compreensão e a avaliação dessa relação dialógica entre uma voz que se manifesta e as vozes que a manifestação pode acionar, resultam, portanto, de avaliações das referências sociais de “todas as esferas da cultura e da atividade” que, exatamente por serem lugares de geração de referências, tornam-se recursos mais ou menos estáveis com que opera o enunciante. Assim, um procedimento equivocado do enunciante, na armação das estratégias interativas, pode conduzir a (re)ações que, por não serem previstas, anulam os efeitos do esforço para conseguir a adesão do outro a determinadas finalidades, o que revela que um discurso, no momento de sua produção, submete-se a um processo de contextualização particular, o que lhe valerá um certo universo de receptores que, partindo de dadas referências, constroem os sentidos que possibilitam uma interpretação mais ou menos aproximada da do enunciante. Quando, porém, esse discurso passa à condição de citado, e quem foi receptor passa a atuar como enunciante, outros elementos contextuais são alocados, um outro discurso é produzido e uma nova interação entra em curso. E, assim como na origem do discurso citado haverá casos de interlocutores que, inevitavelmente, discordarão do enunciante, também haverá aqueles que não aceitarão a citação do modo como é feita, o que reforça a idéia de que se o contexto se impõe como elemento indispensável à produção de sentidos, ao enunciante o universo social polifônico oferece a possibilidade de opção.

Entende-se, pois, que uma interação bem conduzida exige do enunciante uma capacidade especial para fazer as leituras corretas das vozes dos outros para, assim, orientar-se quanto à maior ou menor complexidade da relação com a voz com a qual estabelecerá o diálogo. Isto é: porque a cada voz corresponde um universo polifônico de vozes sociais, a avaliação do enunciante está sujeita a não tão raros equívocos, o que dá à mediação do discurso a importante função de, por seu caráter dialógico, possibilitar a superação do que as diferenças poderiam representar como obstáculo às interações sociais, já que

[...] é preciso que qualquer material lingüístico (ou de qualquer outra materialidade semiótica) tenha entrado na esfera do discurso, tenha sido transformado num enunciado, tenha fixado a posição de um sujeito social. Só assim é possível responder [...], isto é, fazer réplicas ao dito, confrontar posições, dar acolhida fervorosa à palavra do outro, confirmá-la ou rejeitá-la, buscar-lhe um sentido profundo, ampliá-la. (FARACO, 2003FARACO, C. Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar, 2003., p.64)

Na interação, portanto, as vozes que, explícita ou implicitamente, dão forma ao discurso, refletem não só uma intenção do enunciante, mas, sobretudo, os sentidos e os valores que estruturam a sociedade, pois os elementos contextuais incluem “as tendências sociais estáveis características da apreensão ativa do discurso de outrem que se manifestam nas formas da língua” (BAKHTIN, 1986BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986., p. 146).

Entender a interação como um processo polifônico de que não participam apenas as vozes dos interlocutores “frente-a-frente”, mas também as que, como referências, são reflexo de “tendências sociais estáveis”, significa que os interlocutores atuam, antes de tudo, como representantes de um ou outro grupo social. E, ao buscarem superar diferenças e harmonizar as suas vozes, fazem do processo necessariamente um jogo dialógico também social, em que a palavra vai à palavra, a referência vai à referência, de modo que o receptor, enquanto representante de um certo universo polifônico, assume um papel que não é menos importante do que o do enunciante. É exatamente nessa avaliação das condições de produção do discurso que o enunciante descobre no receptor também uma garantia avalizadora de dadas referências e um limite das possibilidades da interação. E é impossível, por isso, imaginar um discurso que não se constitua como produto e processo de dialogia, o que Bakhtin enfatiza ao afirmar que “por mais monológico que seja o enunciado [...], ele não pode deixar de ser também, em certo grau, uma resposta ao que já foi dito sobre o mesmo objeto, sobre o mesmo problema, ainda que esse caráter de resposta não receba uma expressão externa bem perceptível” (1992, p. 317).

Com a concepção de dialogia, a objetivação, no sentido restrito de verbalizar, empalidece como atividade isolada e a linha que a separa da apropriação desaparece, porque quando vozes dialogam, elas fundem-se e acionam, a cada manifestação, outras vozes com as quais constroem uma complexa peça polifônica que se (re)processa incessantemente e que serve à mediação das sucessivas atividades interativas dos indivíduos.

Não se pode, portanto, dizer que na interação uma ou outra voz se sobrepõe como primeira e mais importante, principalmente, se se levar em conta de que diante do enunciante está o outro na escuta, e que pode, responsivamente, entender ou não, criticar ou mesmo destruir o ponto de vista exposto e até negar-se à interlocução. Na verdade, é o enunciante que, ao enunciar, se expõe, e é o receptor que, de posse de um determinado sistema de interpretação, fica numa posição privilegiada para armar a sua estratégia: o caráter dialógico do discurso implica, por isso, a destruição das concepções tanto de sujeito isolado e livre, como a de assujeitamento, e constitui a de sujeito polifônico.

Por outro lado, se às intenções e às finalidades do enunciante se contrapõem eventualmente as do receptor, e as objetivações podem, por isso, produzir diferentes interpretações, o conflito é imanente ao diálogo e perde seu eventual caráter negativo para se tornar o momento central e vital do processo de desenvolvimento do gênero humano, precisamente porque o confronto de sentidos cria as condições para se avaliar tanto o que convém ser preservado e reproduzido, como o que requer uma transformação.

É, pois, de acordos sobre diferentes finalidades que se fala quando se quer entender a interação como mediação das relações humanas, o que quer dizer, em outros termos, que, para dar ao conflito um caráter positivo, faz-se necessária uma certa harmonização das vozes que se fazem presentes no processo. A polifonia, pois, precisa ser organizada e trabalhada para não ser apenas ruído e, por isso, inviabilizar o diálogo. Isto é: quando se trata de manter ou modificar rumos e finalidades, as dificuldades crescem na proporção direta do universo de vozes sociais que participam do processo.

Lukács lembra, por isso, que acordos sempre podem representar enormes dificuldades para a interação:

Há, porém, uma diferença qualitativa entre se a alternativa tem apenas uma dimensão reconhecível em termos de certo ou errado, ou se a fixação de finalidades resulta de alternativas sociais disponíveis. Pois está claro que, após a divisão da sociedade em classes, a cada problema se apresentam diferentes soluções, a depender de que lugar social se parte em busca de uma resposta ao problema. (1972, Vol. II, p. 112)

Uma mediação, pois, dessas intrincadas relações sociais, significa que o conflito só será produtivo quando o primeiro objetivo da interação representar a busca de um acordo para a convivência das diferenças, o que começa pela difícil tarefa de abordar pontos de vista que sempre dão a enganosa impressão de pertencerem ao indivíduo. Um ponto de vista, porém, “não nasce em mim, mas nasce fora de mim [e] ele não é produzido por mim, mas ele é produzido fora de mim e vai a mim” (CHASIN, 1988CHASIN, J. Superação do liberalismo. Ufal, 1988. (mimeo), p. 193 ).

A apropriação desse ponto de vista - que é valor social - representa, porém, também a intervenção do indivíduo sobre o produto de que se apropriou, de modo que não se deveria considerar que uma objetivação discursiva é apenas ou de ordem estritamente social ou absolutamente pessoal, porque, embora seja do exterior para o interior que se dá a apropriação dos valores, cada vez que uma voz se manifesta cria-se a condição de transformação do que é da ordem do social. E desse processo resulta uma diversidade potencialmente explosiva de conflitos de valores, ou seja:

Nesses mundos de mediações nascem gradualmente os mais diversos sistemas de valores humanos [e] cada uma dessas mediações está em relação de heterogeneidade com a economia propriamente dita, sendo capaz de cumprir sua função mediadora precisamente por causa dessa heterogeneidade [que] pode aumentar e se tornar contraditoriedade, o que tem lugar quando os dois sistemas de valores conduzem a alternativas que aguçam a diferença resultante da heterogeneidade e a transformam em contraposição. (LUKÁCS, 1979______. Ontologia do ser social. São Paulo: Ciências Humanas, 1979., p. 157)

A sociedade humana precisa, pois, ser considerada uma realidade que se assemelha a uma tecitura de peças que, embora mantenham algumas semelhanças, apresentam profundas diferenças de ordem cultural e referencial, o que se reflete nas vozes dos indivíduos. E essa heterogeneidade de vozes, por ser um conjunto de referências disponibilizadas para as ações dos indivíduos, requer mediações eficazes para que as diferenças não cresçam a ponto de colocarem em risco a organização social.

Por isso, a multiplicidade das formas de incluir e de contextualizar as vozes sociais no discurso revela que os comprometimentos com objetivos e interesses têm origem nos valores antagônicos que, enfim, orientam todas as atividades dos homens. Isso quer dizer que as escolhas das referências de um dado contexto resultam da pressão de um valor social com o qual o enunciante se identifica e que lhe confere, no preciso momento em que seu discurso assume dimensões ideológicas, um comprometimento e uma solidariedade. Para Bakhtin (1986BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986.) esse é o momento da construção de uma consciência do “nós”, o que só é possível através de um engajamento ideológico, pois “quanto mais forte, mais bem organizada e diferenciada for a coletividade no interior da qual o indivíduo se orienta, mais distinto e complexo será seu mundo interior” (p.115).

O enunciante constitui, portanto, o discurso com a alocação de elementos de um contexto heterogêneo, cujas diferenças devem ser consideradas produtos do movimento que se realiza sobre dois eixos da heterogeneidade sócio-cultural: a) o vertical, sobre o qual se movem os diferentes segmentos da sociedade, o que corresponde a lugares ou esferas sociais e, b) o horizontal que diz respeito aos diferentes campos de operação dentro da esfera em termos de mais próximos ou das singularidades dos indivíduos, ou do genérico humano, ou seja, essa dimensão refere-se a planos de atuação, onde a produção de respostas coloca em ação diferentes graus de generalização, do que resultam referências que podem alcançar diferentes profundidades e qualidades de intervenção. Isto é: nas esferas sociais a referência é marco cultural e submete-se a diferentes interesses e valorações de ordem do grupo e nos, planos de atuação, ela tem ora maior ora menor alcance e efeito operacional, dependendo do grau de generalização da referência utilizada.

Assim, por exemplo, as generalizações que se dão no cotidiano sustentam apenas a comunicabilidade a respeito da rotina do dia-a-dia, enquanto no plano mediato, embora visem também à comunicação, as generalizações apresentam diferenças especialmente quanto ao rigor e aos controles do processo de abstração. E o que nas vozes do cotidiano se manifesta como uma generalização frouxa e de pouca verificabilidade, nas que pertencem aos planos das atividades não-espontâneas e mais elaboradas alcança maiores graus de abrangência e de universalidade.

Ora, o fato de se poder falar em graus de generalização implica em construir a idéia de que, nas diferentes esferas sociais, há também níveis de interação e de dialogia, em que os interlocutores atuam com e sobre referências que podem tanto pertencer a um universo restrito como ao genérico1 1 O sentido da palavra é genérico porque resulta de abstrações que a necessidade de comunicação impõe aos indivíduos, pois seria impensável a interação que colocasse frente a frente interlocutores cujas vozes manifestassem apenas singularidades. , o que quer dizer, por outro lado, que as vozes sociais são tão heterogêneas quando determinam a forma do discurso que, afinal, oferecem-se como alternativas de escolha.

E se o indivíduo pode e faz opções conscientes em relação a um modo de enunciação e se a consciência é discurso interior-interiorizado (BAKHTIN, 1986BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1986.) que resultou de apropriações da diversidade das vozes sociais, então, para conduzir as interações, não basta aos interlocutores terem acesso às referências que orientam interpretações, mas também a valores que orientam as escolhas, ou seja, o indivíduo só pode escolher efetivamente quando também se apropriou de valores-referência das referências. A consciência, portanto, enquanto um complexo e organizado conjunto de referências, é reflexo também das vozes sociais do plano mediato da ideologia.

A concepção de reflexo social, por sua vez, leva a que se observe o discurso também como pista do que ocorre, em termos de relações sociais, na realidade em que a interação funciona como mediação. Pergunta-se, pois: Como o estudo do discurso - por exemplo o da ironia - pode contribuir pra a compreensão do contexto enquanto reflexo social?

2 VOZES EM CONFLITO

Uma interação sempre exige, pois, habilidades específicas para operar com as referências de um dado contexto, especialmente no caso em que um discurso cita o de uma terceira pessoa, porque os matizes de julgamento dos objetivos do que está sendo citado alteram-se e se complexificam a cada apropriação que antecede a citação.

Ora, as dificuldades têm origem no fato de o sentido da palavra ser genérico, reflexo da generidade social, e que, no discurso, por ele ser mediação de acontecimentos singulares, faz-se refração particular, polifônica e polissêmica, ou seja, “a palavra não é um objeto, mas um meio constantemente ativo, constantemente mutável de comunicação dialógica. Ela nunca basta a uma consciência, a uma voz. Sua vida está na passagem de boca em boca, de um contexto para outro, de um grupo social para outro, de uma geração para outra” (BAKHTIN, 1981______. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1981., p. 176).

Se, pois, o discurso é polifônico e, por isso, também polissêmico, é porque “sua vida está na passagem de boca em boca”, ou seja, porque, ao mediar as relações sociais, necessariamente, torna-se reflexo e refração dialógica dessas relações.

E o fato de as referências - na sua dupla dimensão - apresentarem um constante movimento de (re)configuração que lhe impõem as atividades dos homens, lembra que a interação não representa apenas uma complexa mediação no sentido sincrônico, mas também no diacrônico. Isto é: ela não pode ser entendida como um acontecimento transparente, onde os interlocutores, imóveis no tempo, se apresentam cooperativos e desarmados, como se o discurso pudesse estabelecer uma correspondência perfeita e unívoca entre um dizer e uma realidade. Pelo contrário: “a relação do nosso dizer com as coisas (em sentido amplo do termo) nunca é direta, mas se dá sempre obliquamente: nossas palavras não tocam as coisas, mas penetram na camada de discursos sociais que recobrem as coisas” (FARACO, 2003FARACO, C. Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar, 2003., p. 49).

A idéia de que um “discurso social [...] recobre as coisas” significa entender que a relação entre um dizer social e a realidade constitui-se através do sentido genérico que, por ser polifônico - e, por isso, vago e difuso -, possibilita a interação comunicativa, mas não oferece segurança quanto a seu uso particular, podendo mesmo, guiado por finalidades opostas, recobrir as coisas com sentidos contrários. Assim, por exemplo, o discurso sobre o átomo tanto pode se prestar a mediar atividades interativas que têm finalidades beneficientes, como pode também ter comprometimento com objetivos destrutivos. Isto é: as mediações se caracterizam por um tipo de multivalência, já que, a apropriação que delas faz o indivíduo é singular, o que explica o motivo por elas não apresentarem previsibilidade segura sobre o uso que delas, como produto socializado, será feito. As mediações, assim como qualquer objeto criado pelo homem, assumem uma certa independência, fugindo, muitas vezes, ao controle de quem as criou e prestando-se para alcançar objetivos para os quais não se destinavam na origem.

E se o primeiro cuidado do enunciante, nas interações verbais, é o de avaliar corretamente as condições do contexto social e histórico em que atuará, isso quer dizer que ele precisa ter clareza dos limites de suas escolhas para interagir com seus interlocutores porque, como lembra Possenti, o indivíduo “produz acontecimentos não necessários, mas alguns dentre os possíveis” (1988POSSENTI, S. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1988., p. 165).

O indivíduo atua, pois, dentro de um processo paradoxal que, mesmo acionando um quadro de possibilidades circunscritas, produz acontecimentos diferenciados e irrepetíveis. Assim constata-se que a atividade singularizadora do indivíduo (como, por exemplo, a do humorista) apesar de submeter-se a certos rituais e controles sociais, às vezes bastante rígidos, ainda assim tem um lugar e um tempo para se concretizar, podendo, por isso, estar revelando que, por maior que seja a repressão, não se fecham as possibilidades da superação do que se poderia chamar de limites institucionalizados. E se os controles não conseguem evitar as transformações, o acontecimento interativo deve ser avaliado também como confrontação de forças e de poderes, sobretudo porque o exercício do poder baliza-se nas e pelas mediações repletas de vozes sociais. Isto é: o poder também depende da mediação do discurso, pois precisa manifestar-se, “falar” sua força e legitimidade para produzir efeitos de hierarquização das vozes sociais, tal como, por exemplo, expõe Veríssimo:

O patriciado brasileiro invocou seu privilégio histórico de não ser julgado como...Bem, como qualquer um. Esse hábito da impunidade tem seu lado simpático: nada, acima de um certo nível de renda, é tão grave que justifique um desconforto além da conta. O culpado, se for denunciado, tem seus dias de notoriedade e mal-estar social, mas nunca se exigirá dele uma remissão como existe em países menos brasileiros: [...] Espera um pouquinho.

Nas classes baixas acontece exatamente o contrário: qualquer coisa é motivo para execração, retaliação e sangue. Brigas por uma cerca, por uma mulher, por um ponto de tóxico ou por coisa nenhuma. Temos um cotidiano violento em contraste com uma história institucional de muitos arranjos e poucos dramas. (2004, p. 3)

Ora, a ironia parece confirmar a força dessa radicalização social sobre as atividades dos indivíduos, sinalizando que, pelo menos em determinadas circunstâncias, o indivíduo precisa valer-se de uma estratégia especial nas relações sociais, ou seja, ele precisaria, como resposta ao reflexo social, escolher um modo de organizar seus enunciados para defender determinados valores e, ao mesmo tempo, atingir algo ou alguém que se contrapõe a eles de maneira que não haja réplica possível à sua crítica. Isto é: na ironia, o enunciante convida à interlocução não a voz da qual discorda, mas uma outra com que busca uma cumplicidade. E, então, cúmplices, os interlocutores parecem somar forças para que a ironia produza seus efeitos e destrua a vítima ou o alvo.

Uma radicalização, porém, quanto a finalidades e pontos de vista, inviabiliza a mediação interativa porque os interlocutores não conseguem (ou não querem) admitir que, partindo de uma base genérica, eles poderiam estabelecer uma comunicação que, mesmo precária, poderia dar origem a eventuais acordos. Na verdade, interlocutores dispostos a interagir devem abstrair singularidades suas e dos lugares sociais a que estão ligados, ou seja, um processo de generalização é fundamental para que se viabilizem as condições para o complexo diálogo entre pontos de vista divergentes.

Se as abstrações das singularidades que maximizam as dimensões do conflito de sentidos são importantes, convém lembrar que elas não garantem por si o diálogo porque podem apresentar expressivas diferenças que precisam ser superadas, já que, embora visem, a rigor, aos mesmos objetivos, as generalizações que se realizam no cotidiano são, na verdade, ultrageneralizações que manifestam uma frouxidão lógica que atividades mais elaboradas do gênero humano não suportam. Há, pois, abstrações conduzidas com maior ou menor rigor e que produzem, por isso, generalizações mais ou menos seguras sobre a dimensão de universalidade das coisas.

E, por isso, Chasin (1988CHASIN, J. Superação do liberalismo. Ufal, 1988. (mimeo)) concede um espaço no seu texto para classificar as abstrações quanto à sua importância para o gênero humano:

O que é uma abstração razoável? Uma abstração razoável na representação

é aquilo que efetivamente sublinha e precisa traços comuns. [...] A abstração razoável é aquela que divide na representação os objetos em partes e retém a parte comum a eles, ou seja, põe de lado a parte que não esteja presente em todas elas. Isso em primeiro lugar poupa-nos a repetição. É uma generalização. [...] Uma abstração razoável é aquela que fica com a parte comum de um conjunto de entes, sabido que o comum é complexo, constituído por divergência e diferença. O comum não é uma substância pura, não é um elemento puro, homogêneo, mas ele é heterogêneo. (p. 197)

Falar, porém, em diferenças de importância, não deveria significar que as generalizações que se realizam no plano mediato devam ser mais valorizadas do que as que se realizam no cotidiano, precisamente porque poderia conduzir à sobrevalorização de um modo de compreender a realidade e ao risco de se operar com conceitos tão distantes das coisas - ou, se se quiser, do contexto - que já não teriam importância para produzir compreensões, ou seja:

É certo que, no caminho de cima para baixo, corre-se o perigo de superestimar mecanicamente a validade das leis gerais e, aplicando-as muito diretamente, de violentar os fatos: no caminho de baixo para cima, por sua vez, corre-se o perigo de cair num praticismo privado de conceito, de não ver quanto a própria vida cotidiana dos homens singulares deriva da ação direta e indireta de leis gerais. (LUKÁCS, 1979______. Ontologia do ser social. São Paulo: Ciências Humanas, 1979., p. 110)

Manter, pois, a idéia de boas ou más abstrações, significa correr um certo risco de, uma vez, mitificar os resultados e o processo lógico-dedutivo e, segundo, dar aos indivíduos que operam no plano mediato um poder exagerado e injustificado para determinar objetivos e finalidades, porque - convém sempre lembrar - as vozes que objetivam leis gerais também podem ser contraditórias e, por isso, contestáveis porque podem ou não estar operando com e sobre dado contexto.

Convém guardar, pois, que, se o plano mediato de referências não pode ser dispensado para uma interpretação das coisas, o cotidiano também é importante, já que nele, em um ou outro momento, atuam todos os indivíduos de todos os lugares sociais, dentro de um contexto que imprime uma influência peculiar nos processos de interpretação e de compreensão.

Desse modo, entende-se que esferas sociais e planos de atuação condicionam duplamente as vozes: elas estão, uma vez, obrigatoriamente, comprometidas com interesses sociais específicos e, segundo, elas significam referências que, por se situarem na imediaticidade ou não do indivíduo, alcançarão menor ou maior grau de universalidade. E, por isso, pode-se dizer que, nas relações sociais, há casos de confrontos mais ou menos radicais entre as vozes sociais e o discurso pode, inclusive, ficar prejudicado na sua função mediadora, assim que a mediação dos conflitos e das diferenças pode não ocorrer. E onde poderia haver a negociação dos valores e das interpretações haverá, agora, a luta pelo poder de enunciar e demarcar os efeitos que a posse da mediação pode produzir. Luta-se, pois, pela legitimação das vozes e pelo poder de enunciar como uma forma de intervir no processo de constituição dos sentidos e das finalidades para, desse modo, atuar e influir nos rumos do gênero humano.

É, pois, diante de uma realidade complexa e tensa, atravessada por lutas e repressões, que se posiciona, por exemplo, aquele que ironiza: ao discordar de determinadas finalidades ou de certos valores, o enunciante busca, na ironia, um modo de crítica, o que significa que, ao citar e criticar o citado, ele aloca não só diferentes elementos referenciais de um novo contexto interativo, mas também uma estratégia para bloquear uma atividade responsiva. Paradoxalmente, porém, é exatamente nessa realidade conflitante que a atividade do humor irônico se desenvolve mais intensamente. E a rebeldia, enquanto refração, poderá produzir efeitos que reforçarão a censura e os controles sobre a circulação dos discursos divergentes do hegemônico.

Ora, a luta de quem faz o humor irônico contra a repressão e a favor de uma liberdade poderia dar lugar à idéia de que a ironia sempre agrediria apenas o que fosse indesejável ao indivíduo e ao gênero humano como totalidade.

Nem toda vez, porém, que se agride algo através do humor irônico, caracteriza-se uma atividade positiva ou recomendável, pois também ocorrem atos de humor que poderiam ser considerados censuráveis, de modo que ironizar “[...] não significa que [...] serve unicamente a propósitos nobres. Nada impede que um texto irônico tenha por função manipular e conquistar a adesão de seus leitores para causas menos dignas como acontece com os discursos racistas, por exemplo” (BRAIT, 1996BRAIT, B. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas: Unicamp, 1996., p.106).

Falar em finalidades racistas esclarece, pois, uma vez mais, que a produção da ironia e do discurso em geral não tem motivações exclusivamente pessoais, mas depende fundamentalmente da alocação de valores que são cultivados nos diferentes segmentos sociais e que são contraditórios na fixação do que é certo e do que é justo, por exemplo.

Na verdade, a ironia representa uma opção pela radicalização e, por isso, caracteriza um recurso de intervenção na realidade social que não tem como função primeira a promoção do diálogo, entendido como processo em que a alternância na posição de enunciante poderia garantir o direito de resposta. Por isso, não seria exagero afirmar que a ironia, cuja motivação se encontra ancorada em pontos de vista ou valores de um ou outro grupo social, é um instrumento de luta que arma o indivíduo inconformado e rebelde. E se os gestos mais ousados de rebeldia ou de transformação tomam, muitas vezes, a forma de humor, isso deveria ser observado como estratégia para recolocar em discussão as relações entre os indivíduos, e, inclusive, (re)avaliar a finalidade de regras e de controles: ou se entende que essas mediações são um cerceamento à liberdade do indivíduo (como, por exemplo, o faz Foucault (1971)), ou elas são concebidas como necessárias e imprescindíveis à socialização e à libertação do homem, de modo que entre lei e liberdade poderia haver ou uma contradição, ou uma relação de condição.

Ora, se determinados produtos humanos - como, por exemplo, as regras e os controles - podem, à luz de diferentes referências, assumirem sentidos absolutamente opostos e converterem-se em novas e antagônicas referências, a compreensão exata da mediação dos conflitos sociais, através do discurso, precisa contemplar essa dupla dimensão, ou seja, o discurso pode mediar tanto os acontecimentos positivos como os prejudiciais ao homem.

Kolek (1985KOLEK, L. S. Toward a poetics of comic narratives: the semiotic structure of Evelyn Waugh’s ‘A Handfull of dust’. Semiótica, v. 55, n. 1 e 2, p. 75-103, 1985.) lembra um aspecto interessante sobre o uso do humor, ou seja, que, quando ele tem por objeto uma pessoa, o enunciante deve organizar os elementos da narrativa de tal forma que eles bloqueiem ou inibam uma eventual simpatia ou compaixão pela vítima, o que está a indicar que, se o humor agride e provoca o riso, também faz chorar e sofrer quem foi alvo do riso. E quando o riso de alguém produz o sofrimento do outro, a interação assume peculiaridades que não podem ser consideradas desejáveis, mormente quando é preciso dar forma à narrativa de modo a que não só não se manifeste um sentimento de compaixão com a vítima, mas também não lhe seja dada a posse da contra-palavra. E como na ironia, o enunciante convida, para a interação, um interlocutor privilegiado - porque ele não é, necessariamente, a vítima, mas um cúmplice da agressão - desenha-se um processo que, pelo menos em determinadas instâncias e situações, deveria ser considerado como marcadamente perverso e cruel, o que, corretamente, ressalva Possenti, afirmando esperar “que ninguém ache progressista o humor machista e racista que se pratica em um programa como A PRAÇA É NOSSA” (1998, p. 49).

A pergunta que se faz, portanto, é se o discurso (como no caso da ironia), quando faz a mediação de interações, sempre traz contribuições positivas ao gênero humano, ou se ela pode também contribuir para o inverso, isto é, se ela também pode provocar o que se poderia chamar de reforço a um processo de desumanização, bloqueando as atividades de construção da generidade humana.

Na ironia, por exemplo, o enunciante, ao tomar para si certos “direitos” para silenciar a vítima, valoriza a apropriação, a posse e o uso particular do(s) discurso(s) de outrem, como resultado do exercício de um ouvir interessado e vigilante, um estar à espreita de um desacordo que precisa ser usado como processo de silenciamento de vozes, o que, na verdade, sinaliza características sociais, pois, segundo Bakhtin, os modos de enunciação correspondem a modos de estruturação social, ou seja, o que se diz da ironia e dos modos de citar um discurso, pode ser avaliado como pista das relações sociais que estruturam o contexto da interação. Uma hipótese poderia sugerir, pois, que é reflexo social a radicalização da ironia quando anula a possibilidade do diálogo e de uma eventual convivência das diferenças, ou seja, o enunciante, ao atuar do modo como o faz na ironia, apenas estaria correspondendo a uma interpretação do contexto social e das condições de manifestação de sua voz. O humorista seria, então, aquele que por primeiro estaria a denunciar não haver espaço social para o diálogo, mas uma luta incessante pela posse de instrumentos de intervenção e de crítica da realidade social, e, por isso, de silenciamento de vozes.

O predomínio, portanto, de um projeto de socialidade em que se cultiva o individualismo e se exacerba a competição poderá significar, como reflexo sobre a atividade do enunciante, diferentes reações anti-interativas: ou o indivíduo decide que o importante é ele falar e, ao mesmo tempo, silenciar os outros, ou, ao contrário, ele entende que não adianta interagir e, por isso, não quer nem falar, nem ouvir. Se essa atitude puder ser considerada uma insatisfação ou um desacordo sobre como estão as coisas, já que o isolamento e a solidão podem representar perdas, por exemplo, de afetos, a voz de Heller torna-se uma importante referência, quando afirma que

[...] uma sociedade insatisfeita é por conseguinte uma sociedade na qual tanto os acordos sociais como as pessoas tornam-se contingentes. Numa sociedade insatisfeita, todas as medidas políticas e sociais podem tanto existir como não existir, podem ser de uma forma ou de outra. Do mesmo modo, a pessoa individual pode existir como também não existir, e pode realizar uma função tanto quanto outra. (1989, p. 168)

Não é um quadro agradável o que Heller elabora porque essa insatisfação social pode estar na origem das dificuldades das interações, precisamente porque já não existe um acordo e nem vontade para propor e negociar os valores que poderiam ser considerados últimos ou valores-fins que, obviamente, direcionam valores-meios que, por sua vez, balizam as escolhas das referências que interpretam a realidade na qual vivem os indivíduos. E o diálogo que seria necessário dá lugar à luta desumanizante, ou seja,

Os valores politicamente efetivos universais, quase-universais e outros [...] se concretizam numa série de conflitos, de confrontações sobre suas definições. Quando duas interpretações do mesmo valor não podem institucionalizar-se simultaneamente, ou a interpretação de dois valores entra em rota de colisão, um vence o outro no conflito. (HELLER, 1991______. Historia y futuro. Barcelona: Península, 1991., p. 91)

As palavras de Heller, na verdade, deixam transparecer uma espécie de armadilha em que vive o homem, ou seja, as interpretações do mundo dependem das interpretações das referências que necessitam da definição dos valores que, evidentemente, não se auto-explicam. E se o bloqueio às interações reflete uma insatisfação e um estrangulamento, o desafio de desmontar a armadilha, representa ousar recuperar as condições de mediação dessas dificuldades, o que também significa recontextualizar as finalidades do indivíduo e do gênero humano.

3 VOZES DIALÓGICAS E VITAIS

Num outro texto (1994), Heller tenta avançar na reflexão sobre o conflito social e elege dois valores que ela sugere como possíveis universais ou valoresfins e que se estabeleceram especialmente com o surgimento recente da biopolítica: a liberdade e a vida.

Uma primeira dificuldade para aceitar e encaminhar a viabilização da proposta reside, porém, exatamente na interpretação do que é liberdade e do que é vida (não só no sentido biológico, mas também social), ou seja, libertarse de quê e como e viver o quê e como?

Uma definição poderia, eventualmente, conjugar liberdade e vida como, por exemplo, dizer que

A liberdade é um ato de ternura que nos despoja dos vazios, que elimina repressões e alivia o peso das censuras, das tantas hipocrisias e trivialidades disfarçadas de coisas importantes. [...] A aceitação dos rostos do sentimento (felicidade e dor) como desejos de estar vivos. Livres por entender que a dor se aloja na felicidade. Toda dor nos leva de regresso à vida. (WARAT, 1996WARAT, L. A. Por quien cantan las sirenas. Joaçaba, SC: UNOESC; Florianópolis, SC: UFSC, 1996., p. 129)

A voz de Warat, embora fale de sentimentos e desejos, pertence a um plano mediato de referências e alia-se a um determinado projeto de saber a que nem todos os indivíduos têm acesso, o que recoloca em discussão - porque nada justifica uma exclusão de vozes quando se trata de definir valores - o universo de indivíduos que podem dizer, por exemplo, o que é ou não liberdade, precisamente porque

[...] a elevação ao humano-genérico não significa jamais uma abolição da particularidade. Como se sabe, as paixões e sentimentos orientados para o Eu (para o Eu particular) não desaparecem, mas “apenas” se dirigem para o exterior [...] Não é possível distinguir, de modo rigoroso e inequívoco entre as decisões e ações cotidianas e aquelas moralmente motivadas. A maioria das ações e escolhas tem motivação heterogênea; as motivações particulares e as genérico-morais encontram-se e se unem, de modo que a elevação acima do particular-individual jamais se produz de maneira completa, nem jamais deixa de existir inteiramente, mas ocorre geralmente em maior ou menor medida. (HELLER, 1972HELLER, A. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972., p. 24-25)

E se as motivações humanas têm um caráter heterogêneo, a distinção avaliativa que se faz entre produções do cotidiano e do plano lógico-dedutivo deveria ser reconsiderada para não torná-la uma forma mascarada de exclusão social. Em outros termos, o fato de a maioria dos indivíduos - de todas as esferas sociais - não dominar as referências de um plano mediato mitificado, reforça o juízo de que não é possível calar nem excluir ninguém, em nome de um ou outro projeto de saber. O que resulta da tentativa de centralizar a posse de um discurso do saber verdadeiro é uma luta pela legitimação das vozes e uma agressividade destrutiva e silenciadora que, à semelhança da ironia, pode, evidentemente, transferir-se para outras mediações, dispondo os interlocutores a uma relação de subordinante e subordinado, de modo que “a transferência de poder de uma violência direta para uma violência indireta e oculta torna possível [para o subordinante] reter um ‘vínculo duradouro’ com seus subordinados sem ter que revelar-se como um monstro, um tirano desumano ou um opressor” (MEY, 2001MEY, J. L. As vozes da sociedade. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2001., p. 115).

E quando esse tipo de poder se objetiva no discurso, as vozes sociais, embora mantenham entre si relações dialógicas, revelam um desacordo tão radicalizado que as perspectivas de superação das dificuldades realmente desaparecem.

A mediação discursiva guarda, porém, uma característica paradoxal, ou seja, a fragilidade e a fugacidade dos sentidos que poderiam torná-la pouco confiável é, também, o que a torna poderosa e única, precisamente porque os sentidos e as finalidades não ficam engessados e cristalizados: o discurso, sejam quais forem as finalidades a que se vincula, sempre tem como a principal referência alguém a quem se destina, isto é, ele impulsiona o enunciante em direção do outro. É a pressão da dimensão dialógica do discurso que tem, portanto, a força para superar, na refração, o que o reflexo social possa ter de anti-dialógico. Em outros termos, ao manifestar-se, o enunciante perde o domínio sobre a sua voz, o que - mesmo na ironia - significa que os efeitos do discurso são um tanto imprevisíveis e podem, inclusive, romper o silenciamento e promover um reencontro dialógico das vozes em conflito. E, por mais individualista que seja um projeto de socialidade, a produção do discurso representa sempre a possibilidade de ruptura com o individualismo e de os homens reencontraremse como seres sociais e solidários. Isto é: se no primeiro momento, a apropriação, de certa forma, coloca o indivíduo diante do mundo como um ser solitário e singular, a objetivação, mesmo que reflita um eventual desencanto com o gênero humano, implica uma reconciliação e a perspectiva de discussão e avaliação de referências como as de liberdade e vida.

Ora, se o discurso pode também anular, por sua natureza, bloqueios e censuras, restabelecendo as condições de interação e de produção de novos sentidos e finalidades, inclusive a de fazer acordos, exercita-se, na produção do discurso, uma fugaz, mas real liberdade para decidir sobre se, por exemplo, é ou não importante alterar o modelo de organização social.

Assim, em “Político Fulano, para não perder o costume, roubou a cena”, ao apropriar-se da expressão “roubou a cena”, o enunciante, alterando o sentido figurado (“ser destaque ou brilhante”) e dando realce a “roubar” como correspondente a “tirar ilicitamente”, pode exercer a liberdade de escolher entre vários modos de reagir a valores que dão contornos a um modelo de vida social.

É essa atividade individuante que, embora circunscrita pelo contexto social e histórico, revela que a apropriação de um discurso equivale a fazer um uso particular, processo em que a singularidade do indivíduo, ao retomar um dito, promove uma reprodução e, em seguida, à luz de novas referências, liberta o dito de suas origens e cria as condições para uma transformação possível.

Na interação, a liberdade alcança, pois, também outras dimensões que, especialmente, a ironia permite observar: uma vez que a extensão do contexto tomado como referência determina o alcance da interpretação e da produção de sentidos, a apropriação das referências representa, em tese, dificuldades maiores quando a distância histórica apagou ou atenuou o que, no primeiro momento de citação, contribuiu para a interpretação e a interação.

As dificuldades, portanto, num primeiro momento, referem-se aos planos de atuação e, conseqüentemente, às referências escolhidas para a interpretação do enunciado. O resultado dessa operação que fez com que determinado enunciado citado tivesse não só seu sentido, mas também sua finalidade, alterados na citação, revela que a ação do enunciante-citante desenvolve-se observando diferentes sistemas de valores que se tornam, ao mesmo tempo, limite e alternativa. Quer dizer, se um sistema fecha e delimita, a existência de outro como alternativa, abre e liberta para fazer opções, assim que, se a heterogeneidade social é condição para fazer escolhas, escolher, na refração, reforça e amplia essa condição.

Em outros termos, o uso de qualquer coisa produzida pelo homem sempre oferece alternativas, o que, por mais estranho que possa parecer, implica que uma mediação como o discurso pode ser usada tanto para silenciar vozes (como na ironia), quanto para (re)formular objetivos e finalidades comprometidos com todos os indivíduos.

É essa dimensão paradoxal que permite conceber o discurso como mediação que sempre oferece alternativas de atuação e de intervenção na generidade humana, o que confere as precisas e exatas dimensões éticas e políticas do ato de falar: a manifestação de uma voz, diante do que ela significa como exercício possível de liberdade, é concomitantemente um direito e um dever de falar, do que irrompe o par correlato de direito e dever de ouvir.

As correlações entre direitos e deveres podem, contudo, assumir, em dadas circunstâncias a forma de um dilema:

Por um lado, a tensão entre um desejo de ser respeitado por seus próprios direitos, ter suas próprias palavras como carregadoras e sua fala aceita, está em divergência com o desejo de participar de um contexto mais amplo da sociedade [...]. Por outro lado, o desejo de guardar suas próprias palavras para si mesmo, não atirar pérolas aos porcos mas carregá-las a salvo dentro do coração, vai contra a necessidade de se deixar carregar pelas ondas da sociedade e lidar com as realidades da vida exterior, mesmo que isso signifique vender suas pérolas a preço abaixo do mercado. Ambos os dilemas reduzem-se basicamente à questão da exclusão versus inclusão: a pergunta a fazer é quem inclui (ou exclui) quem, sob quais premissas e a que custo. (MEY, 2001MEY, J. L. As vozes da sociedade. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2001., p. 140-41)

A questão que Mey formula, na verdade, conduz à idéia de entender a interação como um processo político e que o dilema da inclusão/exclusão resulta, como efeito ideológico, da hierarquização de diferentes instrumentos e modos de interpretação da realidade, processo que, ao (des)valorizar um ou outro procedimento, exclui e inclui indivíduos e segmentos sociais das decisões sobre posições teleológicas a serem fixadas e alcançadas.

O homem parece, pois, encontrar-se frente a um dilema que diz respeito a escolher entre referências de dois planos distintos e que, aparentemente, não podem ser acionados ao mesmo tempo. Mais: o dilema cresce quando se sobrevaloriza, não o plano mediato, mas o próprio processo lógico-dedutivo como o único modo de operar sobre uma realidade, porque o problema não só se refere a saber operar com referências de distintos planos do contexto, mas também a aceitar a importância de outros instrumentos cognitivos como, por exemplo, os sentimentos e as sensações, que Heller (1989HELLER, A. A; FEHÉR, F. Políticas de la postmodernidad. Barcelona: Península, 1989.) considera, além de não menos importantes, inseparáveis dos lógicos.

Entende-se, pois, a advertência de Lukács (1979______. Ontologia do ser social. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.) quando preventivamente faz restrições quanto ao “perigo de superestimar mecanicamente a validade das leis gerais [...] e violentar os fatos” e da ironia de Veríssimo (2004VERÍSSIMO, L. F. Espera um pouquinho. Zero Hora, Porto Alegre, 16/08/2004, p. 3.), ou seja, o risco é tanto mitificar um tipo de referência e um modo de conhecer, quanto achar que não importa nem apropriar-se de determinadas vozes, nem tampouco falar.

Poder apropriar-se das vozes dos outros, recontextualizá-las e manifestar-se significa, portanto, que o indivíduo pode intervir na (des)construção das condições e possibilidades de interação e de inclusão. É dessa inclusão que fala Mey: poder participar das interações corresponde a poder influir, o que, enfim, representa não só o exercício de uma liberdade, mas também um direito à definição do que ela é e à avaliação de sua importância para o indivíduo e a sociedade.

Heller, a propósito, quando lembra que “o valor da liberdade é fundamental a todos os níveis e em todos os espaços da vida moderna” (1991, p. 16) explica que

Quando os homens e as mulheres [...] discutem sobre sobrevivência, têm em mente a sobrevivência de certas qualidades da vida, as quais, direta ou indiretamente, incluem a liberdade. A mera sobrevivência pode ser um valor principal para os indivíduos isolados, inclusive grupos humanos isolados, mas não pode ser o valor mais importante da modernidade. (p.17)

A luta pela “mera sobrevivência”, na verdade, reduziria o indivíduo à sua condição biológica e natural e, pelo fato de retirar-lhe a dimensão social, acabaria por eliminar também a possibilidade de escolher entre alternativas. E sem esse poder de escolher, não há como falar de liberdade, pois desaparecem as condições para julgar e compreender diferentes interpretações, ou seja, sem a dimensão social, o indivíduo não é livre, o que, evidentemente, descarta a idéia de uma liberdade natural como se na natureza tudo fosse livre e pacífico. Esse doloroso equívoco, em geral, contribui para a exacerbação de polêmicas infrutíferas e o fato de se tornar necessário falar em “liberdade absoluta ou substantiva” ou, ainda, “liberdade restrita ou responsável”, cria novas zonas de atrito de sentidos e novas motivações para a radicalização no conflito.

Percebe-se, desse modo, especialmente pelas novas questões que brotam, que um acordo definitivo, mediado por referências de diferentes esferas e planos, poderia parecer impossível porque, segundo Mey (2001MEY, J. L. As vozes da sociedade. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2001.),

Não é verdade que seja possível eliminar todos os mal-entendidos somente desfazendo as ambigüidades, ou definindo mais propriamente as palavras usadas. [...] É bem possível que uma pessoa não entenda o que a outra está dizendo não porque as palavras não são claras ou o fraseado ambíguo, mas simplesmente porque um não percebe do que o outro está falando, ou, então, interpreta o que o outro está dizendo como algo completamente diferente. [...] Do mesmo modo, o que é relevante para mim não é necessariamente relevante para outra pessoa: o objeto em si mesmo, ou algum aspecto do assunto em discussão que considero relevante pode ser totalmente invisível para o outro; de fato, o próprio objeto sobre o qual falo pode escapar à atenção do outro. ( p. 122-23)

Ora, a compreensão ampla das coisas depende, muitas vezes, não só das referências do plano mediato, mas também de sentimentos, porque compreender o sentido e as finalidades das coisas requer atuar também sobre a realidade imediata onde interpretações, julgamentos e atividades não são necessariamente movidas pelo conhecimento, mas por sentimentos e desejos.

Por isso, na afirmação de Bakhtin - a de que compreender algo implica em também fazer um julgamento -, talvez seja possível encontrar formas de, se não eliminar, mas superar os mal-entendidos de que fala Mey, e aproximar os meios e os modos de operar que caracterizam os planos imediato e mediato, pois, se do mediato as interações podem valer-se de referências que operacionalizam sentidos com graus de universalidade e que podem explicar a relação da parte com uma totalidade, no imediato os indivíduos encontrarão diferentes operações e que incluem os sentimentos, os desejos e as emoções. O ato da compreensão, então, já não se concentraria nas vozes privilegiadas de certas esferas sociais, mas, canceladas certas restrições à participação de todos, poderia incluir outras formas de ser avaliado.2 2 Isso não significa, porém, que as ultrageneralizações do cotidiano, do tipo “nada vale a pena”, “tudo é farinha do mesmo saco”, “todo político é corrupto” ou “se todos pensam em si, por que não eu?” possam ser aproveitadas para interpretações razoáveis.

Assim, os conceitos de liberdade e vida podem não só produzir múltiplas paráfrases no plano teórico, mas também ser avaliados por outros processos, tão importantes para o gênero humano quanto os de ordem lógico-dedutivos. O indivíduo poderia, desse modo, manifestar, no plano imediato, seu sentimento sobre se “é vida passar fome, não ter acesso a tratamento da saúde e à educação?”, “ser livre é não poder discordar de um superior?”, “ser respeitado é ficar horas na fila do INSS e não ser atendido?”, etc.

Existem, portanto, diferentes modos de operar sobre uma situação social, diante da qual o indivíduo poderia, mesmo sem operar com referências do plano mediato, tomar atitudes surpreendentes como, por exemplo, arriscar-se por alguém ou tornar-se incontrolavelmente agressivo e violento.

Em resumo, na manifestação de qualquer voz em qualquer situação interativa, misturam-se tantos meios e modos de dizer e operar sobre uma realidade que todas as tentativas de controlar os sentidos e seus efeitos não conseguem evitar que o indivíduo usufrua de uma liberdade de intervenção pessoal, o que permite concluir que em tudo que o homem produz - também no discurso e nos controles de sua produção e circulação - aninha-se uma certa imprevisibilidade. Isto é: se há os controles de que fala Foucault (1971), é porque existe algo a controlar, o que implícita a idéia de que, como reflexo, a heterogeneidade social, exatamente por não ser algo monolítico, garante espaços para o inesperado, o aleatório e a liberdade.

Essa dimensão do discurso estende-se, conseqüentemente, à interação, e produz efeitos de refração às vezes também surpreendentes. A disponibilidade de informações, pois, mesmo que elas sejam - como, de fato, são - manipuladas ideologicamente por quem tem poder para fazê-lo, representa não uma garantia, mas uma possibilidade de superação dos controles e, por isso, de intervenção nos rumos do gênero humano. É a diversidade referencial que imprime um caráter de imprevisibilidade quanto aos efeitos das coisas que o homem produz e, assim, não permite o fechamento total dos espaços e da eficiência dos controles ideológicos, de modo que se pode falar de uma liberdade - também para, por exemplo, (re)definir, num processo sem fim, os sentidos de liberdade e vida que Heller considera valores fundamentais. E a cada voz que se faz ouvir, existe um (re)início possível que pode trazer o novo e o imprevisto, exatamente porque

É da natureza do início que se comece algo novo, algo que não pode ser previsto a partir de coisa alguma que tenha ocorrido antes. Este cunho de surpreendente imprevisibilidade é inerente a todo início e a toda origem. [...] O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável. (ARENDT, 1993ARENDT, H. A condição humana. 6. ed. São Paulo: Forense Universitária, 1993., p. 190-91)

4 VOZES EM DIÁLOGO CONCLUSIVO

Como se pôde ver, as noções de reflexo e refração e, especialmente, a de dialogia que Bakhtin desenvolveu em seus estudos, podem ser de grande produtividade para entender os processos de mediação da processualidade do gênero humano. E aliando essas noções às de Lukács, Heller, Arendt e outros, fica bastante esclarecedor que a interação, quando não se orientar pela sobrevalorização de meios e modos de operação, pode superar a dificuldade de indivíduos compreenderem as coisas diferenciadamente e manifestarem isso na sua fala, assim que a amplitude das compreensões possíveis de liberdade e vida, por exemplo, (re)coloca a interação, obrigatoriamente, na rota do diálogo como condição para encontrar acordos sobre os valores-fins e, desse modo, atuar também sobre as diferenças das concepções dos meios e finalidades. Isto é: o ponto de partida para interagir é uma base não necessariamente unívoca que reproduz o que os homens produziram de forma heterogênea até o momento sobre os dois conceitos: o acordo inicia, pois, exatamente, por admitir a diversidade para, então, poder avançar para novos acordos e estabelecer novos contornos do convívio dos diferentes sentidos das expressões.

Compreende-se, pois, que, pelo fato de alimentar a perspectiva de superação da dimensão negativa do conflito de sentidos e finalidades, o discurso é uma mediação extremamente preciosa para o gênero humano. Valorizá-la e não bloquear a sua função também significa valorizar as vozes do contexto social, mormente porque o homem é uma espécie radicalmente diferente dos outros animais: ele fala e, ao fazê-lo, faz-se social e consciente:

No mundo da natureza orgânica, certas espécies aparecem, mas essas espécies são espécies silenciosas. O leão, o leão individual, pertence à espécie Leo. Mas o leão individual não sabe disso. Quando está caçando ou quando está gerando filhotes, nesse momento está exclusivamente satisfazendo às suas necessidades biológicas e ao mesmo tempo - sem ter consciência disso - serve à sua espécie e a representa. [...] O homem é tanto uma unidade inseparável da espécie Homo e da humanidade quanto o leão a é dos animais ou, se se preferir, como um talo de grama a é das plantas. Contrastando com isso, entretanto, o homem é um membro consciente de uma tribo, mesmo em seu nível mais primitivo. O próprio fato de ser um membro da tribo mais primitiva eleva-o acima do silêncio que é puramente biológico. (LUKÁCS, 1979______. Ontologia do ser social. São Paulo: Ciências Humanas, 1979., p. 89)

A interação, pois, pressupõe vozes que compreendem, e coloca em cena não indivíduos isolados, silenciosos na sua relação com o gênero, mas sociais e falantes. E se eles se identificam ou não pelos meios e modos que escolhem para operar em relação a objetivos e finalidades é porque escolhem as vozes que valorizam como importantes para orientar interpretações e avaliações.

Em outras palavras, se, conforme Bakhtin (1992______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.), compreender sem julgar é impossível, o contexto, tanto o imediato como o mediato, que é - quer queira ou não qualquer enunciante - condição e limite de produção de sentidos, deve ser entendido como discurso ou vozes que já interpretaram e julgaram e que se submetem sempre, a cada novo momento histórico, a novas compreensões e julgamentos. E o discurso, por sua vez, pressupõe uma incontornável obrigação de citação não de quaisquer vozes, mas daquelas com que o enunciante reconhece uma convergência de interesses e objetivos. Isso significa que a produção do discurso, sabendo-se que ela pressupõe uma interpretação - que é fruto da atividade de um discurso interiorizado do indivíduo3 3 Quando Bakhtin (1986) explica que o fundo perceptivo do indivíduo é mediatizado por um discurso interior-interiorizado, quer enfatizar que ele tem origem no tecido social e não pertence integralmente ao indivíduo, embora, nos processos de apropriação e de interpretação, sempre ocorram transformações motivadas pelas atividades dos sujeitos. - poderá ser definida como um processo em que um enunciado se apóia, sempre, em outro, de modo que se pode falar de uma rede complexa de relações de diferentes vozes de diferentes planos e esferas sociais, tanto do passado, do presente como do futuro: há interpretações que dependem de um discurso que já interpretou e, por isso, as vozes sempre iniciam onde outras se manifestaram para falar do que foi dito e produzir o novo:

O enunciado nunca é simples reflexo ou expressão de algo que lhe preexistisse, fora dele, dado e pronto. O enunciado sempre cria algo que, antes dele, nunca existira, algo novo e irreproduzível, algo que está sempre relacionado com um valor. [...] qualquer coisa se cria sempre a partir de uma coisa que é dada [...]. O dado se transfigura no criado. (BAKHTIN, 1992______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992., p. 348)

O discurso poderá ser considerado, pois, sempre, citante e, por isso, ao mesmo tempo, também passível de ser citado e tema de citação subseqüente, num processo infinito, onde nada é definitivo: a mediação discursiva configura um processo onde a atividade dos interlocutores se alterna indefinidamente na condição de citante e citado e se faz, por isso, uma vez, necessariamente dialógica e polifônica e, por outro, impulso para o novo. Isto é: se há no enunciado um ponto de vista que o enunciante tenta valorizar diante do receptor, isso não garante que uma interação confirmará e sedimentará sentidos e valores, pois ela pode também provocar revisões e transformações porque os indivíduos, ao atuarem com, atuam também sobre o que determina as suas atividades.

Assim, pois, quando as vozes - citantes e citadas - se fazem discurso, elas, ao refletir e operar sobre interesses de segmentos sociais, hierarquizam valores e modos de interpretar a realidade do que resulta, como um projeto de socialidade, a ideologia. Em outros termos, os sentidos das coisas passam, por pressão da ação ideológica, a hierarquizar julgamentos, em termos de “melhor” ou “pior”, “mais ou menos justo” etc., assim que se pode também dizer que a ideologia concentra fortes motivações para que algo seja interpretado de uma ou outra maneira e, por isso, as referências valem mais ou menos de acordo com o que representam para a manutenção ou não dos interesses dos diferentes segmentos sociais.

As vozes, agora, ao refletirem e defenderem determinadas finalidades comprometidas com interesses específicos, preenchem a função da ideologia, entendida, pois, como um projeto de socialidade que, ao explicitar relações, prioriza e hierarquiza valores para proteger e garantir interesses de uma dada esfera social. Compreende-se, por isso, que os interlocutores só poderão vir a ser cúmplices no processo interativo na medida em que também interiorizaram, consciente ou inconscientemente, uma determinada ideologia, o que quer dizer, em outros termos, que, a cada manifestação de vozes, ocorrem necessariamente, por efeito da hierarquização ideológica, processos de inclusão e de exclusão. E isso se inscreve nos discursos dos diferentes grupos sociais existentes e também faz parte, enquanto fio condutor, das escolhas das referências que direcionam a interpretação da realidade e a armação de modos de enunciação como estratégias de luta.

E a ideologia é uma mediação que não pode prescindir do discurso, porque é nas vozes sociais que ela reflete e refrata finalidades comprometidas com interesses específicos e que se sobrepõem e orientam a produção dos discursos em geral, determinando o modo como atuam os indivíduos. Por outro lado, pelo fato de ser discurso, a ideologia também tem uma dimensão dialógica e, por isso, submete-se a uma certa imprevisibilidade quanto aos efeitos que pode produzir, o que admite dizer que as ações responsivas dos indivíduos e dos grupos sociais podem modificar, superar ou anular determinações ideológicas, ou seja, uma pressão do plano imediato sobre o mediato também é possível, precisamente porque

A noção de alternativas é básica para o significado do trabalho humano que, por conseguinte, é sempre teleológico - ele assinala um objetivo, que é o trabalho de uma escolha. Expressa, portanto, a realidade humana. Mas essa liberdade só existe quando se põem em funcionamento forças objetivas que obedecem às leis de causalidade do universo material. A teleologia do trabalho está pois sempre coordenada com a causalidade física, e na realidade o resultado de qualquer trabalho do indivíduo é um momento de causalidade física para a orientação teleológica de qualquer outro indivíduo. (LUKÁCS, 1979______. Ontologia do ser social. São Paulo: Ciências Humanas, 1979., p. 99)

A dimensão dialógica e o caráter polifônico do discurso que se efetivam na interação permitem, por isso, entender que, como resultado da diversidade, o produto da atividade humana pode ter diferentes finalidades, ou seja, as coisas produzidas pelo homem podem estar comprometidas com diferentes valores e ocupar diferentes lugares nas hierarquizações.

E a interação, por isso, sempre se realizará dentro dos limites de ordem ideológica porque as finalidades sociais que uma voz manifesta e defende se contrapõem às de outras. Assim, as regras que organizam as relações humanas, quer seja, por exemplo, na política, na sexualidade ou em outras, podem tanto produzir e ser entendidas como o exercício de um poder que cerceia a liberdade do indivíduo, como também podem ser consideradas condição de liberdade na medida em que garantem os espaços de atuação dos indivíduos que são diferentes e únicos. É a diversidade de vozes-referência do contexto - também de ordem ideológica - que, enfim, constrói para o indivíduo uma liberdade que permite optar, inclusive, por viver ou não em liberdade.4 4 Como uma ideologia não pode ter surgido, enquanto projeto de socialidade, do nada, mas como produto do processo de construção e de organização dos diferentes grupos sociais em torno a determinados interesses que surgem de um dado conjunto de atividades e relações sociais, o indivíduo evidentemente não escolhe uma ideologia a que se filia por vontade ou decisão de consciência: a sua escolha se dá através de um processo de apropriação de inúmeras, diferenciadas e históricas vozes que fizeram inúmeras, diferenciadas e históricas apropriações de vozes... Como essas apropriações podem corresponder a escolhas que têm diferentes motivações, do processo resulta um engajamento pessoal e singular num dado projeto de socialidade. Não é preciso ter consciência da escolha para não ser assujeitado.

REFERÊNCIAS

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  • WARAT, L. A. Por quien cantan las sirenas. Joaçaba, SC: UNOESC; Florianópolis, SC: UFSC, 1996.
  • 1
    O sentido da palavra é genérico porque resulta de abstrações que a necessidade de comunicação impõe aos indivíduos, pois seria impensável a interação que colocasse frente a frente interlocutores cujas vozes manifestassem apenas singularidades.
  • 2
    Isso não significa, porém, que as ultrageneralizações do cotidiano, do tipo “nada vale a pena”, “tudo é farinha do mesmo saco”, “todo político é corrupto” ou “se todos pensam em si, por que não eu?” possam ser aproveitadas para interpretações razoáveis.
  • 3
    Quando Bakhtin (1986) explica que o fundo perceptivo do indivíduo é mediatizado por um discurso interior-interiorizado, quer enfatizar que ele tem origem no tecido social e não pertence integralmente ao indivíduo, embora, nos processos de apropriação e de interpretação, sempre ocorram transformações motivadas pelas atividades dos sujeitos.
  • 4
    Como uma ideologia não pode ter surgido, enquanto projeto de socialidade, do nada, mas como produto do processo de construção e de organização dos diferentes grupos sociais em torno a determinados interesses que surgem de um dado conjunto de atividades e relações sociais, o indivíduo evidentemente não escolhe uma ideologia a que se filia por vontade ou decisão de consciência: a sua escolha se dá através de um processo de apropriação de inúmeras, diferenciadas e históricas vozes que fizeram inúmeras, diferenciadas e históricas apropriações de vozes... Como essas apropriações podem corresponder a escolhas que têm diferentes motivações, do processo resulta um engajamento pessoal e singular num dado projeto de socialidade. Não é preciso ter consciência da escolha para não ser assujeitado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Jun 2005

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2005
  • Aceito
    02 Jun 2005
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