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LIMA, REGINA CÉLIA DE C. P. (ORG.). LEITURA: MÚLTIPLOS OLHARES. CAMPINAS, SP: MERCADO DE LETRAS; SÃO JOÃO DA BOA VISTA, SP: UNIFEOB, 2005. 272 P.

LIMA, Regina Célia de C. P.. Leitura: múltiplos olhares. Campinas, SP: Mercado de LetrasSão João da Boa Vista, SPUnifeob2005272 p

Leitura: múltiplos olhares, organizado pela professora Regina Lima, é um livro, como o próprio título sugere, que traz uma coletânea de textos elaborados por pesquisadores de diferentes áreas a respeito da leitura. As reflexões e discussões apresentadas giram em torno de perspectivas que decorrem da Desconstrução, da Psicanálise, da Análise de Discurso, da Hermenêutica e do Sociointeracionismo, as quais, por um lado, constituem discursos em tensão e, por outro, dialogam entre si de maneira instigante. Os corpora de investigação utilizados pelos autores também são compostos por uma variedade de materiais, tais como texto jornalístico, charge, documentários, observações de aulas, cursos de formação de professores, situações do cotidiano e outros, que também proporcionam importantes gestos de leitura.

No primeiro ensaio da coletânea, Concepções de leitura na (pós)modernidade, Maria José Coracini analisa os principais conceitos de leitura que se “construíam na modernidade, detendo-se em sua continuidade/ruptura na pós-modernidade” (p. 8), para discutir, com mais profundidade, a visão discursivodesconstrutivista. Para isso, apresenta o espaço de tensão entre as diferentes concepções, analisando o processo de leitura em sua relação com as novas tecnologias, em especial o hipertexto. Segundo a autora, o ler é definido pelo olhar (perspectiva de quem olha), sempre atravessado por múltiplos discursos e impregnado pela subjetividade do sujeito, que se constitui do/no exterior, por sua historicidade. Dessa forma, destaca a impossibilidade de uma superfície textual homogênea, fechada e completa; vislumbra o processo de leitura na dispersão das múltiplas vozes e dos múltiplos sentidos, visto que o discurso “exibe um nãoacabamento, a impossibilidade de completar, de totalizar, de saturar” (DERRIDA, [1985] 2002DERRIDA, J. Torres de Babel. Belo Horizonte, MG: UFMG, 2002 [1985]., p.11-12). A escritura é, então, pharmakon - remédio e veneno, permite ao sujeito (se) dizer, “significar e ser significado” (p.42), em uma constante (trans)formação. Pautadas nessas reflexões, consideramos que esse texto oferece fios que ligam as discussões propostas pelos ensaios seguintes que, em diferentes corpora, procuram (des)construir a visão linear da leitura e abordá-la em suas múltiplas dimensões.

Em seu artigo Leitura: uma proposta discursivo-desconstrutivista, Márcia A. A. Mascia traz reflexões sobre a sala de aula de leitura em língua estrangeira, com base na interface entre análise do discurso de linha francesa com a desconstrução e numa perspectiva da pós-modernidade, que propõe problematizar as verdades teleológicas nas quais se insere o sujeito da educação. Assim como Coracini, a autora revisita conceitos de leitura como o estruturalista, o psicolingüístico e o interacionista, e adentra no discursivo-desconstrutivista, a partir do qual, tomando a sala de aula como um lugar de relações de poder-saber, sugere como deve ser a postura do professor e quais seriam os questionamentos possíveis dentro dessa linha teórica. Sua proposta de trabalho baseia-se no objetivo de “[...] buscar desconstruir a racionalidade do texto, seus regimes de verdade e buscar como esses se manifestam na materialidade lingüística” (p. 55), configurando-se, desse modo, como uma possibilidade de questionamento e problematização do papel do professor e do ensino de leitura, e não como uma ‘receita’, uma metodologia de trabalho pronta e acabada.

Ancorada também na convergência da análise do discurso de linha francesa com a desconstrução, Elzira Yoko Uyeno, no texto Sujeito da leitura a despeito do logocentrismo: uma análise da leitura de textos teóricos por professores de ensino médio e fundamental, analisa o processo de leitura de textos teóricos - Lingüística e Lingüística Aplicada - por professores de línguas materna e estrangeira, durante os cursos de formação continuada. O corpus da pesquisa constituiu-se de falas (gravadas e transcritas) de professores-ministrantes e professores-participantes desses cursos, e sua análise apontou para o fato de que, embora a leitura dogmática dos textos teóricos seja determinada por ordens institucional e epistemológica, não há como controlar a heterogeneidade constitutiva dos sujeitos na leitura dos textos. Isso revela, segundo Uyeno, o estabelecimento institucional e sócio-histórico do logocentrismo, e aponta para “[...] a possibilidade de sua desconstrução, condição imprescindível para a ressignificação do professor, para que se veja como sujeito da leitura, a despeito do logocentrismo” (p. 71).

Adotando uma abordagem sociointeracionista, o ensaio Leitura crítica: uma abordagem em língua estrangeira, de Márcia Helena de Melo, tem como questão central a importância do conhecimento lingüístico para a prática da leitura crítica em língua estrangeira. Na pesquisa realizada com seis alunos de ensino médio, a partir da leitura de um texto escrito em inglês, a autora verificou que esses conhecimentos funcionam como requisitos básicos, tanto para a realização da leitura ‘literal’ como para o processamento da leitura crítica do texto. Além disso, Melo enfatiza que os gêneros discursivos e a cultura também têm papel importante na interpretação global de determinado texto em língua estrangeira, pois, na medida em que o aluno reconhece as características do texto e tem conhecimento da cultura tratada, há como “[...] promover um embate crítico” (p. 94).

A partir da comprovação de que grande parte do público universitário, ao ingressar na universidade, se depara com as dificuldades no que diz respeito à prática de leitura e interpretação de textos, Valdir Heitor Barzotto, em Leitura e interpretação de textos para alunos ingressantes no terceiro grau, discute a eficácia dos procedimentos didáticometodológicos utilizados na disciplina de língua portuguesa, e/ou outras afins, nos mais diferentes cursos de graduação. O autor enfatiza a necessidade de se trabalhar com pesquisa, envolvendo as várias disciplinas, atribuindo, assim, à língua portuguesa, a função de “[...] levar o aluno a investigar o papel dela em sua formação, na profissão que escolheu e nas demais relações que ele estabelece em sociedade” (p. 99). Dessa forma, as contribuições seriam tanto particular - domínio específico da formação profissional -, quanto ampla - domínios diversos do mundo atual.

O artigo de José Carlos Paes de Almeida Filho, A diferença que faz uma formação universitária aos alunos de graduação, a partir de considerações sobre o papel da universidade e do universitário, questiona como a vivência na universidade pode provocar interferências na vida de um estudante, e ainda como ele pode se transformar num membro essencial para fortalecer o sistema universitário. Para o autor, a graduação tem a responsabilidade de preparar o aluno para ser mais independente intelectualmente e mais seguro emocionalmente, e a leitura é uma das práticas que pode proporcionar a ampliação da cultura geral do universitário e auxiliar na busca de conhecimentos.

Discutindo também a partir do espaço universitário, Ernesto Bertoldo analisa a “Leitura e produção oral no contexto de formação de professores de língua estrangeira”, tendo em conta a leitura e a produção oral que alunos de cursos de Letras desenvolvem na discussão oral de tópicos temáticos. O autor apresenta o quadro em que se insere a tradição do letramento em LE, para definir letramento do ponto de vista discursivo, já que a aquisição de leitura e escrita envolve, necessariamente, “a aquisição de aspectos de uma rede de interdiscursos” (p. 123). O texto aborda uma série de pontos sobre a produção dos alunos na aula de prática oral que são relevantes para o profissional de LE, bem como para a formação de professores em geral.

Adotando uma abordagem discursiva, Regina Paschoal Lima, no texto Lixo, trabalho e crítica social, apresenta uma consistente reflexão a respeito da noção de autoria, a partir da leitura de dois documentários - “Boca de Lixo” e “Ilha das Flores”, para, no fio intradiscursivo, levantar possíveis efeitos (sócio-históricos) de sentidos produzidos por enunciados relacionados a trabalho, a fim de hipotetizar os lugares discursivos ocupados pelos autores. Um dos méritos do texto é analisar como, discursivamente, esses documentários efetivam a denúncia da situação de sub-existência de muitas pessoas. O texto, assim, não permite a indiferença do leitor, desestabilizando lugares sociais e sentidos cristalizados.

A desestabilização dos sentidos também é discutida no texto de Beatriz Maria Eckert-Hoff - Os sem-terra e o senso comum na política do dizer: o jogo (destrutivo) da ironia -, no qual analisa a repetição de enunciados e o jogo irônico que se instala em dois textos: uma crônica de Luís Fernando Veríssimo, intitulada “O pior crime” e uma charge publicada na Folha de S. Paulo, ambos versando sobre a temática da reforma agrária. Seu propósito, através do gesto interpretativo, é mostrar como “a ironia aponta para alteridade do discurso e indicia uma forma de resistência” (p. 188). Como a própria epígrafe do texto destaca, “a ironia é aquela pitadinha de sal que deixa o texto mais gostoso” (Goethe), e essa pitadinha, na dose certa, estava presente no gesto de leitura realizado pela autora. Interpretar o jogo irônico no discurso implica estabelecer as relações que o sujeito mantém com as redes de memória, com as filiações sóciohistóricas e com a sua própria subjetividade, em um constante movimento de (re)significação.

Apoiada nas teorias da análise de discurso e da psicanálise, Claudete Moreno Ghiraldelo apresenta reflexões consistentes sobre a relação entre a Leitura, subjetividade e singularidade - título dado ao seu ensaio. Como corpus de observação, a autora adota situações ocorridas dentro e fora do espaço escolar, as quais permitem problematizar as interpretações diferentes, realizadas por sujeitos de idades e posições sociais semelhantes, e apresentar como conclusão o fato de que um texto, qualquer que seja, “[...] poderá permitir uma leitura não esperada, dependendo da constituição subjetiva do leitor” (p. 216). Essa subjetividade revela a singularidade de cada sujeito e é construída no coletivo, socialmente, na relação com o outro, a partir da constituição dos saberes - através do processo de internalização e seleção - que são da ordem do inconsciente e do desejo.

Sustentado por um aporte teórico proveniente da psicanálise, o ensaio de Claudia Rosa Riolfi discute a relação entre “equívoco e singularidade: subjetividade na fala de uma criança”. Seu corpus é constituído por dois eventos de fala de uma criança do sexo feminino, narrados em termos de cenas, escolhidos pelo que têm de singular e inesperado. Seu objetivo é mostrar como o equívoco, fato estrutural da linguagem, tem efeitos potentes de ruptura do assujeitamento, visto que “pra além do que o falante sabe que diz, há um ignorado sujeito do inconsciente que, ao aparecer no fluxo da frase, o interrompe e desestabiliza significados” (p. 220). Ambas as cenas permitem que se presentifique, via equívoco, a singularidade da criança. A grande contribuição desse texto está em oferecer reflexões sobre a singularidade dos sujeitos e mostrar que a equivocidade da língua participa ativamente na/da construção da subjetividade.

O último ensaio da coletânea, A interpretação sob a hermenêutica de HansGeorg Gadamer e a leitura do humano na ciência, de Lucas Vieira Dutra, discute contribuições do filósofo alemão Gadamer para a “compreensão do que seja precisamente realizar efetiva ‘leitura’ de textos, por um leitor-cientista-investigador” (p. 235). De forma consistente e provocativa, historiciza contribuições da hermenêutica, a partir de diferentes posicionamentos teóricos, para a compreensão da linguagem enquanto fenômeno humano.

O fio condutor dos diferentes textos que compõem a coletânea é o de responder as questões a respeito do ato de ler e suas implicações em múltiplas estâncias do saber, relações essas tensionais; e é na tensão que se formam os sentidos. Um dos grandes méritos da obra é propiciar, ao professor em exercício e aos profissionais interessados na constituição heterogênea da linguagem, reflexões que implicam, em última análise, indagar, de um lado sobre a própria natureza humana e, de outro, sobre a formação da cidadania. Como nos diz Pêcheux, “intervir filosoficamente obriga a tomar partido: eu tomo partido pelo fogo de um trabalho crítico” (PÊCHEUX, [1975] 1988PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1988 [1975]., p. 294). Os autores da obra “Leitura: múltiplos olhares” tomaram partido por uma reflexão séria, consistente, comprometida com a heterogeneidade constitutiva da linguagem e com olhares possíveis sobre a leitura, em um diálogo profícuo entre orientações teóricas.

REFERÊNCIAS

  • DERRIDA, J. Torres de Babel. Belo Horizonte, MG: UFMG, 2002 [1985].
  • PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1988 [1975].

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2006
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