Resumo
Este artigo, resultado de uma pesquisa qualitativa, tem como objeto passagens de um romance literário - O tribunal da quinta-feira - que envolvem as reações de personagens sobre questões relacionadas ao hiv e à aids. O objetivo é investigar se essas passagens mantêm o senso de naturalização de pessoas que vivem com hiv, associadas a relações ideológicas e de poder, ou se contribuem para uma mudança discursiva a fim de erradicar o estigma que desencadeia a discriminação e o preconceito. O estudo se baseia na abordagem teórico-analítica da Análise Crítica do Discurso, assim como nos conceitos de biopolítica e necropolítica. Os resultados depreendidos com os três primeiros personagens analisados sinalizam a reprodução de discursos violentos, em que pessoas que vivem com hiv são ‘deixadas - e feitas - para morrer’. Já com o narrador-personagem (que é um dos protagonistas), percebemos o contrário - discursos de resistência com relação aos discursos violentos.
Palavras-chave:
Aids; Hiv; Biopolítica; Necropolítica; Resistência
Abstract
This article, carried out through a qualitative study, analyzes passages of a literary novel - O tribunal da quinta-feira - that involve the reactions of characters on issues related to hiv and aids. The objective is to investigate whether these passages maintain the sense of naturalization of people who with hiv, associated with ideology and power relations, or whether they contribute to a discursive change in order to eradicate the stigma that triggers discrimination and prejudice. The study is anchored on the theoretical-analytical approach of Critical Discourse Analysis, as well as on the concepts of biopolitics and necropolitics. The overall picture that emerge from the findings reveals that the first three characters analyzed indicate the reproduction of violent discourses, in which people who live with hiv are ‘left - or made - to die´. With the narrator-character (who is one of the protagonists), we noticed the opposite - discourses of resistance in relation to the violent discourses.
Keywords:
Aids; Hiv; Biopolitics; Necropolitics; Resistance
Resumen
Este artículo, resultado de una investigación cualitativa, tiene como objeto pasajes de una novela literaria - O tribunal da quinta-feira - que abordan las reacciones de los personajes ante cuestiones relacionadas con el VIH y el SIDA. El objetivo es investigar si estos pasajes mantienen el sentido de naturalización de las personas que viven con el VIH, asociadas a relaciones ideológicas y de poder, o si contribuyen a un cambio discursivo con el fin de erradicar el estigma que desencadena la discriminación y el prejuicio. El estudio se fundamenta en el enfoque teórico-analítico del Análisis Crítico del Discurso, así como en los conceptos de biopolítica y necropolítica. Los resultados obtenidos con los tres primeros personajes analizados señalan la reproducción de discursos violentos, en los cuales las personas que viven con el VIH son “abandonadas -y hechas- para morir”. En cambio, con el narrador-personaje (uno de los protagonistas), observamos lo contrario: discursos de resistencia frente a los discursos violentos.
Palabras clave:
VIH; SIDA; Biopolítica; Necropolítica; Resistencia
“A arte imita a vida” (Aristóteles)
1 PALAVRAS DE CONVITE
Durante os mais de 40 anos de epidemia de aids, observamos diversas mudanças significativas de tendência biologizante. Por exemplo, diferentemente do que víamos no início dos anos 1980, em que não havia tratamento ou, posteriormente, um combinado de medicações ainda precarizado e com vários efeitos colaterais, hoje em dia pessoas que vivem com hiv (PVHIV) podem ter a mesma expectativa (e qualidade) de vida que pessoas que vivem sem hiv. Embora ainda não haja cura para esse vírus, houve avanços significativos na compreensão de seus aspectos biológicos e clínicos. Depois do desenvolvimento de eficazes antirretrovirais (ARVs), PVHIV que tomam regularmente ARVs e têm a carga viral indetectável por pelo menos seis meses não transmitem o vírus por via sexual (Nota Informativa N. 5/2019 - Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis, do HIV/Aids e das Hepatites Virais do Ministério da Saúde).
No entanto, apesar dos enormes avanços clínicos e biológicos, o vírus hiv, sob o ponto de vista social e discursivo, continua sendo recorrentemente deslocado para a doença aids. É importante ressaltar que, no primeiro estágio após a transmissibilidade, uma pessoa tem o vírus hiv e, posteriormente, caso ela não adira ao tratamento, como era comumente visto no início da epidemia, desenvolve-se a aids - a doença propriamente dita. Porém, ainda existe uma ordem de discurso que relaciona PVHIV com a doença aids, um público que é muitas vezes visto e nomeado como ‘aidéticos’, ‘impuros’, como uma ameaça ao prazer do sexo, aos corpos e à vida.
De acordo com Foucault (2014FOUCAULT, M. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 24. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.), o conceito de ordem do discurso se caracteriza pela impossibilidade de falar sobre tudo em qualquer circunstância, pois na produção de enunciados há um jogo que compreende tabu sobre o objeto discursivo, ritual da circunstância e direito privilegiado ou exclusivo de fala, por exemplo. Essas (im)possibilidades sobre quem, quando e sobre o que se pode falar estão intrinsecamente relacionadas a relações de poder e ao desejo de ‘verdade’. Como o autor argumenta, o ordenamento social é composto por um sistema de instituições que impõem ‘verdades’ e (im)possibilidades de dizer, se necessário de forma violenta.
Resende (2017RESENDE, V. M. A análise excessiva de discurso crítica: reflexões teóricas e epistemológicas quase excessivas de uma analista obstinada. In: RESENDE, V; REGIS, J. F. S. (org.). Outras perspectivas em análise de discurso crítica. Campinas: Pontes, 2017.) argumenta que as ordens de discurso controlam e permitem ações discursivas em relação a áreas particulares de atividade humana, e os textos são o resultado dessas ordens. Para Fairclough (2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: Textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.), uma ordem de discurso não é composta por elementos de estruturas linguísticas - como substantivos ou frases, por exemplo -, mas por discursos, gêneros discursivos e estilos, que permitem, controlam e excluem possibilidades em diferentes esferas da vida social.
Desse modo, vê-se que houve pouco avanço social e discursivo sobre o hiv se comparado com o avanço clínico e biológico ao longo das últimas quatro décadas. Para Sontag (2001SONTAG, S. Ilness as Metaphor and AIDS as Its Metaphors. Picador, USA: 2001), ao invés de estar associada a uma reflexão cuidadosa que busca a compreensão sobre o tema, a aids está associada a diferentes imagens e metáforas com foco na transmissibilidade, fortemente ligada à poluição, à invasão, à ameaça, que vem para destruir pessoas. Assim, em função desse repertório discursivo instaurado numa ordem social que contribui para a manutenção do estigma, PVHIV acabam se culpando, sentem-se constrangidas e silenciam parte de suas vidas no que se refere à sexualidade, às relações afetivas, ao sofrimento, envolvendo questões psicossociais profundas, por medo da sanção e da exclusão social.
Um recente e significativo estudo (Pelton, Ciarletta, Wisnousky et al., 2021PELTON, M.; CIARLETTA, M.; WISNOUSKY, H; et al. Rates and Risk Factors for Suicidal Ideation, Suicide Attempts and Suicide Deaths in Persons with HIV: A Systematic Review and Meta-Analysis. General Psychiatry, 2021.) sobre o suicídio de PVHIV analisou 185 mil participantes em 14 países (incluindo o Brasil). De acordo com os autores, PVHIV têm cem vezes mais chances de morrer do que quem não vive com hiv, e o primeiro ano após o diagnóstico é alarmante devido ao alto número de suicídios. O estudo mostra que somente a medicação não é capaz de sanar os problemas que afetam PVHIV, elas também necessitam de programas psicossociais abrangentes, pois há pessoas que não aderem ao tratamento devido a fatores psicossociais - que incluem situações do dia a dia, como o medo de serem vistas na farmácia pegando o medicamento, por exemplo. Assim, o tratamento medicamentoso, aliado a uma ordem de discurso aberta, libertária e honesta, é essencial para o progresso de discussões e entendimentos sobre o tema - sem tabus, sem estigma e sem preconceito.
A partir dos anos 1980, diferentes cenários foram utilizados para discutir a epidemia de hiv e expandir agendas e discursos, como a política, a mídia, a escola, e as narrativas documentais e ficcionais, que tiveram um papel fundamental na produção de histórias - por meio de filmes, livros, peças teatrais, séries, podcasts, entre outras representações artísticas e culturais. Muitas dessas histórias foram desenvolvidas com o intuito de debater uma doença considerada como pena de morte, especialmente nas décadas de 1980 e até a metade da década de 1990, gerando uma visibilidade que afeta a subjetividade de leitores e espectadores. Em outros termos, essas narrativas podem ser vistas como a ‘realidade nua e crua’ - inclusive como uma forma de esclarecimento, sob o ponto de vista biológico, sobre uma doença tão temida, silenciada e estigmatizada como a aids.
Contudo, isso não significa que tal visibilidade seja necessariamente positiva. A maioria das produções audiovisuais sobre o tema remete a pacientes com aids durante os anos 1980 e 1990. Por exemplo, se fizermos uma rápida busca na internet, veremos narrativas fílmicas como Filadélfia, Clube de Compras Dallas, Pose, entre outras, que, apesar de toda a sensibilidade com questões de ordem subjetiva, ao mostrarem doentes em fase terminal afetam espectadores (e leitores), inclusive em relação ao que sabem sobre a doença. Por remeterem ao leito de um hospital (e à morte), percebemos que algumas dessas histórias podem borrar a diferença e o discernimento entre/sobre um paciente com aids nos anos 1980/1990 e uma pessoa que vive com hiv nos dias atuais. Ressaltamos que algumas dessas histórias foram produzidas neste século, mas insistem em voltar a um passado obscuro e desesperançoso, com pouca ou nenhuma conexão com os desafios que PVHIV enfrentam nos dias de hoje.
Dessa forma, no presente artigo escolhemos uma narrativa literária contemporânea como objeto de análise, pois a literatura não é somente uma forma de entretenimento; ela produz conhecimento e subjetividade, mas não os impõe, apenas incita e deixa o leitor livre para acatar, escolher e opinar sobre possíveis representações discursivas. Ainda, a arte é mais ‘livre’ que outros tipos de narrativa e o mesmo pode acontecer com seus discursos, sem modalizações e explorando possibilidades outras. O tribunal da quinta-feira é um romance escrito pelo autor brasileiro Michel Laub (Laub, 2016LAUB, M. O tribunal da quinta-feira. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.) e que contém um personagem gay que vive com hiv. Ao longo do enredo, o autor aborda diversos temas, como o preconceito, a amizade, a sexualidade, a (in)fidelidade, e a vingança. No início, o fato de esse personagem viver com hiv era mantido em segredo e, por causa de um ‘descuido’, esse segredo é revelado e disseminado. É importante ressaltar que no Brasil, de acordo com a lei 12.984, a discriminação contra PVHIV, assim como a disseminação da notícia de que alguém vive com o vírus (com o intuito de ferir sua dignidade) é crime com pena de 1 a 4 anos de prisão.
O enredo de O tribunal da quinta-feira conta com dois protagonistas - José Victor e Walter, que são amigos íntimos. Ambos têm a mesma profissão, idade e se conheceram no início da faculdade. E, como em muitas amizades próximas, os dois amigos trocam confidências - através de e-mails e mensagens de WhatsApp - com relatos, brincadeiras e ‘piadas internas’. Porém, se lidas por outras pessoas, num sentido literal essas mensagens podem ter uma interpretação bem diferente do que os dois amigos propunham. O problema veio à tona quando Teca, ex-esposa de José Victor, teve acesso às mensagens, incluindo segredos que desconhecia. Walter vive com hiv - poucas pessoas sabiam do fato - e José Victor também tinha outros segredos, que foram usados como subterfúgio para justificar a intolerância e o preconceito.
A partir da abordagem teórico-analítica da Análise Crítica do Discurso, analisaremos estritamente as passagens desse romance que envolvem comentários e reações de pessoas (outros personagens, assim como o narrador) sobre questões relacionadas ao hiv e à aids. Focaremos na doença aids ao invés de no vírus hiv por seu rápido deslocamento discursivo, como discutido anteriormente, e investigaremos se os trechos mantêm o senso de naturalização de PVHIV, associado a relações ideológicas e de poder envolvidas nesse deslocamento discursivo, ou se contribuem para erradicar o estigma que desencadeia o preconceito e a discriminação. Para a análise social, nos ancoramos nos conceitos de biopolítica e necropolítica propostos, respectivamente, por Foucault (2010FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade - curso no Collège de France, 1975-1976. Trad. de Maria Ermantina Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010., 2020) e Mbembe (2018MBEMBE, A. Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, politica da morte. Trad. de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018.), e explicitados na próxima seção.
2 ALGUMAS DISCUSSÕES
2.1 AIDS E A COMUNIDADE LGBTQIA+: UMA LONGA HISTÓRIA
Defert (2021DEFERT, D. Uma vida política: entrevistas com Philippe Artières e Eric Favereau com a colaboração de Josephine Gross. Trad. de Ernani Chaves. São Paulo, SP: N-1 edições, 2021.) argumenta que, até 1981, pessoas doentes podiam se apresentar para todos em qualquer momento e em diferentes esferas sociais: família, trabalho, escola, entre outras. Com o surgimento da aids, o autor - que perdeu seu marido (Michel Foucault) em 1984 devido a complicações causadas pela aids - afirma que houve uma fragmentação social que afetou pessoas que viviam com hiv e que morreram de aids naquela época. De acordo com Defert, diferentemente do que ocorria no caso de outras doenças, as pessoas só davam suporte a pacientes com aids se partilhassem as mesmas crenças, valores e riscos que eles. A partir dessa fragmentação, movimentos sociais começaram a aparecer para apoiar pacientes que se tornaram marginalizados, como fez o próprio Defert por meio de sua ONG AIDES. Nesse momento já podemos identificar a presença de um vírus discursivo, uma doença discursiva, associada à escolha, à liberdade, à sexualidade.
Diferentemente dos dias de hoje, quando a epidemia da aids começou histórias violentas entre homens e a aids se disseminaram e borraram a barreira entre a identidade homossexual e a identidade de paciente com aids (Defert, 2021DEFERT, D. Uma vida política: entrevistas com Philippe Artières e Eric Favereau com a colaboração de Josephine Gross. Trad. de Ernani Chaves. São Paulo, SP: N-1 edições, 2021.). Numa perspectiva simbólica, a epidemia da aids foi uma grande ‘mancha’ na masculinidade hegemônica nos últimos 40 anos, pois estava ligada a práticas relacionadas à identidade homossexual (Caetano; Nascimento; Rodrigues; 2018CAETANO, M.; NASCIMENTO, C.; RODRIGUES, A. Do caos re-emerge a força: AIDS e mobilização LGBT, in J. A. Green et al. (org.). História do movimento LGBT no Brasil. São Paulo, Alameda, 2018.). Esses autores afirmam que, para ter seus direitos civis reconhecidos, a comunidade LGBTQIA+ teve de buscar visibilidade no espaço público e lutar por suas identidades, assim como negar discursos que identificavam seus membros como doentes, pecadores ou criminosos. Em função dessas resistências, de lutas e de redes de solidariedade - que se fortaleceram com a epidemia da aids -, a saúde da população deixou de ser um território fixo da medicina para se tornar uma preocupação de políticas sociais e educacionais - em que grupos marginalizados começaram a ganhar mais voz e se conectar com o espaço democrático.
Com relação à sexualidade, Foucault (2021FOUCAULT, M. Sobre a sexualidade: cursos e trabalhos de Michel Foucault antes do Collège de France. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.) argumenta que ela sempre foi pública e se tornou objeto de textos literários ao longo da história; entretanto, há uma tentativa de mostrar somente o que é considerado ‘normal’ e ‘aceitável’, sendo a homossexualidade muitas vezes considerada um escândalo, com consequente desaprovação social. Nas sociedades contemporâneas foram conquistados muitos espaços para pessoas levantarem pautas que afetam sua (homo)sexualidade, mas ainda há um enorme silenciamento sobre o fato de viverem com hiv, devido ao estigma instaurado e mantido em uma ordem de discurso que estigmatiza, silencia e oprime PVHIV. Assim, com relação ao ‘normal’ e ‘aceitável’, vê-se que essas pessoas têm bem menos abertura para discutir seus desafios em diferentes instâncias da vida social.
2.2 BIOPOLÍTICA E NECROPOLÍTICA
Se recorrermos ao conceito contemporâneo de biopolítica, inicialmente desenvolvido por Michel Foucault (2010FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade - curso no Collège de France, 1975-1976. Trad. de Maria Ermantina Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010., 2020) e mais tarde discutido por outros autores de diferentes filiações epistemológicas (Agamben, 2010AGAMBEN, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2010., 2011; Hardt; Negri, 2005HARDT, M. NEGRI, A. Multidão: guerra e democracia na era do império. Rio de Janeiro: Record, 2005., 2006), veremos que a biopolítica está focada na vida. Desse modo, está relacionada a diferentes formas de controle sobre uma população: estatística, demografia, epidemiologia, biologia (higiene, alimentação, natalidade, mortalidade, longevidade, sexualidade, etc.), por meio de medidas normalizadoras, corretivas, terapêuticas, otimizadoras, disciplinadoras e excludentes (Lemke, 2018LEMKE, T. Biopolítica: críticas, debates e perspectivas. Trad. de Eduardo Tltheman Camargo Santos. São Paulo: Ed. Filosófica Politeia, 2018.). Assim, a biopolítica tem como estratégia ‘fazer viver’ e ‘normalizar’ corpos - há uma “responsabilização, culpabilização e obrigação quase moral de antecipar os riscos, de não adoecer [...]” (Caponi, 2014CAPONI, S. Viver e deixar morrer: Biopolítica, risco e gestão das desigualdades. Live and Let Die Biopolitics, Risk Management, and Inequalities. Revista Redbioética/Unesco, p. 27, 2014., p. 36), segundo a qual pessoas ‘normais’ devem ser constantemente saudáveis, ativas, produtivas e felizes, independente das circunstâncias. Aqui reside um dualismo perigoso, pois quem não se encaixa facilmente nos padrões demandados por essa lógica é considerado ‘anormal’. Segundo Caponi (2001), o ‘anormal’ é visto como patológico e monstruoso, e o ‘normal’ é esperado em nossas sociedades nos mais diversos contextos. Percebe-se, portanto, estratégias para que se tenha um sujeito padrão no sentido político, que será facilmente governado e dificilmente irá se opor ou criar resistência enquanto sua vida for biopoliticamente gerida.
Se estamos falando em vida, fazer viver, saúde, felicidade, bem-estar, há algumas questões que podem ser levantadas sobre onde reside o problema.
Como um poder como este pode matar, se é verdade que se trata essencialmente de aumentar a vida, de prolongar sua duração, de multiplicar suas possibilidades, de desviar seus acidentes, ou então de compensar suas deficiências? Como, nessas condições, é possível, para um poder político, matar, reclamar a morte, pedir a morte, mandar matar, dar ordem de matar, expor à morte não só seus inimigos, mas mesmo seus próprios cidadãos? Como esse poder que tem essencialmente o objetivo de fazer viver pode deixar morrer? Como exercer o poder de morte, como exercer a função da morte, num sistema político centrado no biopoder? (Foucault, 2005, p. 214).
A resposta para essas perguntas vem do próprio autor: o biopoder mata por meio de um racismo ‘moderno’, em busca de uma raça singular, única, pura, forte, homogênea, ‘normal’ (Foucault, 2005). Com isso, é possível isolar, excluir, combater e assassinar a ‘raça ruim’, a raça que não colabora, a raça que não ‘coopera’ para o bom andamento da sociedade: doentes, pobres, ‘fracassados’, ‘inúteis’, ‘supérfluos’, grupos marginalizados (ou minoritários). Para Foucault (2010), tirar a vida não significa somente a morte literal, mas outros tipos de morte em vida: a morte indireta, a morte simbólica, a rejeição, a discriminação, a opressão, a exclusão.
Como se vê, aqui reside o outro lado da moeda da lógica da biopolítica: ‘deixar morrer’. Em outros termos, sujeitos que não ‘colaboram’ e, de alguma forma, resistem a esse ‘fazer viver’, são deixados para morrer. Dentro dessa discussão, argumentamos que há uma linha tênue entre ‘deixar morrer’ e ‘fazer morrer’, que não pretendemos encerrar nesse trabalho. Brevemente, exemplificamos essa linha tênue com o retrato da pandemia do Covid-19 no Brasil. Jair Bolsonaro, o ex-chefe do executivo, agiu com absoluto descaso em diversos momentos durante a pandemia, desde o desencorajamento da vacina, passando por atrasos até a forma negligente e debochada de se referir aos doentes - imitando pacientes com falta de ar, ridicularizando o ‘fique em casa’ e os efeitos da vacina e nada fazendo para evitar centenas de milhares de mortes. Assim, vemos que Bolsonaro não somente deixou pessoas morrerem, mas também as fez morrer. Nesse momento, a necropolítica entra em cena, pois o ‘fazer viver’ perde força para o ‘deixar - ou fazer - morrer’.
É importante salientar, como discutido anteriormente por Foucault (2010FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade - curso no Collège de France, 1975-1976. Trad. de Maria Ermantina Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.), que as mortes podem ser simbólicas e indiretas, sem o término da vida literal, o que poderíamos chamar de ‘mortes em vida’. Com relação às PVHIV, percebemos ambos os lados da tecnologia biopolítica discutida anteriormente. Ao mesmo tempo que há ARVs (pelo menos no Brasil) para mantê-las vivas e produtivas - ‘fazer viver’ -, a medicação não é suficiente, pois vidas não são meramente restritas à esfera biologizante: elas são compostas de subjetividade e questões psicossociais entram em cena, nas quais o discurso é muitas vezes o protagonista. Por meio do discurso, instaura-se e mantém-se o estigma, o silêncio, a discriminação. Por meio do discurso, geram-se as mortes em vida. Por meio do discurso, também se desencadeia a morte literal.
De acordo com Mbembe (2018MBEMBE, A. Necropolítica. Biopoder, soberania, estado de exceção, politica da morte. Trad. de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018.), o campo da morte tem sido uma metáfora central para descrever medidas e ações violentas e letais, como aquelas vistas em estados de exceção. A necrogovernamentalidade tem um papel fundamental na organização de uma série de práticas, que incluem instituições, tecnologias, regulamentos e discursos (Franco, 2021FRANCO, F. L. Governar os mortos: necropolítica, desaparecimento e subjetividade. São Paulo: Ubu editora, 2021.), naturalizando mortes e as ‘justificando’ com base em objetivos racionais (Mbembe, 2018) - por exemplo, a eliminação (literal ou simbólica) de sujeitos que não foram ‘normalizados’, e, portanto, não se encaixam no padrão social, político, econômico e psicológico demandado pela biopolítica. Assim, vemos que a biopolítica e a necropolítica não são excludentes. Enquanto a primeira está interessada em normalizar corpos para o ‘bom andamento e progresso’ de uma sociedade, em que diferentes tipos de morte ocorrem, a segunda é intrinsecamente responsável por governar essas mortes, sejam elas literais ou simbólicas.
Ressaltamos que, por meio do discurso, também são construídas resistências e possibilidades de mudança de uma ordem de discurso que ‘deixa ou faz morrer’. É hora de expandir agendas e criar espaços para contestar discursos que instauram e mantêm velhas práticas e estruturas sociais nocivas à vida.
Na próxima seção, apresentamos a abordagem teórico-analítica em que se baseia este artigo.
2.3 ANÁLISE CRÍTICA DO DISCURSO
Quando falamos em análise do discurso, é importante salientar que se trata de um termo guarda-chuva que carrega diferentes perspectivas, dentre elas a Análise Crítica do Discurso (ACD), que abrange diferentes abordagens, como a cognitiva, desenvolvida por Van Dijk (1987, 1988, 1998), a histórica, teorizada por Wodak (1989WODAK, R. Introduction. In: WODAK, R (ed.). Language, Power and Ideology. Amsterdan: Benjamins, 1989. p. i-ix., 1996, 2000) e aquelas discutidas por Fairclough, que focam no capitalismo e em outras questões sociais (Batista Jr.; Sato; Melo, 2018).
De acordo com Fairclough (2019FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. 2. ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2019.), o discurso não é uma mera atividade individual, mas reflete, representa e constrói relações sociais, e por isso gera implicações - por exemplo, sujeitos sociais podem afetar vidas ao agir discursivamente no mundo. Assim, por meio do discurso surgem possibilidades que variam desde a tentativa de ‘normalização’ de grupos sociais até resistência a essa(s) tentativa(s) e à capacidade de mudança e transformação social.
No processo de ‘normalização’ das populações a serviço do capital, relações assimétricas de poder entram em cena e afetam grupos marginalizados, como PVHIV. Com relação a grupos dominantes, Van Dijk (2020) os considera ‘elites simbólicas’ que controlam a produção de gêneros discursivos dominantes, os tópicos a levantar e discutir, os currículos a estudar, os padrões morais, as crenças, ideologias e valores.
Em sua discussão sobre as elites simbólicas, Van Dijk nos apresenta o conceito de ‘ressalvas’, uma das categorias analíticas que utilizamos no estudo. Ressalvas (Disclaimers) são movimentos semânticos que têm o intuito de favorecer o ‘nós’ (grupos dominantes) e desqualificar o ‘eles’ (grupos marginalizados) (Van Dijk, 2020). O autor sugere uma classificação para as ressalvas: negação aparente; concessão aparente; empatia aparente; desculpa aparente; inversão (culpar a vítima) e transferência. Adaptamos alguns desses tipos com exemplos que criamos a partir de típicos comentários preconceituosos sobre PVHIV, tais como: Negação aparente: ‘Não temos nada contra PVHIV, mas...’ Concessão aparente: ‘algumas das PVHIV nem eram promíscuas, mas a maioria...’ Empatia aparente: ‘Com certeza PVHIV enfrentam problemas, mas....’ Ignorância aparente: ‘Não sabia disso, mas...’ Desculpa aparente: ‘ai, gente, desculpa, mas...’ Inversão (culpar a vítima): ‘eles que fizeram errado e somos nós quem pagamos o preço e somos vítimas dessa epidemia...’ Transferência: ‘eu não tenho problema que falem sobre hiv por aí, mas meus clientes podem ter preconceito e não gostar se souberem que um funcionário meu tem o vírus’.
Assim, textos escritos e orais são ferramentas para a manutenção do poder, e o discurso pode favorecer grupos hegemônicos, por exemplo, utilizando estratégias (veladas) a fim de convencer pessoas, como se tais discursos as fossem beneficiar (Van Dijk, 2020). Entretanto, como o autor aponta, o poder das ‘elites simbólicas’ é vulnerável e grupos marginalizados podem aceitar e naturalizar ou resistir e lutar contra grupos dominantes, como fazemos por meio da pesquisa realizada.
A análise textual - parte essencial da análise discursiva - também se volta para as ‘ordens de discurso’ que, como discutido anteriormente, não são compostas por estruturas linguísticas como substantivos ou frases, mas por discursos, gêneros e estilos, e que permitem, controlam e excluem possibilidades em áreas particulares da vida social (Fairclough, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: Textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.). Para o autor, estilos são sinônimos de ‘vozes’, que são ‘modos de ser’ ou identidades.
Com relação à inclusão e exclusão de vozes num determinado texto, Fairclough (2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: Textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.) discute os conceitos de intertextualidade e pressuposição - esta última também é utilizada como categoria analítica neste artigo. O autor argumenta que há um importante contraste entre intertextualidade e pressuposição, já que a primeira dá lugar para a diferença e traz outras vozes para o texto - onde se vê o diálogo entre a voz do autor do texto e outras vozes -, enquanto a última reduz a diferença e reforça o que é presumido pelo senso comum - diminuindo a possibilidade de diferentes vozes aflorarem. Ainda, vozes podem ser estrategicamente selecionadas para serem incluídas, re(contextualizadas) ou excluídas de um texto a fim de tirar proveito de diferentes discursos (Fairclough, 2003).
No que concerne às vozes excluídas de um texto (e de um discurso), Fairclough (2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: Textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.) argumenta que a capacidade de exercer poder social, dominação e hegemonia implica moldar e reforçar os argumentos do senso comum, e as pressuposições são protagonistas na instauração e manutenção de ideologias. Ele aponta diferentes tipos de pressuposições: a) existenciais, que são pressuposições sobre algo que existe, caracterizadas por marcadores de referentes definidos, como artigos definidos e demonstrativos (o/a/os/as, este/esta/isto, aquele/aquela/aquilo, entre outros); b) proposicionais, sobre o que é, pode ser ou será o caso; c) de valor, sobre o que é bom e desejável, e que podem ser caracterizadas por certos verbos como ‘ajudar’, por exemplo; d) lógicas, em que há implicações lógicas inferidas a partir de características da língua, ex.: ‘Estamos casados há cinco anos’ pressupõe que aquelas pessoas ainda são casadas; ‘ele é pobre mas honesto’ implica que pessoas pobres podem ser percebidas como desonestas, em função do contraste ‘mas’.
Com relação à ideologia e à pressuposição, sistemas de valor (o que se afirma ser bom ou desejável) podem ser vistos em discursos particulares - por exemplo, em um discurso neoliberal, características como ‘eficiência’ e ‘adaptabilidade’ são algo bom e desejável (Fairclough, 2003FAIRCLOUGH, N. Analysing discourse: Textual analysis for social research. London: Routledge, 2003.). O autor argumenta que pressuposições existenciais e proposicionais também podem ser vistas em discursos particulares - sobre o que existe, o que é o caso, o que é possível, o que é necessário, o que será o caso, e assim consecutivamente. Fairclough afirma que, em determinados momentos, todos esses tipos de pressuposição - e os discursos que os cercam - podem ser denominados como pressuposições ideológicas, por estarem relacionadas a questões de hegemonia, com o intuito de universalizar significados particulares para instaurar e manter a dominação - e esse é o trabalho ideológico, presumir ‘verdades’ inquestionáveis (Fairclough, 2003). O autor ainda argumenta que, para alegar que uma pressuposição é ideológica, analistas do discurso precisam argumentar por meio de outras teorias (e análises) sociais que vão além do texto, pois somente as evidências e análises textuais não são suficientes para afirmar se uma pressuposição é ou não ideológica. Aqui recorremos aos conceitos de biopolítica e necropolítica discutidos anteriormente, que ancoram as análises sociais deste trabalho.
Com relação à ideologia, Fairclough (2019FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. 2. ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2019.) argumenta que ideologias são significados e construções da realidade, e a naturalização é uma eficiente forma de manter convenções e reforçar ideias do senso comum. Em outros termos, por meio da naturalização e aceitação de ‘verdades’ sem contestá-las, como se fossem universais, pessoas reforçam as versões da realidade de grupos dominantes. É importante ressaltar, como o autor argumenta, que esse processo de naturalização pode ser muito sutil, velado, e não usar a força (física) para convencer pessoas.
Segundo Fairclough (1989FAIRCLOUGH, N. Language and power. London: Longman, 1989., p. 85, nossa tradução), “A ideologia é mais eficiente quando seu trabalho é menos visível. Se alguém se conscientiza de que um aspecto particular do senso comum está mantendo desigualdades e relações assimétricas de poder, a ideologia deixa de ser do senso comum e pode cessar de ter essa capacidade de manutenção assimétrica de poder [...] E essa invisibilidade é atingida quando ideologias são trazidas para o discurso não como elementos explícitos do texto, mas como pressuposições [...]”.
Vê-se essa sutileza na tecnologia biopolítica - por meio de um convite, um toque, uma correção -, aliada à oferta de atrativos racionais que afirmam estar ligados à segurança da vida (Foucault, 2010FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade - curso no Collège de France, 1975-1976. Trad. de Maria Ermantina Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.). Uma vez que ideologias são socialmente construídas e altamente naturalizadas, os sujeitos sociais podem ser vítimas de manipulação (Van Dijk, 2020). Para o autor, a posição social do manipulador é essencial para que a manipulação aconteça, e as relações de poder são protagonistas nesse cenário - pais têm poder sobre filhos, professores sobre alunos, políticos sobre eleitores, uma pessoa com maior conhecimento em determinada área sobre outra com menor conhecimento. Portanto, a manipulação - comumente observada em grupos sociais com relações assimétricas de poder - é uma forma de dominação materializada no discurso. É importante lembrar que o discurso por si só não é manipulador, mas sim o uso que sujeitos fazem dele em contextos específicos - e que inclui aspectos verbais e não verbais (Van Dijk, 2020).
No que concerne à hegemonia, Fairclough (2019FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. 2. ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 2019.) argumenta que esse conceito está relacionado à dominação política, cultural, econômica e ideológica de grupos sociais que constroem alianças para manter interesses específicos - afetando diferentes áreas da sociedade, como a educação, a família, a sexualidade. O autor afirma que as ordens de discurso são a base das lutas por hegemonia, uma vez que constroem articulações para a instauração e manutenção de poder. Entretanto, vale lembrar que “onde há poder, há resistências” (Foucault, 2020FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Trad. de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Albuquerque. 10. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020., p. 104), há espaços para resistência e possibilidades outras.
Após termos apresentado e discutido o arcabouço teórico, nos próximos parágrafos apresentamos nosso corpus, a análise e a discussão.
3 ANÁLISE E DISCUSSÃO: O QUE SABEMOS?
Como explicitamos na introdução, o enredo de O tribunal da quinta-feira tem dois protagonistas que são amigos próximos: Walter - que é gay e vive com hiv - e José Victor, heterossexual e ex-marido de Teca. No início, ninguém sabia que Walter vivia com hiv e por causa de um ‘acidente’ virtual, o segredo é disseminado. Os dois amigos trocam confidências (através de e-mails e mensagens de whatsapp) que envolvem questões sexuais e íntimas de ambos, assim como a expressão de revolta, que era materializada em brincadeiras, com relação ao fato de Walter descobrir que vivia com hiv. Teca teve acesso a essas confidências, que foram rapidamente disseminadas em redes sociais, e o fato de Walter viver com hiv se tornou público.
Analisamos estritamente as passagens do romance com os comentários e reações das pessoas (outros personagens, assim como o narrador-personagem) diante da descoberta de que Walter vivia com hiv. Usamos o termo ‘post’, pois é o mesmo termo utilizado ao longo do romance para se referir a esses comentários e reações - que foram feitos em redes sociais diversas, não especificadas no livro. Os três primeiros ‘posts’ analisados são anônimos e feitos por personagens que aparecem rapidamente no capítulo 23 - que apenas contém esses três ‘posts’. Os demais ‘posts’ são feitos por José Victor - narrador-personagem. Como já explicamos, as categorias analíticas ‘ressalvas’ e ‘pressuposições’ são usadas para a análise textual, e os conceitos de biopolítica e necropolítica são aplicados nas discussões que perpassam a instância social.
Autor do post: anônimo
Trecho: “Antigamente as pessoas estavam preocupadas com valores, principalmente os da comunidade sem nem falar na educação das crianças [...]. Não tinha violência e essa ladroagem de políticos. Só tem deputado ladrão [...]. Antigamente os mais velhos eram ‘respeitados’ nas ruas. Eu não tenho preconceito, mas tem uma questão de ‘respeito’ envolvida nisso não sei por que as pessoas negam [...]. Eu digo e não tenho medo hoje em dia é essa ‘nojeira’ que se vê” (p. 69).
No trecho “Antigamente as pessoas estavam preocupadas com valores, principalmente os da comunidade sem nem falar na educação das crianças [...]”, vê-se uma pressuposição de valor sobre o que é bom ou desejável, como ‘valores da comunidade’. Aqui também observamos a exclusão de vozes por meio da pressuposição ideológica: quem é a comunidade e que valores estão imbricados nesse discurso? Percebemos uma homogeneidade de valores e uma universalização de um tipo (único) de comunidade que reflete diretamente ‘na educação de crianças’.
Aqui podemos argumentar que, uma vez que os valores defendidos - conservadores e ‘de antigamente’ - afetam negativamente crianças e jovens, questões de gênero, sexualidade e diversidade precisam ser urgentemente discutidas nas escolas. Frisamos ainda que essa discussão não deve se dar dentro de um enquadre punitivo, ameaçador ou pecaminoso; ou seja, ela deve evitar o conservadorismo (aliado a grupos religiosos) que, por um lado, tenta ‘normalizar’ grupos sociais sobre como devem se comportar, e, por outro lado, tenta eliminar (de forma simbólica e/ou literal) os ‘anormais’, aqueles que escaparam das tentativas de ‘normalização’ que afetam o prazer, o corpo e a vida, como PVHIV, e que querem discutir sobre o tema. Nesse momento vemos mais uma vez que a biopolítica e a necropolítica não são excludentes e caminham juntas, pois há a tentativa de ‘normalização’ e regulação de determinados grupos sociais - ‘fazer viver’ -, assim como a eliminação (literal ou simbólica) de corpos que resistem a essa tentativa - ‘deixar ou fazer morrer’. Para responder a esses movimentos anti-vida, a produção de uma subjetividade ética, honesta e libertária deve começar desde cedo, nas escolas, com nossos jovens.
Na sequência, o personagem (anônimo) afirma: “eu não tenho preconceito, mas tem uma questão de ‘respeito’ envolvida nisso não sei por que as pessoas negam [...]”. Nessa passagem, percebemos alguns tipos de pressuposições. Podemos observar o uso da pressuposição existencial ao afirmar “as pessoas negam”. Aqui, o autor da passagem está constatando a existência de um ‘fato’, como se a ‘falta de respeito’ fosse uma verdade factual. Também notamos a pressuposição proposicional, quando o personagem afirma “mas tem uma questão de ‘respeito’”. Nesse momento, ele está apontando algo que é o caso, está em pauta e é proposto por ele - o ‘respeito’. Ao falar em ‘respeito’ e afirmar “não sei por que as pessoas negam”, vemos uma pressuposição de valor (sobre o que é bom e desejável). Aqui também observamos uma pressuposição ideológica sobre o que é ‘respeito’. Para um grupo conservador, respeito pode ser dois homens não se beijarem ou demonstrarem afeto em público, por exemplo, ou ainda PVHIV silenciarem, especialmente em público, sua condição reagente ao vírus. Por outro lado, para um grupo ético em busca de equidade social, respeito pode ser sinônimo de transparência e honestidade - a fim de discutir pautas relevantes que resistam a ordens de discurso geradoras de estigma, preconceito, discriminação e sofrimento humano, assim como contribuir para que ocorra uma mudança social, que é o que propomos fazer por meio desta análise e discussão.
Nesse post, há a presença de alguns tipos de “ressalvas” (movimentos semânticos): negação aparente, “eu não tenho preconceito, mas...”; ignorância aparente, “não sei por que as pessoas negam”; e inversão (culpar a vítima), “mas tem uma questão de respeito envolvida nisso”, como se viver com hiv fosse algo desrespeitoso e atrapalhasse o ‘bom andamento da sociedade’. Para Van Dijk (2020), esses dispositivos chamados de ‘aparentes’ podem preservar a face, as impressões pessoais, tornando-as ‘positivas’, e enfatizar características negativas do Outro - aqui observadas pelo contraste ‘mas’.
Autor do post: anônimo
Trecho: A inflamação da sensualidade e a torpeza que recebe em si mesma a recompensa que convinha ao seu erro - Romanos 1:27 [...]. As acusações e o envio dos mensageiros para destruir a Cidade - Gênesis, 19:13 [...]. O castigo da espada, da fome, da peste colocada em tua presença - Crônicas 20:9 [...]. A abominação que transforma os réus em réus da morte - Levítico 18:22” (p. 69).
Com relação a essas passagens bíblicas utilizadas pelo autor do post para se referir a PVHIV, observamos pressuposições existenciais com frases e termos - e o uso de artigos definidos - que caracterizam algo que existe: “a inflamação da sensualidade”, “a torpeza”, “o castigo” e “a abominação”. Nas passagens “que convinha ao seu erro” e “a abominação que transforma os réus em réus da morte”, veem-se pressuposições de valor, pois tanto o “erro” como as consequências da “abominação” estão relacionadas a algo que não é bom e desejável. O ‘erro’ não é desejável e se presume que deve ser ‘consertado’ e ‘normalizado’, e a ‘abominação’ deve ser evitada por comportamentos ‘normais’ que não a causem, caso contrário tais corpos serão eliminados - “réus da morte”.
As pressuposições de valor também constituem pressuposições ideológicas, e aqui recorremos ao conceito de biopolítica, que envolve a ‘normalização’ dos corpos. O texto é carregado de passagens bíblicas, que têm o intuito de determinar o que é ‘certo’ e ‘normal’ ou ‘errado’ e ‘anormal’. Corpos que fogem da ‘normalidade’ são feitos ou deixados para morrer. Por exemplo, vê-se que o personagem relaciona a sensualidade - e a sexualidade - a um erro quando afirma “A inflamação da sensualidade [...] que convinha ao seu erro”.
Posteriormente, a necropolítica entra em cena com “o envio de mensageiros para destruir a Cidade”. Em outros termos, PVHIV são destruidoras e devem morrer com “o castigo da espada, da fome, da peste”. Aqui reside a metáfora de Sontag (2001SONTAG, S. Ilness as Metaphor and AIDS as Its Metaphors. Picador, USA: 2001) que discutimos no início do texto, em que PVHIV são representadas como invasores que vieram para destruir o mundo. Apesar de o termo ‘peste’ já se ter diluído e ter sido substituído por vocábulos menos fatalistas ao longo dessas quatro décadas, percebemos que os preconceitos contra PVHIV apenas se tornaram mais sutis e velados, inclusive por causa de certo protecionismo jurídico. Entretanto, a produção de subjetividades que leva grupos sociais a deslocarem rapidamente o vírus hiv para a doença aids, e consequentemente para a metáfora peste, é mantida, embora atualmente textualizada em outros termos. Assim, PVHIV ainda são feitas para morrer de forma literal ou simbólica - e o discurso é um protagonista nessas ações, como visto nessas passagens bíblicas -, pois destroem o prazer, os corpos e as vidas.
Autor do comentário: anônimo.
Trecho: “um arrombado se orgulha de sair por aí passando doença para os outros e o outro arrombado incentiva esse comportamento [...]. Eu não sou preconceituoso nem nada não estou nem aí para o que cada um faz do rabo mas, tudo tem limite depois eles não sabem porque são perseguidos [...]. A TV é podre só mostra desgraça depois não sabem porque o povo é ignorante e tem tanta nojeira por aí tanta depravação [...]. Depois não sabem porque eles apanham alguém vai lá e mata esses arrombados de merda” (p. 69-70).
Nessa passagem podemos falar em pressuposições ideológicas desencadeadas pelo termo ‘arrombado’. Primeiro, se presume que quem faz sexo anal (com regularidade) é arrombado. O termo carrega uma conotação pejorativa para desqualificar quem faz uso desta prática sexual (majoritariamente homens com homens, já que o sexo anal praticado por um homem com uma mulher é altamente valorizado dentro da heteronorma). Ao falar “outro arrombado” se reforça a universalização de uma consequência (novamente pejorativa) para homens que fazem sexo anal com outros homens. Ainda, ‘arrombados’ são acusados de espalhar doenças e destruir o mundo, como visto na passagem “se orgulha de sair por aí passando doença para os outros”.
Quando o personagem afirma “eu não sou preconceituoso [...] mas tudo tem limite depois eles não sabem porque são perseguidos”, temos um movimento semântico de ‘negação aparente’, em que o personagem nega ser preconceituoso e usa o contraste ‘mas’ e a estratégia de inversão (culpar a vítima) ao afirmar “depois eles não sabem porque são perseguidos”. Na sequência, percebemos o uso de pressuposições proposicionais que tratam sobre o que é, pode ser ou será, evidenciadas na passagem “A TV é podre só mostra desgraça” e “o povo é ignorante”.
Também temos uma pressuposição de valor quando o personagem afirma “tem tanta nojeira por aí tanta depravação”. Aqui ele está atribuindo valor a comportamentos que são - ou não - desejáveis e corretos. Nesse momento se faz o uso biopolítico de ‘anormalidade’ discutido anteriormente. E, por fim, apontamos a evidente necropolítica presente na passagem “alguém vai lá e mata esses arrombados de merda” - que remete à extinção (neste caso literal) de corpos que não se encaixam no padrão político, social e ideológico determinado pela biopolítica.
Autor do comentário: narrador-personagem
Trecho: “Todo fascista julga estar fazendo o bem. Todo linchador age em nome de princípios nobres. Toda vingança pessoal pode ser elevada a causa política [...] para se tornar o sintoma vivo de uma injustiça histórica e coletiva baseada em horrores permanentes e imperdoáveis” (p. 72).
Como afirmamos no início do trabalho, não tratamos dos ‘motivos’ pelos quais o discurso de ódio contra uma pessoa que vive com hiv ocorre, pois jamais legitimaremos qualquer tentativa de justificar o preconceito e a discriminação. Nessa passagem, vê-se o contrário do que analisamos nas passagens anteriores. Aqui reside um discurso de defesa proferido por José Victor, narrador-personagem, que é amigo de Walter, personagem que vive com hiv.
Quando ele afirma “todo fascista julga estar fazendo o bem”, percebemos uma pressuposição de valor com relação ao que é bom e desejável. O uso da biopolítica é uma estratégia crucial para fascistas, pois através das práticas de ‘fazer viver e deixar morrer’ eles estarão ‘protegendo’ a raça ‘boa’ e ‘próspera’ ao eliminar a raça ‘ruim’, ‘anormal’, que ‘contamina’ e ‘estraga’ o ‘bom andamento’ de toda uma sociedade. Como Foucault (2010FOUCAULT, M. Em defesa da sociedade - curso no Collège de France, 1975-1976. Trad. de Maria Ermantina Galvão. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010., p. 215) argumenta: “quanto mais espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mais eu - não enquanto indivíduo, mas enquanto espécie - viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar”.
No trecho “Todo linchador age em nome de princípios nobres”, vemos um exemplo do deslocamento da biopolítica para a necropolítica. O vocábulo ‘linchador’ remete a práticas violentas contra alguém que desencadeia sua morte - literal ou em vida (simbólica). Porém, essas práticas violentas podem ser ‘justificadas’ e legitimadas “em nome de princípios nobres”. Aqui também reside tanto uma pressuposição de valor - sobre o que é bom e desejável -, quanto uma pressuposição ideológica, pois a afirmação aponta o que um grupo social particular - os fascistas - afirma serem ‘princípios nobres’, a partir de sua base ideológica compartilhada.
No trecho “Toda vingança pessoal pode ser elevada a causa política”, percebemos o movimento do individual para o social e o político. E novamente, vê-se uma crítica (pelo narrador-personagem) à instauração de um viés ideológico particular por atores individuais (e grupos sociais) a fim de universalizar crenças específicas. O discurso do narrador-personagem demonstra uma tentativa de resistência aos ‘movimentos políticos’ baseados na instauração e manutenção de generalizações que podem afetar outros grupos sociais e desencadear preconceito e discriminação.
Autor do comentário: narrador-personagem
“Talvez tudo fosse diferente se os termos aqui usados não fossem ofensivos, e eu me limitasse a fazer a descrição da etiologia, curva epidêmica e demais dados históricos e científicos de uma doença.” (p. 81). “[...] há uma vasta nomenclatura técnica para explicar a saúde atual de Walter, o perfil de um paciente segundo protocolos do Ministério da Saúde, idade, estrato socioeconômico, situação familiar e emocional, o que esse paciente fez ou deixou de fazer antes de se apresentar diante de um médico, do melhor amigo ou de si mesmo” (p. 86).
No trecho “Talvez tudo fosse diferente se os termos aqui usados não fossem ofensivos, e eu me limitasse a fazer a descrição da etiologia, curva epidêmica e demais dados históricos e científicos de uma doença”, vê-se uma pressuposição de valor, pois o discurso meramente biológico é visto como bom e desejável. Aqui reside um cenário irreal, em que questões psicossociais não são/podem ser discutidas e o silenciamento de corpos e vidas deve prevalecer, como se não houvesse estigma e preconceito. Quando se usam termos científicos da esfera biologizante, as discussões são aceitas em distintas ordens de discurso. A partir do momento que outras pautas são problematizadas - questões politicas, sociais e discursivas -, o ‘respaldo’ e a ‘credibilidade’ conferidos pelas ciências ‘duras’ são deixados de lado e muitas vezes essas discussões atravessam o limite ‘aceitável’ de elites simbólicas que instauram e mantêm ordens de discurso, gerando rejeição e discursos de ódio.
Esse cenário é visto na biopolítica, que está relacionada a diferentes formas de controle sobre uma população, e também é o que vemos no trecho “um paciente segundo protocolos do Ministério da Saúde, idade, estrato econômico, situação familiar e emocional”. Vê-se, portanto, que a biopolítica é capaz de gerir (quase) tudo, incluindo a situação emocional de uma pessoa, e a necropolítica entra em cena quando houver um ‘escape’ biopolítico.
Assim, PVHIV são geridas biopoliticamente quanto aos aspectos biológicos do vírus, pois no Brasil há ARVs disponíveis gratuitamente pelo SUS. Entretanto (e novamente), nessa lógica, as questões psicossociais são geridas de forma individual, o que corresponde a estratégias de sociedades capitalistas avançadas e de uma governamentalidade neoliberal. A partir do momento em que os padecimentos ‘individuais’ de PVHIV são levados à esfera política, instauram-se discussões relativas a formas de resistência e de mudança, o que desestabiliza as ordens de discurso organizadas para manter velhas relações de poder, estruturas e práticas sociais desiguais. Desse modo, o silenciamento de PVHIV é estratégico e se torna benéfico para manter uma sociedade ‘saudável’, assim como diferentes tipos de controle (estatístico, epidemiológico etc.) são utilizados a fim de manter corpos ‘úteis’ e produtivos em uma perspectiva biologizante.
Autor do comentário: narrador-personagem
Trecho: “[...] A desconfiança de que havia se contaminado no Rio passava pela versão que Walter reforçou para mim no restaurante do caranguejo: a de que nunca deixou de se proteger na sauna. De que não era ignorante, idiota ou suicida [...] (p. 88). [...] Walter é portador do vírus da a-i-de-esse, ou da A.I.D.S./S.I.D.A., um soropositivo como se prefere dizer hoje, termo ainda mais correto na busca por tirar um pouco da gravidade da situação, ao menos para quem não está diretamente envolvido nela, para mim foi o início de um pesadelo. [...] (p. 140).
Nesta passagem, observamos uma pressuposição proposicional quando o autor afirma que Walter dizia que “não era ignorante, idiota ou suicida”, por meio do uso do verbo ser, que indica pressuposição sobre algo que é, pode ser ou será o caso. Também há uma pressuposição lógica que presume que quem não se protege é suicida, pois contrair o vírus hiv implica morte certa. Observamos também uma pressuposição de valor sobre o que é bom e desejável - práticas sexuais com proteção. Assim, o personagem que vive com hiv está imbricado em ordens de discurso que ameaçam e punem. Aqui reside grande parte do estigma do início da epidemia que tornou práticas sexuais desprotegidas sinônimo de pena de morte em função da suposta letalidade do vírus hiv que, no enquadre do estigma, é discursivamente deslocado para a doença aids.
Ao realizar esse deslocamento discursivo para um “portador do vírus da a-i-de-esse, ou da A.I.D.S./S.I.D.A.”, vê-se uma ênfase na “gravidade da situação” por meio de uma pressuposição ideológica - o que criou todo um discurso violento, pejorativo e letal em torno do vocábulo ‘aids’ ao longo desses anos, como se referir a PVHIV como ‘aidéticas’. Aqui também vemos o funcionamento da biopolítica por meio de medidas corretivas, normalizadoras, disciplinadoras, terapêuticas e otimizadoras (Lemke, 2018LEMKE, T. Biopolítica: críticas, debates e perspectivas. Trad. de Eduardo Tltheman Camargo Santos. São Paulo: Ed. Filosófica Politeia, 2018.), como a adoção de práticas sexuais protegidas, o uso de ARVs, (uma espécie de segunda chance aos suicidas), o controle estatístico e epidemiológico, assim como a sofisticação dos medicamentos. A biopolítica também utiliza práticas excludentes, no caso do hiv deixando morrer todos os corpos que não se previnem, não se testam e não aderem ao tratamento (mesmo que seja em função do preconceito e do estigma).
Ressaltamos que em momento algum estamos fazendo qualquer tipo de apologia a práticas sexuais desprotegidas; o que estamos fazendo, ao contrário, é problematizar uma ordem de discurso violenta, baseada na ameaça, no medo e na punição de corpos marginalizados, assim como propor uma educação (em diferentes esferas sociais) honesta, libertária e ética.
4 PALAVRAS (NUNCA) FINAIS
A partir das passagens analisadas, pudemos perceber que os primeiros três posts evidenciaram o lado ‘deixar morrer’ da biopolítica, assim como o ‘fazer morrer’ da necropolítica. De acordo com os discursos de personagens anônimos, PVHIV são ‘anormais’, aberrações que poluem outras pessoas e estragam o ‘bom andamento’ da sociedade; portanto, essas pessoas devem ser eliminadas. Diante de certo protecionismo jurídico, essa eliminação tornou-se mais sofisticada, protagonizada por discursos velados. Assim, uma das razões para escolhermos uma narrativa literária é que a arte não tem a obrigação e tampouco o intuito de modalizar qualquer discurso. Os três primeiros personagens analisados representam as elites simbólicas que constituem violentas ordens de discurso discutidas anteriormente, nas quais há um deslocamento discursivo - do hiv para aids -, não discernindo o vírus da doença, tampouco buscando compreender os desafios que PVHIV enfrentam nos dias atuais. Em muitas esferas sociais, discursos produzidos por elites simbólicas são modalizados, mas as crenças e ideologias são as mesmas que os personagens do livro representam - PVHIV não são dignas de viver.
Os outros posts analisados provêm do discurso do narrador-personagem, que tem uma postura totalmente diferente daquela dos primeiros personagens. Ele começa problematizando os discursos violentos dos demais personagens (como aqueles que analisamos anteriormente), comparando-os a discursos fascistas, em que há um significativo esforço para eliminar os ‘anormais’ e ‘inferiores’ a fim de ‘higienizar’ uma raça e mantê-la homogênea, ‘limpa’, ‘pura’ e ‘forte’. Posteriormente, o narrador-personagem problematiza o controle biológico sobre PVHIV. Esse cenário é parte da biopolítica, em que o foco ainda é a esfera biologizante, a fim de manter PVHIV saudáveis, ‘úteis’ e produtivas por meio da indústria farmacológica, e ‘normalizar’ corpos ‘anormais’. Reconhecemos o valor que os medicamentos têm na vida das pessoas e ressaltamos que nossa intenção não é desqualificar os tratamentos medicamentosos. Entretanto, o uso individual de medicação não é capaz de solucionar as questões psicossociais e materiais que afetam diariamente PVHIV. Posteriormente, o narrador-personagem sinaliza a presença de um vírus discursivo, uma doença discursiva, e visibiliza os desafios que PVHIV enfrentam atualmente - majoritariamente ligados ao estigma, ao preconceito e à discriminação.
A partir das passagens analisadas, pudemos concluir que, ao mesmo tempo que PVHIV são biologicamente incluídas na lógica do ‘fazer viver’ da tecnologia biopolítica, elas também são ‘deixadas para morrer’ caso não atinjam as expectativas que elites simbólicas - representadas tanto por membros de governos como por quaisquer outros grupos dominantes da esfera econômica, política e social - determinam que elas atendam. Assim, quem não se adaptar por qualquer razão a essa lógica biopolítica é rapidamente deixado de lado - para morrer. Essas expectativas produzem sujeitos geridos por um padrão que, não por acaso, está associado à lógica neoliberal, sujeitos que tendem a ser enfraquecidos no que concerne a sua capacidade de resistência. Em outros termos, a biopolítica está interessada em produzir corpos ‘saudáveis’, ‘úteis’ e produtivos, assim como minorar as forças de sujeitos sociais no sentido político.
Desse modo, enquanto os três personagens anônimos mantêm o senso de naturalização de PVHIV, associado a relações ideológicas e de poder, o narrador-personagem contribui para uma mudança discursiva, em que se almeja a erradicação do estigma que desencadeia o preconceito e a discriminação. Ressaltamos que, da mesma forma que elites simbólicas podem instaurar e manter ordens de discurso que legitimam ou toleram diferentes tipos de violência e morte, também há a possibilidade de construção de resistências, nas quais se rearticulam novas combinações em diferentes sistemas discursivos. E essa foi nossa intenção neste trabalho: identificar o processo de exclusão de vozes por meio de análise textual, assim como acender discussões que contestem ordens de discurso e busquem a expansão de agendas democráticas em diferentes esferas políticas e sociais.
No que concerne à limitação do estudo, apontamos o foco em PVHIV de modo geral, sem distinção de gênero, raça e classe, por exemplo. Sugerimos para futuras pesquisas, portanto, um recorte desse grupo marginalizado - PVHIV - a fim de investigar os desafios que cada subgrupo enfrenta nos dias de hoje.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
19 Fev 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
01 Nov 2023 -
Aceito
20 Dez 2023