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O HERÓI EM NARRATIVAS ORAIS DE ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA

REPRESENTATION OF THE HERO IN ORAL NARRATIVES BY HOMELESS ADOLESCENTS

LE HÉROS DANS LES RÉCITS ORAUX D’ADOLESCENTS RENCONTRÉS DANS LES RUES

EL HÉROE EN NARRATIVAS ORALES DE ADOLESCENTES QUE VIVEN EN LAS CALLES

Resumo

Neste artigo analisamos como é construída a figura do herói em narrativas orais de adolescentes em situação de rua. As narrativas, produzidas de forma espontânea a partir de contosde-fadas lidos por uma pesquisadora, foram gravadas e transcritas. O estudo fundamentou-se na Análise do Discurso francesa e na Psicanálise, e concentrou-se em duas narrativas de dois irmãos, um menino e uma menina, adolescentes, que, mesmo em grupos distintos, narraram histórias a partir do mesmo conto-de-fadas: “João e Maria”. A construção do herói e outros indícios permitiram que elaborássemos interpretações sobre a dinâmica de vida desses adolescentes, sua estrutura familiar, o preconceito que experimentam. Concluímos que essas narrativas permitiram que os sujeitos falassem de si, inconscientemente e de forma mascarada, especialmente no que diz respeito a conteúdos interditados psíquica ou ideologicamente, e que a figura do herói é construída a partir de um processo de identificação que possibilita que esses sujeitos se vejam como autores de sua história.

Palavras-chave:
adolescência; menor abandonado; herói; narrativa de ficção; análise do discurso; psicanálise

Abstract

This article analyses the figure of the hero in oral narratives by homeless adolescents. These narratives, based on fairy tales read by a researcher and produced spontaneously, were tape-recorded and transcribed. The data were analyzed based on French Discourse Analysis, as well as on Psychoanalysis, focusing on two narratives produced by two adolescent siblings, a girl and a boy, who told stories based on the same fairy tale: “Hansel and Gretel”. The construction of the hero across both narratives allowed us to elaborate interpretations about the dynamics of these adolescents’ lives, their family structure, and the prejudices they experienced. We concluded that such narratives enabled the teenagers to talk about themselves in an unconscious and concealed way, especially with respect to psychologically or ideologically interdicted contents, and that the figure of the hero is constructed on the basis of an identification process, in which the subjects see themselves as the authors of their own story.

Keywords:
adolescence; homeless adolescents; hero; fictional narrative; discourse analysis; psychoanalysis

Résumé

On a fait des recherches à propos de la manière selon laquelle est construite la figure du héros dans les récits oraux faits par des adolescents rencontrés dans les rues. Les narratives, produites de manière spontanée, à partir de contes de fées lus par une chercheuse, furent enregistrées et transcrites. L’analyse s’est fondée dans l’Analyse du Discours et dans la Psychanalyse, et s’est concentrée dans deux récits faits par deux frères, un garçon et une fille adolescents, lesquels, malgré leur place dans des groupes distintcs, ont raconté des histoires à partir du même conte de fée: “Jean et Marie”. La construction du héros et d’autres indices nous ont permis d’élaborer des interprétations sur la dynamique de vie de ces adolescents, leur structure familiale, et le préjugé qu’ils éprouvent. Nous avons conclu que ces récits ont permis aux sujets de parler d’eux-mêmes, inconsciemment, et d’une manière masquée, surtout en ce qui concerne les contenus interdits psychiquement ou idéologiquement, et dont la figure du héros est construite à partir d’un procès d’identification qui permet à ces sujets de se voir comme auteurs de leur histoire.

Mots-clés:
adolescence; mineur abandonné; héros; récit de fiction; analyse du discours; psychanalyse

Resumen

En este artículo analizamos la construcción de la figura del héroe en narrativas orales de adolescentes que viven en las calles. Se han producido las narrativas de forma espontánea a partir de la lectura de cuentos-de-hadas por una investigadora; se las grabaron y las transcribieron. Lo analizado se ha fundado en el Análisis del Discurso francés y en la Psicoanálisis, y se ha concentrado en dos narrativas de dos hermanos, un niño y una niña adolescentes, que, aunque en grupos distintos, han tenido como punto de partida el mismo cuento-de-hadas: “Juan y María”. La construcción del héroe y otros huellas han permitido interpretaciones acerca de la dinámica de vida de esos adolescentes, su estructura familiar y el prejuicio que sufren. Concluimos que esas narrativas han sido el camino por el cual los sujetos se han dado a conocer, de manera inconsciente y de forma velada, sobre todo en lo que respecta a contenidos interdictos por razones psíquicas o ideológicas, y que la figura del héroe se constituye desde un proceso de identificación que posibilita a que esos sujetos se vean a sí mismos como autores de su historia.

Palabras-clave:
adolescencia; niño desamparado; héroe; narrativa de ficción; análisis del discurso; psicoanálisis

Ser capaz de tolerar tudo o que podemos encontrar em nossa realidade interior é uma das grandes dificuldades humanas, e um dos importantes objetivos humanos consiste em estabelecer relações harmoniosas entre as realidades pessoais internas e as realidades exteriores.

(Winnicott)

Agora eu era herói, e o meu cavalo só falava inglês...

(Chico Buarque)

1 INTRODUÇÃO

Herói. Sua definição, ou mesmo sua simples menção em quaisquer contextos, remete-nos prontamente a feitos extraordinários, personagens inesquecíveis, épocas longínquas e, principalmente, à nossa imaginação, nossos devaneios; ou seja, nossas fantasias.

Tangenciando a psicanálise, temos que as fantasias, na nossa vida mental primitiva, representam algumas funções que posteriormente serão assumidas pelo pensar. Freud (1915, citado em SEGAL, 1975SEGAL, H. Introdução à obra de Melanie Klein. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1975.), descreve as fantasias inconscientes que as pessoas têm sobre elas próprias, e afirma que a natureza dessas fantasias e o modo como elas se relacionam com a realidade externa é determinante do caráter do indivíduo. Isto nos possibilita ver a fantasia, não simplesmente como uma fuga da realidade, mas sim como um constante e inevitável acompanhamento de experiências reais com as quais ela interage todo o tempo. Corroborando Freud, Klein (1958, apud SEGAL, 1975) afirma que a estrutura da personalidade é amplamente determinada pelas mais permanentes fantasias que o ego tem sobre si mesmo e sobre os objetos que contém.

Assim, a fantasia é o resquício mais palpável do qual podemos nos utilizar para chegar ao nosso inconsciente. Pesquisas têm mostrado, por outro lado, que um dos lugares mais adequados para que essas fantasias aflorem são as narrativas (TFOUNI e CARREIRA, 1996______; CARREIRA, Alessandra F. Narrativas de Crianças de Rua Brasileiras: uma forma de falar de si mesmo. Cadernos de pesquisa - NEP, ano 2, n. 2, p. 1-12, 1996.; CARREIRA, 1996; PERRONI, 1992PERRONI, Maria C. Desenvolvimento do discurso narrativo. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1992.). Nesse sentido, investigando a construção da figura do herói, estamos perfazendo um caminho retrógrado da busca de nós mesmos: quem somos, quem fomos e quem gostaríamos/desejaríamos ser. No presente trabalho, investigamos a construção da figura do herói em narrativas orais produzidas por crianças e adolescentes em situação de rua. A análise dos dados foi efetuada através da interpretação de indícios lingüístico-discursivos presentes nas narrativas, tendo por embasamento teórico e metodológico a Análise do Discurso (AD) de linha francesa e a psicanálise. Desse modo, foi possível atingir lugares da subjetividade dos sujeitos: seus anseios, dinâmica de vida, temores, sentimentos, afetos e dúvidas, que muitas pistas podem fornecer sobre sua história social e pessoal.

A fim de esclarecer melhor, em nível teórico, os fundamentos e as implicações dessa investigação, apresentaremos a seguir uma introdução ao discurso narrativo (mais especificamente o conto de fadas) e à figura do herói. Nas demais seções, apresentaremos os dados referentes à pesquisa propriamente dita.

2 ASPECTOS HISTÓRICOS

Um dos conceitos sobre discurso narrativo mais utilizados nos últimos anos em Lingüística é o de Labov e Waletzky (1967LABOV, William; WALETZKY, J. Narrative Analysis: Oral Versions of Personal Experience. In: HELM, J. (Ed.). Essays on the verbal and visual arts: procedings of the 1966 Annul Spring Meeting of the American Ethnological Society. Seatle; London: University of Washington Press., 1967.), que definem narrativa como “... um método de recapitulação da experiência passada por meio de uma relação de correspondência entre uma seqüência verbal de cláusulas e a seqüência de eventos que realmente ocorreram” (p. 20-21). Pode-se notar que os autores aí salientam aspectos formais e estruturais de apenas um tipo de narrativa, a saber, os relatos de experiência pessoal, pois afirmam que essa deve apresentar uma seqüência temporal que recapitule eventos que efetivamente ocorreram. Diante disso, as narrativas de ficção acabaram sendo excluídas de algumas pesquisas sobre o discurso narrativo, justamente por não apresentarem esse compromisso com a realidade.

Partindo de uma outra perspectiva, a sócio interacionista, De Lemos (1991DE LEMOS, Claudia T. G. Prefácio. In: PERRONI, M. C. O desenvolvimento do discurso narrativo. São Paulo, SP: Martins Fontes, 1991.) aponta uma limitação desses estudos mais tradicionais, afirmando que apresentam o discurso narrativo sempre desvinculado do processo de aquisição de linguagem, no qual ele está inevitavelmente inserido. Para essa autora, é bem possível que os estudos de aquisição da linguagem reproduzam ou importem da Lingüística o que lhes impede de tratar o percurso da criança pela narrativa como um lugar empírico privilegiado para compreender a natureza do processo a que a criança é submetida pela própria linguagem.

Para a Análise do Discurso francesa (AD), o discurso narrativo também não pode ser definido no nível estrutural, pelos seguintes motivos: o discurso narrativo, tal como todo discurso, estaria inserido em um campo de conhecimento, definido na confluência de três domínios: a Lingüística (pela constituição dos processos sintáticos e o predomínio do simbólico), o Materialismo Histórico (pela interpelação ideológica e o conceito de posição de sujeito, decorrente da luta de classe) e a Psicanálise (pelo modo como trabalha a ideologia relacionada materialmente ao inconsciente e a uma teoria da subjetividade).

O modo que a AD possui de trabalhar com a intersecção desses campos tão heterogêneos é através da noção de memória. Segundo Orlandi (1999ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 1999.) a memória deve ser tratada como interdiscurso, como o que fala antes, em outro lugar, ou, ainda, como aquilo que torna disponíveis “dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada” (p. 31). Dessa forma, o interdiscurso remete o dizer a uma memória que permite identificá-lo em sua historicidade, pondo em evidência compromissos políticos e ideológicos.

De acordo com Pêcheux (1975PÊCHEUX, M. Les verités de la palice. Maspero: Paris, 1975.), o interdiscurso é da ordem do saber discursivo e, por isso, memória afetada pelo esquecimento, o qual se torna fator estruturante na relação estabelecida entre interdiscurso e intradiscurso. Esse autor ressalta o caráter inconsciente pelo qual o sujeito é afetado pela ideologia, o que vai determinar a identificação com determinadas posições de classe, e, portanto, os lugares a partir dos quais vai produzir seu discurso.

O autor argumenta, ainda, que o esquecimento é parte da constituição dos sujeitos, e as ilusões derivadas dele são necessárias para que a linguagem funcione nesses mesmos sujeitos e na produção de sentidos. O discurso, portanto, constitui-se como lugar de construção de sentidos que permite identificação e inter-relação com o inconsciente.

Como decorrência dos dois esquecimentos postulados por Pêcheux (o no. 1, da ordem da ideologia e do inconsciente; e o no. 2, da ordem da enunciação), temos que o sentido nunca pode ser dito por inteiro, como uma totalidade. Ele sempre se diz aos pedaços, de maneira deslocada, provocando aquilo que Pêcheux denomina de “efeito metafórico”, e que Lacan trata através das figuras da metáfora e da metonímia (1999LACAN, J. O seminário V: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1999 [1958].). Essa característica de não fazer “um” com aquilo que diz é a causa do próprio dizer. No entanto, por mais que tente e diga, o sujeito está sempre em falta, visto que há conteúdos que são interditados e outros que são silenciados. O que nos interessa aqui é exatamente esse processo de como os esquecimentos afetam o sujeito, sem que ele se dê conta disso, impedindo que zonas de sentido sejam formuladas, e apareçam no intradiscurso (ou seja, na cadeia material de palavras produzidas no nível do enunciado). Como o sujeito age diante desses impedimentos? Vários trabalhos têm tratado disto recentemente, entre eles F.E.V. Tfouni (2003TFOUNI, F. E. V. A fantasia capitalista do sujeito centrado e o desmentido fetichista. 2003. (não publicado)), Carreira (2000CARREIRA, A. F. Subjetividade e autoria: o sujeito como vacilo do “eu”? Tese (Doutorado em Psicologia) - Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Campus de Ribeirão Preto, 2000.), Tfouni (2001), e um caminho que tem sido apontado para trabalhar essa questão tem sido a investigação do gênero discursivo da narrativa, e também da noção de autoria, da qual falaremos a seguir.

Para Scholes e Kellogg (1966SCHOLES, Robert; KELLOGG, Robert. The nature of narrative. London: Oxford UP, 1966.), o autor seria aquele que cria obras inéditas por escrito. Daí decorre que, no caso de narrativas compostas oralmente, tem-se apenas um “contador de estórias”, um mero repetidor de fórmulas já prontas (neste caso, o sujeito seria apenas um veículo através do qual a tradição assume uma forma de representação) e não um criador; ou seja, autor.

Orlandi e Guimarães (1988ORLANDI, E. P.; GUIMARÃES, E. Unidade e dispersão: uma questão do texto e do sujeito. In: ______. Sujeito e texto. São Paulo, SP: EDUC, 1988. (Série Cadernos PUC)) acreditam que é o projeto de discurso a que o sujeito se lança que irá convertê-lo ou não em autor. Para esses autores,

[...] no projeto de discurso o autor busca assegurar a produção de um texto claro, coerente e completo. Procura se fazer compreender pelo interlocutor, preocupa-se com ele. Ao constituir este texto, o sujeito se constitui como autor, realiza este projeto totalizante, constrói sua unidade, representa-se e é representado socialmente na origem do dizer. (p. 13)

Tfouni (2001TFOUNI, L. V. A dispersão e a deriva na constituição da autoria e suas implicações para uma teoria do letramento. In: SIGNORINI, I. (Org.). Investigando a relação oral/ escrito. Campinas: Mercado de Letras, 2001.) estabelece uma relação entre narrativa e identidade, afirmando que as formações discursivas por onde o sujeito circula, ao produzir uma narrativa, estão relacionadas com mecanismos projetivos. Essa autora, assim como Carreira (1996CARREIRA, A. F. Era uma vez três sereias. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Campus de Ribeirão Preto, 1996.), estabelece uma relação entre a autoria (que é considerada como sendo uma posição específica do sujeito do discurso), a produção de narrativas e a instalação da subjetividade.

Dessa forma, dentro da perspectiva que adotamos aqui, a autoria se torna possível na produção de narrativas de ficção que, apenas aparentemente, reproduzem enredos já existentes, já que o narrador reestrutura e ressignifica as histórias enquanto as conta, e passa pelo processo de identificação com as mesmas e com suas dominantes; no caso de nossa pesquisa, especificamente, com a dominante figura do herói.

Resumidamente, o discurso narrativo, principalmente as narrativas de ficção, (entre essas, os contos de fadas) fornece às crianças e adolescentes o interdiscurso para falar sobre si e suas experiências passadas, e assume grande importância para a questão da subjetividade, pois permite (re)elaboração e (re)estruturação de experiências e fantasias através da linguagem. Nesse sentido, concluímos que, na produção de narrativas de ficção, ocorre sempre um mecanismo de transferência e, a partir disto, os sentidos deslizam e permitem que as narrativas de ficção tornem-se relatos de experiência pessoal.

Para chegarmos à essência das contribuições dos contos de fadas devemos ultrapassar seu conteúdo manifesto (visto que no nível manifesto eles realmente ensinam pouco sobre as condições de vida na sociedade moderna, posto que foram criados numa realidade historicamente bem diferente), e atingirmos seus conteúdos subjacentes, uma vez que através desses últimos aprendemos sobre os problemas interiores dos seres humanos (que estão presentes em quaisquer sociedades e em todos os tempos) e sobre possíveis soluções para os mesmos.

Na tentativa de melhor entender a estruturação desses contos, Tolkien (1965, apud BETTELHEIM, 1980BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos contos de fadas. Trad. Arlete Caetano. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1980.), identifica e prioriza quatro aspectos: a Fantasia, a Recuperação (de um desespero profundo), o Escape (de algum perigo) e o Consolo.

Bettelheim (id.), acrescenta um quinto aspecto aos anteriormente definidos por Tolkien, que é a Ameaça (física ou moral do herói). Com base nesses aspectos, então, os contos de fadas sugerem que, pela composição do herói de uma narrativa, que parte para os desafios e enfrenta as lutas com coragem, pode-se integrar diferentes nuances da personalidade, formar uma verdadeira relação interpessoal, escapar da ansiedade de separação sempre iminente e elaborar conflitos recalcados através do discurso. Ainda segundo Tolkien (1965, citado em BETTELHEIM, 1980BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos contos de fadas. Trad. Arlete Caetano. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1980.), “os contos de fadas, declaradamente, não estão, em princípio, preocupados com a possibilidade, mas sim, com a desejabilidade” (p. 148). Ou seja, o sujeito reconhece o herói e se identifica com ele porque nada é mais verdadeiro para ele do que aquilo que deseja.

Para concluirmos essa etapa de apresentação sobre os aspectos teóricos, vale a pena ainda ressaltar a questão da interpretação, conforme vista pela AD. Na posição de intérprete, o pesquisador deve se colocar no lugar do analista, estabelecendo uma escuta que vai além das evidências, e que comporta a opacidade da linguagem, a determinação dos sentidos pela história e a constituição do sujeito pela ideologia e pelo inconsciente.

Os mecanismos de deslocamento metafórico e metonímico de que falamos nessa secção (que Freud denominava, respectivamente, de condensação e deslocamento) possibilitam ao sujeito falar de si mesmo - de seus desejos e fantasias - de maneira disfarçada. Neste artigo, nosso intuito é investigar como esse processo ocorre relativamente à construção da figura do herói por crianças que estão em situação de rua. Na próxima secção, trataremos disto.

3 O HERÓI: SUAS MUITAS FACES

A palavra “herói” é originária do grego héros. Segundo os gregos, o herói emerge quando alguém (homem, mulher ou criança) consegue vencer suas limitações pessoais, sociais e históricas, atingindo uma dimensão na qual antigos paradigmas são rompidos e novas respostas são encontradas.

A figura do herói é constituída e representada diferentemente nos mitos e nos contos de fadas. Nos primeiros, o herói é apresentado como uma figura divinizada, sobre-humana. Porém, esses heróis incorporam exigências muito rigorosas, e podem gerar nas crianças uma frustração, no sentido de que a identificação com seus atributos míticos pode não se dar de maneira adequada. Nos contos de fadas o herói é mais real, humanizado, e podemos evidenciar isso em muitas facetas: o herói tem que morrer como qualquer um de nós, ele vence seus problemas aqui na Terra e não por alguma recompensa colhida no céu; em geral, ele apresenta um potencial de força aliado a uma fragilidade que pode ser psicológica ou física, como todos nós.

Podemos destacar os seguintes aspectos mais relevantes condensados nos contos de fadas:

  • a) A ocorrência de perigos que ameaçam a infância, presente em todos oscontos de fadas onde o herói é uma criança.

  • b) O medo do abandono: geralmente, esse medo aparece materializadona ação de abandonar o herói-criança numa floresta, como, por exemplo, na história de “João e Maria”.

  • c) Intervenção de um animal com características humanas (o Lobo Mau,do conto “Chapeuzinho Vermelho”), que vai tentar dificultar, ou então ajudar a resolver (como o Grilo Falante, de “Pinocchio”), os feitos heróicos; ou, ainda, uma fada, que vai auxiliar o herói (como a fada de “Cinderela”), em oposição à bruxa.

  • d) Essa oposição entre o Bem e o Mal, consubstanciada de maneira quasecaricatural nos contos de fadas, é apresentada sob a forma de uma luta, que é vencida pelo herói.

Do nosso ponto de vista pessoal, os heróis dos contos de fadas possuem traços que apresentam dimensões dos heróis épico (representa uma metáfora do sonho do homem de fazer sua própria história), trágico (quanto maior sua desgraça, maior sua grandeza; em sua origem é um “bode expiatório” e, à medida que a expiação de sua culpa originária aponta para uma resolução trágica, isto leva a uma reconciliação interior), cômico (para ter êxito, tem que tender a ser um índice de doença social e, ao mesmo tempo, um primeiro esforço de cura, como Pinocchio, mentiroso inveterado, que, no entanto, se redime pelo arrependimento) e satírico (incorpora características de bufão e intelectual, criticando os costumes, como o Gato de Botas), mas nunca podem ou devem ser classificados exclusivamente nesses termos, pois constituem uma categoria à parte.

Através de suas muitas faces, os heróis dos contos de fada se classificam, acima de tudo, como heróis humanizados e como tal, e apenas assim, podem exercer tão bem seu papel de metáfora do sujeito. Resumindo a aventura do herói, temos que ele parte para o mundo para se encontrar. Nessa aventura ele se mantém isolado por algum tempo, é ajudado por estar em contato com coisas primitivas (animais, árvores, natureza), e esse seu destino convence o sujeito de que, mesmo sentindo-se rejeitado e abandonado, aparecerá em sua vida alguém ou algo que o ajudará e guiará. Nesse sentido, Bettelheim (1980BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos contos de fadas. Trad. Arlete Caetano. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1980.) afirma que hoje, mais do que nunca, é importante prover as crianças e adolescentes com imagens de heróis que partiram para o mundo sozinhos, e que encontraram lugares seguros, seguindo seus caminhos com profunda coragem e confiança interiores.

O final dos contos sempre será feliz, especialmente para sugerir que o que se conta equivale a modificações internas que ocorrem com o herói, necessárias para que ele conquiste uma verdadeira autonomia e torne-se independente, o que equivaleria a “entrar no mundo dos adultos”.

4 MÉTODO

Existe um discurso oficial sobre as crianças e adolescentes em situação de rua, produzido por quem ocupa uma posição de sujeito do discurso dominante, institucionalizado, que, obviamente, fala sobre as questões mais íntimas desses jovens de forma enviesada e perpassada por interesses políticos, de conveniência, e também por preconceitos. Um dos objetivos deste trabalho é, justamente, partir do próprio discurso dessas crianças e adolescentes, o que, mesmo não existindo transparência de sentidos, pode fornecer-nos pistas sobre os sonhos, esperanças, dúvidas e medos desses sujeitos.

Em vista do exposto, o “corpus” do qual partimos para a elaboração deste trabalho é formado por narrativas de crianças e adolescentes em situação de rua, produzidas oralmente, durante sessões de ouvir e contar histórias, sessões essas gravadas e posteriormente transcritas. Participaram no total onze crianças e adolescentes de rua de ambos os sexos, pertencentes a uma faixa etária entre 10 e 13 anos de idade.

Os livros de histórias utilizados pertenciam à Coleção Moinha da Editora Recorde (“Branca de Neve e os Sete Anões”, “Pinóquio”, “Joãozinho e o Pé de Feijão”, “Os Três Porquinhos”, “O Patinho Feio”, “O Gato de Botas”), e Histórias de Ninar; e Contos de Perrault, da Série Clássicos da Infância do Círculo do Livro (“Cinderela”, “Chapeuzinho Vermelho”, “Barba Azul” e “O Pequeno Polegar”).

Cada encontro do grupo de histórias, realizado uma vez por semana, tinha a duração aproximada de uma hora. Em relação ao procedimento que foi adotado pela pesquisadora durante as sessões vale dizer que as narrativas produzidas por essas crianças e adolescentes surgiram espontaneamente (ou seja, não foram elicitadas pela pesquisadora), muitas vezes a partir de conversas aparentemente sem importância.

Desse corpus inicial foram selecionadas duas narrativas, de dois irmãos, um menino (LR) e uma adolescente (Sh), que, apesar de estarem em grupos distintos com a pesquisadora que realizou as sessões, mesmo assim escolheram o mesmo tema: a história de João e Maria. Isto aconteceu em sessões nas quais o conto “João e Maria” não foi lido para as crianças, o que ressalta o caráter espontâneo e subjetivo dessa escolha. Utilizando a metodologia da Análise do Discurso, foram realizados recortes nessas narrativas, sendo recorte entendido aqui como uma atitude discursiva, ou ainda, um fragmento correlacionado de linguagem e situação (COURTINE, 1984COURTINE, J. J. Définition d’orientations théoriques et méthodologiques en Analyse de Discours. Philosophiques, Paris, v. 9, n. 2, 1984.). Sh é uma adolescente de 13 anos que, durante o período em que participou das sessões, evitava falar de sua vida e quase nunca se manifestava sobre a sua família. LR é um pré-adolescente de 11 anos que também não falava sobre a família, e estava na instituição por ter cometido roubos e agressões.

5 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nesta seção, apresentaremos a análise de alguns recortes extraídos das narrativas produzidas por Sh e LR. Conforme foi dito acima, o recorte é a unidade significativa do discurso, que é eleita pelo analista por indiciar um modo específico de funcionamento, que pode revelar o lugar a partir do qual o sujeito produz seus enunciados. Neste caso, como temos por objetivo analisar como se dá a construção do herói, nossos recortes irão privilegiar esses momentos das duas narrativas. Pretendemos, com a análise desses recortes, averiguar se e como os sujeitosnarradores se identificam como heróis de suas próprias histórias, desvelando a dinâmica de sua realidade, assim como suas expectativas, fantasias, angústias, esperanças, dúvidas e medos.

a) O título das narrativas: uma revelação da relação entre os irmãos

Sh nomeou sua narrativa de “Joãozinho e Maria”, enquanto seu irmão intitulou a sua de “Maria e Joãozinho”. Percebemos que o título constitui um primeiro traço de autoria, tanto para Sh quanto para LR. A topicalização cruzada dos nomes próprios fornece um primeiro indício de como se dá a relação entre eles: a irmã mais velha que cuida, protege e serve de modelo (ideal do eu) para o irmão mais novo. Como se sabe, na teoria pragmática o tópico representa aquela parte do enunciado que o sujeito supõe já ser do conhecimento do alocutário; o tópico é, portanto, a informação dada. Em contraposição, o comentário traz a informação considerada nova pelo enunciador. Uma das formas de marcar o tópico é colocá-lo no início da sentença, ou frase. No caso, então, temos que a informação dada, para Sh, é “Joãozinho”; e para LR é “Maria”. Ou seja, Sh pressupõe (deixa implícito) que representa o irmão como o pano de fundo sobre o qual a narrativa vai transcorrer, enquanto que LR faz a representação inversa. Se, como diz Lacan (1999LACAN, J. O seminário V: as formações do inconsciente. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1999 [1958].), o sujeito é aquele que emerge fugazmente entre significantes, então temos que o que faz Sh e LR emergirem como sujeitos é a enunciação do nome do(a) irmão(ã), que cria uma ponte lingüística para que eles próprios (disfarçados de Maria e João) possam em seguida enunciar seus “nomes”. Os lugares discursivos por onde esses sujeitos transitam para introduzir o herói (ou heroína) da história não são, portanto, aqueles tradicionalmente alocados a crianças e adolescentes que pertencem a famílias estruturadas.

b) A morte da mãe boa como metáfora para o processo de cisão: mãe boa (morta) x mãe má (bruxa)

RECORTE 1:

Era uma vez, era o Joãozim e a Maria. A mãe deles tinha morrido então eles tinha que se virá sozinho. Daí eles foram numa floresta, foi plantá, foi caçá comida, porque o pai deles tava quase morrendo de fome e eles não tinha o que comê. (narrativa de Sh)

RECORTE 2:

Era uma vez, né? Era duas, dois moleque, né? Dois moleque. Aí, a mãe deles, a mãe deles tinha morrido, né? Aí, eles, eles moravam num ... numa casa, num, numa cabana, grandona, né? É casa. Aí, né? Aí ... Depois eles ... Aí, o pai, a mãe dela, a mãe deles morreu, né? (narrativa de LR)

Os dois recortes acima têm em comum o anúncio da morte da mãe, o que corresponde à realidade dos sujeitos empíricos (a mãe de ambos morreu de AIDS). O significante “morte”, associado a “mãe”, pode aqui ser enunciado, pois seu uso está deslocado da realidade de Sh e LR. Assim, os irmãos podem elaborar, na ficção, de maneira disfarçada, a morte da verdadeira mãe, e também a ausência e omissão do pai.

Esse ponto de angústia insiste em LR, já que ele repete o anúncio da morte da mãe, e também, ao enunciar “Aí, o pai, a mãe dela, a mãe deles morreu, né?”, vemos LR vacilar, ou se confundir, ao dizer quem morreu. Ele parece ainda não aceitar a morte da mãe e ao mesmo tempo desejar a morte do pai, o que aumenta/ alimenta a ansiedade de separação.

Sh ainda indicia a inversão de valores do que costuma acontecer (o esperado é que os pais cuidem dos filhos quando estes ainda não têm como se sustentar, e não que o pai quase “morra de fome” e os filhos tenham “que se virar”), o que pode ser revelador de uma dinâmica familiar própria, onde podemos observar a desestruturação da célula familiar. LR nos fala das dificuldades que contribuem para isso quando nos informa sobre o local, embora de maneira confusa (confunde a realidade - “barraco” -, com o seu desejo - “casa”), onde mora essa família. Temos aí o delineamento de dois heróis provedores, que cumprem as tarefas paternas, procurando tamponar, na ficção, a ausência de cuidados de que foram vítimas por parte dos verdadeiros pais.

No entanto, na narrativa de LR há indícios lingüísticos preciosos de que os personagens que esse sujeito pretende introduzir como heróis na ficção são, na realidade, ele próprio e sua irmã. Isto aparece na contradição entre o título da narrativa, no qual são anunciados dois personagens, um menino e uma adolescente, e o início da mesma, onde o narrador insiste o tempo todo em afirmar que se trata de dois meninos, mas ao mesmo tempo é traído pelo seu inconsciente, e isto emerge no discurso pelas hesitações entre “duas/dois” e “dela/delas”. (Era duas, dois moleque, né? Dois moleque; Aí, o pai, a mãe dela, a mãe deles morreu, né?”).

c) A casa de doces: encontro com a voracidade e com a bruxa RECORTE 3:

Daí, eles quando, quando eles chegô numa casa, que era feita de doce, tinha uma bruxa malvada. Eles comeram bastante. Depois a bruxa apareceu. A bruxa ti, a bruxa tinha feito ... Todas criança que apareceu lá, fazia ... fazia os menino de bolo, fazia os menino de bolo. (narrativa de Sh)

RECORTE 4:

Aí, ele encontrô uma casa. Aí, ela ... Aí, eles correram:

- Hum! Comida! Comida! Vamo comê!

Aí, eles começô a co, a quebrá o vidro da casa da bruxa. Que, quebrô o vidro, comeu. (narrativa de LR)

Um fato discursivo comum aos dois recortes é a antecipação do aparecimento da bruxa, que, para Sh, é representado lingüisticamente pelo dêitico “uma bruxa”, e, para LR, pela anáfora “a casa da bruxa”. Essa introdução da personagem da bruxa por meio de processos lingüísticos opostos revela que Sh, enquanto sujeito-narrador, mantém um distanciamento maior com relação ao conto de fadas tradicional, que é do conhecimento coletivo, e, ao anunciar “uma bruxa” atribui à sua narrativa um lugar discursivo mais próximo da autoria do que LR, visto que o uso da anáfora estabelece um lugar de representação do interlocutor como alguém com quem compartilha o conhecimento prévio sobre a existência da bruxa. É interessante notar que esses indícios lingüístico-discursivos (“uma bruxa” X “a bruxa”) criam dois efeitos diferentes de sentido: no caso de Sh, temos um efeito de novidade e de suspense, e no caso de LR temos um efeito de retorno do já-dito e, portanto, de ausência de expectativa. Assim, o sujeito-narrador no primeiro recorte direciona as futuras ações do herói (heroína?) para um lugar de inédito, e para uma região de sentidos que está aberta e maleável para a inclusão desse herói. No segundo recorte, o anafórico “a bruxa”, por remeter o interlocutor a um sentido já dado, a um interdiscurso, ou memória estabilizada do dizer, institui um efeito de que tudo já está pronto e que sua narrativa é uma mera repetição.

Deste modo, há duas diferentes aberturas para a construção do herói (heroína) nas duas narrativas. Como a bruxa representa o mal a ser combatido, as ações do herói dependem em grande parte da construção dessa personagem, e de suas ações. Assim, pode-se afirmar que existe um fechamento, na segunda narrativa, visto que o sujeito-narrador, ao utilizar a anáfora, antecipa ao narratário que é o já conhecido de ambos que vai constituir a seqüência da história. O herói, aí, então, é antecipado como um executor de feitos já estabilizados no imaginário social ou coletivo, visto que essa antecipação representa uma primeira tentativa de estabelecer quem é, e como vai agir, o herói da história, porque este vai ter que enfrentar/ vivenciar uma luta (um conflito) com a bruxa antes de ter a vitória, tal como ocorre com os heróis de narrativas épicas.

Na narrativa de Sh, ao contrário, a enunciação de “uma bruxa”, pelo seu caráter dêitico, propicia uma abertura à construção imaginária dessa personagem, e, portanto, do perfil do herói que irá combatê-la e dos feitos heróicos que executará nessa empreitada.

Continuando a análise desses dois recortes, é oportuno comentar a respeito da representação da bruxa nas histórias de fadas. Segundo Bettelheim (1988), tradicionalmente, a bruxa representa e personifica os aspectos maus da mãe. Nas duas narrativas, a mãe dos protagonistas morreu. Com isso entendemos que, somente com a “morte” da mãe boa (em outras histórias isso se verifica, não necessariamente com a morte, mas também com o afastamento desta), os autores-personagens podem encarar a mãe má - bruxa -; e que, ao “vencermos” a mãe má (bruxa), podemos reencontrar (reconstituir/reparar) a mãe boa e sermos felizes. Essa é uma das principais angústias/desafios vivenciados por LR e Sh nesse momento de suas vidas: a integração dos aspectos bons e maus da mãe, que lhes possibilitaria maior equilíbrio emocional e psicológico. Deste ponto de vista, retomando o caráter de abertura (Sh) e fechamento (LR) comentado acima para a construção da personagem da bruxa, podemos levantar a interpretação de que o sujeito no primeiro recorte está psiquicamente mais preparado para lidar com seus sentimentos, o mesmo não ocorrendo com o sujeito do segundo recorte, que mostra insegurança e medo, os quais ele tenta controlar refugiando-se no já-dito. E, novamente, pode-se entender como a construção do herói na narrativa vai sendo feita como uma metáfora dos desejos, medos e fantasias do sujeito que narra, e é inseparável da vida deste (LACAN, 1987LACAN, J. O mito individual do neurótico. 2. ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1987 [1978].).

d) A prisão de João e a instituição definitiva de Maria como a heroína das narrativas

RECORTE 5:

Daí, eles cataram o Joãozinho e colocaram em uma gaiola. Daí pegou a Maria pá, pá ajudá a, a bruxa, pá ajudá, ajudá em casa. E o Joãozinho, pá ficá gordo pá ela fazê.”

“Daí o ... Daí a Maria, a Maria falô assim:

- Joãozinho não coma, não coma, não, porque aí, se você engordá, a bruxavai te comê.

Daí toda vez que a bruxa ia lá olhá o Joãozinho. Daí, ela dava um pedacinho de pau. Daí, daí, a bruxa falava assim:

- Não, cê tá muito magrinho ainda, cê tem que comê bastante.

Aí a Maria, toda vez que levava comida pro Joaõzinho, o Joãozinho não comia. Ele ... A Maria enterrava toda comida dele, enterrava tudo pra ele num comê. (narrativa de Sh)

RECORTE 6:

Aí, a bruxa saiu:

- Ah! Peguei ocêis!

Pegô ocê, ela pegô eles, levô lá pa casa deles. Deu a comida pra eles. A Maria, eles comia, eles comia. Bom ... Aí, na hora que eles dormia, né? Ficava na casa deles ... Aí, depois ... Aí ... Aí, ela ia, eles ... Pegava o Joãozinho, depois trancô ele na ca, na cadeiinha, né? Aí, tinha um gordinho com ele, um gordinho. Comia pá caramba aquele gordinho!

Aí, aquela lá:

- Corre Maria! Corre Maria! Vai levá lá alguma coisa! Vamo fazê ... é ... massapá mim ... Porque ... Hoje ... eu vô comê o ... o gordinho! - Tá bom, eu levo.

Aí, né? Aí, ela pegô:

- Tó! Leva pá aquele gordinho lá!

Pegô o gordinho, levô frango lá pá aquele gordinho. Ele só comeu. Ele oiô assim:

- Ai! Gordinho!

Aí, a Maria:

- É ocê, gordinho! ...

Aí, falô assim ... Pegô o gordinho, levô lá. Comeu o gordinho.

Aí, outro dia, a Maria foi lá e deu comida pro João, não deu comida pro João. Ele tava com medo e ela tava com dó, né? Aí, tinha um osso lá, né? Aí falô:

- Deixa eu vê se tá gordo!

Pegô o osso:

- Tá muito magro! Cê tá muito magro! Ah! Tem que enchê mais cê de comida! Aí, encheu mais ele. Aí, escondia. (narrativa de LR)

Temos os seguintes fatos comuns das narrativas: a “prisão” de João; a farsa de que João e Maria se utilizam para ludibriar a bruxa (mostrar o osso para que ela pensasse que fosse um dedo magro e não comer João) e o papel ativo de Maria, instituindo-a como heroína.

O fato de Maria assumir o papel da heroína das narrativas nos mostra a identificação positiva com o herói por parte de Sh. O que já não acontece com LR, que não se identifica como herói, como podemos ver no fato de que é ela, Maria, quem decide se dá ou não a comida para João que está preso pela bruxa; e ao nos contar que “Ele tava com medo e ela tava com dó, né?”. Dessa forma, LR confirma o fato de Maria assumir o papel de heroína da narrativa, papel esse que já havia sido atribuído logo no início da narrativa (título), mas com o qual o narrador não se conformava e, por isso, resistia em aceitá-lo. A revelação de que João tinha medo e Maria tinha dó evidencia concretamente isto: João depende de Maria, e tem medo de ser comido pela bruxa. Maria não teme ser comida pela bruxa e, por isso mesmo, pode ajudar o irmão e ter dó dele.

Igualmente, temos indícios de Sh se ver como heroína: mostram isto tanto a topicalização intensa do nome de Maria, quanto o fato de Joãozinho só ser trazido à cena como personagem através da descrição de suas ações, nunca pela sua própria voz, como em: “Maria enterrava toda comida dele, enterrava tudo pra ele num comê”.

A tensão/conflito entre comer e não comer, entre dar comida a João e deixálo “cheio” ou esconder a comida pra que ele não coma e não sofra as conseqüências (ficar gordo e ser comido), nos revela as cenas de conflito entre LR e sua mãe real. Tornam-se, então, claros, para nós, os princípios que regem essa relação: uma mãe ausente afetivamente, algumas vezes presente de forma positiva ou negativa (mãe morta e bruxa, respectivamente) que institui um sentimento de abandono no filho, o qual vive o conflito de aproximar-se dela para ser amado (“comer”) ou não, pelo medo de ser novamente frustrado (“ficar gordo”) e abandonado (“comido”).

Nesse movimento de distanciamento e aproximação, outra faceta da dinâmica familiar se desvela: a importância da irmã na vida de LR. Tal como ocorre na vida real dessas crianças, a irmã, representada pela figura de Maria na narrativa, por ser uma figura feminina, acaba, não raro, substituindo a figura materna com todas as suas características contraditórias de cuidado e abandono no tocante aos cuidados e proteção de LR (“a Maria foi lá e deu comida pro João, não deu comida pro João. Ele tava com medo e ela tava com dó”) e também sendo uma aliada de João/LR para conseguir ludibriar a mãe quando esta comete infrações, sejam elas de cunho social ou familiar (transgressão das regras estabelecidas pela dinâmica familiar).

e) A bruxa quer comer Joãozinho: o enfrentamento do herói

RECORTE 7:

Daí, chegô um dia, que a bruxa virô e falô assim:

- Ai, eu tô com fome! Eu vô fazê ele magrinho ou gordinho.

Daí, ela, foi tentá fazê ... Daí, ela pegô ... Daí, ela, é ... A Maria falô assim:

- Então tá, eu vou ajudá a fazê meu irmão.

Daí, a ... a bruxa pegô e falô assim:

- Entra lá, entra lá, Maria, no forno, pra vê se o forno tá quente.

Daí a Maria falô assim:

- Não, eu sô muito magra. Eu vô, posso caí aí dentro e me machucá. Etambém eu não cabo aí.

Daí, daí, a bruxa pegô e falô ... Daí, a bru, a Maria falô assim:

- Então pode dexá que, pode ... Vai a senhora. A senhora tem mais, é maisgrande e pode ver se o forno tá quente.

Na hora que a bruxa entrô no forno, a, a Maria empurrô, empurrô a bruxa dentro da ... do forno...e fechô a porta.

Daí, a bruxa ficô toda queimada. Daí, os menino que, que ela tinha transformado em bolo, voltô ao normal. A Maria e o Joãozinho ficô com a casa de doce. Todos menino ficô com a casa de doce. Daí o Joaõzinho ficô rico com a descoberta da bruxa. (narrativa de Sh)

RECORTE 8:

Aí, um dia, a Ma, a Maria co, comeu, começo a engordá. O João falô:

- Maria, cê tá engordando!

Aí:

- Não, eu vô comê só mais um pouquinho!

A, a, aí, ela começô e falô assim pá ele, assim, po João ... Aí, ela comeu. Aí, otro dia:

- Vai lá! Vai lá, moleque!

Pegô anssim, pegô o osso. Fez assim na, pá, pá ela, ela fez assim, ó:

- Tá magro! Vem cá! Eu vô comê hoje assim memo!”

Pegô ele assim ... Na hora que foi comê, ela, a Maria preparô pra ela o calderão. Pegô ... Ela falô:

- Maria, vê aí dentro. Vê se tá quente.

- Ah! Deve tá quente já!

- Ah, tem que vê, menina!

Olhô assim. A Maria empurrô ela lá dentro. Trancô a porta e: Tcha! Tcha! Pegô a coisa, a ... o pau dela. Aí, ficô assando: Tuf! Aí, ela virô a, a massa. Aí, tudo os moleque virô normal. Aí, ela tirô o João. Aí, ela achô a mãe dela, a madrasta dela era a bruxa. Aí, ela morreu. Aí encontraram o pai deles. Aí, eles abraçaram. (narrativa de LR)

Quando se torna inevitável João ser comido pela bruxa, Maria passa então a agir e, com isso, vai ao encontro do seu destino: enfrentar a bruxa, vencê-la e alcançar sua verdadeira felicidade e crescimento. Como todo herói, ela o faz astutamente, utilizando o feitiço da bruxa contra ela mesma.

Segundo Aberastury (1982ABERASTURY, A. Psicanálise da criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1982.), a universalidade das figuras da fada e da bruxa, ou mais amplamente do bom e do mau nos contos de fadas, se explica pelo duplo aspecto do objeto original. Ou seja, para os dois sujeitos-narradores (assim como, aparentemente, para Sh e LR), a mãe protetora, que personifica qualidades boas, está morta; e a bruxa, que personifica a maldade, está viva. Na verdade, tanto a bruxa quanto a mãe morta são duas facetas da mesma pessoa: a mãe deles. Como a parte protetora, mantenedora do lar, provedora, carinhosa e, em suma, suficientemente boa, dessa mãe, parece não estar cotidianamente presente na vida dos narradores (Winnicott 1975WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1975.), ela aparece morta em suas narrativas. Enquanto a parte má, personificada pela bruxa, aparece viva. No final da narrativa temos mais clareza das particularidades do relacionamento de cada irmão com a mãe. Sh diz que a bruxa caiu no forno e não diz que ela morreu, mas sim, que ficou toda queimada. Ou seja, apesar de Sh sentir que sua mãe não é como supostamente toda mãe deveria ser (suficientemente boa), ela não admite sua morte, e sim seu sofrimento por ser má. Podemos então verificar o dilema interno vivido por Sh entre amar e odiar a própria mãe, porém em um autêntico processo de integração da figura materna. LR, entretanto, não consegue conviver com o fato de que a mesma mãe que gratifica mas também frustra. Ele precisa que a mãe frustradora, representada pela madrasta e pela bruxa, as quais ele fusiona ao fim da narrativa, morra, para que a felicidade possa existir na sua vida e na de sua família. Porém, LR não consegue enfrentar essa mãe má, assim como João, que depende da irmã para matar a bruxa. Só Maria, com sua força, coragem, inteligência e astúcia pode matá-la e assim o faz, assumindo definitivamente o papel de heroína.

Outro aspecto relevante a ser tratado, e presente nas duas narrativas, é o fato de que a bruxa resolve comer João de qualquer jeito, mesmo que ele não esteja gordo o suficiente para ser comido. Ou seja, mesmo sabendo que o filho não está preparado (gordo) para a separação/abandono (ser comido), a mãe (bruxa) decide deixá-lo (comê-lo). Note-se que existe uma intenção muito forte na atitude da mãe em deixá-lo, do ponto de vista de LR, posto que denota que ela tomou a decisão: “Eu vô comê hoje assim memo”. Tanto Sh quanto LR reconhecem que esse último ainda não é maduro (gordo) o suficiente para se virar sozinho. Mas a mãe (bruxa) não tem paciência e/ou competência para esperar e auxiliar esse processo de individuação e maturação e, por isso, resolve antecipá-lo, responsabilizando-o prematuramente por uma série de coisas, o que é sentido como um abandono (ser comido) por LR. A única que pode auxiliá-lo (salvá-lo) é sua irmã Sh (Maria), que assume papel cuidador e protetor. Essa faceta nos revela muito da dinâmica familiar e, mais especificamente, do relacionamento desses irmãos. Outros dados relativos a esse relacionamento também são muito claros, por exemplo quando, ao dizer que vai comer “só mais um pouquinho”, Maria assegura a João que não vai engordar demais e, com isso, não vai chamar a atenção da bruxa. Temos, com isso, que a irmã de LR faz o que acha que deve, conta com ele para ajudá-la a esconder isso da mãe e sabe bem lidar com os limites que essa mãe impõe, pois vai até um ponto em que essa não perceba. LR parece não conseguir manter esses limites e, por isso mesmo, tem que “ficar trancado na cadeinha” e precisa da irmã para não deixá-lo “comer” e “engordar”. Desvela-se, então, uma relação de cumplicidade por parte dos irmãos e o reconhecimento de que a irmã (Sh) tem papel cuidador, criativo, desafiador e, portanto, mais adequado para assumir a figura heróica da história de LR

Por último, merece destaque o conflito principal de ambos os narradores: conflito intenso e significativo com a figura materna, representada na ambigüidade da mãe que morreu (mãe boa) e da bruxa (mãe má).

A narradora repara a culpa pelo desejo da morte da mãe má, nos dizendo que a bruxa não morreu, mas sim, que ficou “toda queimada”. Como anteriormente dito, a relação de Sh com sua mãe pode, e é recuperada/reparada, quando a parte má da mãe é castigada e a parte boa da mãe fica preservada, através da lembrança de sua morte. Com isso, Sh se identifica plenamente com a heroína da história e pode encerrar a narrativa com um final feliz, aliando essa felicidade aos seguintes fatores: independência financeira e fim da angústia de separação, porque consegue recuperar a figura boa da mãe através da má, ficando junto do irmão e de outros meninos.

O narrador (LR), ao contrário, não se vê como herói da própria história, o que, em si, denota algo preocupante: ele não se representa capaz de lutar por sua própria liberdade, felicidade e crescimento. Porém, ao se ver como coadjuvante da própria história, demonstra a forte identificação que mantém com a figura da irmã, revelando-nos muito sobre si mesmo, sobre a irmã, e sobre sua família.

A dificuldade de definir se a bruxa morreu no caldeirão (cozida), quando menciona a colher de pau, ou no forno (assada), no momento da narrativa em que menciona que a bruxa ficou assando e virou “massa”, evidenciam o quanto é angustiante para LR narrar a morte simbólica da mãe má, mesmo (ou porquê) sendo essa executada por sua irmã. Daí LR finalizar sua narrativa com uma solução mágica (achar a mãe que anteriormente foi dada como morta) que, embora fora da realidade, diminui sua ansiedade e angústia de não mais rever a mãe e ter uma família.

CONCLUSÃO

A presença do herói nas duas narrativas, e a repetição de temas (entre outros, a ansiedade de separação), são resultados que mostram que esses adolescentes estão inscritos no simbólico e que essa inscrição lhes oportunizou, entre outras coisas, elaborar conteúdos inconscientes enquanto se posicionavam como narradores. A partir deste posicionamento pudemos ainda obter dados sobre a dinâmica de vida desses adolescentes, a estrutura familiar que compartilham, o preconceito social que experimentam e como se dá o relacionamento entre ambos. Notamos que Sh é uma adolescente em meio a conflitos de identificação/separação da figura materna, e que se identifica com a possibilidade de ser heroína de sua própria história, se conseguir enfrentar seus conflitos e adquirir independência emocional e financeira.

Já LR, que também é um adolescente que vive em meio a todos esses conflitos, ainda não consegue se libertar deles, devido à sua baixa tolerância à frustração, acomodação de que a irmã sempre tome a frente das coisas e o defenda, e medo de ter que enfrentar sua maior luta: uma relação conturbada com mãe, de amor e ódio, de dependência e ausência, de prazer e dor.

Assim sendo, concluímos que essas narrativas de ficção constituem uma forma de esses adolescentes falarem de si, inconscientemente, e de forma mascarada; em especial no que diz respeito a aspectos interditados por proibição psíquica e/ou ideológica. Nesse contexto, a figura do herói pôde se construir a partir de um processo claro de identificação, através do qual esses jovens narram uma história própria e, podendo falar de conflitos esquecidos, ou inconscientes, que, no entanto, agem em suas realidades atuais, percorrem o caminho que todo herói tem que enfrentar em sua jornada pela vida.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Set 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2006

Histórico

  • Recebido
    27 Jul 2005
  • Aceito
    06 Jan 2006
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