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ABORDAGEM EMPIRICISTA EM TRABALHOS DE VARIAÇÃO SOCIOLINGUISTICA

THE EMPIRICIST APPROACH IN STUDIES IN THE AREA OF SOCIOLINGUISTIC VARIATION

APPROCHE EMPIRIQUE DANS DES TRAVAUX DE LA SOCIOLINGUISTIQUE VARIATIONNISTE

ABORDAJE EMPIRICISTA EN TRABAJOS DE VARIACIÓN SOCIOLINGUÍSTICA

Resumo

Este texto constitui-se de uma análise do modelo teórico-metodológico da Sociolingüística Variacionista e de uma crítica às abordagens empiricistas presentes em pesquisas feitas segundo esse modelo. A mudança lingüística é sempre resultado de uma de interação muito complexa de causas sociais e lingüísticas, razão por que dados quantitativos fragmentários, divorciados de uma interpretação globalizante do processo social, não são suficientes para explicar essa mudança historicamente determinada.

Palavras-chave:
variação lingüística; mudança lingüística; sociolingüística

Abstract

The present text is an analysis of the theoretical-methodological model of Variational Sociolinguistics and a criticism of the empirical approaches found in the research developed according to that model. Linguistic change is always the result of a very complex interaction of social and linguistic causes; for this reason fragmentary quantitative data, separated from a global interpretation of the social process, are not enough to explain that historically determined change.

Key words:
linguistic variation; linguistic change; sociolinguistics

Résumé

Le texte de cet article est constitué d’une analyse du modèle théorique- méthodologique de la Sociolinguistique Dialectale, (c’est-à-dire, de la discipline qui traite des variations linguistiques), et d’une critique aux approches empiriques trouvées dans les recherches conduites selon ce modèle. Le changement linguistique est toujours le résultat d’une interaction très complexe dont les causes sont sociales et linguistiques, ce qui explique pourquoi les données fragmentaires, divorcées d’une interprétation globale du procès social, ne suffisent pas pour expliquer ce changement historiquement déterminé.

Mots-clés:
variation linguistique; changement linguistique; sociolinguistique

Resumen

Este texto se constitue de un análisis del modelo teóricometodológico de la Sociolingüística Variacionista y de una crítica a los abordajes empiricistas presentes en investigaciones hechas segundo ese modelo. El cambio lingüístico es siempre resultado de una interación muy compleja de causas sociales y lingüísticas, razón por que datos quantitativos fragmentarios, divorciados de una interpretación globalizante del proceso social, no son suficientes para explicar ese cambio historicamente determinado.

Palabras-clave:
variación lingüística; cambio lingüístico; sociolingüístico

1 INTRODUÇÃO

A Sociolingüística Variacionista, ao equacionar a questão da mudança, conseguiu superar lacunas e paradoxos apresentados pelo modelo estrutural- funcionalista. No entanto, apesar de as contribuições da teoria para o desenvolvimento dos estudos da linguagem serem muitas, isso não significa que o modelo teórico e o programa de pesquisas da Sociolingüística Variacionista estejam livres de limitações e de paradoxos. Uma dessas limitações diz respeito à “abordagem empiricista dos fatos lingüísticos” (LUCCHESI, 2000, p. 203 e ss.), caracterizada pelo predomínio de interpretações quantitativas em detrimento das interpretações qualitativas, que, segundo o referido autor, “se fundamentam numa compreensão mais refinada do processo sócio-histórico, e da própria interação entre este e o processo lingüístico”.

Visando a desenvolver reflexões sobre a abordagem empiricista da Teoria da Variação Sociolingüística, tomarei por base dois artigos publicados na revista Letras de Hoje (2000, v. 35): “Apagamento da vibrante pós-vocálica nas capitais do sul do Brasil”, de Valéria N. de Oliveira Monaretto e “A redução variável de ditongos nasais átonos no português do sul do Brasil”, de Elisa Battisti. Mas, antes de analisar os textos quanto ao tratamento quantitativo dos dados e generalizações empiricistas, discutirei alguns princípios sobre os quais se assenta a referida teoria.

2 BASES E PRINCÍPIOS DA TEORIA VARIACIONISTA

A Sociolingüística Variacionista se orienta por uma concepção de língua como sistema socialmente determinado: um sistema heterogêneo, cuja variação estrutural está relacionada às alterações dos padrões culturais e ideológicos da comunidade de fala.1 1 "Most groups of any permanence, be they small bands bounded by face to face contact, modern nations divisible into smaller subregions, or even occupational associations or neighborhood gangs, may be treated as speech communities, provided they show linguistic peculiarities that warrant special study. The verbal behavior of such groups constitutes a system" (GUMPERZ, 1968, p. 219). Opõe-se, assim, à concepção de língua como sistema homogêneo e autônomo que se impõe unitariamente a todos os falantes da comunidade lingüística indistintamente.2 2 A conceituacao de comunidade linguistica, ou comunidade de fala, apresenta algumas dificuldades que resultam de diferentes concepcoes de lingua, dialeto, variedade, bilinguismo, suas funcoes, fronteiras, padronizacao etc. Sobre esse conceito em Labov e outros autores, confira Monteiro (2000, p. 39-52). Esse conceito permite superar a dicotomia sincronia e diacronia, no sentido que havia adquirido no estruturalismo, uma vez que a análise sincrônica deve-se fundamentar no conceito de língua como um sistema de regras variáveis, no qual um contínuo processo de variação e mudança opera na estrutura lingüística.

Desse modo, o desenvolvimento histórico de uma língua deixa de ser representado pela sucessão de sistemas discretos, unitários, homogêneos e autônomos.3 3 "Nao se pode mais seriamente defender que a linguistica deve limitar suas explicacoes da mudanca as influencias mutuas dos elementos linguisticos, definidos pela funcao cognitiva. Nem se pode argumentar em qualquer sentido serio que o sistema linguistico em mudanca e autonomo [...] nao e possivel concluir uma analise das relacoes estruturais dentro de um sistema linguistico sem considerar as relacoes externas" (cf. LABOY, 1972, p. 181-2). Em outras palavras, as mudanças lingüísticas não podem ser tratadas como leis,4 4 Faz-se aqui referencia a dois grandes principios ou hip6teses que marcaram o perfil das investigacoes dos neogramaticos sobre a linguagem no final do seculo XIX: o principio da regularidade das mudancas fonol6gicas e o principio da analogia. Mutuamente complementares, esses dois principios permitiam tracar o perfil hist6rico de um dado sistema linguistico sem que as eventuais excecoes as regras pudessem comprometer o poder de generalizacao dos resultados. Para maiores informacoes sobre as leis foneticas e a analogia, sugerimos consultar Principios Fundamentais da Historia da Lingua, de H. Paul (1966) e Resolving the neogrammarian controversy, de W. Labov (1981). uma vez que a história das línguas não está submetida a princípios universais, constantes e necessários. Como produto da atividade humana, as línguas submetem-se às contingências e vicissitudes da própria vida concreta dos homens, da história peculiar de cada sociedade humana.

Os estudos empíricos da sociolingüística “demonstram que a mudança não é apenas uma função do sistema lingüístico, mas uma função de interação da estrutura interna da língua com o processo social que ela realiza” (LUCCHESI, op. cit., p. 200). A mudança é, conforme esses estudos, determinada em grande parte pelas relações sócio-políticas e ideológicas que se estabelecem dentro da comunidade de fala (relações de poder e de prestígio, posição social, orientação cultural do falante etc.).

Mas, ao romper com os limites impostos pela análise estruturalista, a Sociolingüística não nega as contribuições que essa análise oferece para a compreensão dos fatos lingüísticos. Partindo do pressuposto de que a mudança no tempo tem relações com a variação sincrônica e que essa variação está correlacionada com os aspectos da estrutura social, Weinreich, Labov e Herzog (1968WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin, I. Empirical foundations for a theory of language change. In: LEHMANN; MALKIEL (Eds.). Directions for Historical Linguistics. Austin: University of Texas Press, 1968.) estabelecem como ponto essencial de investigação histórica localizar o fenômeno sob mudança tanto no contexto estrutural (interno) quanto no contexto social (externo), pois, para eles, os estudos empíricos revelam a língua como um sistema que muda em associação com as mudanças na estrutura social.

O equacionamento da questão da variação, de acordo com WLH (op. cit.), pressupõe respostas para cinco problemas, a saber:

  • a) fatores condicionadores, com seus desdobramentos teóricos em fatores de ordem social e de ordem lingüística. Quais são as condições para mudança que ocorrem em dada estrutura (pode ser constatada mudança em progresso);

  • b) o encaixamento da variação das formas em observação na matriz dos concomitantes lingüísticos e extralingüísticos e nos desdobramentos da estrutura social. Contextos lingüísticos que favorecem um determinado tipo de mudança desencadeiam outras mudanças, em possíveis relações em cadeia;

  • c) avaliação das mudanças em termos de seus possíveis efeitos sobre a estrutura lingüística, sobre a eficiência comunicativa e sobre um amplo conjunto de categorias não representacionais (inclusive interacionais, discursivas e pragmáticas) envolvidas na fala. A teoria da mudança lingüística deve estabelecer empiricamente as correlações subjetivas das várias leis e variáveis na estrutura heterogênea;

  • d) a transição entre quais duas formas de uma língua definida para uma comunidade de fala em diferentes momentos, i. é., análise dos estágios intermediários, que podem ser observados, ou devem ser postulados para essas formas: como um falante aprende uma forma alternante, tempo em que as duas formas co-existem, tempo em que uma das formas prevalece sobre a outra;

  • e) implementação, ou seja, quais fatores são responsáveis pela implementação da mudança e por que a mudança em um traço estrutural ocorre em determinada língua em um dado momento, mas não em outra língua com o mesmo traço, ou na mesma língua, em outros momentos? Os processo de mudança devem receber estímulos e restrições da sociedade e da estrutura da língua.

O equacionamento das questões da mudança lingüística, cuja explicação depende de outras tarefas como a explicação da origem, da propagação e da realização completa dessa mudança, prevê, entre outras etapas, que o estudo do processo deve considerar tanto o encaixamento da mudança na estrutura lingüística, quanto o encaixamento na estrutura social.5 5 "Por una parte, cualquier cambio dado se incrusta en la matriz estructural de las formas linguisticas que se relacionen mas estrechamente con el, y el cambio se refrenara, redirigira o acelerara por su relaci6n con otras formas. Entendido asi, el problema del incrustamiento es un aspecto implicito del problema de las constricciones. Por otra parte, un cambio se incrusta en la comunidad de habla. Para entender las causas del cambio es necesario saber d6nde, dentro de la estructura social, se origin6 el cambio, c6mo se extendi6 a otros grupos sociales, y que grupos mostraron mas resistencia ante el. Puesto que el incrustamiento en una estructura mayor supone inevitablemente causasi6n multiple, la soluci6n a cualquier problema de incrustamiento requiere analisis multivariable" (LABOY, 1996 [1994], p. 34). Por outro lado, a análise da variação no uso da língua pressupõe que a heterogeneidade lingüística não é aleatória, mas regulada por um conjunto de regras. Assim como existem regras categóricas que obrigam o falante a usar uma forma e não outra, também há condições ou regras variáveis que favorecem ou inibem, variavelmente e com pesos específicos, o uso de uma ou de outra forma variável em cada contexto. Esses fatores (condicionadores, regras variáveis) podem ser de ordem interna do sistema lingüístico ou de ordem externa a ele. No primeiro caso, têm-se os fatores estruturais relativos ao contexto em que a variação ocorre (por exemplo, em português, a monotongação de /ei/ é mais freqüente quando o segmento seguinte é palatal (pexe) do que quando é alveo-dental (peito); no segundo caso, têm-se os fatores sociais, entre os quais idade, sexo, escolaridade, classe social etc. Cada caso, no entanto, deve ser estudado levando em conta a matriz que lhe é própria. No emprego de formas de tratamento (tu, você, senhor), por exemplo, a diferença de status social, a idade dos interlocutores e o grau de formalismo influem sobre a escolha de uma ou de outra forma.

De acordo com Naro (1992NARO, A. J. Modelos quantitativos e tratamento estatístico. In: MOLLICA, Maria Cecília (Org.). Introdução à sociolingüística. Rio de Janeiro: UFRJ, 1992., p. 18), “o problema central que se coloca para a Teoria da Variação é a avaliação do QUANTUM com que cada categoria postula contribuir para a realização de uma ou de outra variante das formas em competição. Na fala real, que constitui o dado do lingüista, tais categorias se apresentam sempre conjugadas, isto é, na prática, a operação de uma regra variável é, sempre, o efeito da atuação simultânea de vários fatores”. Isto significa que é impossível medir a influência ou o peso de uma dada categoria sem medir simultaneamente o efeito das outras categorias também obrigatoriamente presentes.6 6 A luz dos fundamentos expostos principalmente em Empirical fundations for a theory of language change (WEINREICH, LABOY e HERZOG, 1968) e The social setting of linguistic change (LABOY, 1972), nao parece razoavel separar com exito os fatores internos dos fatores sociais (cf. LABOY, 1996 [1994]).

A fundamentação empírica desses princípios não está na localização do ponto em que a mudança surge ou começa, mas na sua propagação na comunidade de fala. “E a regularidade dessa co-variação sistemática com os fatores sociais se refletiria na regularidade dos resultados dos processos de mudança. É, portanto, no processo de propagação da mudança na comunidade de fala que se pode enfrentar o problema do encaixamento da mudança na estrutura social” (LUCCHESI, 2000, p. 202).7 7 "Só quando um significado social e assimilado a tais variacoes e que serao imitadas e comecam a desempenhar um papel na lingua. A regularidade deve ser entao encontrada no resultado final do processo [...], e nao no inicio" (cf. LABOY, 1972, p. 23).

Retomemos agora os trabalhos de pesquisa variacionista, acima citados, para examinar em que medida eles respondem as perguntas formuladas pela teoria sociolingüística, especialmente aquelas relativas aos condicionadores estruturais e socais e ao encaixamento lingüístico e extralingüístico.

3 O APAGAMENTO DA VIBRANTE POSVOCÁLICA NAS CAPITAIS DO SUL DO BRASIL (MONARETO, 2000)

O corpus constitui-se de 36 entrevistas do projeto VARSUL.8 8 Variacao Linguistica Urbana no Sul do Pais, projeto desenvolvido por pesquisadores da UFSC, UFRGS, UFPR e PUC-RS.

As variáveis sociais eleitas para a análise são: localidade (12 informantes para cada uma das três capitais do sul do país), sexo (18 mulheres e 18 homens), escolaridade (18 informantes do primeiro grau e 18 informantes do segundo grau) e idade (12 informantes da primeira faixa: 25-39; 12 da segunda: 40-54; e 12 da terceira: + 55).

As variáveis lingüísticas são: posição da vibrante na palavra (medial ou final), contexto precedente (vogal anterior, vogal posterior), contexto seguinte (oclusivas, fricativa, nasais, laterais, vibrantes, africadas, vogais ou pausa), classe morfológica (verbos: conjugados ou no infinitivo; não-verbos: substantivos, adjetivos; e outras palavras: advérbios, conjunções, preposições e pronomes), função do /r/ (morfêmico e não-morfêmico), dimensão da palavra (monossílabo, dissílabo, trissílabo ou polissílabo), acento lexical (se a vibrante está em sílaba acentuada ou não) e ritmo (fala normal e fala acelerada).

4 A REDUÇÃO VARIÁVEL DOS DITONGOS NASAIS ÁTONOS NO PORTUGUÊS DO SUL DO BRASIL (BATTISTI, 2000BATTISTI, Elisa. A redução variável dos ditongos nasais átonos no português do sul do Brasil. Letras de Hoje, Porto Alegre, 35, n. 1, p. 255-274, 2000.)

Fazem parte da amostra 5.649 ocorrências de ditongo nasal átono (ou de redução) obtidas de 90 informantes selecionados pelo VARSUL e codificadas de acordo com sete variáveis e respectivos grupos de fatores.

Variáveis extralingüísticas: localização geográfica (RS: 18 da capital, 6 de Flores da Cunha e 6 de São Borja; SC: 18 da capital, 6 de Lages e 6 de Chapecó; PR: 18 da capital, 6 de Irati e 6 de Londrina), escolaridade (0 a 4 anos; 5 a 8 anos; 9 a 12 anos), sexo (homem e mulher).

Variáveis lingüísticas: classe de palavra (verbo, substantivo, adjetivo, advérbio, nomes em -agem), tipos de vogal do ditongo (O, E, A), contexto fonológico anterior (consoante nasal e consoante não-nasal), contexto fonológico seguinte / no início da palavra seguinte (consoante nasal, consoante não-nasal, vogal, pausa).

5 VARIÁVEL LINGÜÍSTICA E CONDICIONADORES

Os resultados das pesquisas em exame revelam que a variável /r/ sofre apagamento em 40% das possibilidades e os ditongos nasais átonos, por sua vez, sofrem monotongação em 43% das possibilidades.

Em ambos os trabalhos, o isolamento do contexto se dá exclusivamente em termos de estruturas lingüísticas: o que vem antes, o que vem depois, se a sílaba é tônica, se a sílaba é átona etc. Não há referências à seleção de formas controladas, por exemplo, por condições discursivas e pragmáticas. Convém lembrar que há formas marcadas discursivo-pragmaticamente que emergem em situações específicas da fala. “Esses casos ilustram a possibilidade de instauração de um paradoxo que pode dificultar ou até obstar a desejada adequação entre os postulados sociolingüísticos e a metodologia de que se servem. O diagnóstico da sistematicidade da variação acha-se apensado aos próprios dados, não por eles inexistirem na língua, mas em razão da eventualidade da amostra” (MOLLICA e RONCARATI, 1991MOLLICA, Cecília; RONCARATI, Cláudia. Enfoques sobre amostragem em sociolingüística. D.E.L.T.A., São Paulo, v. 7, p. 521-528, 1991., p. 524). Em outras palavras, os dados podem gerar resultados incompletos ou mesmo imperfeitos.

Mas o que é uma variável lingüística? Tarallo (2000TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolingüística. São Paulo: Ática, 2000., p. 8) define assim as variantes e variáveis: “variantes lingüísticas são, portanto, diversas maneiras de dizer a mesma coisa em um mesmo contexto, e com o mesmo valor de verdade”. O postulado é: além da manutenção do significado, é necessária a identidade de contextos para que duas variantes possam ser atribuídas à mesma variável. Esta definição nos suscita de imediato duas perguntas: o que devemos entender por ‘mesmo contexto’ e o que significa ‘o mesmo valor de verdade’?

A alusão ao contexto deriva do próprio conceito de variação, ou seja, a opção entre uma forma e outra. Se num certo contexto pré-determinado, por exemplo, /o cavalo/, há restrições categóricas para a variação do tipo /cavalo o/ , não podemos dizer que há variação, pois o falante não tem escolha.

Nas pesquisas de ‘apagamento da vibrante’ e ‘redução de ditongos nasais átonos’, que aqui me propus a examinar em relação a alguns princípios teóricos da Teoria da Variação, os contextos definidos pelas autoras são, respectivamente: a) /r/ após vogal no final da palavra ou no meio e b) ditongo nasal em sílaba átona. Ambos são contextos fonológicos. Mas, além dos condicionadores fonológicos, tanto num quanto no outro trabalho, são relacionados condicionadores que operam no contexto morfológico, por exemplo, classes de palavras e morfema (este só para apagamento da vibrante). Naturalmente, é de se esperar que uma regra fonológica tenha repercussões em outros níveis estruturais, favorecendo ou inibindo a variação.

Por isso, é de se perguntar: se as regras variáveis em estudo fossem analisadas em outros contextos (morfológicos, sintáticos, discursivos, estilísticos, pragmáticos, gênero discursivo etc.), será que poderíamos falar das mesmas variáveis? Pode-se perguntar o mesmo sobre os contextos da enunciação e de interação emissor- receptor. Fenômenos gramaticais bem definidos, como o apagamento da vibrante ou a monotongação, os quais estou examinando mais de perto, mas também a concordância verbal, o uso das formas você ou a gente e tantos outros, são processos que se manifestam através de expressões distintas, muitas vezes pertencentes a diferentes níveis lingüísticos, envolvendo diversos mecanismo lingüísticos e extralingüísticos. Assim sendo, a escolha não se daria entre duas alternativas, “mas numa escala de possibilidades para aquilo que poderíamos chamar de domínio funcional, e aí estudar a variação. Neste caso, o significado referencial seria preservado, mas a questão do contexto exigiria um cuidado especial, ao levar em conta a situação discursiva” (SILVA, 1992SILVA, Vera Lúcia Paredes da. A relevância dos fatores internos. In: MOLLICA, Maria Cecília (Org.). Introdução à sociolingüística. Rio de Janeiro: UFRJ, 1992. , p. 36).

Por outro lado, se há fatores não estruturais que têm o poder de decisão na seleção, deve-se levar em conta a hipótese de que há fatores tratados como condicionadores que, eventualmente, são fatores determinantes na seleção das formas. Veja-se, como exemplo, o caso das construções Sujeito-Verbo e Verbo- Sujeito que, de acordo com Votre e Naro (1984 apudOliveira, 1987OLIVEIRA, Marco Antônio de. Variável lingüística: conceituação, problemas de descrição gramatical e implicações para a construção de uma teoria gramatical. D.E.L.T.A., São Paulo, v. 3, p. 19-34, 1987., p. 25), tidas em outros estudos como variantes de uma mesma variável, “mostraram que estão, na verdade, em distribuição complementar, sendo cada uma delas selecionada por tipos diferentes de estruturação discursiva (em termos de topicidade, tematicidade, transitividade etc.).”

Uma outra questão que deve ser posta é a impossibilidade de medir, nos dados reais da fala, a influência de cada um dos fatores, sem medir simultaneamente o efeito de outros fatores, internos e externos, também obrigatoriamente presentes. A aplicação de técnicas de quantificação através de pacote estatístico conhecido como VARBRUL é o modo como os sociovariacionistas buscam controlar o efeito simultâneo de tais condicionadores.9 9 Como sao muitos os grupos de fatores que podem intervir na variacao linguistica, os sociovariacionistas tentaram encontrar um modelo matematico mais adequado a analise estatistica. As pesquisas iniciais trabalhavam com um modelo aditivo, que logo revelou incoerencias e teve de ser substituido por outro, multiplicativo. Posteriormente, adotou-se um modelo misto (o logistico) que, ao mesmo tempo em que aproveita as vantagens do aditivo e do multiplicativo, elimina as possiveis desvantagens ou incoerencias de ambos. A justificativa empirica, conforme Naro (1992), e o fato de que o novo modelo descreve uma curva com o formato da letra S, aplicando-se bem a descricao da variacao sincronica. Todavia, os resultados podem ser totalmente diferenciados quando se mudam as variáveis e se troca o input. A decisão de controlar certos condicionadores tanto internos quanto externos, e não outros, está sujeita ao poder discricionário do investigador, que faz uso da experiência e da intuição. Por mais ampla que seja a lista dos condicionadores a serem controlados, não há certeza de que o conjunto dos condicionadores, ou mesmo dos determinantes, tenha-se esgotado. Deste modo, e considerando as limitações da amostragem, os resultados obtidos serão tão somente indicadores de variação, não permitindo conclusões definitivas.

6 O ENCAIXAMENTO DA VARIAÇÃO

O encaixamento lingüístico e social da variável lingüística, em termos casuais, tem levado a sociolingüística variacionista à abordagem empiricista dos fatos lingüísticos. Através dos estudos de Monaretto (2000MONARETTO, Valéria N. de Oliveira. O apagamento da vibrante posvocálica nas capitais do sul do Brasil. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 35, n. 1, p. 275-284, 2000. ) e Battisti (2000BATTISTI, Elisa. A redução variável dos ditongos nasais átonos no português do sul do Brasil. Letras de Hoje, Porto Alegre, 35, n. 1, p. 255-274, 2000.), procurarei demonstrar como isso acontece. Para melhor situar o problema, antes exporei como Labov procura enquadrar o processo lingüístico de centralização dos ditongos /ay/ e /aw/ na ilha de Martha’s Vineyard, estudo realizado em 1963.

Em resumo, o quadro socioeconômico de Martha’s Vineyard pode ser definido assim: em paralelo ao declínio das atividades econômicas tradicionais, cresce na ilha o turismo, com a invasão de padrões culturais do continente. Isso provocou duas atitudes distintas entre os ilhéus. De um lado estavam aqueles que reagiram à invasão dos turistas do continente, tentando preservar sua própria identidade; de outro, aqueles que se identificam com o processo econômico em curso, buscando a integração cultural com os padrões do continente. Essas atitudes de orientação cultural ou ideológicas foram determinantes no processo de centralização dos ditongos /ay/ e /aw/, na comunidade da ilha. A centralização dos ditongos tornou-se a marca de identidade cultural da ilha, pois aqueles habitantes que resistiam à perda de identidade foram os que mais centralizaram. Esse fator se superpõe e permeia todos os outros fatores sociais considerados.

Assim sendo, apesar de toda a base empírica que dá sustentação ao processo de centralização dos ditongos em Martha’s Vineyard, a inferência de que a variável subordina-se à orientação cultural é resultado da interpretação do autor, e não reflexo imediato de uma quantificação neutra. Passou-se, então, do plano quantitativo, em que há apenas impressões fragmentárias, para um plano de interpretação qualitativa.10 10 "Uma analise desse tipo, que permite uma compreensao globalizante da interacao entre o processo linguistico e o processo social e, portanto, muito mais esclarecedora do que uma que apresentasse resultados do tipo: 'os fazendeiros centralizam mais do que os pescadores', 'os homens centralizam mais do que as mulheres' etc. Quanto mais esclarecedor for um estudo sobre um processo particular de mudanca (como e o caso de Martha's Vineyard), mais esse processo sera individualizado e particularizado, ja que se trata de uma representacao adequada de um processo hist6rico e cultural, o que extrapola as generalizacoes derivadas do indutivismo empiricista que infelizmente tem marcado as preocupacoes da sociolinguistica variacionista" (LUCCHESI, 2000, p. 204). O processo de mudança é sempre resultado de um processo de interação extremamente complexo. Assim, as generalizações empíricas, principalmente quando não integradas numa interpretação globalizante do processo social, muito pouco esclarecem sobre o processo de mudança, que é historicamente determinado. Para Lucchesi (op. cit.), as quantificações representam apenas aproximações do fenômeno e “as únicas generalizações possíveis não se referem ao que foi apreendido, mas como se deu a apreensão” (p. 205).

Apresentarei a seguir algumas generalizações empíricas retiradas dos trabalhos de Monaretto (2000MONARETTO, Valéria N. de Oliveira. O apagamento da vibrante posvocálica nas capitais do sul do Brasil. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 35, n. 1, p. 275-284, 2000. ) de Battisti (2000BATTISTI, Elisa. A redução variável dos ditongos nasais átonos no português do sul do Brasil. Letras de Hoje, Porto Alegre, 35, n. 1, p. 255-274, 2000.). Observo, por oportuno, que exemplos de generalizações desse tipo podem ser encontradas em centenas de outros trabalhos sociovariacionistas. Portanto, não se trata de uma situação particularizada.

Em Monaretto, que estudou o ‘apagamento das vibrantes pós-vocálicas nas capitais do sul do Brasil’, lêem-se as seguintes observações quantitativas, entre outras:

  • a) o apagamento ocorre quase que categoricamente em final de palavras;

  • b) a queda do /r/ é mais freqüente nos jovens, decaindo ao passar pelas outras duas faixas de informantes mais velhos, ou seja, evidencia-se um processo de mudança em progresso;

  • c) há mais apagamento do /r/ em Florianópolis do que nas outras cidades, evidenciando o estágio final do processo de enfraquecimento que a vibrante vem sofrendo nessa região, o que justifica a preferência dos informantes dessa localidade pela articulação posterior da vibrante;

  • d) a dimensão do vocábulo faz-se importante, pois a queda é baixa em monossílabos;

  • e) prefere-se apagar o /r/ em posição não acentuada, isto é, é mais comum dizer açúca, revóvi do que calô, douto;

  • f) a vogal anterior como contexto precedente favorece o apagamento;

  • g) os falantes de baixa instrução, primeiro grau (incompleto muitas vezes), apresentam mais ocorrências de apagamento do que falantes que concluíram o segundo grau.

Com base nos dados quantitativos, Monaretto fez as seguintes generalizações, entre outras:

  • a) esses resultados já eram esperados, uma vez que, em verbos, o infinitivo e a primeira e terceira pessoas do futuro do subjuntivo são redundantemente marcados em português tanto pela presença do -r final como pela tonicidade da sílaba que contém o segmento;

  • b) o apagamento do /r/ ocorre geralmente quando constitui morfema;

  • c) a localidade mostrou-se mais importante em não-verbos do que em verbos. Isso demonstra que o fator dialetal é o que condiciona a variação em não-verbos, ao passo que em verbos, a variação é motivada por fatores lingüísticos;

  • d) nota-se que nessa região preserva-se mais a estrutura silábica em final de palavra do que no dialeto do Rio de Janeiro, por exemplo, que mostra estar em um estágio mais avançado nesse processo. Com isso, pode-se concluir que o sul do Brasil é uma região conservadora;

  • e) o apagamento do /r/ pós-vocálico na fala do sul do Brasil é um processo que atua sobretudo no final de palavra.

Monaretto tomou como ponto de partida os resultados empíricos e, com base neles, indutivamente, passou a fazer generalizações. Trata-se de um método de interpretação, mas os resultados não vão além do método.

Em primeiro lugar, como se pode observar, nada há no trabalho que nos permita avaliar as comunidades de fala (Porto Alegre, Florianópolis e Curitiba), às quais os dados devem representar. Como se constituíram essas comunidades de fala sócio-historicamente: origem da população, densidade demográfica, migrações, contatos, atividades econômicas, identidade cultural, atitudes em relação à cultura local e externa, redes de comunicação, organização social etc. Em segundo lugar, também constatamos a ausência de encaixamento lingüístico da variável dependente, ou seja, da regra variável de apagamento / não-apagamento do /r/ pós-vocálico. Em outras palavras, o uso variável desta regra vincula-se a que estrutura lingüística sincrônica e diacrônica? Que processos fonológicos estão em jogo e como eles se relacionam no sistema? Em resumo, o apagamento ou não do /r/ pós-vocálico é uma representação de quê?

Em certos aspectos, as generalizações que a autora faz vão mesmo além dos resultados empíricos, quando, por exemplo, ao comparar os resultados de sua pesquisa com os de Callou, Leite e Moraes (1998CALLOU, D.; LEITE, Y.; MORAES, J. Apagamento do R no dialeto carioca: um estudo em tempo aparente e em tempo real. D.E.L.T.A., São Paulo, v. 14, n. especial, p. 61-72, 1998.), sobre a fala do Rio de Janeiro, afirma: “Distingue-se o dialeto do sul por duas variantes, o tepe e a vibrante alveolar, enquanto o dialeto do Rio de janeiro privilegia as variantes posteriores” (p. 282). Ora, a pesquisa restringe-se à fala de informantes das capitais do sul e, conseqüentemente, há muitas razões para se acreditar que os resultados obtidos têm muito pouco a dizer sobre o dialeto do sul, seja lá o que for que a autora entenda por “dialeto do sul”. Além disso, como bem afirma Bortoni (1993BORTONI, Stella Maris. Educação bidialetal - O que é? Isso é possível? In: SEKI, Lucy (Org.). Lingüística indígena e educação na América Latina. Campinas (SP): Editora da UNICAMP, 1993., p. 76), a variação lingüística, no Brasil, constitui um continuum dialetal,11 11 Em um dos polos situar-se-a a lingua padrao efetivamente usada nas areas urbanas pelas pessoas cultas, da qual o projeto NURC e representativo. Na extremidade oposta, estarao as variedades usadas nas comunidades mais isoladas geografica e socialmente, pelos falantes analfabetos ou semi-alfabetizados. Neste continuum distribuem-se tracos linguisticos que sao graduais, isto e, estao presentes no repertorio de todos os grupos sociais, variando apenas a sua frequencia e a maneira como se associam aos diversos estilos ou registros, e tracos descontinuos. Exemplos de tracos graduais sao a perda do -r final nos infinitivos verbais e o uso do pronome lexical ele como objeto direto, para citar apenas dois, entre muitos. não sendo possível a distinção clara entre dois ou mais dialetos.

Em Battisti (op. cit.), que estudou “a redução variável dos ditongos nasais átonos no Português do sul do Brasil”, observamos as seguintes generalizações quantitativas, entre outras:

  • a) uma menor escolarização dos sujeitos condiciona favoravelmente a aplicação da regra de redução dos ditongos nasais átonos;

  • b) os homens aplicam mais a regra;

  • c) Santa Catarina exerce condicionamento positivo à aplicação da regra, mas no Paraná e no Rio grande do Sul a posição é intermediária;

  • d) os nomes em -agem favorecem a redução;

  • e) os nomes (substantivos e adjetivos) favorecem a redução mais do que os verbos, que apresentam variação moderada;

  • f) a palavra seguinte iniciada por vogal mostra-se favorecedora da aplicação da regra.

Com base nas quantificações, Battisti fez as seguintes generalizações, entre outras:

  • a) os resultados nos permitem dizer que a mulher, mais do o homem, mantém a nasalidade em final de palavras no português brasileiro [...] Considerando-se que o falar com ditongos nasais reduzidos é menos prestigiado nos meios socais, entende-se que as mulheres resistem mais ao uso da forma desnasalizada;

  • b) informantes mais escolarizados desfavorecem a redução, e isso está relacionado ao contato com a escola, propagadora da norma culta, forma prestigiada;

  • c) o comportamento da variável localização geográfica, que apresentou resultados distintos para os três estados, e em escala de maior à menor aplicação em Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná, permite conceber a região sul do Brasil como o conjunto de três grandes comunidades lingüísticas, circunscritas aos limites geográficos de cada estado (grifo nosso). Nesses, a observação - intuitiva, é verdade - de peculiaridades de fala mostra o catarinense como o sujeito que produz sílabas finais de vogais facilmente neutralizáveis, em oposição aos paranaenses, cuja fala apresenta vocábulos em que vogais (e consoantes) em sílabas átonas finais são produzidas clara e completamente. Um cruzamento dos resultados de desnasalização com outros referentes à neutralização vocálica ou apagamentos em sílabas átonas finais poderia ser esclarecedor.

O fato de nomes, mais que verbos, serem a classe de palavras a que a regra de redução de ditongos nasais átonos mais se aplica pode ter relação com a função gramatical que possui a sílaba em que se encontra o ditongo. Nos verbos, corresponde a sufixos flexionais de modo, tempo, número e pessoa, importantes para o estabelecimento de relações de concordância e, por conseqüência, para a compreensão dos enunciados. Já a sílaba final dos nomes não porta essa carga, o que talvez contribua para a redução que ocorra, uma vez que distinções de sentido não se perderiam nesse contexto.

De posse das informações fornecidas pela saída do programa VARBRUL, a autora começa a estabelecer relações entre os condicionadores selecionados e a variável objeto de estudo. Da mesma forma que foi feito no estudo de Monaretto, faz algumas generalizações com base nos resultados empíricos, omitindo-se, no entanto, de proceder ao encaixamento da variação, isto é, fazer juízos de valor a respeito da origem do fenômeno e de sua propagação na comunidade de fala. Não há teorização a respeito da propagação, na estrutura social, da mudança fonológica estudada, nem análise do processo no plano das disposições ideológicas. Em resumo, se há alguns indicadores de como está acontecendo a ‘redução dos ditongos nasais átonos’, cujas respostas limitam-se, por enquanto à amostragem, nada há no estudo que possa responder a pergunta ‘por que ocorre essa mudança?’, nem ‘por que ela opera no sentido apresentado e não em outro sentido?’ Qual é a hipótese mais provável? A lei do menor esforço, a influência do substrato, a herança genética, os condicionamentos culturais, a mudança de geração, a necessidade de preservar o significado das formas (hipótese funcional), a teoria das ondas, a difusão lexical ou outra? Ou várias delas agindo simultaneamente?

Em verdade, há hipótese, que é apresentada na revisão da literatura, quando a autora discute diversos estudos realizados sobre o fenômeno da redução de ditongos no português, inclusive a sua tese de Doutorado, defendida em 1997. Para a autora, utilizando-se da Teoria da Otimidade,12 12 "A autora concebe a sequencia vN como base de ditongos e vogais nasais e, utilizando o modelo da Teoria da Otimidade, explica a reducao como uma forma de obter troqueus de melhor qualidade, como silaba leve em posicao fraca (atona) de pe." (p. 258). “a redução dos ditongos nasais átonos é resultado de condicionamento prosódico: a atonicidade da sílaba é o que desencadeia a realização variável de vogal simples”. Mas como a própria autora afirma, o estudo citado não trata de possíveis condicionamentos extralingüísticos ao fenômeno.

Feito o estudo sociolingüístico, no entanto, este não vai além das generalizações empíricas do tipo ‘a mulher, mais que o homem, mantém a nasalidade em final de palavras no português brasileiro’, sem fazer qualquer referência à hipótese estrutural acima mencionada. Qual é a importância disso em relação ao conjunto complexo das interações que constitui o processo social em que a mudança acontece? Mas como explicar essa complexidade interacional sem conduzir a análise para a observação das causas individuais? Esse é um dos paradoxos recorrentes nos trabalhos de sociolingüística, e o trabalho de Battisti na foge à regra.

Entre as generalizações de Battisti, a que mais surpreende é a afirmação de que os três estados do sul constituem “um conjunto de três grandes comunidades lingüísticas, circunscritas aos limites geográficos de cada estado”. Como vimos, as generalizações empiricistas baseiam-se nos resultados estatísticos da amostragem. Mas aqui não é o caso, pois o estudo de Battisti, mesmo incluindo as três capitais e duas cidades de cada estado, não contempla a realidade da região, nem tampouco o universo lingüístico e social em todas as dimensões. Além disso, os dialetos (seja qual for o sentido que se dê ao termo dialeto) e, algumas vezes, as línguas não estão circunscritas às fronteiras geopolíticas.13 13 "Los limites 'dialectales' no son de antemano limites entre 'dialectos'. Acerca de estos ultimos se ha observado que 'no existen', pues los hechos linguisticos presentan areas y limites diferentes y el paso de un dialecto a otro es gradual. En efecto, salvo casos especiales (limites geograficos 'naturales', fronteras politicas estables), no existen como 'fronteras' entre modos de hablar uniformes. Pero ello no constituye ninguna dificultad para la dialectologia; al contrario, en cierto sentido, es la condicion que la justifica como tal. Desde el punto de vista de los dialectos, la no coincidencia entre los varios limites dialectales significa solo que tienen muchas 'fronteras' posibles, o sea, que entre los sistemas dialectales hay interferencias y que entre los dialectos mejor caracterizados suele haber dialectos intermedios o 'de transicion'' (COSERIU, 1982, p. 37). De acordo com Labov (apud Monteiro, 2000MONTEIRO, José Lemos. Para compreender Labov. Petrópolis: Vozes, 2000., p. 39), “a comunidade de fala não se define por nenhum acordo marcado quanto ao uso dos elementos de uma língua, mas sobretudo pela participação num conjunto de normas estabelecidas. Tais normas podem ser observadas em tipos claros de comportamento avaliativo e na uniformidade de modelos abstratos de variação, que são invariantes em relação aos níveis particulares de uso”. Neste sentido, falar em dialeto gaúcho, catarinense ou paranaense é fazer generalização sem base empírica. Mesmo quando se fala em dialeto gaúcho, de variedade estamos falando? O Rio Grande do Sul apresenta uma única variedade dialetal? Os resultados preliminares do Atlas Lingüístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil - ALERS, por exemplo, desmentem a afirmação da autora sobre a existência de dialetos claramente demarcados pelas fronteiras de cada estado.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme vimos ao longo deste texto, uma das tarefas de sociolingüística é descrever as línguas em sua diversidade funcional e social. No modelo laboviano, a opção de pesquisa tem sido a análise quantitativa da fala de um grupo de indivíduos, isto porque o vernáculo é a propriedade de um grupo, não de um indivíduo. A preocupação do investigador é, então, descrever uma variedade lingüística, cujo problema maior é estabelecer suas fronteiras. Que critérios adotar para estabelecer, de modo mais ou menos preciso, o que é uma comunidade de fala? Há diferença entre comunidade de fala e comunidade lingüística? Em parte, parece-nos, que as discrepâncias conceituais têm a ver com a falta de correspondência entre os termos e com as lacunas ou especializações semânticas no trato de termos, como linguagem, língua, dialeto, fala, discurso etc.

Vimos também que o conceito de variável lingüística pressupõe necessariamente que as duas ou mais variantes tenham o mesmo significado referencial ou valor de verdade, mas opostas em sua significação social e/ou estilística, pois os falantes não aceitam facilmente o fato de que duas expressões distintas signifiquem exatamente a mesma coisa, havendo forte tendência a atribuir- lhes significados diferentes. Isso se aplica sem maiores controvérsias a variáveis fonológicas. O mesmo não se pode afirmar sobre as outras variáveis, ou seja, em se tratando de variável morfossintática, por exemplo, fica difícil dizer quando duas ou mais estruturas expressam um único significado.

A análise sistemática do caráter social da mudança lingüística conduz, de acordo com a ruptura teórico-metodológica proporcionada pela sociolingüística, a uma revisão significativa tanto do modo de apreensão dos fatos lingüísticos quanto do enquadramento teórico que norteia a análise dos fatos.

Referências

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  • BORTONI, Stella Maris. Educação bidialetal - O que é? Isso é possível? In: SEKI, Lucy (Org.). Lingüística indígena e educação na América Latina. Campinas (SP): Editora da UNICAMP, 1993.
  • CALLOU, D.; LEITE, Y.; MORAES, J. Apagamento do R no dialeto carioca: um estudo em tempo aparente e em tempo real. D.E.L.T.A., São Paulo, v. 14, n. especial, p. 61-72, 1998.
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  • MONARETTO, Valéria N. de Oliveira. O apagamento da vibrante posvocálica nas capitais do sul do Brasil. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 35, n. 1, p. 275-284, 2000.
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  • OLIVEIRA, Marco Antônio de. Variável lingüística: conceituação, problemas de descrição gramatical e implicações para a construção de uma teoria gramatical. D.E.L.T.A., São Paulo, v. 3, p. 19-34, 1987.
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  • SILVA, Vera Lúcia Paredes da. A relevância dos fatores internos. In: MOLLICA, Maria Cecília (Org.). Introdução à sociolingüística. Rio de Janeiro: UFRJ, 1992.
  • TARALLO, Fernando. A pesquisa sociolingüística. São Paulo: Ática, 2000.
  • WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin, I. Empirical foundations for a theory of language change. In: LEHMANN; MALKIEL (Eds.). Directions for Historical Linguistics. Austin: University of Texas Press, 1968.
  • 1
    "Most groups of any permanence, be they small bands bounded by face to face contact, modern nations divisible into smaller subregions, or even occupational associations or neighborhood gangs, may be treated as speech communities, provided they show linguistic peculiarities that warrant special study. The verbal behavior of such groups constitutes a system" (GUMPERZ, 1968GUMPERZ, J. The speech community. In: International Encyclopedia of the Social Sciences. London: Macmillan, 1968., p. 219).
  • 2
    A conceituacao de comunidade linguistica, ou comunidade de fala, apresenta algumas dificuldades que resultam de diferentes concepcoes de lingua, dialeto, variedade, bilinguismo, suas funcoes, fronteiras, padronizacao etc. Sobre esse conceito em Labov e outros autores, confira Monteiro (2000MONTEIRO, José Lemos. Para compreender Labov. Petrópolis: Vozes, 2000., p. 39-52).
  • 3
    "Nao se pode mais seriamente defender que a linguistica deve limitar suas explicacoes da mudanca as influencias mutuas dos elementos linguisticos, definidos pela funcao cognitiva. Nem se pode argumentar em qualquer sentido serio que o sistema linguistico em mudanca e autonomo [...] nao e possivel concluir uma analise das relacoes estruturais dentro de um sistema linguistico sem considerar as relacoes externas" (cf. LABOY, 1972, p. 181-2).
  • 4
    Faz-se aqui referencia a dois grandes principios ou hip6teses que marcaram o perfil das investigacoes dos neogramaticos sobre a linguagem no final do seculo XIX: o principio da regularidade das mudancas fonol6gicas e o principio da analogia. Mutuamente complementares, esses dois principios permitiam tracar o perfil hist6rico de um dado sistema linguistico sem que as eventuais excecoes as regras pudessem comprometer o poder de generalizacao dos resultados. Para maiores informacoes sobre as leis foneticas e a analogia, sugerimos consultar Principios Fundamentais da Historia da Lingua, de H. Paul (1966) e Resolving the neogrammarian controversy, de W. Labov (1981______. Resolving the neogrammarian controversy. Language, n. 57, p. 267-308, 1981.).
  • 5
    "Por una parte, cualquier cambio dado se incrusta en la matriz estructural de las formas linguisticas que se relacionen mas estrechamente con el, y el cambio se refrenara, redirigira o acelerara por su relaci6n con otras formas. Entendido asi, el problema del incrustamiento es un aspecto implicito del problema de las constricciones. Por otra parte, un cambio se incrusta en la comunidad de habla. Para entender las causas del cambio es necesario saber d6nde, dentro de la estructura social, se origin6 el cambio, c6mo se extendi6 a otros grupos sociales, y que grupos mostraron mas resistencia ante el. Puesto que el incrustamiento en una estructura mayor supone inevitablemente causasi6n multiple, la soluci6n a cualquier problema de incrustamiento requiere analisis multivariable" (LABOY, 1996 [1994], p. 34).
  • 6
    A luz dos fundamentos expostos principalmente em Empirical fundations for a theory of language change (WEINREICH, LABOY e HERZOG, 1968WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin, I. Empirical foundations for a theory of language change. In: LEHMANN; MALKIEL (Eds.). Directions for Historical Linguistics. Austin: University of Texas Press, 1968.) e The social setting of linguistic change (LABOY, 1972), nao parece razoavel separar com exito os fatores internos dos fatores sociais (cf. LABOY, 1996 [1994]).
  • 7
    "Só quando um significado social e assimilado a tais variacoes e que serao imitadas e comecam a desempenhar um papel na lingua. A regularidade deve ser entao encontrada no resultado final do processo [...], e nao no inicio" (cf. LABOY, 1972, p. 23).
  • 8
    Variacao Linguistica Urbana no Sul do Pais, projeto desenvolvido por pesquisadores da UFSC, UFRGS, UFPR e PUC-RS.
  • 9
    Como sao muitos os grupos de fatores que podem intervir na variacao linguistica, os sociovariacionistas tentaram encontrar um modelo matematico mais adequado a analise estatistica. As pesquisas iniciais trabalhavam com um modelo aditivo, que logo revelou incoerencias e teve de ser substituido por outro, multiplicativo. Posteriormente, adotou-se um modelo misto (o logistico) que, ao mesmo tempo em que aproveita as vantagens do aditivo e do multiplicativo, elimina as possiveis desvantagens ou incoerencias de ambos. A justificativa empirica, conforme Naro (1992NARO, A. J. Modelos quantitativos e tratamento estatístico. In: MOLLICA, Maria Cecília (Org.). Introdução à sociolingüística. Rio de Janeiro: UFRJ, 1992.), e o fato de que o novo modelo descreve uma curva com o formato da letra S, aplicando-se bem a descricao da variacao sincronica.
  • 10
    "Uma analise desse tipo, que permite uma compreensao globalizante da interacao entre o processo linguistico e o processo social e, portanto, muito mais esclarecedora do que uma que apresentasse resultados do tipo: 'os fazendeiros centralizam mais do que os pescadores', 'os homens centralizam mais do que as mulheres' etc. Quanto mais esclarecedor for um estudo sobre um processo particular de mudanca (como e o caso de Martha's Vineyard), mais esse processo sera individualizado e particularizado, ja que se trata de uma representacao adequada de um processo hist6rico e cultural, o que extrapola as generalizacoes derivadas do indutivismo empiricista que infelizmente tem marcado as preocupacoes da sociolinguistica variacionista" (LUCCHESI, 2000, p. 204).
  • 11
    Em um dos polos situar-se-a a lingua padrao efetivamente usada nas areas urbanas pelas pessoas cultas, da qual o projeto NURC e representativo. Na extremidade oposta, estarao as variedades usadas nas comunidades mais isoladas geografica e socialmente, pelos falantes analfabetos ou semi-alfabetizados. Neste continuum distribuem-se tracos linguisticos que sao graduais, isto e, estao presentes no repertorio de todos os grupos sociais, variando apenas a sua frequencia e a maneira como se associam aos diversos estilos ou registros, e tracos descontinuos. Exemplos de tracos graduais sao a perda do -r final nos infinitivos verbais e o uso do pronome lexical ele como objeto direto, para citar apenas dois, entre muitos.
  • 12
    "A autora concebe a sequencia vN como base de ditongos e vogais nasais e, utilizando o modelo da Teoria da Otimidade, explica a reducao como uma forma de obter troqueus de melhor qualidade, como silaba leve em posicao fraca (atona) de pe." (p. 258).
  • 13
    "Los limites 'dialectales' no son de antemano limites entre 'dialectos'. Acerca de estos ultimos se ha observado que 'no existen', pues los hechos linguisticos presentan areas y limites diferentes y el paso de un dialecto a otro es gradual. En efecto, salvo casos especiales (limites geograficos 'naturales', fronteras politicas estables), no existen como 'fronteras' entre modos de hablar uniformes. Pero ello no constituye ninguna dificultad para la dialectologia; al contrario, en cierto sentido, es la condicion que la justifica como tal. Desde el punto de vista de los dialectos, la no coincidencia entre los varios limites dialectales significa solo que tienen muchas 'fronteras' posibles, o sea, que entre los sistemas dialectales hay interferencias y que entre los dialectos mejor caracterizados suele haber dialectos intermedios o 'de transicion'' (COSERIU, 1982COSERIU, Eugenio. Sentido y tareas de la dialectologia. Cadernos de Lingüística, México, A.L.F.A.L., n. 8, 1982., p. 37).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jul-Dec 2003

Histórico

  • Recebido
    10 Mar 2003
  • Aceito
    12 Ago 2003
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