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PROCESSAMENTO PRAGMÁTICO DA INFORMAÇÃO TEXTUAL: APLICAÇÃO DE DUAS ABORDAGENS TEÓRICAS A UM TEXTO

PRAGMATIC PROCESSING OF TEXTUAL INFORMATION: APPLICATION OF TWO THEORETICAL APPROACHES TO A TEXT

PROCÈS PRAGMATIQUE DE L’INFORMATION TEXTUEL: APPLICATION DE DEUX APPROCHES THÉORIQUES D’UN TEXTE

PROCESAMIENTO PRAGMÁTICO DE LA INFORMACIÓN TEXTUAL: APLICACIÓN DE DOS ABORDAJES TEÓRICAS A UN TEXTO

Resumo

Partindo do princípio comum de que a comunicação somente é relevante quando há um equilíbrio entre as informações de algum modo conhecidas pelos interlocutores e as informações novas, um número considerável de teorias lingüísticas têm sido levantadas para explicar como isso acontece. Esse artigo analisa a aplicabilidade de duas abordagens de base pragmática, a de Reinhart (1981) e a de Sperber e Wilson (1995), na distribuição dos enunciados do texto “Prato Fino” (Veja,1998). Os resultados sugerem que, considerando-se seus princípios teóricos, ambas as propostas são bem-sucedidas.

Palavras-chave:
pragmática; tópico; texto; teoria da relevância

Abstract

Based on the common principle that communication is only relevant when there is equilibrium between the information that is somehow shared by the speakers and new information, a significant number of linguistic theories have been proposed in order to explain how that happens. This work analyzes the applicability of two pragmatic approaches -Reinhart’s (1981), and Sperber’s (1995)- in the distribution of enunciations in the text “Prato Fino” (Veja, 1998). The results suggest that considering their theoretical principles, both approaches are successful.

Keywords:
pragmatics; topic; text; theory of relevance

Résumé

Partant d’un principe commun qui établit que la communication est seulement importante quand il y a un équilibre entre les informations d’une certaine manière connues par les interlocuteurs et les informations nouvelles, un nombre considérable de théories linguistiques ont été relevées pour expliquer comment cela se passe. Cet article analyse la possible application de deux approches de base pragmatique, l’une de Reinhart (1981) et l’autre de Wilson (1995), dans la distribution des énoncés du texte “Plat Fin” (Veja, 1998). Les résultats suggèrent que, si on considère leurs principes théoriques, toutes les deux propositions auront acquise leur réussite.

Mots-clés:
pragmatique; topique; texte; théorie de la rélévance

Resumen

Partiendo Del principio común de que la comunicación solamente es relevante cuando hay un equilibrio entre las informaciones de algún modo conocidas por los interlocutores y las informaciones nuevas, un número considerable de teorías linguísticas tiene sido levantadas para explicar como eso ocurre.Ese artículo analisa la aplicabilidad de dos abordajes de base pragmática, a de Reinhart (1981) y la de Sperber y Wilson (1995), en la distribución de los enunciados del texto “Plato Fino” (Veja 1998). Los resultados sugieren que, se considerando sus principios teóricos, ambas las propuestas son bien sucedidas.

Palabras-clave:
pragmática; tópico; texto; teoría de la relevancia

1 INTRODUÇÃO

Estudos sistemáticos sobre a natureza da informação em enunciados aparecem com o Círculo Lingüístico de Praga, redimensionados pela perspectiva funcional em termos de tema/rema, dado/novo ou tópico/comentário (cf. SEUREUN, 1998). Partindo do princípio de que, por questões de coerência e relevância, as pessoas procuram se comunicar equilibrando dois tipos de informação - (i) informação sobre algo supostamente conhecido ou identificável pelo interlocutor e (ii) informação de algum modo relacionada com essa suposição - têm sido construídas teorias em todos os níveis de análise lingüística com o objetivo de definir um possível padrão de distribuição dessa informação, como também de explicá-lo.

Ainda que essas teorias apresentem fundamentos e metodologias definidos e coerentes, seu sucesso é discutível quando o que está em jogo é a aplicação nos mais diversos tipos de enunciados. Para Schlobinski e Schütze-Coburn (1992SCHLOBINSKI, Peter; SCHÜTZE-COBURN, Stephen. On the topic of topic and topic continuity. Linguistics, v. 30, p. 89-121, 1992.),

parte disso deve-se à sobreposição dos diferentes níveis de análise lingüística a partir dos quais a classificação dos elementos do enunciado tem sido pensada - fonológico, sintático, semântico e pragmático.1 1 Como exemplos, temos a abordagem de Halliday (1985), que divide os enunciados em tema e rema. 0 primeiro e definido tanto pragmaticamente ("o ponto inicial de uma mensagem, sobre o que a oracao vai tratar") como sintaticamente ("o primeiro constituinte da sentenca") quanto fonologicamente ("frequentemente marcado na fala"). De modo semelhante, Giv6n (1990) considera que os t6picos sao constituidos ou pelo sujeito ou pelo objeto das oracoes - criterio sintatico - e correspondem, na proposicao, a informacao dada - criterio semantico/ pragmatico. E é exatamente essa situação que motivou o presente trabalho, pelo qual se objetiva verificar, através de um texto selecionado aleatoriamente, a aplicabilidade das abordagens pragmáticas de Reinhart (1981REINHART, Tanya. Pragmatics and Linguistics: an analysis of sentence topic. Philosophica, n. 27, p. 53-94, 1981.) e Sperber e Wilson (1995SPERBER, Dan; WILSON, Deidre. Relevance: communication and cognition. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1995.) à distribuição da informação em enunciados.

2 PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

2.1 Reinhart (1981REINHART, Tanya. Pragmatics and Linguistics: an analysis of sentence topic. Philosophica, n. 27, p. 53-94, 1981.)

Em “Pragmatics and Linguistics: an analysis of sentence topics”, Reinhart explica que seu conceito de tópico é baseado no estudo de Strawson (1964), para quem uma expressão corresponde ao tópico de um enunciado se esse enunciado tiver como objetivo a expansão do conhecimento do interlocutor sobre esse tópico. Assim, a noção de tópico está mais relacionada com o objetivo do enunciado do que com a noção de conhecimento presumível. Na abordagem proposta pela autora, cada enunciado tem somente um tópico, sendo que enunciados iniciais de um texto podem, em dadas circunstâncias, não apresentá-lo.

2.1.1 Identificação do tópico

Embora constituintes de outra natureza possam servir como tópicos, a proposta para identificação do tópico de Reinhart é restrita a sintagmas nominais, e o critério é o contexto. A autora parte de um conjunto de pressupostos: um deles é o de que cada sentença declarativa é associada com um conjunto de afirmações pragmáticas possíveis (APPs), o que significa que uma única sentença pode ser usada para introduzir o conteúdo de qualquer uma dessas afirmações no contexto. Em um dado enunciado da sentença, uma afirmação pragmática é selecionada desse conjunto, sujeita a considerações do contexto desse enunciado. Numa tentativa de simbolizar a definição acima, Reinhart propõe que f denote a proposição expressa por uma sentença dada (S). O conjunto de APPs dessa sentença seria então definido como segue:

APP(s) = f juntamente com [<a, f >],

onde “a” é a interpretação de uma expressão SN em S.

Ilustraremos o funcionamento dessa abordagem com um exemplo apresentado no artigo da autora: em “Rosa viu Max” como a sentença S, o fato de Rosa ter visto Max constitui a proposição f expressa por S. Neste caso, o conjunto de APP(s) possíveis seria o seguinte:

APP 1 = f juntamente com [< Rosa, f >]

APP 2 = f juntamente com [ <Max, f >]

A decisão de selecionar como tópico, em um dado contexto C, uma das APPs possíveis vai depender exclusivamente de considerações sobre esse contexto. Por exemplo, consideremos a sentença acima em dois possíveis contextos, C1 e C2:

Contexto C1 - Falante A: Rosa estava olhando para os lados ontem na festa e de repente, sem explicação alguma, começou a ficar branca e tremer. Ela deve ter visto alguém, mas eu fico imaginando quem.

Falante B: Rosa viu Max.

Contexto C2 - Falante A: Estão dizendo que Max entrou na sua sala ontem, e que foi antes do dinheiro evaporar do cofre.

Falante B - Quem está dizendo isso?

Falante A - Bem, Rosa viu Max.

Pelo contexto 1, segundo Reinhart, o tópico selecionado seria o SN Rosa, e não Max, enquanto que o contexto 2 nos faria selecionar como tópico o SN Max. Naturalmente, a primeira questão que aparece é em relação ao critério utilizado para tal seleção. Reinhart explica que “dizer que uma sentença S enunciada em um contexto C é sobre a , isso é, que o par <ai, f > é selecionado em C é dizer, primeiramente, que, se possível, a proposição f expressa em S será acessada pelo ouvinte em C em relação ao subconjunto de proposições já listadas no contexto sob ai, e, em segundo lugar, que se f não for rejeitada, ela será acrescentada ao conjunto do contexto sob a entrada ai ”. Numa tentativa de simplificar o critério acima, Reinhart propõe o seguinte teste: considerar paráfrases com um tópico marcado, como no caso de deslocamento à esquerda. Aplicando o teste a nossa sentença “Rosa viu Max ”, teríamos então:

Quanto a Rosa, Rosa viu Max.

Quanto a Max, Rosa viu Max.

Segundo a autora, a primeira paráfrase seria a selecionada em nosso contexto 1 descrito acima, já que o ouvinte acessaria S nesse contexto com relação ao conhecimento (entendido aqui como sinônimo aproximado da expressão “conjunto de proposições” utilizada por Reinhart) já listado no contexto 1 sobre ai - nesse caso, o SN Rosa. Já o contexto 2 pediria a segunda paráfrase, visto que o ouvinte a acessaria em relação ao conhecimento previamente listado nesse contexto sobre Max.

2.2 Sperber e Wilson (1995SPERBER, Dan; WILSON, Deidre. Relevance: communication and cognition. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1995.)

No capítulo 4 de “Relevance”, Sperber e Wilson esboçam algumas das implicações da Teoria da Relevância para o estudo da comunicação verbal. Entre elas está o estudo de “uma gama de efeitos estilísticos abordados em termos de várias distinções: entre tópico e comentário, dado e novo, tema e rema, pressuposição e foco, pressuposição e asserção, e assim por diante” (1995, p. 202), efeitos esses determinados pela estrutura lingüística do enunciado e obtidos durante o processo de identificação de sua forma proposicional.2 2 Como exemplos desses efeitos, os autores apresentam, entre outros, os enunciados (IA) e (IB), transcritos na secao 2.2.2 Os autores propõem que tais efeitos sejam tratados em termos de informação de primeiro e de segundo planos, deixando de lado qualquer outra taxonomia até então formulada. Segundo eles, uma abordagem em termos de informação de 1º e de 2º planos conseguiria explicar todos os efeitos estilísticos possíveis no enunciado com maior generalidade, simplicidade e poder preditivo do que as demais. Antes de apresentar os critérios que delimitam os planos informativos, contudo, será necessária uma breve retomada de alguns conceitos fundamentais propostos em “Relevance”.

2.2.1 Teoria da relevância

O Princípio da Relevância de Sperber e Wilson consiste no fato de que toda a comunicação vem sempre com uma garantia de relevância - o estímulo ostensivo (ou seja, a informação verbal ou não-verbal captada pela atenção do ouvinte3 3 Como os autores usam os termos falante e ouvinte, os mantivemos, apesar de tratarmos da comunicacao verbal escrita e nao falada. ) sendo relevante na medida em que desencadeia um ato inferencial, e o ato inferencial sendo relevante na medida em que, ao levar a uma dedução provável, amplia, modifica ou fortalece o conjunto de suposições e crenças de um indivíduo em relação aos fatos que o cercam.

De acordo com tal concepção, Sperber e Wilson sustentam que a comunicação verbal envolve dois tipos de processos comunicativos: o primeiro baseado em codificação e decodificação - ou seja, no modelo do código -, e o segundo em ostensão e inferência, sendo que o primeiro serve como fonte de hipóteses e evidência para o segundo.

É importante notar também que há graus variáveis de relevância, determinados por uma relação de custo/benefício. Em outras palavras, o Princípio da Relevância envolve duas variáveis, efeitos contextuais e custo de processamento, sendo que o comportamento delas - efeitos contextuais grandes ou pequenos x custo de processamento baixo ou alto - define o grau de relevância dos enunciados.

2.2.2 Forma proposicional e interpretação pragmática

Com base no Princípio da Relevância, Sperber e Wilson colocam que sempre que um falante tiver a intenção de produzir um enunciado relevante, ele terá dois objetivos relacionados: o primeiro é o de criar algum efeito contextual no ouvinte - ou seja, de trazer uma modificação no conjunto de informações já comuns ao ouvinte sobre um dado assunto -, e o segundo é o de minimizar o custo de processamento que isso envolve.

No que diz respeito ao primeiro, os autores chamam a atenção para o fato de que dois enunciados compreendendo a mesma forma proposicional podem apresentar efeitos contextuais diferentes, exemplificando com as frases,

(1A) A irmã gêmea de Bill mora em Berlim, e

(1B) Bill tem uma irmã gêmea que mora em Berlim,

nas quais, embora as proposições expressas por 1A e 1B sejam as mesmas, em A a informação que Bill tem uma irmã gêmea é considerada pelo falante como já estando sob a entrada enciclopédica que o ouvinte possui sobre Bill, enquanto em B essa mesma informação é tratada como ausente com relação a esse assunto.

Retomando a questão da diminuição do custo de processamento dos efeitos contextuais, Sperber e Wilson lembram que os enunciados são produzidos e processados passo a passo, o que permite, por sua vez, que o ouvinte acesse alguns de seus constituintes, juntamente com suas entradas lógicas e enciclopédicas, antes do que outros. No seu entender, é precisamente a exploração eficiente dessa seqüência temporal que é fundamental para o falante que deseja atingir uma relevância ótima na medida em que ela restringe as interpretações possíveis que o ouvinte pode dar a seu enunciado. Já que um número maior de possibilidades de interpretação de um dado enunciado implica um custo de processamento maior, segue que um falante que busca ser o mais relevante possível formula seu enunciado de modo a restringir, o quanto antes e corretamente, o número de interpretações passíveis de serem feitas. Os autores ilustram tal fato pelas respectivas formas sintática e lógica do enunciado (2) “John convidou alguém”, conforme segue.

Sperber e Wilson explicam que, ao ouvir a palavra John, o ouvinte restringe o número de interpretações a somente os referentes possíveis para tal nome, e lança a hipótese antecipatória de que John fez algo; em seguida, ao ouvir o verbo convidou, tem sua hipótese confirmada, e passa a supor que John convidou alguém - e somente isso -, o que é confirmado pela ocorrência do terceiro constituinte, Lucy. Por fim, ao ter acesso a todo enunciado, se a comunicação for bem-sucedida, o ouvinte tem confirmadas todas as hipóteses antecipatórias corretas que ele lançou ao longo do processo de interpretação do enunciado, e o falante, por sua vez, conseguiu alcançar relevância ótima.

Sperber e Wilson apontam que é importante notar que as hipóteses antecipatórias que serão confirmadas estão relacionadas entre si logicamente. Em qualquer par de tais hipóteses, uma é necessariamente implicada pela outra, o que produz uma escala na qual “cada membro implica analiticamente o membro precedente imediato e é analiticamente implicado pelo membro imediatamente sucessor” (p. 208). Consideremos novamente o enunciado (2) “John convidou Lucy” e estabeleçamos sua correspondente escala focal:

2a - John fez algo./ O que John fez?

2b - John convidou alguém./ Quem John convidou?

2c - John convidou Lucy.

Nesse caso, temos então como o foco da hipótese 2a o que John fez, e o da hipótese 2b quem John convidou. Vejamos agora como a noção de escala focal é básica, nesta perspectiva, para a determinação do que constitui, em um dado enunciado, a informação de 1º plano, por um lado, e a de 2º plano, por outro.

2.2.3 Informação de primeiro e de segundo planos

Em “Relevance”, os autores explicam que o processamento de cada implicação da escala focal pode auxiliar na relevância global do enunciado de duas maneiras. Uma delas é na redução de seu custo de processamento: uma implicação pode dar acesso a um contexto que permite a obtenção de determinados efeitos contextuais, o que diminui, por sua vez, o custo para se chegar a eles. A outra ocorre quando a implicação permite que se chegue a um contexto específico de modo direto, ampliando, assim, o grau de relevância do enunciado.

As implicações que contribuem para a relevância global de modo indireto, ou seja, que facilitam o acesso a um contexto no qual efeitos contextuais são obtidos, são denominadas de implicações de segundo plano (background implications); de outro modo, as que produzem um determinado contexto por si próprias são denominadas de implicações de primeiro plano (foreground implications). Sobre isso, os autores afirmam que o foco do enunciado seria então o menor constituinte sintático cuja substituição por uma variável produz uma implicação de segundo plano ao invés de uma de primeiro plano. Voltemos ao nosso enunciado-exemplo (2) “John convidou Lucy” e sua respectiva escala focal para ilustrar os conceitos.

Escala focal:

2a) John fez algo; 2b) John convidou alguém; 2c) John convidou Lucy.

Se a implicação de que John fez algo for considerada por um ouvinte particular como relevante por si só, 2a será então uma implicação de primeiro plano, o foco sendo a sentença como um todo. Contudo, se 2a não for considerada relevante por si só, mas 2b o for, o foco então será “convidou” - e, corretamente, ele irá produzir uma informação (implicação) de primeiro plano. Do mesmo modo, se 2b não for entendida como relevante por ela mesma, e 2c o for, a informação de primeiro plano - e, assim, o foco - será a expressão “Lucy”, e a de segundo plano a de que João convidou alguém.

3 APLICAÇÃO

A fim de verificar a força explanatória das abordagens pragmáticas descritas anteriormente, as aplicamos ao texto Prato Fino (anexo), publicado na revista Veja. A seleção foi aleatória no sentido de que não nos preocupamos com fatores como tipologia, extensão ou assunto do texto. Por delimitação de espaço, ilustraremos aqui a aplicação das teorias aos primeiros quatro enunciados do texto, transcrito a seguir, e após passaremos a uma análise dos resultados.4 4 A aplicacao das teorias a todos os enunciados do texto se encontra em "Abordagens Pragmaticas a Distribuicao da Informacao em Enunciados", Dissertacao de Mestrado disponivel na Biblioteca da Pontificia Universidade Catolica do Rio Grande do Sul.

Prato Fino

Restauração revela um autêntico Carpaccio

Dona de 60% do patrimônio artístico mundial, a Itália ainda está longe de conhecer o exato valor de seu acervo. Duas semanas atrás, as autoridades de Veneza anunciaram que a restauração de um quadro sujo, com três camadas de repintura feiosíssima, revelou uma obra soberba, feita em 1513 pelo renascentista Vittore Carpaccio. Antes se imaginava que o quadro era de autoria de um pintor menor. Tinindo como se pintada ontem, Ceia em Emaús está agora avaliada em 50 milhões de dólares. Para autenticá-la como um Carpaccio, os peritos cruzaram dados técnicos, como a elegância do traço, com documentos de época. A documentação demonstra que a cena bíblica serviu de peça publicitária para o mecenas Girolamo Priuli, retratado de negro, à esquerda de Cristo. Já do lado direito de Jesus, Carpaccio pintou, de turbante, o embaixador Taghri Berdi, enviado pelo sultão de Constantinopla para negociar a paz com os venezianos. Cristo abençoa justamente a concórdia entre os adversários. Logo depois de a Ceia ficar pronta, porém, Veneza e Constantinopla entraram novamente em guerra, o que talvez tenha levado a que o quadro fosse relegado ao esquecimento. No século XX, Carpaccio entrou para o dicionário como um prato de finas lâminas de carne crua. O nome da iguaria foi inspirado nos tons de vermelho do pintor.

3.1 Aplicação da proposta de Reinhart (1981REINHART, Tanya. Pragmatics and Linguistics: an analysis of sentence topic. Philosophica, n. 27, p. 53-94, 1981.)

Considerando que a autora busca identificar tópicos de enunciados a partir da seleção das APPs possíveis, transcrevermos cada um dos quatro enunciados antes de examiná-los. Embora saibamos que a proposição extraída de um dado enunciado diz respeito a seu significado desprovido da situação contextual, consideramos desnecessário destacá-la nesta situação comunicativa específica na medida em que não encontramos, aqui, variação importante entre o significado do enunciado e o da proposição. Assim, para evitarmos paráfrases desnecessárias, nos limitamos a ilustrar o fato através do primeiro enunciado, embora utilizemos, de acordo com o critério metodológico estabelecido pela autora (ver acima), a noção de proposição, representada pelo símbolo f. Por último, a expressão “juntamente com”, presente na fórmula original, foi substituída pelo sinal +, por motivo de simplificação. ð

1 Dona de 60% do patrimônio artístico mundial, a Itália ainda está longe de conhecer o exato valor de seu acervo.

Proposição f: A Itália é dona de 60% do patrimônio artístico mundial, mas não conhece com precisão o valor de seu acervo.

APP 1 = i001 + [ a Itália, i001 ]

APP 2 ="i001 "+ [o exato valor de seu acervo, i001 ]

APP selecionada: APP 1, a Itália, com base no critério estabelecido por Reinhart de que o tópico é um elemento do enunciado sempre que o enunciado tiver como objetivo a expansão do conhecimento do interlocutor sobre esse tópico. Aqui, o enunciado predica algo sobre a Itália, e não sobre o valor de seu acervo. 5 5 Nessa abordagem, o ouvinte/leitor acessa primeiramente a informacao topical presente no enunciado.

2 Duas semanas atrás, as autoridades de Veneza anunciaram que a restauração de um quadro sujo, com três camadas de repintura feiosíssima, revelou uma obra soberba, feita em 1513 pelo renascentista Vittore Capraccio.

APP 1 = i001 + [autoridades de Veneza, i001 ]

APP 2 = i001 + [restauração de um quadro sujo, i001 ]

APP 3 = i001 + [três camadas de repintura feiosíssima, i001 ] APP 4 = i001 + [obra soberba, i001 ]

APP 5 = i001 +[Vitorre Carpaccio, i001 ]

APPA selecionada: autoridades de Veneza. O enunciado expande nosso conhecimento sobre algo que as autoridades de Veneza fizeram, que foi o anúncio de que a restauração de um quadro sujo revelou uma obra do renascentista Vittore Carpaccio.

3 Antes se imaginava que o quadro era de autoria de um pintor menor.

APP 1 = i001 + [o quadro, i001 ]

APP 2 = i001 + [autoria de um pintor menor, i001 ]

APP selecionada: o quadro. Obtivemos, pela proposição, uma nova informação sobre o quadro, e não sobre o outro componente nominal.

4 Tinindo como se pintada ontem, Ceia em Emaús está agora avaliada em 50 milhões de dólares.

APP 1 = i001 + [Ceia em Emaús, i001 ]

APP 2 = i001 + [50 milhões de dólares, i001 ]

APP selecionada: Ceia em Emaús. Novamente, o enunciado predica algo sobre o quadro, Ceia em Emaús, e não sobre a quantia de 50 milhões de dólares.

3.2 Aplicação da proposta de Sperber e Wilson (1995SPERBER, Dan; WILSON, Deidre. Relevance: communication and cognition. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1995.)

1 Prato Fino 6 6 A numeração dos enunciados nao corresponde devido a diferencas nas orientacoes metodológicas nas abordagens: na primeira analise, com base no entendimento de Reinhart de que os enunciados iniciais de um texto podem ser desprovidos de tópicos, nao consideramos o titulo nem o subtitulo na aplicacao de sua proposta, mas o fazemos aqui.

Prato Fino - informação de 2º plano. Não é relevante por si só, mas restringe, ainda que parcialmente, o número de contextos passíveis de serem apropriados em relação ao texto que se seguirá.

2 Restauração revela um autêntico Carpaccio

Restauração - informação de 2º plano. Hipótese levantada: algo envolvendo uma determinada restauração aconteceu. Questão formulada a partir da hipótese: O que aconteceu envolvendo tal restauração?

revela - informação de 2º plano. Resposta à primeira questão, e conseqüente confirmação da hipótese: a restauração revelou algo. Questão lançada a partir da hipótese confirmada: O que a restauração revelou?

um autêntico Carpaccio - informação de 1º plano. Hipótese confirmada, através da resposta à questão anterior: Restauração revelou uma obra de Carpaccio.

3 Dona de 60% do patrimônio artístico mundial, a Itália ainda está longe de reconhecer o exato valor de seu acervo.

Dona de 60% do patrimônio artístico mundial - informação de 2º plano. Hipótese gerada: alguém é dona de 60% do patrimônio artístico mundial. Pergunta formulada: Quem é dona de 60% do patrimônio artístico mundial? a Itália - informação de 2º plano. Hipótese confirmada: é a Itália quem possui 60% do patrimônio artístico mundial. Hipótese gerada: algo que diz respeito à Itália aconteceu. Questão derivada da hipótese: O que aconteceu com relação à Itália?

ainda está longe - informação de 2º plano. A partir da informação acrescentada, reformulação da questão anterior: A Itália está longe de quê? de reconhecer - informação de 2º plano. Resposta à questão anterior, com conseqüente confirmação da hipótese previamente lançada: a Itália ainda está longe de reconhecer algo. Questão derivada: o que a Itália está longe de reconhecer?

o exato valor de seu acervo - informação de 1º plano. Resposta à questão anterior, confirmando a hipótese levantada: A Itália ainda está longe de reconhecer o exato valor de seu acervo.

4 Duas semanas atrás, as autoridades de Veneza anunciaram que a restauração de um quadro sujo, com três camadas de repintura feiosíssima, revelou uma obra soberba, feita em 1513 pelo renascentista Vittore Carpaccio.

Duas semanas atrás - informação de 2º plano. Hipótese gerada: algo ocorreu duas semanas atrás, e deve ter relação com a informação acima. Questão derivada da hipótese: O que ocorreu duas semanas atrás, com relação à informação acima?

as autoridades de Veneza - informação de 2º plano. Questão anterior parcialmente respondida, com a não-confirmação da hipótese: autoridades de Veneza estão envolvidas no que ocorreu. Questão reformulada a partir da informação nova: Qual é o fato no qual as autoridades de Veneza estão envolvidas?

anunciaram - informação de 2º plano. Resposta à questão prévia: as autoridades de Veneza anunciaram algo. Questão gerada: O que as autoridades de Veneza anunciaram?

que a restauração de um quadro sujo, - informação de 2º plano. Hipótese parcialmente confirmada: as autoridades de Veneza anunciaram algo sobre a restauração de um quadro sujo. Reformulação da questão acima, a partir da informação acrescentada: O que as autoridades de Veneza anunciaram com relação à restauração de um quadro sujo?

com três camadas de repintura feiosíssima, - informação de 2º plano. Hipótese ainda não confirmada, já que a informação seguinte descreve o estado do quadro antes do trabalho dos restauradores, mas não mostra o que as autoridades venezianas anunciaram sobre a restauração deste quadro. Questão derivada: O que as autoridades anunciaram com relação a este quadro sujo?

revelou - informação de 2º plano. Hipótese confirmada: a restauração de um quadro sujo revelou algo. Nova questão derivada: O que a restauração de um quadro sujo revelou?

uma obra soberba - informação de 2º plano. Hipótese confirmada: a restauração revelou uma obra soberba.

feita - informação de 2º plano. Hipótese gerada: a próxima informação será sobre ou como a obra foi feita ou aonde foi feita. Questão lançada: Quando ou como ela foi feita?

em 1513 - informação de 2º plano. Uma das duas hipóteses possíveis confirmadas: informação é sobre quando foi feita, ou seja, 1513. Nova pergunta lançada, com base na preposição mais artigo seguintes (pelo): Por quem ela foi feita?

pelo renascentista Vittore Carpaccio - informação de 1º plano. Resposta à questão anterior, e confirmação da hipótese: a obra é do renascentista Vittore Carpaccio.

5 Antes se imaginava que o quadro era de autoria de um pintor menor. Antes - informação de 2º plano. Hipótese levantada: antes da restauração, havia um outro fato. Questão derivada: que fato era esse?

se imaginava - informação de 2º plano. Hipótese confirmada: o fato era de que antes da restauração se imaginava algo diferente. Questão derivada da confirmação da hipótese: O que se imaginava?

que o quadro - informação de 2º plano. Hipótese nem confirmada nem refutada: antes se imaginava algo em relação ao quadro, mas não se sabe ainda o quê. Questão anterior reformulada: O que se imaginava sobre o quadro antes da restauração?

era de autoria - informação de 2º plano. Resposta à questão, com confirmação da hipótese: imaginava-se que o quadro era de autoria de alguém que, naturalmente, não se chamava Carpaccio. Questão derivada: imaginava-se que a autoria pertencia a quem?

de um pintor menor - informação de 1º plano. Hipótese confirmada, pela resposta à questão precedente: imaginava-se que o quadro era de autoria de um pintor menor.

6 Tinindo como se pintada ontem, Ceia em Emaús está agora avaliada em 50 milhões de dólares.

Tinindo como se pintada ontem - informação de 2º plano. Hipótese gerada: deduz-se que o que estava tinindo era a obra de Carpaccio. Questão formulada a partir da hipótese: A obra que está tinindo como se pintada ontem é de fato a de Carpaccio?

Ceia em Emaús - informação de 2º plano. Questão respondida e hipótese confirmada, considerando que o leitor conta com os estímulos visual (foto) e lingüístico (legenda da foto) extratextuais que lhe asseguram o fato da obra mencionada ser a de Carpaccio. Nova hipótese gerada: Que fato, além de sua descoberta, está ligado ao quadro do pintor italiano?

está agora avaliada - informação de 2º plano. Resposta à pergunta precedente: o outro fato é a sua avaliação feita recentemente. Questão relevante gerada: Em quanto a obra está avaliada?

em 50 milhões de dólares - informação de 1º plano. Hipótese confirmada: a obra está agora avaliada em 50 milhões de dólares.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora seja uma conclusão parcial, considerando-se que a aplicação foi restrita a um pequeno número de enunciados, a análise sugere que as duas abordagens são bem-sucedidas em seu objetivo de explicar a distribuição em enunciados, embora cada uma busque respostas a questões teóricas específicas.

Em termos de pressupostos teóricos, há uma concordância entre ambas de que o contexto é construído durante o processamento interpretativo, o que significa que as trocas comunicativas independem da noção de conhecimento prévio partilhado. Além disso, também parece viável aproximar o papel da informação de segundo plano de Sperber e Wilson ao papel da informação topical de Reinhart. Para esta, os tópicos funcionariam como entradas através das quais o falante poderia acessar - e, do mesmo modo, armazenar - na memória o conjunto de informações relativas aos tópicos pertinentes; para aqueles, a função da informação de segundo plano seria contribuir indiretamente para a relevância do enunciado, por meio da diminuição do esforço de processamento requerido para sua interpretação, fornecendo acesso a informações cruciais para o processamento de informações. Essa compatibilidade poderia explicar, nos parece, o quadro 1, que mostra que os SNs dos dezessete enunciados do texto que foram selecionados como tópicos, de acordo com Reinhart, também constituíam parte dos segmentos dos enunciados identificados como informações de segundo plano, segundo Sperber e Wilson.

QUADRO
1 - Classificação dos sintagmas nominais em termos de informação topical e de informação de 2º plano em “Prato Fino”:

Mesmo tendo esses pressupostos em comum, é importante atentar para o fato de que cada uma das teorias busca respostas a diferentes fenômenos. A ambição de Reinhart é apresentar um aparato teórico e metodológico que viabilize a identificação da informação topical nos mais diversos enunciados, a fim de, com isso, entender melhor questões relativas à coerência discursiva. Já Sperber e Wilson apresentam um tratamento alternativo à classificação dos diferentes tipos de informação presentes em enunciados com vistas a ilustrar, a partir disso, como as informações são processadas pela cognição humana e, principalmente, como esse processamento está em conformidade com seu Princípio da Relevância.

Independentemente dos objetivos específicos de cada proposta, constatamos uma semelhança em termos de aplicabilidade. A viabilidade da aplicação nos diferentes enunciados do texto analisado nos pareceu um forte indicador da existência de coerência entre a metodologia elaborada e o fenômeno teórico sob investigação em ambas abordagens.

REFERÊNCIAS

  • HALLIDAY, Michael A K. Notes on transitivity and theme in English. Journal of Linguistics, n. 3, p. 199-244, 1967.
  • GIVON, Talmy. The grammar of referential coherence: a cognitive re-interpretation. In: ______. Syntax: a functional-typological introduction. Amsterdã/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company, 1990. p. 893-944.
  • PRATO fino. Revista Veja, São Paulo, p. 152, nov. 1998.
  • REINHART, Tanya. Pragmatics and Linguistics: an analysis of sentence topic. Philosophica, n. 27, p. 53-94, 1981.
  • REINHART, Tanya. Conditions for text coherence. Poetics Today, v. 1, n. 3, 1980.
  • SCHLOBINSKI, Peter; SCHÜTZE-COBURN, Stephen. On the topic of topic and topic continuity. Linguistics, v. 30, p. 89-121, 1992.
  • SEUREN, Peter A. M. Western Linguistics: an historical introduction. Oxford: Blackwell, 1998.
  • SPERBER, Dan; WILSON, Deidre. Relevance: communication and cognition. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1995.
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  • STRAWSON, P. F. Referência identificadora e valores-de-verdade. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985. p. 301-6. (Coleção: Os Pensadores)
  • 1
    Como exemplos, temos a abordagem de Halliday (1985), que divide os enunciados em tema e rema. 0 primeiro e definido tanto pragmaticamente ("o ponto inicial de uma mensagem, sobre o que a oracao vai tratar") como sintaticamente ("o primeiro constituinte da sentenca") quanto fonologicamente ("frequentemente marcado na fala"). De modo semelhante, Giv6n (1990) considera que os t6picos sao constituidos ou pelo sujeito ou pelo objeto das oracoes - criterio sintatico - e correspondem, na proposicao, a informacao dada - criterio semantico/ pragmatico.
  • 2
    Como exemplos desses efeitos, os autores apresentam, entre outros, os enunciados (IA) e (IB), transcritos na secao 2.2.2
  • 3
    Como os autores usam os termos falante e ouvinte, os mantivemos, apesar de tratarmos da comunicacao verbal escrita e nao falada.
  • 4
    A aplicacao das teorias a todos os enunciados do texto se encontra em "Abordagens Pragmaticas a Distribuicao da Informacao em Enunciados", Dissertacao de Mestrado disponivel na Biblioteca da Pontificia Universidade Catolica do Rio Grande do Sul.
  • 5
    Nessa abordagem, o ouvinte/leitor acessa primeiramente a informacao topical presente no enunciado.
  • 6
    A numeração dos enunciados nao corresponde devido a diferencas nas orientacoes metodológicas nas abordagens: na primeira analise, com base no entendimento de Reinhart de que os enunciados iniciais de um texto podem ser desprovidos de tópicos, nao consideramos o titulo nem o subtitulo na aplicacao de sua proposta, mas o fazemos aqui.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Jun 2004

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2003
  • Aceito
    11 Mar 2004
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