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CONCEPÇÃO SÓCIO-INTERACIONAL DE LEITURA: ABORDAGENS TEÓRICAS E PRÁTICAS A PARTIR DE DOIS TEXTOS ESCRITOS

SOCIO-INTERACTIONAL CONCEPTION OF READING: THEORETICAL AND PRACTICAL APPROACHES FROM TWO WRITTEN TEXTS

CONCEPTION SOCIO-INTERACTIONNELLE DE LECTURE: APPROCHES THÉORIQUES ET PRATIQUES À PARTIR DE DEUX TEXTES ÉCRITS

CONCEPCIÓN SOCIO-INTERNACIONAL DE LECTURA: ABORDAJES TEÓRICAS Y PRÁCTICAS A PARTIR DE DOS TEXTOS ESCRITOS

Resumo

As atividades de leitura e interpretação de textos que comumente são desenvolvidas em sala de aula de língua materna seguem uma perspectiva decodificadora. Aos alunos são propostas questões que não são desafiadoras, pois as respostas são de fácil identificação no texto. A eles só resta a tarefa de executar as atividades propostas, uma vez que não têm a oportunidade de vivenciar concepções de leitura diferentes, ficando restritos a somente aquela forma de ler e interpretar textos. Neste artigo, tentamos oferecer um parâmetro do que seria uma aula de leitura e interpretação de textos fundamentada na concepção mais abrangente de linguagem, sujeito, texto e leitura. Esperamos proporcionar aos leitores alternativas de tratamento metodológico que permitam superar a prática de leitura como decodificação e pretexto para o desenvolvimento de atividades gramaticais, dando ao ato de ler a configuração de oportunidades de desenvolvimento cognitivo e cultural. Apresentamos um exemplo com resultados muito favoráveis e não uma “receita”.

Palavras-chave:
leitura; interpretação de textos; interação; ensino

Abstract

The activities of reading and text interpretation that are usually performed in native- language classes follow a decoding perspective. The students are given questions, which are not defying, since the answers are easy to identify in the text. The only task for them is to perform the proposed activities, once they do not have the opportunity to experience contrasting conceptions of reading, thus being restricted to that only way of reading and interpreting texts. In this paper an attempt is made to offer a parameter for what would be a reading and text interpretation class based on the more encompassing notion of language, subject, text and reading. The objective is to offer alternatives of methodological treatment to the reader that would allow him/her to go beyond the reading practice as a decoding act and as a pretext for developing grammar activities, while attributing to the act of reading the configuration of opportunities for cultural and cognitive development. An example is offered that exhibits very favorable results, but which is not a “recipe”.

Keywords:
reading; text interpretation; interaction; teaching

Résumé

Les activités de lecture et d’interprétation de textes qui sont normalement développées en salle de classe de langue maternelle suivent une perspective décodifiante. On propose aux élèves des questions qui ne leur apportent aucun défi, puisque les réponses sont facilement retrouvées dans le texte. Ils n’ont qu’accomplir les tâches proposées, puisqu’ils n’ont pas la chance d’être en contact avec d’autres genres de lectures, n’ayant qu’une seule forme de lire et d’interpréter les textes. Dans cet article, on a essayé d’offrir un paramètre de ce que nous concevons comme cours de lecture et d’interprétation de textes fondés dans un concept plus large de langage, sujet, texte et lecture. On a l’intention d’apporter aux lecteurs d’autres choix méthodologiques qui permettent de surpasser la pratique de lecture tout simplement comme décodification et prétexte pour le développement des activités grammaticales, donnat à l’acte de lire la configuration d’opportunités d’un développement cognitif et culturel. Nous présentons un exemple avec des résultats et non seulement une “recette”.

Mots-clés:
lecture; interprétation de textes; interaction; enseignement

Resumen

Las actividades de lectura e interpretación de textos que comumente son desarrolladas en clase de lengua materna siguen una perspectiva decodificadora. A los alumnos son propuestas cuestiones que no son desafiadoras, pues las respuestas son de fácil identificación en el texto. A ellos solo resta la tarea de executar las actividads propuestas, una vez que no hay la oportunidad de vivenciar concepciones de lecturas diferentes, quedando restritos a solamente aquella forma de leer e interpretar textos. En este artículo, intentamos ofrecer un parámetro de lo que sería una clase de lectura e interpretación de textos fundamentada en la concepción más abrangente de lenguaje , sujeto, texto y lectura. Esperamos proporcionar a los lectores alternativas de tratamiento metodológico que permitan superar la práctica de lectura como decodificación y pretexto para el acto de leer la configuración de oportunidades de desarrollo cognitivo y cultural. Presentamos un ejemplo con resultados muy favorables y no una” recepta”.

Palabras-clave:
lectura; interpretación de textos; interación; ensino

1 INTRODUÇÃO

Este artigo traz algumas considerações a respeito do ensino de línguas, com ênfase na leitura em língua materna, abrangendo o resultado de uma pesquisa de Mestrado em Lingüística, fazendo referência aos estudos relativos à Lingüística Aplicada.

Estaremos apresentando uma aula de leitura e interpretação de textos desenvolvida por nós em uma turma de 1ª série do Ensino Médio de uma escola pública estadual da cidade de Jataí Goiás.

Nossa pesquisa de mestrado se configurou com nossa atuação na sala de aula, apesar de não sermos o titular da aula de Língua Portuguesa na escola. Aconteceram 16 (dezesseis) encontros. Neles, o professor cedeu suas aulas para que pudéssemos realizar as atividades de leitura e interpretação de textos baseadas na concepção sócio-interacional de leitura. Em pesquisa anterior, sob orientação do Prof. Dr. Luiz Paulo da Moita Lopes (UFRJ), detectamos que o professor da turma era adepto da prática de ensino de leitura decodificadora. Assim, quisemos perceber como se sairiam alunos de uma prática decodificadora quando se vissem perante a prática sócio-interacional, desenvolvida por um estranho e introduzida de maneira abrupta. Os alunos foram categorizados, a partir de sugestões teóricas de Brown (1994BROWN, H. D. Principles of language learning and teaching. S.L.: Prentice Hall Regents, 1994.), como tolerantes ou intolerantes à ambigüidade.

Estaremos defendendo aqui a idéia de que a concepção sócio-interacional de leitura deve prevalecer sobre as demais concepções no momento em que o professor de línguas for desenvolver atividades de leitura e interpretação de textos. Convém ressaltar que o fato de com os sujeitos pesquisados terem sido desenvolvidas atividades de leitura e interpretação de texto sob a ótica sócio- interacional não significa que a decodificação tenha de ser esquecida ou totalmente criticada. É evidente que é imprescindível que se decodifique para que depois seja construído o sentido. O que é considerado aqui é que a atividade de leitura deve levar o leitor a construir, em sua mente, a partir da percepção de símbolos impressos e com a ajuda de dados não verbais, uma substância de conteúdo semelhante àquela que o autor quis transmitir por meio de uma mensagem verbal escrita. A interpretação só acontece se ao leitor forem oferecidas condições para seguir etapas: reconhecer as palavras escritas (decodificação), fazer a relação delas com o seu sentido, efetuar a combinação desses elementos em estruturas, combinar estratégias cognitivas a fim de captar o sentido do texto e, finalmente, interpretá-lo, fazendo uso de estratégias de leitura que o auxiliarão a compreender o texto, tornando explícitas as idéias implícitas e obscuras. Em síntese, o ato de meramente decodificar o texto não significa que houve interpretação, uma vez que a interpretação existirá a partir do momento em que o leitor puder usar suas habilidades sintáticas, semânticas, inferenciais e pragmáticas.

Para a discussão proposta, apresentaremos uma resenha teórica a respeito da concepção sócio-interacional de leitura. Em seguida, traremos à tona a discussão de uma aula ministrada por nós, seguindo os parâmetros da concepção de leitura que defendemos.

2 TOLERÂNCIA E INTOLERÂNCIA À AMBIGÜIDADE

Segundo Chapelle e Roberts (1986CHAPELLE, Carol A.; ROBERTS, Cheryl. Ambiguity tolerance and field independence as predictors of proficience in english as a second language. Language learning, 36, p. 7-45, 1986.), a tolerância à ambigüidade pode ser definida como a habilidade que uma pessoa tem para agir de forma controlada e racional em uma situação na qual a interpretação de todos os incentivos não está clara. Pessoas com pouca ou nenhuma tolerância à ambigüidade percebem situações inusitadas como fontes de desconforto psicológico, ou até mesmo como ameaças. As situações novas são vistas de maneira extremista e os intolerantes à ambigüidade costumam categorizar fenômenos em lugar de ordená-los ao longo de um contínuo (cf. LEVITT, 1953LEVITT, E. Studies in intolerance of ambiguity: the deciosion location test with grade school children. Child development, 24, p. 263-268, 1953.). Além disso, pessoas assim podem chegar a conclusões precipitadas ao invés de raciocinar e processar o acontecimento novo considerando todos os elementos essenciais de uma situação inesperada. A pessoa que é tolerante à ambigüidade gosta de estar em situações inesperadas e inéditas e chega até a procurá-las (cf. MACDONALD, 1970MACDONALD, A. P. Revised scale for ambiguity tolerance: reliability and validity. Psychological reports, 25, p. 791-798, 1970.).

De acordo com a situação na qual uma pessoa se encontrar, ela poderá reagir de formas diferentes dependendo de alguns fatores específicos. Uma pessoa que chega a um país estrangeiro cujo idioma é diferente do seu e não encontra no aeroporto quem iria conduzi-la até o seu destino, pode estar em uma situação complicada. Qual a solução que essa pessoa irá encontrar para tal questão? A solução estará fundada em grande parte nos estilos de vida que o sujeito conhece e possui. Várias podem ser as decisões que ele tomará a partir de então para resolver seu problema. Ele poderá ficar excessivamente agitado e até mesmo desesperado. Isso só acontecerá se ele for intolerante à ambigüidade, uma vez que mostrará indisposição para enfrentar situações novas. Caso contrário, ou seja, se ele for tolerante à ambigüidade, processará bem a situação e conseguirá um meio de resolver o problema através da reflexão sobre as ações que deverão ser tomadas. A pessoa poderá ficar concentrada na melhor maneira de agir frente ao caso e focalizar sua atenção nos detalhes necessários e pertinentes à sua resolução.

Pelas experiências de vida, a pessoa aprende e apreende muito. Uma dessas aprendizagens diz respeito a reagir a situações novas, como a que foi acima citada. A forma como alguém reage ao tentar resolver um problema vai depender muito de uma ligação, ainda sem forma definida, entre a personalidade e a cognição (cf. BROWN, 1994BROWN, H. D. Principles of language learning and teaching. S.L.: Prentice Hall Regents, 1994., p. 104). Segundo Brown, a relação que há entre personalidade e cognição recebe o nome de estilo cognitivo. Se o estilo cognitivo for inserido em um contexto educacional, fatores fisiológicos e afetivos acabam sendo misturados. A partir de então, o que era denominado estilo cognitivo, passa a ser considerado estilo de aprendizagem.

Os estilos de aprendizagem, relacionados a práticas em sala de aula, podem ser entendidos como aquilo que os alunos percebem, como interagem e as respostas que dão ao ambiente educacional no qual estão inseridos. Também podem ser entendidos como uma espécie de predisposição geral, voluntária ou não, que o aluno apresenta para processar informações de uma maneira particular.

Situação parecida com a do sujeito que chega a um local de idioma diferente do seu e não tem ninguém para ajudá-lo pode acontecer com o aluno quando chega à escola. O ambiente escolar é, muitas das vezes, diferente do que ele está acostumado em casa. Há pessoas estranhas e vários colegas com personalidades distintas da sua. Sendo assim, o aluno terá que agir de modo a se integrar ao ambiente do qual ele passa a fazer parte, podendo aceitar bem a mudança ou não.

3 CONSIDERAÇÕES ACERCA DA LEITURA

A definição do que venha ser o ato da leitura não pode ser dada de forma única, definitiva. Isso porque dependerá do enfoque que será dado a ela, isto é, se o enfoque é lingüístico, psicológico, social, fenomenológico, dentre outros (cf. LEFFA, 1996LEFFA, Vilson José. Aspectos da leitura: uma perspectiva psicolingüística. Porto Alegre: Sagra, 1996.). Parece claro que definir leitura não é muito fácil. Talvez uma das maiores dificuldades em defini-la advenha do fato de ser difícil incluir ou excluir aquilo que parece mais objetivo, mais claro e coerente para uma definição.

Conforme Leffa (1996LEFFA, Vilson José. Aspectos da leitura: uma perspectiva psicolingüística. Porto Alegre: Sagra, 1996.), a leitura é um processo de representação. Essa idéia significa que a leitura está essencialmente ligada ao sentido da visão. Sendo assim, ler é olhar para algo e ver outra coisa que não seja apenas aquela que está sendo percebida pelos olhos. O que eles captam são imagens icônicas, representação simbólica. O que é visto são acontecimentos, fatos, realização.

Apesar de a leitura se processar através da língua, também é possível a realização de outras leituras cujos sinais são não-lingüísticos. Dessa forma, é possível que se faça a leitura da tristeza de alguém, pelas expressões faciais, por exemplo, ou ainda é possível que uma criança faça a leitura dos gestos, da voz e da atitude de pessoas que a cercam, percebendo a presença de afeto e amor. Não se lê, então, apenas o que é escrito, mas também o mundo que nos cerca.

Ler textos escritos não é uma atividade muito simples. Primeiro, pelo fato de ser uma habilidade aprendida e não adquirida, diferente da linguagem, que é adquirida conforme indicações de que o homem seja geneticamente pré- programado para isso (LYONS 1987LYONS, John. Linguagem e lingüística. Rio de Janeiro: Guanabara. 1987., p. 26). Segundo, porque envolve uma série de problemas culturais, ideológicos, filosóficos e semânticos. Isso significa que a leitura de um texto em sala de aula pode gerar discussões por causa dos conhecimentos ideológicos dos alunos, por exemplo. Um texto que discuta a explosão da igreja católica carismática no Brasil em uma escola de doutrina católica convencional pode ir de encontro às idéias não só dos alunos, mas também dos dirigentes da escola.

A interpretação de um texto é feita com base em hipóteses que o leitor cria sobre o que lê. Essas hipóteses resultam das relações que o leitor vai estabelecendo desde o início da leitura, continuamente entre os elementos visuais, as palavras, as frases de um texto e todas as informações que ele pode trazer para a leitura. Essa atividade está diretamente relacionada à predição, que consiste em antecipar o sentido do texto, eliminando previamente hipóteses improváveis.

A confirmação ou rejeição das hipóteses depende, em grande parte, dos dados textuais, da forma como eles estão organizados e articulados no texto. Na verdade a interpretação ocorre quando há confluência entre o reconhecimento de elementos do código lingüístico e a projeção dos conhecimentos do leitor no texto.

4 A LEITURA NA ESCOLA

A escola deveria ter como uma de suas funções principais a formação de alunos leitores. Segundo Cagliari (1997CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e lingüística. 10. ed. São Paulo: Scipione, 1997. ), saber ler é mais importante do que saber escrever. Na opinião do autor, se o aluno não conseguir êxito nas outras habilidades desenvolvidas pela escola, mas for um bom leitor, já será um grande feito. Realmente, as palavras de Cagliari fazem muito sentido. A leitura acompanha o indivíduo em muitas de suas situações de interação durante a vida. “A leitura é a extensão da escola na vida das pessoas. [...] A leitura é uma herança maior do que qualquer diploma” (CAGLIARI, 1997CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e lingüística. 10. ed. São Paulo: Scipione, 1997. , p. 148).

Na tentativa de proporcionar aos alunos o conhecimento sobre a língua, a escola tenta fazer com que aprendam a analisar a sua estrutura, na maioria das vezes, somente através de atividades de análise morfológica e/ou sintática, desvinculadas de seus aspectos semântico-pragmáticos. Agindo assim, a escola deixa para trás lacunas, porque conhecer a Língua Portuguesa não é saber sua estrutura ou o seu funcionamento apenas, nem é saber analisá-la. Conhecer a língua significa saber se movimentar dentro dela. Segundo Carvalho (1997CARVALHO, Castelar de. Para compreender Saussure. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. , p. 64) “a língua é como uma armadura dentro da qual nos movimentamos no dia- a-dia da interação humana”.

Para Freire (1999FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 37. ed. São Paulo: Cortez, 1999. ), a escola desconhece que o ato de ler precede a leitura da palavra. A escola se esquece de que o aluno já chega pronto para fazer diversas leituras. Ele chama essa leitura que o aluno sabe fazer ao chegar à escola de leitura de mundo (FREIRE, 1999FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 37. ed. São Paulo: Cortez, 1999. , p. 12).

Ninguém duvida que a leitura seja uma atividade de extrema importância na vida de um aluno. Ela é tida como ponto de partida para a aquisição de conhecimento e para a ampla socialização do ser. Quando a escola não ensina o aluno a ler, ela deixa de cumprir sua função enquanto instância de desenvolvimento de letramento, porque acaba formando autômatos, ao invés de pessoas capazes de usar a língua escrita nas diferentes situações em que se requer o seu uso.

Uma das formas de fazer com que o aluno seja capaz de se manifestar dentro do sistema é através da prática regular da leitura. Segundo Moita Lopes (1996MOITA LOPES, Luíz Paulo da. Oficina de lingüística aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996.), a leitura é um modo específico de interação entre participantes discursivos, envolvidos na construção social do significado: a leitura é uma prática social, é uma forma de agir no mundo através da linguagem. Sendo uma prática social, é a leitura que vai permitir ao aluno a interação com os outros, participando e discutindo todos os acontecimentos que estão a sua volta.

Os textos usados na aula de leitura são, naturalmente, marcados ideologicamente e essas marcas ideológicas não devem ser disfarçadas pelo professor, escondidas ou ignoradas em nome da imparcialidade utópica. O professor terá de assumir a presença delas e apresentá-las ao aluno, demonstrando o funcionamento ideológico dos vários tipos de discurso, sensibilizando o aluno para a força ilocutória presente em cada texto, tornando-o consciente de que a linguagem é uma forma de atuar, de influenciar, de intervir no comportamento alheio, de modo que é por meio dela que as pessoas atuam umas sobre as outras. A atividade com a leitura deve ser vista, portanto, nas palavras de Brággio (1992BRÁGGIO, Sílvia Lúcia Bigonjal. Leitura e alfabetização: da concepção mecanicista à sociopsicolingüística. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992., p. 69),

dentro de uma matriz pessoal, social, histórica e cultural, pois não somente o que o leitor traz para a transação de sua experiência passada de vida e de linguagem, mas também as circunstâncias socialmente moldadas e propósito da leitura, dão a contextualização para o ato de simbolização.

A escola deveria fazer com que o aluno aprenda o que não sabe. O que ele precisa aprender é a ler a palavra, mas não a palavra isolada. A importância no ensino adequado da leitura da palavra reside no fato de ela estar, segundo Bakhtin (1997BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997. , p. 41), penetrada “literalmente em todas as relações entre os indivíduos, nas relações de colaboração, nas de base ideológica, nos encontros fortuitos da vida cotidiana, nas relações de caráter político, etc”. A escola deveria ensinar ao aluno a forma adequada de usar a palavra uma vez que ela pode transformá-lo, dar uma nova dimensão à sua consciência, o que acaba por possibilitar-lhe uma reflexão sobre a sua realidade e a maneira de agir sobre ela. Na escola, o aluno deveria saber como recorrer a diferentes materiais impressos para atender a diferentes necessidades.

5 CONCEPÇÃO SÓCIO-INTERACIONAL DE LEITURA

Para fundamentar o ensino de Leitura, existem concepções que são usadas pelos professores de língua (materna ou não). A maioria deles nem percebe, ou nem sabe, que seu trabalho é direcionado por uma dessas concepções, às vezes até por mais de uma. Por mais que o professor desconheça o assunto, é sempre possível enquadrá-lo em uma das vertentes teóricas do tema. Basicamente temos quatro concepções de leitura: decodificadora; psicolingüística; interacional e sócio-interacional.

De maneira geral, essas concepções implicam diferentes conceitos de linguagem: linguagem é espelho do raciocínio, linguagem é instrumento de comunicação, linguagem é processo de interação. De maneira geral, também, as duas últimas concepções de leitura aqui colocadas se ligam, sendo que uma complementa a outra.

Como o objetivo deste artigo é apenas demonstrar uma atividade de leitura e interpretação de textos baseada na concepção sócio-interacional, não teceremos comentários sobre as demais, nem sobre as concepções de linguagem.

Ao realizar uma leitura, podemos centrar nossa atenção ora no leitor, ora no texto. Quando a atenção se volta não só para o texto ou para o leitor, mas para ambos, levando em conta questões sócio-históricas ligadas ao autor do texto e a seu leitor, entra-se na concepção de leitura denominada sócio-interacional. No encontrar de ambos, texto e leitor, aparece um “novo evento” que, segundo Harste (1985HARSTE, J. Portrait of New Paradigm: reading comprehension research. In: CRISMORE, A. Landscapes: a spate-of-the-art assessment of reading comprehension research. Indiana: Indiana University Press, 1985.), não pode ser explicado nem examinando o documento lido, nem conhecendo o leitor. O processo de ler transforma ambos, o leitor e o que foi lido, já que o significado é sempre uma relação entre o texto e o contexto (sócio- histórico-cultural) e não existe à parte da interpretação de alguém daquela relação.

Para que o ato de ler ocorra de forma produtiva e a interpretação do texto, de forma eficaz, faz-se necessário que os produtores de sentido do texto - autor e leitor - estejam sócio-historicamente determinados e ideologicamente constituídos. Assim, as atividades de leitura e interpretação serão, segundo Coracini (1995CORACINI, Maria José Rodrigues Faria (Org.). O jogo discursivo na aula de leitura: língua materna e língua estrangeira. Campinas: Pontes, 1995., p. 15), “fruto do momento histórico-social, que determinará o comportamento, as atitudes, a linguagem de um e de outro e a própria configuração do sentido”.

A interação ocorre através de um inter-relacionamento de diversos níveis de conhecimento pertencentes ao sujeito leitor que são utilizados durante a leitura. Adam e Collins (1979, p. 5),1 1 ADAM, M. J.; COLLINS, A. A schema-theoretic view of reading. In: FREEDLE, R. O. (Org.). New directions in discourse processing. New Jersey: Ablex, 1979 iapud KLEIMAN, Angela. Leitura: ensino e pesquisa. Pontes, 1996. favoráveis à concepção sócio-interacional, especificam que:

processamentos “top down” e “bottom up” deveriam ocorrer em todos os níveis de análise simultaneamente [...] Os dados necessários para usar esquemas de conhecimentos são acessíveis através de um processamento “bottom up”; o processamento “top down” facilita sua interpretação quando eles são antecipados ou quando eles são consistentes com a rede conceitual do leitor. O processamento “bottom up” assegura que o leitor será sensível a informação nova ou inconsistente com suas hipóteses preditivas do momento sobre o conteúdo do texto; o processamento “top down” ajuda o leitor a resolver ambigüidades ou a selecionar, entre várias, possíveis interpretações dos dados.

As estratégias cognitivistas de leitura negam a leitura tida apenas como decodificadora e propõem modelos sócio-interacionais nos quais o autor e o leitor devem construir juntos o sentido do texto a partir do contexto sócio-histórico determinado. Com relação a isso, Kleiman (1999______. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 6. ed. Campinas: Pontes. 1999. , p. 66) afirma que:

[...] o autor, que segura a palavra, por assim dizer, por um turno extenso, como num monólogo, deve ser informativo, claro e relevante. Ele deve deixar suficientes pistas em seu texto a fim de possibilitar ao leitor a reconstrução do caminho que ele percorreu. [...] Já o leitor deve acreditar que o autor tem algo relevante a dizer no texto, e que o dirá clara e coerentemente. Quando obscuridades e inconsistências aparecem, o leitor deverá tentar resolvê-los, apelando ao seu conhecimento prévio de mundo, lingüístico, textual, devido a essa convicção de que deve fazer parte da atividade de leitura que o conjunto de palavras discretas forma um texto coerente, isto é, uma unidade que faz com que as partes se encaixem umas nas outras para fazer um todo.

Segundo a autora citada, o leitor, da mesma forma que o autor, parece já ter construído um sentido para aquilo que seria o texto. Mas o fato de o autor deixar pistas no texto não é suficiente para que o mesmo seja compreendido por um leitor. A posição do leitor, o movimento sobre o texto e o sentido atribuído àquilo que se lê está determinado, antes de tudo, por um processo histórico e por condições de produção.

A leitura deve ser a atividade através da qual o leitor tem como interagir com o autor, por meio de um texto escrito. As práticas histórico-sociais são as que vão dar resultado a esse processo de interação.

O processo de leitura, baseado em estratégias sócio-interacionais, mostra que há uma relação direta entre o sujeito leitor e o texto, também existe relação entre a linguagem escrita e a interpretação, entre a memória, inferência e pensamento. A interpretação textual acontece quando o leitor consegue decodificar os sinais gráficos e usar o conhecimento armazenado na memória, sendo capaz, então, de interagir com o autor e, por exemplo, elaborar outros textos a partir da leitura de um primeiro.

O leitor proficiente é capaz de acessar o que Rumelhart (1980RUMELHART, D. E. Schemata: the Building Blocks of Cognition. In: SPIRO, R. J. et al. (Eds.). Theorical issues in reading comprehension. New Jersey: Lawrence Earlbaum, 1980. ) denomina de esquemas. Segundo essa idéia, o leitor dispõe de esquemas mentais que foram socialmente adquiridos. Quando uma leitura é feita, o leitor aciona seus conhecimentos prévios e os confronta com os dados do texto, constituindo assim sentido para o que foi lido.

O conhecimento de mundo do leitor é fundamental e é descrito utilizando a teoria de esquemas que faz predições a respeito da natureza desse conhecimento. Esses esquemas, segundo Moita Lopes (1996MOITA LOPES, Luíz Paulo da. Oficina de lingüística aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996., p. 139), “são estruturas cognitivas armazenadas em unidades de informação na memória de longo prazo (MLP), ou seja, constituem o nosso pré-conhecimento”. O conceito básico da teoria de esquemas é de que para compreender o mundo é preciso que se tenha dentro de si uma representação dele. Desde que o indivíduo é ainda criança já tem dentro de si certos conhecimentos, certos esquemas que permitem que ele interaja com o mundo e que aprenda algumas habilidades para as quais não possui predisposição inata. Os esquemas têm como base as experiências sócio-culturais dos indivíduos, uma vez que todos os seres humanos praticam o ato da interação nesses contextos. Os esquemas não podem ser entendidos como algo para um fim determinado. Se a interação entre os indivíduos não acaba nunca, então os esquemas estão sempre crescendo e se modificando, a fim de que seja possível armazenar novas experiências e novas leituras serem feitas.

À medida que o leitor vai avançando em novas leituras, no decorrer de suas experiências, os seus modos de organizar o conhecimento (esquemas) vão sendo modificados. O leitor então se torna capaz de construir outros textos à medida que se desenvolve uma leitura. Sendo assim, sua capacidade interpretativa vai aumentando à proporção que seus esquemas vão sendo aumentados.

Quando alguém lê um texto, existe uma relação óbvia entre a aprendizagem e a interpretação. Leffa (1996LEFFA, Vilson José. Aspectos da leitura: uma perspectiva psicolingüística. Porto Alegre: Sagra, 1996., p. 28) diz que, para ocorrer a interpretação, é necessário que os subsunsores adequados sejam acionados. À medida que esses subsunsores são acionados e modificados, a estrutura cognitiva do indivíduo fica cada vez mais sofisticada e apta a integrar mais e mais informações. Quanto maior for a complexidade das estruturas cognitivas do indivíduo e quanto mais esquemas ele possuir, mais oportunidades tem de compreender os textos que lê.

O texto, na perspectiva sócio-interacional, não traz todos os seus significados; é o leitor quem vai construí-los à medida em que a interação com o mesmo ocorre. Segundo afirma Brággio (1992BRÁGGIO, Sílvia Lúcia Bigonjal. Leitura e alfabetização: da concepção mecanicista à sociopsicolingüística. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992., p. 43),

a leitura torna-se vista como um ato construtivo, no qual todos os leitores elaboram sobre as idéias selecionadas de um texto, construindo um significado para ele. Portanto, a construção do significado é concebida como um produto da interação entre o leitor e o texto.

Analisando o leitor, sob o ponto de vista sócio-interacional, nota-se que ele muda se comparado ao leitor que é apenas um analisador de input gráfico ou um (re)criador de significado (cf. KLEIMAN, 1996KLEIMAN, Ângela. Leitura: ensino e pesquisa. 2. ed. Campinas: Pontes, 1996.). Sob a perspectiva sócio- interacional, há uma responsabilidade mútua entre leitor e autor na construção do sentido daquilo que é lido.

Leitor proficiente é aquele capaz de seguir pistas dadas no texto pelo autor, fazendo uso de dois conhecimentos: o sistêmico e o esquemático. Segundo Widdowson (1983),2 2 WIDDOWSON, H. G. Learning purpose and language. Oxford: Oxford University Press, 1983 iapud MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Oficina de ling.Istica aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996. existem dois tipos de conhecimento que são usados por um leitor no ato da leitura: o conhecimento sistêmico e o conhecimento esquemático. O sistêmico está relacionado ao que é equacionado com competência lingüística em lingüística tradicional. Segundo Moita Lopes (1996MOITA LOPES, Luíz Paulo da. Oficina de lingüística aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996.), esse conhecimento engloba o conhecimento do leitor aos níveis sintático, lexical e semântico. O conhecimento esquemático diz respeito ao conhecimento convencional do mundo (cf. a noção de esquemas citada anteriormente). Moita Lopes (op. cit.) ressalta que esse conhecimento é o responsável pelas expectativas que os leitores formam a respeito daquilo que encontram no texto. Quando faz a interpretação do discurso, o leitor segue as pistas deixadas pelo autor, fazendo uso dos dois tipos de conhecimento: o esquemático e o sistêmico.

“Fazendo uso do conhecimento esquemático e sistêmico, o leitor seria visto como parte de um processo de negociação do significado com o autor” (MOITA LOPES, 1996MOITA LOPES, Luíz Paulo da. Oficina de lingüística aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996., p. 141). A maior preocupação do professor de línguas, em uma aula de leitura, deveria ser a de não restringir seu trabalho apenas a questões em nível sistêmico ou esquemático, mas também a questões em nível de uso da linguagem na sociedade, isto é, “como leitores e escritores projetam seus valores, crenças e projetos políticos na construção do significado” (MOITA LOPES, 1996, p. 142).

Moita Lopes (op. cit.) afirma que a leitura não ocorre em um vácuo social e diz ainda que um modelo sócio-interacional de leitura coloca em ênfase, no ensino, o desenvolvimento, nos alunos, da consciência crítica de que a linguagem funciona como um refletor das relações de poder na sociedade, por meio das quais os leitores e os autores se defrontam.

Conforme a perspectiva deste artigo, a mesma que foi seguida em nosso trabalho final de mestrado, pressupõe-se que, para ler, é preciso manejar com destreza as habilidades de decodificação e encaminhar ao texto objetivos, idéias e experiências de mundo, ou seja, para que se faça uma leitura eficiente, é necessário o envolvimento do leitor em um processo de previsões e inferências que se apóiam nas informações proporcionadas pelo texto e na bagagem do leitor enquanto ser sócio-historicamente situado. Também se supõe que o leitor seja um processador ativo do texto, e que a leitura se constitua em um processo constante de emissão e verificação de hipóteses que geram a construção da interpretação do texto e do controle de tal interpretação.

6 AULA DE LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

Nesta parte, será apresentada e discutida uma aula de leitura e interpretação de textos desenvolvida por nós durante a fase de coleta de dados, para análise posterior e redação da dissertação de mestrado. Em anexo, aparecem os textos3 3 Foram usados dois textos: "Bico", de nossa autoria, e "Sem saude", de Gabriel o Pensador. O texto Bico foi criado quando eramos alunos no Curso de Especializacao em Educacao: Lingua Portuguesa & Alfabetizacao, oferecido pela Universidade Federal de Goias, em 1999. A professora da disciplina "Producao da Leitura" solicitou que os alunos fizessem um texto a partir de um proverbio popular. Foi dai que tivemos a ideia de fazer o texto a partir do proverbio "de grao em grao a galinha enche o papo". que foram utilizados e as questões elaboradas por nós.4 4 As questoes de interpretacao foram elaboradas a partir de sugestoes teoricas de Sole (1998) e Kleiman (1998). Por questão de espaço, não foram comentadas todas as questões.

Trata-se de uma aula5 5 As aulas desta escola eram geminadas. Cada encontro (equivalente a duas aulas) tinha 100 (cem) minutos de duracao. desenvolvida em uma escola pública estadual de uma cidade do interior do Brasil.

Para instigar os alunos a debaterem as questões apresentadas pelos textos, foram elaboradas perguntas a partir de sugestões metodológicas de Kleiman (1996KLEIMAN, Ângela. Leitura: ensino e pesquisa. 2. ed. Campinas: Pontes, 1996., 1998 e 1999) e Solé (1998SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.).

Convém ressaltar que aos alunos era imprescindível o conhecimento prévio do assunto para que eles pudessem, dentre outras estratégias, usar inferência e/ ou pressuposição.

Nos primeiros 50 (cinqüenta) minutos da aula, usamos o texto de nossa autoria. Este texto, de caráter expositivo, traz nossa opinião sobre o fato de as pessoas acabarem sendo subjugadas pela massa dominante. É um texto com uma ponta de humor que tem por objetivo mostrar ao leitor o que seu autor pensa. Para isso, faz uso da ironia, por exemplo.

Antes da leitura prévia a ser feita pelos alunos, eles foram alertados por nós sobre o fato de o texto ser de nossa autoria, com base no provérbio popular de grão em grão a galinha enche o papo.

A leitura silenciosa foi feita para que os alunos tomassem conhecimento do texto e para que atingissem o objetivo compreensão. Os alunos demonstravam interesse na atividade da leitura do texto, talvez pelo fato de ele ter um pouco de humor e ser, aparentemente, de leitura fácil e agradável. Com isso, houve bastante motivação por parte deles e a aprendizagem acabou sendo mais dinâmica. Isso pôde ser percebido durante a discussão das respostas às questões.

Antes de ser dado aos alunos um tempo para que respondessem às perguntas, para ter início o debate sobre elas, conversamos com eles a respeito de determinados pontos do texto, para que pudéssemos detectar o conhecimento que tinham sobre o que haviam acabado de ler. O nosso objetivo com isso foi o de proporcionar aos alunos a construção do sentido do que haviam lido a partir da interação entre nós. Então, relemos em voz alta alguns fragmentos do texto para discuti-los com os alunos. O 5º parágrafo foi o primeiro a ser relido. Muitos alunos falaram sobre o fato de os policiais terem de fazer “bico” para sobreviver. Exemplificaram, então, falando dos policiais que são seguranças particulares, de bancos e repartições públicas, quando deveriam estar nas ruas oferecendo segurança aos civis. Também se lembraram do caso que houve em Diadema, município da grande São Paulo, quando policiais agrediram civis, ao contrário de protegerem-nos dos bandidos.

Com relação aos parágrafos 07 (sete) e 08 (oito), alguns alunos discutiram os problemas que os professores enfrentam com o acúmulo de trabalho e com o salário baixo. Falaram ainda a respeito dos problemas que enfrentam nas escolas particulares onde os alunos mais destratam os professores do que se dedicam ao estudo. Com essa discussão inicial de alguns pontos do texto, percebemos que os alunos estavam a par do assunto tratado apesar de ele ter sido escrito há algum tempo.

As perguntas relacionadas ao texto tinham mais aspectos sócio-interacionais do que puramente decodificadores. Nessa aula pôde ser percebida, de forma bastante clara, a facilidade que os alunos estavam tendo para responder a questões dessa natureza. Dada a exigência da maioria dos professores de que os alunos copiem do texto as respostas às perguntas de interpretação, eles acabam por desenvolver estratégias de localização das respostas que não exigem a interpretação das perguntas. Dessa forma, as respostas são copiadas ou lidas sem qualquer envolvimento dos alunos com o significado, o que acaba por gerar a criação de uma pseudolinguagem, numa suspensão do uso da linguagem para responder a perguntas a que estão habituados (TERZI, 1997TERZI, Sylvia Bueno. A construção da leitura. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.). No início da pesquisa desenvolvida (mês de setembro), a busca pelas respostas no próprio texto era comum. Com o desenrolar do processo, isso foi deixando de existir.

O texto referente aos próximos 50 (cinqüenta) minutos foi uma música. A letra retrata a problemática vivida pelas pessoas por causa da precariedade do sistema público de saúde. A turma se mostrou muito interessada na leitura desse texto. Posterior à leitura silenciosa, os alunos ouviram a música. Parece que eles tinham muita afinidade com as músicas de Gabriel, o pensador.

O texto Sem saúde apresenta algumas semelhanças com o texto Bico. Por isso estabelecemos a relação entre os dois durante a apresentação daquele para a turma.

As perguntas a respeito do texto procuravam fugir da mera decodificação, fazendo com que os alunos buscassem informações que não estivessem no texto. O objetivo maior dessas perguntas foi resgatar na memória dos alunos fatos ligados àquilo que era mostrado no texto e instigá-los a discutir e opinar sobre o que era apresentado.

Isso pode ser observado em perguntas como a de número quatro (04): Quando a mãe, apavorada, fala ao doutor sobre o estado de saúde do filho, ele diz o valor da consulta sem ao menos se preocupar com o paciente. Discuta a atitude do doutor.

A reação dos alunos à questão de número sete (07) chamou nossa atenção. Indagados sobre o provável motivo que levou o autor da música a apelar aos traficantes para que agissem no sentido de mudar as coisas, não titubearam em responder. Estavam convictos de que o tráfico está muito mais adiantado do que a polícia no que se refere a equipamento. Fizeram menção ao fato de o cantor internacional Michael Jackson ter pedido proteção aos traficantes dos morros do Rio de Janeiro, ao invés de pedir proteção policial, quando esteve no Brasil gravando um clipe musical. Apesar de os alunos não conviverem com a realidade do tráfico, sabiam muito bem sobre o poder que ele detém.

Na pergunta de número nove (09), quisemos fazer com que os alunos buscassem o sentido que uma palavra apresentava. E eu não tenho condições de correr pra privada... Que privada seria essa a que Gabriel faz referência? O interessante é que no mesmo ponto do texto uma única palavra apresentava dois sentidos, dependendo do tipo de leitura que fosse feita. O que vinha em seguida no texto orientava a leitura de modo a fazer com que a palavra privada fosse relacionada a um outro significado. O fato de o autor afirmar eu já tô na merda dá à palavra privada o sentido de banheiro com nome coloquial. Da mesma forma, a palavra merda mostra a indignação do autor com relação ao sistema público de saúde. Essa relação foi bem interpretada pelos alunos.

Gostaríamos de reiterar que a intenção da pesquisa aqui apresentada foi observar se os alunos eram ou não tolerantes à ambigüidade (cf. Brown, 1994BROWN, H. D. Principles of language learning and teaching. S.L.: Prentice Hall Regents, 1994.) em aulas de leitura e interpretação de textos sob a ótica sócio-interacional. A rejeição por parte de alguns apontou os que eram intolerantes. Em um grupo, é absolutamente normal a presença de indivíduos tolerantes e intolerantes à ambigüidade. Nos encontros seguintes, o número de intolerância foi caindo. Porém, ainda permaneceu um grupo intolerante até o final da pesquisa.

Mesmo com alguns alunos demonstrando intolerância à ambigüidade, conseguimos até mais do que propusemos. A turma não dispunha de estratégias de leitura para realização de atividades de ler e interpretar textos. Tivemos de ajudá-los nisso.

No início do processo, os alunos mostraram que possuíam um conceito de leitura baseado nas práticas às quais eram acostumados. O trabalho com atividades de leitura desenvolvido nas salas de aula, em sua maioria, leva em conta apenas aspectos decodificadores. Solicita-se que os alunos encontrem respostas às perguntas no próprio texto. O que pode ser classificado como negativo nesse tipo de prática é o fato de que são abandonados todos os meios de utilização da linguagem conhecidos pelos alunos em atividades de interação do dia-a-dia. Os sujeitos pesquisados apresentavam, então, preocupação em decodificar os sinais gráficos presentes no texto, sem envolvimento com o sentido daquilo que liam. Mostravam interesse em fazer leitura oral e, certamente, mostrariam preocupação com o tom da voz e a pontuação nesse tipo de leitura.

Quando o professor propõe aos alunos leituras e atividades correlacionadas que não oferecem desafios a eles ou não fazem com que acessem os esquemas que possuem, tais atividades tendem a se tornar enfadonhas. Perguntas sobre o texto meramente decodificadoras são demasiadamente mecânicas e não há interpretação.

Nos encontros conosco, os sujeitos pesquisados perceberam uma diferença notável na forma como eram desenvolvidas as atividades de interpretação daquilo que tinha sido lido. A primeira diferença veio nos textos trabalhados. Os pesquisados não liam como orientamos e não faziam atividades de interpretação como as que propomos. A forma como as questões eram elaboradas parecia muito diferente daquela com a qual eles tinham contato direto, quando faziam atividades dessa natureza com o seu professor.

O texto “Bico” tratou de assuntos de conhecimento da turma, e isso parece ter facilitado a interpretação. No quarto encontro conosco, a convivência com a forma de trabalhar textos buscando o sentido primeiro já estava bem processada para eles.

A participação dos alunos crescia à medida que os dias iam passando. No recorte abaixo, percebemos a interação de um aluno (A1) e pudemos cruzar essa participação com outra do mesmo aluno, ocorrida dias antes, para concluirmos que já estava havendo progresso no trabalho desenvolvido por nós no que se refere à boa aceitação por parte da turma. A1 comentou as atividades feitas com eles pelo professor.

A1: aí, por que o Murilo6 6 Nome ficticio atribuido ao professor da turma. não faz assim, perguntas que a gente dá conta de responder?

Essa participação de A1 foi intrigante. Em uma aula anterior, ele mesmo dissera que o professor fazia perguntas facinhas de responder. Já nesse encontro, mudou o discurso. Talvez porque o professor tenha ficado sabendo pelos alunos como estávamos7 7 O professor cedeu apenas um encontro (de duas aulas geminadas) por semana. Os outros (havia quatro encontros semanais) eram com ele. desenvolvendo as atividades de leitura. Pode ser que ele, a partir de então, tenha procurado mudar a forma de trabalhar. Mas por outro lado, a fala de A1 foi gratificante. Ele mesmo afirmara em encontros anteriores não ser capaz de responder aquilo que era proposto por nossas questões. Aqui, ele deixou claro que já era capaz de fazer isso. Não houve mudança na forma de elaborarmos as questões. O que aconteceu foi que A1, e outros colegas, começaram a fazer uso de estratégias diversas de leitura, tais como inferências, conhecimento de mundo, relação entre título e texto, relação entre textos, dentre outras estratégias já adquiridas.

A questão número sete (07) - Num texto, costumam entrar em cena personagens que falam, dialogam entre si, manifestam, enfim, o seu discurso. No texto em estudo, tal manifestação não ocorre. Por quê? - foi a única que fez com que os alunos tivessem dúvidas e solicitassem muito nossa ajuda.

Apesar de alguns terem reclamado, esse texto foi o primeiro que deixou claro como os alunos já não procuravam por respostas prontas e como estavam sendo capazes de construí-las. Já começavam a observar e perceber os elementos do texto, suas palavras. Davam início a uma leitura menos mecânica e superficial e mais dinâmica e interacional.

As perguntas com poucas interferências decodificadoras ofereceram alguns desafios aos alunos. Eles não mais saíram em busca das respostas no texto como faziam anteriormente. Já começaram a usar outras estratégias. Foram capazes até de perceber relação entre os dois textos trabalhados nesse dia.

Para a resolução das questões do segundo texto, muitos alunos consultavam o colega para conferir se as respostas estavam de acordo. A busca pela comparação de respostas foi tanta que se fez necessária a intervenção de nossa parte para que a turma se acalmasse e não fizesse muito barulho.

Apesar de os alunos já não mais estarem indo em busca das respostas no texto, eles apresentavam dificuldade para escrever as idéias próprias, como podemos perceber no recorte abaixo de outro aluno (A10).

A10: professor, não estou conseguindo responder a número sete!8 8 Que leitura podemos fazer do fato de Gabriel, ao apelar por a9ao, fazer referencia a um traficante?

PP: veja bem, Gabriel é do Rio de Janeiro. Você sabe que lá tem um monte de traficantes, certo?

A10: certo!

PP: lembre-se que os traficantes dos morros do Rio de Janeiro são mais bem equipados do que a própria polícia.

A10: ahn! É mesmo. Quando o Michael Jackson veio ao Brasil, ele até pediu para que os traficantes dessem proteção, não foi?

PP: exatamente! Então você pode perceber que o tráfico tem muita influência aqui no Brasil. Veja no texto a seqüência de “personalidades” que o autor coloca: prefeito, governador, presidente, ministro, traficante, Jesus Cristo. Observe isso. É muito importante!.

A10: é mesmo! Jesus Cristo aparece depois do traficante.

A11:9 9 All estava sentado ao lado de Al0. As atividades eram sempre feitas em grupos. isso quer dizer que o traficante é importante, não é professor? PP: exato! Vocês já têm a resposta. Agora é só escrever.

A10: mas eu não sei como fazer. Sei falar, mas escrever não dá. Não pode só ficar assim falando a resposta? É melhor!

Os alunos já demonstravam desenvolvimento na forma de ler e interpretar os textos, mas ainda tinham problemas de redação. Não conseguiam “colocar no papel” o que vinha à cabeça. Apesar de essa pesquisa não ter sido ligada a questões de escrita e redação, é impossível não citar o fato de que atividades dessa natureza não são desenvolvidas como deveriam ser, nas escolas.

Sempre buscamos respeitar a leitura dos alunos. Ocorre que, naturalmente, somos leitores mais experientes do que eles. Sendo assim, a nossa leitura acaba sendo mais abrangente, e temos a oportunidade de “ver” informações no texto que um leitor inexperiente não consegue. Por isso, a interferência do professor, enquanto leitor mais experiente, é necessária em uma atividade de leitura e interpretação de textos.

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A leitura e a interpretação de textos devem acontecer em um processo sócio-interacional. Para que isso ocorra com eficiência na escola, o professor deve procurar ser um mediador, ajudando os alunos no descobrimento de quais estratégias devem usar para construir o sentido daquilo que está sendo lido. Esse trabalho não tem interesse em afirmar que o modelo sócio-interacional de leitura é o grande “salvador”. O que acabou ficando evidenciado foi que atividades de leitura e interpretação de textos, a partir da abordagem sócio-interacional, contribuem para que o aluno leitor leia enxergando o que não está explicitado, interagindo com o texto e construindo sentido a partir de uma relação estabelecida entre texto, leitor e autor.

Levando em consideração as reações iniciais dos alunos perante as atividades de leitura e interpretação de textos baseadas na concepção sócio- interacional, pode-se hipotetizar que, se aos alunos forem oferecidas condições de ler e compreender textos apenas decodificando, eles apresentam tendência a se tornarem passivos e receptivos àquilo que são apresentados, deixando de perceber o texto como gerador de interação, cujo sentido é construído por leitor e autor, sócio-historicamente situados e ideologicamente constituídos, tendo ele, o texto, por mediador.

A função do professor, em uma aula de leitura, deveria ser a de um mediador entre o texto e o aluno, devendo haver interação entre as três partes envolvidas no processo: texto/autor, professor e aluno. O professor não deve orientar as atividades de leitura de forma a fazer com que sejam oriundas do texto para o leitor, ou do leitor para o texto. Se assim o fizer, transforma o ato de ler em uma atividade inócua e sem fundamento.

Nas aulas de língua materna, o texto deve apresentar uma função de provocar efeitos de sentido no leitor-aluno (cf. CORACINI, 1995CORACINI, Maria José Rodrigues Faria (Org.). O jogo discursivo na aula de leitura: língua materna e língua estrangeira. Campinas: Pontes, 1995., p. 18) perdendo a sua função, seguida à risca pela maioria esmagadora dos professores, de ser o lugar de reconhecimento de unidades e estruturas lingüísticas cuja funcionalidade parece prescindir dos sujeitos.

Esperamos que aqueles que lerem este artigo possam perceber a nossa intenção ao propormos as questões de interpretação. Não quisemos em momento algum induzir a leitura dos alunos. Convém ressaltar que muitas respostas dadas por eles eram diferentes daquilo que realmente esperávamos, mas, mesmo assim, continuavam dentro de uma margem aceitável, conforme as idéias trazidas pelo texto.

REFERÊNCIAS

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  • BRÁGGIO, Sílvia Lúcia Bigonjal. Leitura e alfabetização: da concepção mecanicista à sociopsicolingüística. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
  • BROWN, H. D. Principles of language learning and teaching. S.L.: Prentice Hall Regents, 1994.
  • CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e lingüística. 10. ed. São Paulo: Scipione, 1997.
  • CARVALHO, Castelar de. Para compreender Saussure. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
  • CHAPELLE, Carol A.; ROBERTS, Cheryl. Ambiguity tolerance and field independence as predictors of proficience in english as a second language. Language learning, 36, p. 7-45, 1986.
  • CORACINI, Maria José Rodrigues Faria (Org.). O jogo discursivo na aula de leitura: língua materna e língua estrangeira. Campinas: Pontes, 1995.
  • FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 37. ed. São Paulo: Cortez, 1999.
  • GABRIEL, O PENSADOR. Quebra-cabeça. Rio de Janeiro: Sony Music, 1997.
  • HARSTE, J. Portrait of New Paradigm: reading comprehension research. In: CRISMORE, A. Landscapes: a spate-of-the-art assessment of reading comprehension research. Indiana: Indiana University Press, 1985.
  • KLEIMAN, Ângela. Leitura: ensino e pesquisa. 2. ed. Campinas: Pontes, 1996.
  • ______. Oficina de leitura. Campinas: Pontes, 1998.
  • ______. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. 6. ed. Campinas: Pontes. 1999.
  • LEFFA, Vilson José. Aspectos da leitura: uma perspectiva psicolingüística. Porto Alegre: Sagra, 1996.
  • LEVITT, E. Studies in intolerance of ambiguity: the deciosion location test with grade school children. Child development, 24, p. 263-268, 1953.
  • LYONS, John. Linguagem e lingüística. Rio de Janeiro: Guanabara. 1987.
  • MACDONALD, A. P. Revised scale for ambiguity tolerance: reliability and validity. Psychological reports, 25, p. 791-798, 1970.
  • MOITA LOPES, Luíz Paulo da. Oficina de lingüística aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996.
  • RUMELHART, D. E. Schemata: the Building Blocks of Cognition. In: SPIRO, R. J. et al. (Eds.). Theorical issues in reading comprehension. New Jersey: Lawrence Earlbaum, 1980.
  • SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.
  • TERZI, Sylvia Bueno. A construção da leitura. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.
  • 1
    ADAM, M. J.; COLLINS, A. A schema-theoretic view of reading. In: FREEDLE, R. O. (Org.). New directions in discourse processing. New Jersey: Ablex, 1979 iapud KLEIMAN, Angela. Leitura: ensino e pesquisa. Pontes, 1996.
  • 2
    WIDDOWSON, H. G. Learning purpose and language. Oxford: Oxford University Press, 1983 iapud MOITA LOPES, Luiz Paulo da. Oficina de ling.Istica aplicada. Campinas: Mercado de Letras, 1996.
  • 3
    Foram usados dois textos: "Bico", de nossa autoria, e "Sem saude", de Gabriel o Pensador. O texto Bico foi criado quando eramos alunos no Curso de Especializacao em Educacao: Lingua Portuguesa & Alfabetizacao, oferecido pela Universidade Federal de Goias, em 1999. A professora da disciplina "Producao da Leitura" solicitou que os alunos fizessem um texto a partir de um proverbio popular. Foi dai que tivemos a ideia de fazer o texto a partir do proverbio "de grao em grao a galinha enche o papo".
  • 4
    As questoes de interpretacao foram elaboradas a partir de sugestoes teoricas de Sole (1998) e Kleiman (1998).
  • 5
    As aulas desta escola eram geminadas. Cada encontro (equivalente a duas aulas) tinha 100 (cem) minutos de duracao.
  • 6
    Nome ficticio atribuido ao professor da turma.
  • 7
    O professor cedeu apenas um encontro (de duas aulas geminadas) por semana. Os outros (havia quatro encontros semanais) eram com ele.
  • 8
    Que leitura podemos fazer do fato de Gabriel, ao apelar por a9ao, fazer referencia a um traficante?
  • 9
    All estava sentado ao lado de Al0. As atividades eram sempre feitas em grupos.
  • 10
    Na epoca em que este texto foi redigido (1998), os professores universitarios faziam greve de fome em Brasilia, reivindicando melhoria salarial.

ANEXO

O bico

Sílvio Ribeiro da Silva

É comum ouvir por aí as pessoas dizerem que não se pode perder as esperanças de luta, pois de grão em grão a galinha enche o papo. Será que isso é verdade?

Tomemos como exemplo o dia-a-dia dos trabalhadores brasileiros. A carga horária trabalhada é equivalente a 08 horas diárias. Somando-se os cinco dias, dá um total de 40 horas, no mínimo. O salário é mínimo e tem de cobrir despesas com aluguel, moradia, saúde.

O trabalhador se vê obrigado a fazer os chamados bicos. É bico pra cá, bico pra lá. É muito bico, mas é o trabalhador quem acaba bicado.

Pensando bem, até que poderia dar certo essa história de bico. Se de grão em grão a galinha enche o papo e é com o bico que ela faz isso, tudo teria que dar certo, só que não dá.

Se a história do grão fosse correta, os policiais brasileiros estariam ricos. Além de também serem adeptos do bico, alguns vendem armas para bandidos, são traficantes de drogas, cobram pedágio de pobres transeuntes. Olha o bico aí, gente!

Se formos fazer uma pesquisa a respeito da vida desses “bicantes”, veremos que não têm um papo assim tão cheio. Há os que só fazem isso por pura falta de grão no papo.

Outra classe que mais leva bicada do que bica é a dos professores. Há aqueles que têm cargas horárias equivalentes a 60 horas semanais. Costumam trabalhar nos três turnos e em mais de uma escola.

Para garantir um papo mais cheio, vão para escolas particulares. Lá, é bicada de diretor, bicada de aluno, bicada de pai de aluno. E o papo? E os grãos? Os grãos se perderam e o papo está cada vez mais murcho.

Após tantas bicadas por parte dos bicudos da escola, resta ao professor distribuir os poucos grãos que angariou com o médico, o psicólogo, o psicanalista. Ao professor resta um bico de papagaio. Os professores universitários são o maior exemplo de papo vazio. O bico deles não bica mais nada. A greve de fome que fazem em Brasília10 10 Na epoca em que este texto foi redigido (1998), os professores universitarios faziam greve de fome em Brasilia, reivindicando melhoria salarial. está fazendo com que, não só o papo, mas também a moela fique vazia.

Percebe como a história do grão é papo furado? Furado mesmo, não pára um grão nesse papo.

E o pior é que somos levados pelo papo daqueles que nos prometem um terreiro farto de grãos.

Mas, pensando bem, há aqueles que confirmam a história do grão em grão. Quem são eles? São muitos. Um é o bicudo tucano e seus seguidores. A cada dia seus papos estão mais cheios. Também pudera, já viu o tamanho do bico dos tucanos? E nós? Pobres coitados, nosso bico é parecido com o do beija-flor, só permite uma lambida.

Enquanto isso, o papo vazio pode ser um problema, porque corremos o risco de não podermos seguir viagem, pois saco vazio não pára em pé, ou melhor, papo vazio não sustenta.

Sobre o texto

  1. O texto fala a respeito de alguns problemas enfrentados pela maioria das pessoas. Mesmo assim, parece ter uma certa ponta de humor. O que faz com que ele tenha essa ponta humorística?

  2. O texto foi feito tendo como ponto de referência o provérbio popular “De grão em grão a galinha enche o papo.” Que relação há entre o provérbio e o que o texto apresenta?

  3. O partido político a que o presidente Fernando Henrique pertence é citado de forma sutil. O autor do texto cita ainda que os políticos adeptos a tal partido são um pouco corruptos. Que frase do texto afirma isso?

  4. Nós, trabalhadores, temos, segundo o autor, um bico de beija- flor. Explique o porquê dessa referência:

  5. E o pior é que somos levados pelo papo daqueles que nos prometem um terreiro farto de grãos. A palavra papo, no trecho anterior, tem uma relação direta de sentido com a palavra grão? Explique:

  6. Percebe como a história do grão é papo furado? Furado mesmo, não pára um grão nesse papo. Observe o sentido da palavra furado no primeiro trecho destacado e no segundo. Ela é igual? Justifique:

  7. Num texto, costumam entrar em cena personagens que falam, dialogam entre si, manifestam, enfim, o seu discurso. No texto em estudo, tal manifestação não ocorre. Por quê?

Sem saúde

(Gabriel, o Pensador/ Memê/ Fábio Fonseca)

Pelo amor de Deus alguém me ajude!/eu já paguei o meu plano de saúde mas agora ninguém quer me aceitar/eu tô cum dô dotô, num sei no que vai dá!/emergência! Eu tô passando mal/vô morrer aqui na porta do hospital/era mais fácil eu ter ido direto pro instituto médico legal/porque isso aqui tá deprimente, doutor/essa fila tá um caso sério/já tem doente desistindo de ser atendido e pedindo carona pro cemitério/e aí, doutor? Vê se dá um jeito!/se é pra nós morrê nós qué morrê direito/me arranja aí um leito que eu num peço mais nada/mas eu num sou cachorro pra morrer na calçada/ eu tô cansado de bancar o otário/eu exijo pelo menos um veterinário/me cansei de lero, lero/dá licença mas eu vou sair do sério/quero mais saúde/me cansei de escutar.../ “doutor, por favor, olha o meu neném!/olha doutor, ele num tá passando bem!/ fala, doutor! O que é que ele tem!?”/ - a consulta custa cem/ai, meu Deus, eu tô sem dinheiro -eu também! Eu estudei a vida inteira pra ser doutor/mas ganho menos que um camelô/na minha mesa é só arroz e feijão/só vejo carne na mesa de operação/então eu fico 24 horas de plantão pra aumentar o ganha pão/uma vez depois de um mês sem dormir, fui fazer uma cirurgia/ e só depois que eu enfiei o bisturi eu percebi que eu esqueci da anestesia/o paciente tinha pedra nos rins/e agora tá em coma profunda/a família botou a culpa em mim/e eu fiquei com aquela cara de bunda/mas esse caso não vai dar em nada/porque a arma do crime nunca foi encontrada/o bisturi eu escondi muito bem: eu esqueci na barriga de alguém/ me cansei de lero, lero/dá licença mas eu vou sair do sério/quero mais saúde/me cansei de escutar.../ socorro! Enfermeira! Urgente! Tem uma grávida parindo aqui na frente!.../ ninguém me deu ouvidos/e eu dei um nó no umbigo do recém- nascido/mas o berçário tá cheio então eu fico com o bebê no meu colo aqui no meio da rua/e lá dentro o doutor tá botando a paciente no colo: “- por favor, fique nua! (quê isso doutor?! Tem certeza?) - confie em mim, é terapia chinesa, tira a roupa! (mas é só dor de dente) - então abre a boca! (ahhhhhhhhh), beleza! (ai, doutor, tá doendo!) - é isso mesmo, o que arde cura/(não! Pára! Não! Pára doutor! Não pára, doutor! Ai...que loucura!!!) - pronto. Passou, tudo bem/volta na semana que vem”/ela vai voltar pra procurar o doutor/essa vai voltar, pode escrever/mas só daqui a nove meses, com um filho da consulta na barriga querendo nascer/ me cansei de lero, lero/dá licença mas eu vou sair do sério/quero mais saúde/me cansei de escutar.../que calamidade!/dos bebês que nascem virados pra lua e conseguem um lugar na maternidade/a infecção hospitalar mata mais da metade/e os que sobrevivem e não são seqüestrados devem ser tratados com todo cuidado/porque se os pais não têm dinheiro pra pagar hospital, uma simples diarréia pode ser fatal “- come tudo, meu filho, pra ficar bem forte (ah, mãe! Num agüento mais farinha!) - mas o quê que tu quer? Se eu num tenho nem talher? (pô, faz um prato diferente, mainha!) - eu ia fazer a tal da ‘autópsia’ mas eu não tenho faca de cozinha!!”/tá muito sinistro!/alô, prefeito, governador, presidente, ministro, traficante, Jesus Cristo, sei lá.../alguma autoridade tem que se manifestar!/assim num dá! Onde é que eu vou parar?/numa clínica para idosos?/ou debaixo do chão?/e se eu ficar doente?/quem vem me buscar?/ a ambulância ou o rabecão?/ eu tô sem segurança, sem transporte, sem trabalho, sem lazer/eu num tenho educação, mas saúde eu quero ter/já paguei minha promessa, não sei o que fazer!/ já paguei meus impostos, não sei pra quê?/eles sempre dão a mesma desculpa esfarrapada:/ “a saúde pública está sem verba”/ e eu num tenho condições de correr pra privada/ eu já tô na merda/ me cansei de lero, lero/dá licença mas eu vou sair do sério/ quero mais saúde/me cansei de escutar...

Sobre o texto

“Pelo amor de Deus alguém me ajude! Eu já paguei o meu plano de saúde mas agora ninguém quer me aceitar...” Neste trecho, extraído do início da música, o autor já começa fazendo uma crítica a uma dura realidade que é enfrentada por aqueles que pagam plano de saúde. Discuta do que se trata:

“Vô morrer aqui na porta do hospital, era mais fácil ter ido direto pro instituto médico legal...” “...essa fila tá um caso sério...” Nos trechos anteriores, Gabriel denuncia mais duas realidades presentes em hospitais brasileiros. Discuta-as:

Qual seria o motivo de Gabriel se comparar a um animal quando diz que exige pelo menos um veterinário?

Quando a mãe, apavorada, fala ao doutor sobre o estado de saúde do filho, ele diz o valor da consulta sem ao menos se preocupar com o paciente. Discuta a atitude do doutor:

“...então eu fico 24 horas de plantão pra aumentar o ganha pão...” Há muitos profissionais que se vêem obrigados a fazer a mesma coisa que o médico. Os professores e os policiais são exemplo. Discuta o que isso pode provocar na atividade profissional de um trabalhador:

Uma paciente, com problemas dentários, se vê obrigada a ficar nua. O que é possível deduzir com isso?

Que leitura podemos fazer do fato de Gabriel, ao apelar por ação, fazer referência a um traficante?

Quando, no início do ano, a prefeitura manda os carnês de pagamento de impostos, são feitos comerciais e uma grande publicidade afirmando que o pagamento do imposto será revestido em benefícios para o próprio município. Geralmente isso não acontece. Discuta:

“e eu não tenho condições de correr pra privada...” Que privada seria essa a que Gabriel faz referência?

“eu já tô na merda” Que leitura podemos fazer de tal afirmação? Discuta o refrão da música:

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Jun 2004

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2003
  • Aceito
    10 Out 2003
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