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DISPOSITIVO E MEMÓRIA: A RELIGIOSIDADE AO NÍVEL DO (IN)VISÍVEL NAS PINTURAS DE MARIANNA GARTNER

Device and memory: religiosity at the (in)visible level on paintings by Marianna Gartner

Dispositivo y memoria: la religiosidad a nivel (in)visible en las pinturas de Marianna Gartner

Resumo

Este artigo procura analisar algumas pinturas da artista plástica canadense Marianna Gartner. Procurou-se evidenciar o processo de (in)visibilidade discursivo nas telas de Gartner, levando em consideração o universo constituído nas obras da artista. Este artigo terá como fundamento teórico e metodológico a Análise do Discurso de linha francesa calcada nos pressupostos foucaultianos de dispositivo e de memória, tendo as pinturas de Gartner como materialidades discursivas. As imagens da artista plástica chamaram a atenção devido ao atravessamento discursivo de elementos religiosos de base cristã, mais precisamente o duelo entre vida e morte, céu e inferno, os quais podem ser reativados discursivamente pela memória dos sujeitos, produzindo sentido.

Palavras-chave:
Dispositivo religioso; Memória; Pintura; Marianna Gartner.

Abstract

This article aims to analyze some paintings by the Canadian artist Marianna Gartner. The process of (in) discursive visibility in the screens of Gartner was tried to evidence, considering the universe constituted through the works by the artist. This article will have the the Discourse Analysis of the French line as theoretical and methodological basis, grounded in Foucauldian assumptions device and memory, and the Gartner paintings as discursive materiality. The images by the artist drew attention because of the discursive crossing religious elements of Christian basis, more precisely the duel between life and death, heaven and hell, which can be reactivated discursively by the subject’s memory, producing meanings.

Keywords:
Religious device; Memory; Marianna Gartner; Painting.

Resumen

Este artículo procura analizar algunas pinturas de la artista plástica canadiense Marianna Gartner. Se ha procurado evidenciar el proceso de (in) visibilidad discursiva en las pantallas de Gartner, considerando el universo constituido en las obras de la artista. Este trabajo tendrá como fundamento teórico y metodológico el Análisis del Discurso de línea francesa, basado en los supuestos de Foucault, del dispositivo y de memoria, teniendo las pantallas de Gartner como materialidades discursivas. Las imágenes de la artista plástica llamaron atención debido su atravesamiento discursivo de elementos religiosos de base cristiana, más precisamente el duelo entre vida y muerte, cielo e infierno, los cuales pueden ser reactivados discursivamente por la memoria de los sujetos, produciendo sentido.

Palabras-clave:
Dispositivo religioso; Memoria; Pintura; Marianna Gartner.

1 INTRODUÇÃO

Marianna Gartner é uma artista plástica canadense que atualmente mora em Vitória, capital da Província de Colúmbia Britânica. Formou-se em pintura e fotografia pela Universidade de Calgary, no entanto, dedicou-se exclusivamente à pintura. Ela teve influência de artistas clássicos e modernos alemães e italianos. Gartner desenvolveu uma linguagem figurativa em suas telas. Ela seleciona fotografias antigas encontradas em lojas de antiguidades e também em mercados de pulgas, descrevendo protagonistas que são caracterizados pela ausência de emoção e de espontaneidade, bem como pela expressividade que emerge de suas criações (MANGUEL, 2001MANGUEL, A. A imagem como pesadelo. In: ______. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.).

O interesse em analisar as obras de Marianna Gartner surgiu por meio da leitura da tela Quatro homens em pé (ver Figura 6) realizada por Alberto Manguel (2001MANGUEL, A. A imagem como pesadelo. In: ______. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.) no livro Lendo imagens: uma história de amor e ódio. Na ocasião, Manguel fez uma interpretação calcada em elementos religiosos do catolicismo. Nesse sentido, questionamos como se dá o processo discursivo de visibilidade do dispositivo religioso nas imagens pictóricas criadas por Marianna Gartner, levando em consideração elementos de invisibilidade e inteligibilidade construídos pela artista no universo de suas obras.

Diante dessa problemática, propusemos fazer a análise de seis telas de Gartner pelo viés da Análise do Discurso de linha francesa, sustentada pelos pressupostos teóricos do filósofo francês Michel Foucault. Para isso, fizemos uma articulação entre as noções a respeito de dispositivo e de memória, que, quando organizadas e inter-relacionadas, dão possibilidade de compreender o universo que a artista plástica cria em suas obras, permitindo também entender a leitura realizada por Manguel, em relação a Quatro homens em pé.

2 O QUE É DISPOSITIVO?1 1 Nesta seção, tomamos de empréstimo o título de Gilles Deleuze (1990), ¿Que és un dispositivo?, pois entendemos que dialoga com a nossa proposta de discussão. Entretanto, advertimos que não fizemos uma exploração exaustiva do conceito.

Pelas leituras do trabalho arqueológico de Michel Foucault, elegemos o dispositivo para discutirmos nesta seção. Assim sendo, faremos algumas explanações calcadas nos pressupostos foucaultianos a respeito de dispositivo religioso, pois acreditamos que essas discussões possibilitarão compreender discursivamente as pinturas de Gartner.

Foucault (2015______. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. ), na formulação de A arqueologia do saber, propõe um método teórico para tratar as práticas discursivas, que consiste em descrever acontecimentos discursivos e transformações dos enunciados. Nessa linha de raciocínio, Fischer (2012FISCHER, R. M. B. Trabalhar com Foucault: arqueologia de uma paixão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. ) indaga: o que quer uma teoria das práticas discursivas? E a autora responde:

[...] descrever acontecimentos discursivos. E isso não é pouco. Trata-se de flutuar no limite das coisas e das palavras, como escreve Foucault a respeito dos livros de Deleuze - justamente porque o acontecimento não se reduziria jamais a um estado de coisas, funcionando como o referente de algo que foi dito e cuja veracidade ou falsidade buscaríamos investigar. (FISCHER, 2012FISCHER, R. M. B. Trabalhar com Foucault: arqueologia de uma paixão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. , p. 25)

Nessa medida, levando em consideração as palavras de Fischer, o trabalho do analista do discurso gira em torno da descrição de acontecimentos discursivos, e isso não é uma tarefa fácil. Partindo desse entendimento, assume-se neste artigo justamente o trabalho de descrever e analisar os discursos (in)visíveis que estão inscritos nas telas de Marianna Gartner. Para isso, buscou-se na literatura o entendimento de dispositivo, pois, como veremos, é um tema fundamental nos trabalhos de Foucault.

De acordo com Agamben (2005AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? Tradução de Nilceia Valdati. Outra Travessia, n. 5, p. 9-16, 2. sem. 2005., p. 9-10), o termo dispositivo é um elemento central no pensamento de Michel Foucault, porém ele nunca o definiu; no entanto, não deixou de trabalhar com esse conceito. Na fase arqueológica, ele abordou essa terminologia como positividade.

Assim sendo, em A arqueologia do saber, Foucault (2015______. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. , p. 153) afirma que analisar uma formação discursiva é tratar um grupo de performances verbais, no nível dos enunciados e da forma de positividade que as caracteriza, “ou, mais sucintamente, é definir o tipo de positividade de um discurso”. Nesse sentido, entende-se que uma formação discursiva está inserida em um conjunto de outros discursos com suas positividades.

Agamben (2005AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? Tradução de Nilceia Valdati. Outra Travessia, n. 5, p. 9-16, 2. sem. 2005.) salienta que Foucault possivelmente buscou o termo positividade nos trabalhos de seu mestre, Jean Hyppolite, a respeito de Hegel. Hyppolite mostrou a oposição entre natureza e positividade; Hegel procurou conciliar a razão (natureza) e a história (positividade). Foucault, por sua vez, verificou a relação entre seres viventes, isto é, os indivíduos, e seres históricos, ou seja, o indivíduo constituído em sujeito. Em outras palavras, Foucault procurou estudar “os modos concretos em que as positividades (ou os dispositivos) atuam nas relações, nos mecanismos e nos ‘jogos’ de poder” (AGAMBEN, 2005AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? Tradução de Nilceia Valdati. Outra Travessia, n. 5, p. 9-16, 2. sem. 2005., p. 11).

Compreendendo positividade como dispositivo, Foucault assevera:

A positividade de um discurso - como o da história natural, da economia política, ou da medicina clínica - caracteriza-lhe a unidade através do tempo e muito além das obras individuais, dos livros e dos textos. Essa unidade, certamente, não permite decidir quem dizia a verdade, quem raciocinava rigorosamente, quem se adaptava melhor a seus próprios postulados. [...] ela não permite, tampouco, dizer qual das obras estava mais próxima de uma meta inicial ou última, qual delas formularia mais radicalmente o projeto geral de uma ciência. (FOUCAULT, 2015______. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. , p. 154, grifo nosso)

Nesse fragmento é possível observar que a maquinaria de um dispositivo é construída historicamente. Ela não se limita a discursos individuais, mas trata de práticas discursivas que se inscrevem não em uma unidade, mas em grupos, e constroem as verdades de uma época.

Assim, Foucault (2015______. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015. , p. 85-86) salienta que, quando se fala de um sistema de formações discursivas, não se compreende apenas a justaposição, a interação de elementos heterogêneos, como técnicas, instituições, grupos sociais, perspectivas, relações entre discursos diversos, mas seu relacionamento, estabelecido através de práticas discursivas.

Falando de discurso e de práticas discursivas advindas dos pressupostos foucaultianos, Paul Veyne (2011VEYNE, P. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Tradução de Marcelo Jacques de Morais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011., p. 21) afirma que cada discurso coloca em jogo uma variação grande de elementos, como exemplo: costumes, palavras, saberes, normas, leis, instituições. Nesse sentido, seria melhor falar em práticas discursivas, ou o que ele também chama de dispositivo.

Em uma entrevista de Foucault, encontramos uma abordagem a respeito de dispositivo. O texto é Le jeu de Michel Foucault, e se encontra na versão francesa de Dits et écrits III; no entanto, na versão brasileira, traduzida por Manoel Barros da Motta, o presente texto foi suprimido. Nesse texto, Foucault afirma que o dispositivo

é, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo, incluindo discursos, instituições, arranjos arquitetônicos, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas [...]. O próprio dispositivo é a rede que se estabelece entre esses elementos. [...] Em segundo lugar, o que gostaria de identificar no dispositivo é precisamente a natureza do elo que pode existir entre esses elementos heterogêneos. [...] Em suma, entre estes elementos, discursivos ou não, há um jogo, mudanças de posição, modificações de funções, que podem, eles também, ser muito diferentes. [...] Em terceiro lugar, entendo por dispositivo uma espécie - digamos - de formação que, em um momento dado, teve por função principal responder a uma urgência. Por conseguinte, o dispositivo tem uma função estratégica dominante. (FOUCAULT, 1977FOUCAULT, M. Le jeu de Michel Foucault. Entretien. Ornicar? Bulletin périodique du champ freudien, n. 10, p. 62-93, juillet 1977., p. 62-63, tradução nossa2 2 Recortes originais: “Ce que j’essaie de repérer sous ce nom c’est, premièrement, un ensemble résolument hétérogène, comportant des discours, des institutions, des aménagements architecturaux, des décisions réglementaires, des lois, des mesures administratives, des énoncés scientifiques, des propositions philosophiques, morales, philanthropiques ; bref, du dit aussi bien que du non-dit, voilà les éléments du dispositif. Le dispositif lui-même c’est le réseau qu’on établit entre ces éléments. Deuxièmement, ce que je voudrais repérer dans le dispositif, c’est justement la nature du lien qui peut exister entre ces éléments hétérogènes. Ainsi, tel discours peut apparaître tantôt comme programme d’une institution, tantôt au contraire comme un élément qui permet de justifier et de masquer une pratique qui, elle, reste muette, ou fonctionner comme réinterprétation seconde de cette pratique, lui donner accès à un champ nouveau de rationalité. Bref, entre ces éléments, discursifs ou non, il y a comme un jeu, des changements de position, des modifications de fonctions, qui peuvent, eux aussi, être très différents. Troisièmement, par dispositif, j’entends une sorte – disons – de formation qui, à un moment donné, a eu pour fonction majeure de répondre à une urgence. Le dispositif a donc une fonction stratégique dominante. Cela a pu être, par exemple, la résorption d’une masse de population flottante qu’une société à économie de type essentiellement mercantiliste trouvait encombrante: il y a eu là un impératif stratégique, jouant comme matrice d’un dispositif, qui est devenu peu à peu le dispositif de contrôle-assujettissement de la folie, de la maladie mentale, de la névrose [...]” (FOUCAULT, 1977, p. 62-63). ).

Nas palavras de Foucault, o dispositivo carrega um conjunto heterogêneo de elementos que podem ser linguísticos ou não. Ele é a correlação que é estabelecida entre esses elementos, isto é, a rede. O dispositivo está sempre associado a uma relação de poder. De certa forma, essa relação de poder encadeada através das redes discursivas, que podem ser linguísticas ou não, constituem a episteme foucaultiana de dispositivo, que leva uma sociedade a discernir o que é certo ou errado na inscrição de suas verdades.

Levando em consideração a teoria do poder foucaultiana, Gilles Deleuze (1990DELEUZE, G. ¿Que és un dispositivo? In: ______. Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990. p. 155-161., p. 155-157) define dispositivo como uma espécie de novelo, isto é, um conjunto multilinear composto por linhas de natureza diferente que não abrangem nem delimitam “sistemas homogêneos por sua própria conta (o objeto, o sujeito, a linguagem), mas seguem direções diferentes, formam processos sempre em desequilíbrio, e essas linhas tanto se aproximam como se afastam uma das outras”.

O autor ainda aponta três dimensões para o dispositivo: as curvas de visibilidade, as curvas de enunciação e a linhas de força. Neste artigo, interessam-nos as duas primeiras; Deleuze as compara às máquinas de Raymond Roussel, isto é, máquinas de fazer ver e de fazer falar. Então, a curva de visibilidade não é formada pelo objeto preexistente, mas pela maquinaria que faz emergir as linhas de luz que formam figuras variáveis e inseparáveis dos dispositivos, e fazem os sujeitos verem aquilo que está inscrito nos discursos. Já a curva de enunciação remete para as próprias linhas de enunciação que distribuem as posições diferenciais de suas variáveis; em outras palavras, é como uma maquinaria de fazer falar; tem-se, por exemplo, o dispositivo religioso, o escolar e o político, que possuem seus regimes de enunciações (DELEUZE, 1990DELEUZE, G. ¿Que és un dispositivo? In: ______. Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990. p. 155-161., p. 155-157).

Diante dos apontamentos realizados até aqui a respeito de dispositivo, fazemos o nosso recorte. Em uma visão foucaultiana, consideramos como dispositivo religioso cristão toda uma maquinaria que enreda discursos verbais ou não e suas relações, como leis, normas, processos políticos que envolvam relações de poder e de hierarquia, que levam os sujeitos a partilharem um campo associado de práticas discursivas. Desse modo, consideraremos as antíteses céu e inferno, Deus e diabo, luz e trevas, vida e morte, além de outros elementos como almas, anjos, espíritos malignos, padres, freiras, santos, etc., como componentes de práticas discursivas presentes no dispositivo religioso cristão que, veremos adiante, aparecem nas pinturas de Gartner.

3 O PAPEL DA MEMÓRIA EM FOUCAULT

Nesta seção, trataremos sobre o quesito memória, no entanto, não nos distanciaremos das discussões sobre dispositivo, visto que, a nosso ver, estão inter-relacionados. Foucault não trabalhou especificamente com o termo memória discursiva, todavia, fazendo uma leitura em sua vasta obra, encontramos algumas discussões que conduzem à compreensão do papel da memória, levando em consideração os discursos dentro de uma ordem e inscritos em práticas discursivas.

Em A ordem do discurso, Foucault (2011______. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011., p. 49) afirma que o discurso é “um jogo, de escritura, [...] de leitura, [...] de troca, [...] e essa troca, essa leitura e essa escritura jamais põem em jogo senão os signos. O discurso se anula, assim, em sua realidade, inscrevendo-se na ordem do significante”. Com isso, pode-se afirmar que os discursos se inscrevem em uma ordem, e isto nos leva a crer que eles pertencem a um campo enunciativo associado, logo, também estão inscritos em dispositivos.

Nessa linha de raciocínio, Foucault (2011______. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011., p. 39) afirma que os discursos religiosos, terapêuticos, judiciários e, também, políticos não podem ser separados de práticas discursivas envolvidas em um ritual que produz, para os sujeitos que falam, simultaneamente, papéis preestabelecidos e propriedades singulares.

Courtine (2008COURTINE, J.-J. Discursos sólidos, discursos líquidos: a mutação das discursividades contemporâneas. In: SARGENTINI, V.; GREGOLIN, M. do R. (Org.). Análise do discurso: heranças, métodos e objetos. São Carlos: Editora Claraluz, 2008., p. 17), falando sobre memória, discorre que o campo da fala pública está imbricado por imagens nas quais percebemos, de forma concomitante, a intensidade de seu impacto e a efemeridade de sua obsolescência. É fundamental compreender como elas trazem significados, “como uma memória das imagens as atravessa e as organiza, ou seja, uma intericonicidade que lhes atribuiu sentidos reconhecidos e partilhados pelos sujeitos políticos que vivem na sociedade, no interior da cultura visual”. Nessa diretriz, entendemos que esta intericonicidade faz com que os sujeitos partilhem sentidos que são comuns entre eles, isto é, dentro de práticas discursivas, dentro de dispositivos. O autor afirma ainda que a noção de memória foi e permanece ainda com um investimento interpretativo de grande abrangência, tanto no que concerne às palavras quanto às imagens. Assim, a memória dos sujeitos funciona tanto na descontinuidade, quanto no esquecimento, sendo reativada através de práticas discursivas de um campo associado.

Falando de doutrina - e aqui também entendemos que está no limiar do dispositivo -, Foucault (2011______. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011.) afirma que as doutrinas religiosas, políticas, filosóficas, entre outras, constituem o inverso de uma sociedade discursiva, pois nessa sociedade o número de indivíduos que fala é limitado. No entanto, a doutrina,

ao contrário, tende a difundir-se; e é pela partilha de um só e mesmo conjunto de discursos que indivíduos, tão numerosos quanto se queira imaginar, definem sua pertença recíproca. Aparentemente, a única condição requerida é o reconhecimento das mesmas verdades e a aceitação de certa regra - mais ou menos flexível - de conformidade com os discursos validados. (FOUCAULT, 2011______. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011., p. 42)

Sob tal direção, acreditamos que, por partilharem as mesmas verdades, inscritas nas práticas discursivas e engendradas pelas relações de força presentes nos dispositivos, nesse caso o dispositivo religioso, os sujeitos podem retomá-las em seus discursos, podem sair do campo da invisibilidade e produzir sentido para aqueles sujeitos que compartilham certo conjunto de práticas discursivas.

Assim, Foucault (2011______. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011., p. 35) adverte que é “sempre possível dizer o verdadeiro no espaço de uma exterioridade selvagem3 3 Aqui, entendemos por “exterioridade selvagem” a função de produção de campos de verdade. Foucault, falando sobre o “verdadeiro” do discurso de Gregor Mendel (biólogo e botânico) e do discurso biológico do século XIX, afirma que Mendel dizia a verdade, no entanto, seu discurso não seguia a ordem ou a verdade da época, isto é, seu discurso não entrava na ordem do discurso da “exterioridade selvagem” que constituía o discurso dos botânicos ou dos biólogos do século XIX (FOUCAULT, 2011, p. 34-35). ”, mas só nos encontramos no verdadeiro de uma época obedecendo às regras de uma “polícia discursiva” que devemos reativar em cada um de nossos discursos. Com isso, temos o papel da memória discursiva que é reativado pelo sujeito quando um discurso se inscreve dentro de práticas discursivas de seu conhecimento, neste caso, o dispositivo religioso. Esse é nosso interesse com essa discussão, pois assumimos que os sujeitos reativam uma memória discursiva do dispositivo religioso, o qual proporciona a possibilidade de leitura das telas Gartner.

4 UMA LEITURA DE ALGUMAS PINTURAS DE MARIANNA GARTNER SOB A ÓPTICA DA ANÁLISE DISCURSIVA FOUCAULTIANA

Tasso (2003TASSO, I. E. V. de S. As múltiplas faces da iconografia na prática de leitura escolar. 2003. Tese (Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa) - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, 2003.) chama a atenção para a complexidade inerente à composição de imagens plásticas figurativas que envolvem a representação de seres humanos, pois despertam interesse de estudos e de investigações em relação aos mais antigos vínculos entre homem e o meio simbólico, bem como a respeito da arquitetura discursiva presente na materialidade pictórica. Levando em consideração que as telas de Marianna Gartner retratam a figura humana, analisaremos seis telas da artista inter-relacionando com as noções foucaultianas de dispositivo, neste caso o religioso, e a respeito de memória.

Manguel (2001MANGUEL, A. A imagem como pesadelo. In: ______. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.), calcado em uma leitura voltada para o pesadelo nas obras de Gartner, afirma que uma das características das pinturas da artista canadense é a subversão ao real, como se fosse um pesadelo, o que faz o próprio Manguel questionar-se sobre a possibilidade de leitura de suas telas. No entanto, também assevera que suas pinturas estão repletas de esqueletos, crianças em situações incomuns e animais mortos, constituindo, assim, uma primeira leitura ao nível do visível.

A seguir, procuraremos analisar alguns elementos que estão no campo da (in)visibilidade e também da inteligibilidade nas telas de Marianna Gartner, e que, quando reconhecidas, ajudam a compor um novo universo que, de alguma forma, proporciona sentido para os sujeitos que partilham certos discursos (sub)inscritos no dispositivo religioso cristão.

Na Figura 1, temos a tela Meninas com veado morto, que nos chama a atenção, primeiramente, pela situação incomum em que os modelos se posicionam, isto é, brincam sobre um animal morto. Outro ponto importante, nessa tela, é a expressão facial das meninas. Com semblantes de inocentes, os modelos não podem dizer o que aconteceu, pois suas faces estão congeladas em uma pintura e, desse modo, não transmitem alegria ou tristeza. Ainda, nessa tela, temos, ao nível do (in)visível, a presença do dispositivo religioso no conflito entre vida e morte. As crianças, de alguma forma, podem representar a vida, todavia, o veado, assim como descrito no título da tela, representa a morte.

Figura 1
Meninas com veado morto (Girls with dead deer)

Vejamos a próxima tela, Meninos com garça morta (Figura 2). Nela podemos fazer uma descrição semelhante à da Figura 1. Primeiramente encontramos uma analogia no título, Meninos com garça morta. É importante ressaltar que os títulos das telas de Gartner não facilitam nenhuma interpretação, pois são meramente descritivas; outra observação importante é que Gartner procura não interpretar as suas obras (MANGUEL, 2001MANGUEL, A. A imagem como pesadelo. In: ______. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.). No entanto, na Figura 2, tem-se novamente a presença do duelo vida versus morte: as crianças, que podem representar a vida; em oposição, uma delas está segurando uma garça morta. Também destacamos novamente, ao nível do visível, a expressão facial dos modelos, que parecem esconder ou querer dizer alguma coisa, porém, em uma análise da tela, não conseguimos encontrar respostas.

Figura 2
Meninos com garça morta (Boys with Dead Heron)

Foucault (2011______. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011., p. 53) afirma que devemos “conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos em todo o caso; e é nesta prática que os acontecimentos do discurso encontram o princípio de sua regularidade.” Nesse sentido, com as imagens 1 e 2 pode-se destacar alguns elementos, ao nível do (in)visível, que são recorrentes nas pinturas da artista. Primeiro, destacamos a presença de crianças, que pode remeter à vida. Outro ponto importante e ainda associado aos modelos são as suas vestimentas, pois usam roupas que podemos agregar a uma burguesia talvez do século XIX ou do início do século XX. De acordo com Manguel (2001MANGUEL, A. A imagem como pesadelo. In: ______. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.), fotos antigas são as bases de inspiração de Gartner. O autor acrescenta:

O que parece interessá-la é a presença absoluta dos temas fotografados e o efeito persistente e obsessivo que dela advém. Normalmente os olhos, mas muitas vezes também as posturas, traem uma série de emoções endereçadas a algo que já não se encontra ali (a lente sedutora) e que agora são dirigidas a nós, os seus espectadores (MANGUEL, 2001MANGUEL, A. A imagem como pesadelo. In: ______. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p. 153).

Diante disso, Gartner colhe esses semblantes e silhuetas do passado e as transforma em novos elementos. E o terceiro ponto elencado das duas primeiras telas é a presença de algum componente que ativa uma memória do elemento morte, como, por exemplo, animais mortos ou o preto e branco dos modelos, o que também leva o espectador a questionar se eles estão vivos ou mortos. A descrição desses elementos acaba direcionando para uma leitura que visualiza uma regularidade dentro da dispersão das telas de Gartner, ou seja, o conjunto das telas da artista compõe um novo universo (FOUCAULT, 2011______. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011.).

Outra tela que causa impacto ao leitor é a da Figura 3, onde é latente a presença do dispositivo religioso cristão. Bebê Diabo III leva os sujeitos leitores a reativarem uma memória discursiva de inferno e da figura do Diabo. Uma criança com feições dóceis mostra-se, entretanto, com elementos diabólicos, chifres e tatuagens com representações de serpentes, dragões e demônios que aludem a um ritual de adultos. Foucault (2011______. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011., p. 42-43) afirma que as doutrinas (religiosas, políticas, filosóficas, etc.) estabelecem ligações entre os indivíduos e certos tipos de enunciação e, em alguns momentos, lhes impede, por conseguinte, todos os outros discursos. No entanto, em compensação, elas se apropriam de certos tipos de enunciação para ligar indivíduos que comungam as mesmas práticas discursivas, geridas pelos dispositivos. Assim, temos um campo associado de discursos que se inter-relacionam dentro de um dispositivo. As tatuagens fazem emergir o discurso de um universo carnal dos homens, bem como o profano, fazendo-os se inscreverem no limiar do dispositivo religioso cristão.

Figura 3
Bebê Diabo III (Diablo Baby III)

Vejamos a Figura 4; Clara na corda bamba foi pintada em três telas, isto é, um tríptico. Temos no nível do visível uma menina em pé com roupas delicadas e brancas sobre uma corda bamba sendo segurada por duas caveiras. Na figura central, ao fundo de Clara há um jogo de luzes, a claridade e as trevas, no entanto, também há uma luz que ilumina de fora para dentro as três personagens, Clara e os dois esqueletos, o que, por sua vez, convida o espectador a fazer parte de um possível quarto plano.

Figura 4
Clara na corda bamba (Tightrope Clara)

É interessante, no tríptico da Figura 4, a presença de borboletas, que são recorrentes em algumas telas da artista (Dining Room Painting, Dog with Butterfly, Black & White Boxe #2, Shy Guy, Resurrection e Two Dachshunds in Jars). Nesse sentido, Lurker (2003LURKER, M. Dicionário de simbologia. Tradução de Mario Krauss e Vera Barkow. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 91-92) traz as seguintes definições simbólicas para as borboletas:

A idéia da borboleta como alma já é encontrada no Egito antigo, apesar de ter sido mais difundida a do falcão com cabeça humana. Para a idéia familiar ao cristianismo sirva de exemplo um mosaico em Veneza (São Marco), no qual uma borboleta, como alma, voa em direção a Adão, criado por Deus. Ainda hoje existe entre muitos povos [...] a crença de que os mortos e suas almas possam assumir a forma de pássaros ou borboletas [...] O cristianismo incorporou o inseto principalmente como símbolo da ressurreição.

Como vimos, entre algumas simbologias, a borboleta pode remeter a almas, bem como a metamorfose (ovo, larva, crisálida e borboleta) pode remeter à ressurreição, elemento central no cristianismo. De acordo com Veyne (2011VEYNE, P. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Tradução de Marcelo Jacques de Morais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011., p. 21), o discurso coloca em jogo uma variação de elementos incluindo costumes, palavras e saberes que podem ser identificados e reativados pelos sujeitos. Desse modo, podemos evidenciar a presença de práticas discursivas do dispositivo religioso em Clara na corda bamba, que ora está ao nível do visível, ora do invisível.

Na Figura 5 temos a principal figura do cristianismo, Jesus, tatuado com a imagem da Virgem Maria, do sagrado coração de Jesus, de serpente e demônio.

Figura 5
Jesus tatuado (Tattooed Jesus)

Apegando-se à riqueza de detalhes, pode-se observar que o Cristo está com a coroa de espinhos e com os olhos fechados. De acordo com o que reza a literatura cristã, em uma perspectiva linear, Jesus recebeu a coroa de espinhos, foi crucificado e, após sua morte, uma lança foi atravessada em seu peito. No entanto, na Figura 5, temos uma ideia de ruptura, pois o Cristo está apoiado com os cotovelos, o que remete a uma posição de alguém consciente, porém está com os olhos fechados, levando o leitor a imaginar que esteja morto; todavia, não há nenhum sinal de ferimento nas mãos e no peito. Entretanto, temos as tatuagens, que podem representar os pecados e as feridas carnais.

Manguel (2001MANGUEL, A. A imagem como pesadelo. In: ______. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.) observa que essas imagens fazem parte de uma iconografia cristã, isto é, numa linguagem foucaultiana, dispositivo religioso. Como dissemos, esses elementos fazem os sujeitos inscritos no cristianismo reativarem passagens bíblicas; como exemplo, temos o caso de Adão, Eva e a serpente (esta última, tatuada no corpo de Jesus, na Figura 5), envolvidos naquilo que a doutrina cristã chama de pecado original. São práticas discursivas que são reativadas na memória dos sujeitos, produzindo sentidos, tornando o não dito visível (DELEUZE, 1990DELEUZE, G. ¿Que és un dispositivo? In: ______. Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990. p. 155-161.; FOUCAULT, 2011______. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011.).

Por fim, chegamos à imagem que nos inquietou e despertou nosso interesse pelas obras de Gartner (Figura 6). Quatro homens em pé chama a atenção do espectador, pois são quatro elementos com trajes formais que nos observam. Sérios e autoritários, intimidam os leitores que, por sua vez, buscam respostas que talvez não estejam presentes na tela, mas que podem ser lidas a partir da recorrência de alguns elementos presentes nas pinturas de Marianna Gartner, inscrevendo-se numa ordem discursiva e proporcionando sentidos para os sujeitos leitores (FOUCAULT, 2011______. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011.). O posicionamento dos modelos também causa inquietação, quatro homens e três mãos. Um dos modelos traz algo de diferente, usa bigode e uma máscara. Essa é uma leitura ao nível do visível.

Figura 6
Quatro homens em pé (Four Men Standing)

No entanto, Manguel, adentrando o nível do invisível, na busca de visibilidade dos discursos subscritos nessa tela, fez a seguinte análise:

Não tenho conhecimento do que o [Quatro homens em pé] inspirou: [...] eu o traduzo em imagens cujo significado crio a partir de fontes distantes, e só posso confiar no meu próprio senso do que é juste ou pas juste na minha leitura. Quatro homens em pé tira o seu poder exclusivamente da força da presença das figuras. Tradicionalmente na iconografia cristã, um grupo de “quatro” sugere um trio no qual se “intrometeu” um quarto personagem - a Trindade e Maria, os quatro evangelistas. A Quarta pessoa traz ao grupo um aspecto negligenciado ou excluído (a divindade feminina pela presença de Maria; a natureza messiânica do Cristo no evangelho de João, o único evangelista cujo emblema não é um animal, mas um anjo). Às vezes, o quarto personagem cumpre um papel subversivo não explicitamente manifesto na história oficial. (MANGUEL, 2001MANGUEL, A. A imagem como pesadelo. In: ______. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001., p 169)

Sustentando sua análise naquilo que chamou de iconografia cristã, Manguel interpreta Quatro homens em pé como a Santíssima Trindade, correspondendo às três personagens posicionadas ao lado direito da tela, e à Virgem Maria, representada pela figura de bigode e com máscara.

Voltando ao nível do visível, entre as seis imagens aqui analisadas, Quatro homens em pé aparenta ser a tela que menos apresenta em seu bojo elementos do dispositivo religioso. No entanto, Foucault (2011______. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011., p 49) adverte que o discurso

nada mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo pode, enfim, tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido, podem voltar á interioridade silenciosa da consciência de si. (FOUCAULT, 2011______. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011., p. 49)

Com isso, podemos dizer que, através de uma memória discursiva, os sujeitos podem reativar discursos que pertencem a um mesmo campo associado, a um dispositivo. Assim, para que Manguel chegasse à leitura acima, teve de analisar as demais telas de Gartner.

Mediante esse entendimento, bem como com a análise das cinco primeiras imagens e, ainda, de acordo com os pressupostos teóricos de Foucault (1977FOUCAULT, M. Le jeu de Michel Foucault. Entretien. Ornicar? Bulletin périodique du champ freudien, n. 10, p. 62-93, juillet 1977., 2011), percebemos que as pinturas de Gartner compõem um conjunto heterogêneo de discursos que se inscrevem em uma rede discursiva que, por sua vez, dita, regulariza e normatiza saberes e que fazem com que os sujeitos (se) identifiquem (em) discursos que transpassam o nível do visível, fazendo emergir discursos que estão ao nível do invisível, assim como a análise de Manguel em relação à tela Quatro homens em pé.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, nos debruçamos sobre o processo discursivo de visibilidade e de invisibilidade do dispositivo religioso cristão nas telas de Marianna Gartner, levando em consideração o universo constituído pelas obras da artista.

Retomando os apontamentos de Deleuze (1990DELEUZE, G. ¿Que és un dispositivo? In: ______. Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990. p. 155-161., p. 155-157) - “a visibilidade não é formada pelo objeto pré-existente” -, o (in)visível nas cinco primeiras telas possibilitou identificar uma maquinaria discursiva inscrita nas pinturas de Gartner, isto é, o dispositivo religioso cristão. Esse dispositivo proporcionou a emergência das “linhas de luz [...] que fazem os sujeitos verem aquilo que está inscrito nos discursos” e, desse modo, levou Manguel a interpretar a tela Quanto homem de pé como vetor do cristianismo.

Pois bem, a análise das obras de Gartner possibilitou visualizar uma performance discursiva verbal e não verbal inscrita no dispositivo religioso cristão que é ativado pelos indivíduos que comungam ou têm conhecimento desse conjunto de práticas discursivas. Assim, como salientou Foucault (2011______. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011., p. 49), o discurso é um jogo de escritura, de leitura e de troca. Contudo, esse jogo faz com que os sujeitos reativem sua memória discursiva trazendo elementos religiosos para o plano do vivível e do interpretativo.

Por fim, valendo-nos das palavras de Foucault (1979______. Sobre a história da sexualidade. In: ______. Microfísica do poder. Org. e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979., p. 244), o dito e não dito são elementos que compõem o dispositivo. Assim, afirmamos que a análise discursiva realizada ao nível do visível e do invisível nas imagens pictóricas de Gartner foi possível graças à (re)tomada de discursos do dispositivo religioso cristão.

REFERÊNCIAS

  • AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? Tradução de Nilceia Valdati. Outra Travessia, n. 5, p. 9-16, 2. sem. 2005.
  • COURTINE, J.-J. Discursos sólidos, discursos líquidos: a mutação das discursividades contemporâneas. In: SARGENTINI, V.; GREGOLIN, M. do R. (Org.). Análise do discurso: heranças, métodos e objetos. São Carlos: Editora Claraluz, 2008.
  • DELEUZE, G. ¿Que és un dispositivo? In: ______. Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1990. p. 155-161.
  • FISCHER, R. M. B. Trabalhar com Foucault: arqueologia de uma paixão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
  • FOUCAULT, M. Le jeu de Michel Foucault. Entretien. Ornicar? Bulletin périodique du champ freudien, n. 10, p. 62-93, juillet 1977.
  • ______. Sobre a história da sexualidade. In: ______. Microfísica do poder. Org. e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
  • ______. A ordem do discurso. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. 21. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2011.
  • ______. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2015.
  • GARTNER, M. Disponível em <http://www.mariannagartner.com/>. Acesso em: 24 ago. 2016.
    » http://www.mariannagartner.com
  • LURKER, M. Dicionário de simbologia. Tradução de Mario Krauss e Vera Barkow. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • MANGUEL, A. A imagem como pesadelo. In: ______. Lendo imagens: uma história de amor e ódio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
  • TASSO, I. E. V. de S. As múltiplas faces da iconografia na prática de leitura escolar. 2003. Tese (Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa) - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, 2003.
  • VEYNE, P. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Tradução de Marcelo Jacques de Morais. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
  • 1
    Nesta seção, tomamos de empréstimo o título de Gilles Deleuze (1990), ¿Que és un dispositivo?, pois entendemos que dialoga com a nossa proposta de discussão. Entretanto, advertimos que não fizemos uma exploração exaustiva do conceito.
  • 2
    Recortes originais: “Ce que j’essaie de repérer sous ce nom c’est, premièrement, un ensemble résolument hétérogène, comportant des discours, des institutions, des aménagements architecturaux, des décisions réglementaires, des lois, des mesures administratives, des énoncés scientifiques, des propositions philosophiques, morales, philanthropiques ; bref, du dit aussi bien que du non-dit, voilà les éléments du dispositif. Le dispositif lui-même c’est le réseau qu’on établit entre ces éléments. Deuxièmement, ce que je voudrais repérer dans le dispositif, c’est justement la nature du lien qui peut exister entre ces éléments hétérogènes. Ainsi, tel discours peut apparaître tantôt comme programme d’une institution, tantôt au contraire comme un élément qui permet de justifier et de masquer une pratique qui, elle, reste muette, ou fonctionner comme réinterprétation seconde de cette pratique, lui donner accès à un champ nouveau de rationalité. Bref, entre ces éléments, discursifs ou non, il y a comme un jeu, des changements de position, des modifications de fonctions, qui peuvent, eux aussi, être très différents. Troisièmement, par dispositif, j’entends une sorte – disons – de formation qui, à un moment donné, a eu pour fonction majeure de répondre à une urgence. Le dispositif a donc une fonction stratégique dominante. Cela a pu être, par exemple, la résorption d’une masse de population flottante qu’une société à économie de type essentiellement mercantiliste trouvait encombrante: il y a eu là un impératif stratégique, jouant comme matrice d’un dispositif, qui est devenu peu à peu le dispositif de contrôle-assujettissement de la folie, de la maladie mentale, de la névrose [...]” (FOUCAULT, 1977, p. 62-63).
  • 3
    Aqui, entendemos por “exterioridade selvagem” a função de produção de campos de verdade. Foucault, falando sobre o “verdadeiro” do discurso de Gregor Mendel (biólogo e botânico) e do discurso biológico do século XIX, afirma que Mendel dizia a verdade, no entanto, seu discurso não seguia a ordem ou a verdade da época, isto é, seu discurso não entrava na ordem do discurso da “exterioridade selvagem” que constituía o discurso dos botânicos ou dos biólogos do século XIX (FOUCAULT, 2011, p. 34-35).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2017

Histórico

  • Recebido
    26 Set 2016
  • Aceito
    21 Mar 2017
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