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DISCURSO DE NEGAÇÃO: PRINCIPAIS ESTRATÉGIAS DOS FALANTES DE SHONA, INGLÊS E PORTUGUÊS

Refusal Speech: Main Strategies of Shona, English, and Portuguese Speakers

Discurso de la negación: principales estrategias de los hablantes de shona, inglés y portugués

Resumo

O objetivo deste artigo é analisar a constituição do discurso de negação em shona, inglês e português. Para este propósito, são analisados dados de 30 estudantes universitários falantes das três línguas como língua materna, segunda e estrangeira, respectivamente. Baseado nas teorias dos atos de fala e de análise do discurso de linha francesa, o estudo adota uma metodologia mista, o que permite a apresentação de resultados de natureza quantitativa e qualitativa. Neste âmbito, os resultados indicam que, para atenuar o impacto constrangedor do ato de recusa no interlocutor, independentemente da língua e do seu estatuto social, a constituição do discurso de negação, quer seja uma negação direta, quer seja uma indireta, consiste na combinação dos atos ilocutórios de recusa (ato ilocutório principal) com os atos ilocutórios assertivos e expressivos com a função de minimizar os danos causados pela negação. Destes atos (reparadores) destacam-se os pedidos de desculpas, expressão de sentimentos e frases justificativas.

Palavras-chave:
Shona, inglês e português; Discurso de negação; Atos ilocutórios; Recusa; Atenuantes

Abstract

This article aims to analyze the constitution of the refusal speech in Shona, English and Portuguese. For this purpose, data from 30 University students who speak the three languages as mother tongue, second and foreign languages is analyzed. Based on the theories of speech acts and French discourse analysis, the study adopts qualitative and quantitative approaches. The study reveals that, in order to lessen the negative impact of the refusal act, irrespective of the language and its social status, the constitution of the refusal speech, whether direct or indirect, consists of a combination of illocutionary refusal acts (main illocutionary act) with assertive and expressive illocutionary acts. These acts serve to minimizing the impact of the refusal act. Apologies, expressions of feelings and justificative phrases are some of the expressions mostly used to soften the refusal.

Keywords:
Shona, English and Portuguese; Refusal Speech; Illocutionary Acts; Refusal; Repairs

Resumen

El propósito de este artículo es analizar la constitución del discurso de la negación en shona, inglés y portugués. Para ello, se analizan los datos de 30 estudiantes universitarios que hablan los tres idiomas como lengua materna, segunda y extranjera, respectivamente. Basado en las teorías de los actos de habla y el análisis del discurso francés, el estudio adopta una metodología mixta, que permite la presentación de resultados de carácter cuantitativo y cualitativo. En este contexto, los resultados indican que, para mitigar el impacto negativo del acto de negación sobre el interlocutor, independientemente del idioma y condición social, la constitución del discurso de negación, ya sea una negación directa o indirecta, consiste en la combinación de actos ilocucionarios de rechazo (acto ilocucionario principal) con actos ilocucionarios asertivos y expresivos con la función de minimizar el daño causado por la negación. De estos actos (reparadores) destacan las disculpas, las expresiones de sentimientos y las frases justificativas.

Palabras clave:
Shona, Inglés y Portugués; Discurso de negación; Actos ilocucionarios; Rechazo; Mitigante

1 INTRODUÇÃO

Quando os indivíduos fazem pedidos ou dão ordens - atos de fala diretivos que, normalmente, são feitos na segunda pessoa (Hare, 1949HARE, M. H. Imperative sentences. Mind, New Series, v. 58, n. 229, p. 21-39, 1949., p. 25) - esperam, por parte dos interlocutores, respostas através de um ato de enunciação (expressão verbal), de ações ou de ambos. Em todos os casos, as respostas podem consistir em dois atos diferentes, nomeadamente, a negação ou a aceitação.

Enquanto a aceitação significa a satisfação do pedido ou da ordem formulada, a negação representa a oposição à vontade ou aos objetivos do interlocutor, isto é, a não satisfação do pedido ou da ordem. Aliás, na perspetiva da psicanálise de Freud (1925FREUD, S. A negação. In: FREUD, S. Obras completas: o Eu e o ID autobiografia e outros textos. V. 16. São Paulo: Companhia das Letras, 1925. p. 249-255., p. 249-255), a afirmação representa o encontro/união das opiniões, enquanto a negação representa o desencontro/disjunção de opiniões. Por conta disto, a negação representa uma contravontade do pedinte ou do ordenante, podendo, na maioria dos casos, ferir sua sensibilidade.

Considerando a teoria das faces, pode dizer-se que, em um ato comunicativo, a negação de pedidos ou ordens (atos ilocutórios diretivos) representa uma ameaça às faces do interlocutor, daí a necessidade, quase universal, de atenuar os atos ilocutórios de negação (Brown; Levinson, 1987BROWN, P.; LEVINSON, S. C. Politeness: Some Universals in Language Usage. Cambridge: University Press, 1987., p. 58-60).

Neste âmbito, o objetivo deste trabalho é analisar a constituição do discurso da negação (DN) (verbal) perante pedidos e ordens em uma situação de comunicação corrente (entre amigos e familiares). Trata-se de apresentar, em termos quantitativos, a frequência com que ocorrem os atos de recusa atenuados (aqueles em que o locutor procura suavizar o impacto da negação e preservar as faces do seu interlocutor) em relação aos atos de recusa simples. Para além disso, interessa identificar a natureza dos atos ilocutórios que constituem o DN (atos de negação simples ou combinados com outros atos) e de tipificar os atos ilocutórios atenuantes frequentes.

O estudo fundamenta-se pelo fato de o DN ser tendencialmente um discurso composto e complexo (constituído por mais de um ato ilocutório, como veremos na análise de dados), embora seja possível negar até com uma simples palavra, não1 1 Em uma visão muito simplória, basta que se usem partículas negativas para se considerar um enunciado negativo ou de recusa. No entanto, esta perspetiva de análise não favorece os estudos pragmáticos. Considerando 1. Não viste o João? (pai dirigindo-se ao seu filho mais novo), e 2. Eu não gosto de brincadeira. (dito de repente por um jovem depois de ver um senhor a derrapar de patins em uma autoestrada), verifica-se que os dois enunciados (1 e 2) contêm partículas negativas (não), mas seria uma infelicidade considerá-los, naqueles contextos determinados, enunciados com a força ilocutória de recusa. Isto complexifica o estudo do ato ilocutório de recusa, já que, na língua, as partículas negativas servem para indicar negação, de fato, mas não o ato ilocutório de recusa. A recusa, na verdade, é uma resposta negativa a um ato ilocutório, geralmente diretivo (pedido, apelo, conselho...). Na pragmática, o ato ilocutório de recusa não deve ser refém do uso ou não das partículas negativas da língua; deve ser considerado simultaneamente em função do ato proposicional e do ato ilocutório, incluindo os aspectos extralinguísticos. (ou expressões equivalentes). Esta situação parece revelar que o DN é muito mais marcado contextualmente, se comparado com um discurso de aceitação. Ademais, é no DN que os falantes se preocupam sobremaneira com a preservação das faces de seus interlocutores, negando sem ferir suas sensibilidades através dos atos ilocutórios atenuantes ou de cortesia (Brown; Levinson, 1987BROWN, P.; LEVINSON, S. C. Politeness: Some Universals in Language Usage. Cambridge: University Press, 1987.; Kreishan, 2018KREISHAN, L. Politeness and Speech acts of Refusal and Complaint among Jordanian Undergraduate Students. International Journal of Applied Linguistics & English Literature (IJALEL), v. 7, n. 4, p. 68-76, 2018.).

Assim, espera-se que sejam apresentadas com este estudo as características do DN (em termos de composição e função de cada ato ilocutório envolvido), ainda que de forma parcial (nossos dados não permitem analisar aspectos extralinguísticos - expressões faciais, gestos, por exemplo - que acompanham o DN verbal), e contribuir para o debate na área de análise do discurso em geral, e do DN em particular que, como se pode constatar, revela-se bastante complexo e com muitos aspectos linguísticos e pragmáticos por considerar.

Na área de ensino-aprendizagem e uso das línguas, espera-se demonstrar, a partir deste estudo, a tendência dos falantes de atenuar os atos ilocutórios de recusa, independentemente da língua em causa, de sua origem ou de seu estatuto social.

Nossa base empírica é constituída por cerca de 159 enunciados com teor de recusa - DN verbal - a pedidos e convites. Cerca de 30 estudantes universitários, falantes de shona2 2 A língua shona enquadra-se na zona S10, de acordo com a distribuição de Guthrie (1967). É uma das línguas bantu faladas na região austral da África. É língua nativa do povo de Mashonaland, no Zimbábue; todavia, é igualmente falada por pequenos grupos sociais dos países vizinhos, como Botswana, Moçambique e Zâmbia. como língua materna, de inglês como língua segunda, e aprendentes de português língua estrangeira constituem o grupo-alvo.

Sob o ponto de vista teórico, o estudo ancora-se na teoria dos atos de fala desenvolvida por Searle (1976SEARLE, J. R. Classification of Illocutionary Acts. Language in Society, v. 5, n. 1, p. 1-23, 1976., p. 7-10) que prevê diferentes atos ilocutórios em função da intenção comunicativa, bem como nos princípios teóricos de análise de discurso de linha francesa que, por sua vez, prevê a modificação do discurso em função de aspectos sociolinguísticos e contextuais (Marcuschi, 2003MARCUSCHI, L. A. Análise da conversação. 5. ed. São Paulo: Ática, 2003., p. 14; Van Dijk, 1977; Fairclough, 2001FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Brasília: Ed. da Universidade de Brasília, 2001.). Aliás, na escola francesa, a análise do discurso toma em consideração o sujeito, sua história, a sociedade e o contexto comunicativo (Santos; Oliveira; Saad, 2021SANTOS, J. A.; OLIVEIRA, G. S.; SAAD, N. S. Análise de discurso: Fundamentos e procedimentos. Cadernos da Fucamp, v. 20, n. 43, p. 84-97, 2021., p. 86). A conjugação das duas teorias prende-se com o fato de, em conjunto, oferecerem fundamentos teóricos que permitem a análise da configuração do DN sob o ponto de vista linguístico e pragmático.

2 REVISÃO DA LITERATURA

2.1 CONSPECTO TEÓRICO

Normalmente, em um círculo comunicativo, aberto ou fechado3 3 Considera-se círculo comunicativo fechado o contexto em que os indivíduos se dirigem explicitamente os enunciados, como em uma conversa entre dois indivíduos ou em uma aula, na sala de aula. O círculo aberto é, entretanto, o contexto comunicativo em que os destinatários não são específicos. , os indivíduos correspondem-se, agem, reagem ou tomam atitudes em função da intenção de seus interlocutores e da força ilocutória que se confere ao enunciado. Isto é prova viva de que a língua é uma instituição cujos elementos desempenham funções (Gouveia, 1996GOUVEIA, C. M. A. Pragmática. In: FARIA et al. (org.) Introdução à linguística geral e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1996. p. 383-420., p. 390-392). Aliás, Gouveia (1996, p. 384) acrescenta que na comunicação intervém

[...] uma série de fatores linguísticos e não linguísticos que inclui, pelo menos, o que é dito, o modo como é dito e a intenção com que é dito, o posicionamento físico, os papéis sociais, as identidades, as atitudes, os comportamentos, as crenças dos participantes, [...] as relações que entre eles se estabelecem.

O exposto no parágrafo acima demonstra claramente que a língua deve ser vista não só sob o ponto de vista da forma e do conjunto de elementos que compõem um sistema. Deve ser analisada também e sobretudo sob o ponto de vista das intenções dos falantes, do impacto que cada enunciado tem no receptor e também dos aspectos que envolvem todo o ato comunicativo. É, sem sombra de dúvida, na intenção comunicativa que se assenta a essência da força ilocutória dos atos de fala.

Na base da teoria dos atos ilocutórios/atos de fala está a concepção de que “the minimal unit of human communication is not a sentence or other expression, but rather the performance of certain kinds of language acts” (Dietz; Widdershoven, 1991DIETZ, J.L.G; WIDDERSHOVEN, G. A. M. Speach Acts or Communicative Actions? In: BANNON, L; ROBINSON, M.; SCHMIDT, K. (Ed.) Proceedings of the Second European Conference on Computer-Supported Cooperative Work. Amsterdam, p. 235-248, 1991., p. 236). Qualquer ato ilocutório tem uma intenção (objetivo ilocutório) que será realizada de acordo com sua função comunicativa (força ilocutória) (Gouveia, 1996GOUVEIA, C. M. A. Pragmática. In: FARIA et al. (org.) Introdução à linguística geral e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1996. p. 383-420., p. 1-2). Contudo, os atos linguísticos podem ter sucesso ou podem falhar, dependendo de vários aspectos, podendo destacar-se a impertinência da força ilocutória ou a indisponibilidade do ouvinte. O DN, neste âmbito, representa o insucesso (a insatisfação) do ato comunicativo do interlocutor (cf. Sattar; Lah; Suleiman, 2011SATTAR, H. Q. A.; LAH, S. C.; SULEIMAN, R. R. R. Refusal Strategies in English by Malay University students. Journal of Language Studies, v. 11, n. 3, 2011, p. 69-81., p. 70).

Na taxonomia de Searle (1976SEARLE, J. R. Classification of Illocutionary Acts. Language in Society, v. 5, n. 1, p. 1-23, 1976., p. 7-10), discípulo confesso e crítico severo de Austin, com base em seus estudos filosóficos sobre a linguagem, destacam-se cinco tipos de atos ilocutórios, a saber:

  • a) Ato ilocutório assertivo (AIA): neste tipo de ato, o locutor compromete-se com a veracidade daquilo que expressa em seu enunciado (assertar, afirmar, negar);

  • b) Ato ilocutório diretivo (AID): com o qual o locutor pretende levar seu ouvinte a fazer uma determinada coisa (ordens, pedidos, comandos);

  • c) Ato ilocutório compromissivo (AIC): o locutor compromete-se a fazer uma determinada coisa (promessas, tratados, contratos, garantias);

  • d) Ato ilocutório expressivo (AIE): o falante exprime seus sentimentos e atitudes acerca de um determinado fato (pedido de perdão, agradecimento, compaixão);

  • e) Ato ilocutório declarativo (AIDec): quando o enunciado do falante marca a alteração da realidade mundana em função de sua força ilocutória (declaração de guerra/paz, declaração de casados, leitura de sentenças) (cf. Gouveia, 1996GOUVEIA, C. M. A. Pragmática. In: FARIA et al. (org.) Introdução à linguística geral e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1996. p. 383-420., p. 392).

Considerando esta tabela teórica, os pedidos como peço que me dê emprestado o seu carro, pretendo viajar para Marondera, por favor! e os convites como hoje é o meu aniversário e vou comemorar no Junction 24 a partir das 3 PM. Aceita ir comigo? (em que, na verdade, o locutor está a pedir que o interlocutor vá para a festa de seu aniversário) fazem parte dos atos ilocutórios diretivos cuja força ilocutória, em conformidade com Gouveia (1996GOUVEIA, C. M. A. Pragmática. In: FARIA et al. (org.) Introdução à linguística geral e portuguesa. Lisboa: Caminho, 1996. p. 383-420.), é de levar alguém a fazer algo (em benefício do falante). Por seu turno, os atos ilocutórios de recusa, que constituem o DN, fazem parte dos AIA (Pinto de Lima, 2007, p. 47).

Efetivamente, o DN, dada sua força comunicativa, contradiz a intenção do outro (o interlocutor). É na consideração de todos os fatores arrolados por Gouveia como sendo pertinentes na produção e transmissão de enunciados que o DN, apesar de ser possível sua constituição por um único ato ilocutório com a força ilocutória de negação, é amiúde constituído por vários atos ilocutórios com diferentes forças e funções ilocutórias.

2.2 TIPOLOGIA DOS ATOS DE RECUSA

Os atos de recusa podem consistir em dois principais grupos de negação definidos em função da estratégia pragmática e da estrutura usadas pelo falante. Neste contexto, distinguem-se a negação direta e a negação indireta, que podem ou não ser acompanhadas ou combinadas com atos ilocutórios atenuantes, que servem para minimizar os efeitos negativos do ato de recusa sobre as faces do interlocutor.

Sendo a negação uma resposta negativa/contrária a pedidos, convites ou ofertas, sua codificação linguística depende sobremaneira de aspectos socioculturais da comunidade em que se encontram e vivem os falantes (Izadi; Zilaie, 2015IZADI, A.; ZILAIE, F. Refusal Strategies in Persian. International Journal of Applied Linguistics, v. 25, n. 2, p. 247-263, 2015., p. 247). Neste contexto, considera-se como estratégia de negação direta o uso de expressões e estratégias comunicativas que explícitam e literalmente indicam/denotam uma negação, ao passo que em uma estratégia de negação indireta não se usam estruturas que indicam a negação; no entanto, este ato de recusa está implícito no enunciado do falante. Entretanto, quer os atos de recusa direta (negação direta), quer os de recusa indireta (negação indireta) podem ou não ser acompanhados por atos ilocutórios adjuntos, com a função de suavizar o impacto da recusa (Jiang, 2015JIANG, J. An Empirical Study on Pragmatic Transfer in Refusal Speech Act Produced by Chinese High School EFL. English Language Teaching, v. 8, n. 7, p. 95-113, 2015.; Hai, 2021HAI, Y. V. T. Frequency Employments of Direct Refusal Strategies of Offers by the Native Speakers of American English and the Vietnamese. Advances in Social Science, Education and Humanities Research, v. 533, p. 241-246, 2021. Proceedings of the 17th International Conference of the Asia Association of Computer-Assisted Language Learning (AsiaCALL 2021).; Izadi; Zilaie, 2015; Sattar; Lah; Suleiman, 2011SATTAR, H. Q. A.; LAH, S. C.; SULEIMAN, R. R. R. Refusal Strategies in English by Malay University students. Journal of Language Studies, v. 11, n. 3, 2011, p. 69-81.).

De acordo com Izadi e Zilaie (2015IZADI, A.; ZILAIE, F. Refusal Strategies in Persian. International Journal of Applied Linguistics, v. 25, n. 2, p. 247-263, 2015., p. 248), dependendo da situação e do contexto, os indivíduos podem usar com sucesso, isto é, sem ameaçar as faces do interlocutor, diferentes estratégias de negação direta e indireta. Isto quer dizer que a negação direta, por exemplo, pode, em certos contextos, ameaçar as faces do outro, e não ter o mesmo impacto noutras situações de comunicação. No entanto, de uma forma geral, a negação direta (sobretudo quando desprovida de atenuantes) é amiúde associada à falta de cortesia/polidez (cf. Brown; Levinson, 1987BROWN, P.; LEVINSON, S. C. Politeness: Some Universals in Language Usage. Cambridge: University Press, 1987.; Rodrigues, 2003RODRIGUES, D. F. Cortesia linguística: uma competência discursivo-textual. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2003.).

2.3 DN, FACES E CORTESIA

Brown e Levinson (1987BROWN, P.; LEVINSON, S. C. Politeness: Some Universals in Language Usage. Cambridge: University Press, 1987.) desenvolveram a teoria das faces, na qual se acautelaram do fato de, em um ato comunicativo, os falantes preocuparem-se com as sensibilidades de seu interlocutor. Estes dois autores demonstraram a necessidade de preservar as faces do outro (o interlocutor) como o principal motivo da necessidade de polidez durante a comunicação. De fato, a polidez é uma estratégia que permite a preservação das faces. No entanto, para além desse fator, em alguns contextos (exemplos de sociedade da região austral de África) os aspectos socioculturais (idade, hierarquias sociais, grau de parentesco, tópico de conversação) motivam o recurso à cortesia/polidez no uso da língua (cf. Izadi; Zilaie, 2015IZADI, A.; ZILAIE, F. Refusal Strategies in Persian. International Journal of Applied Linguistics, v. 25, n. 2, p. 247-263, 2015., p. 248).

Os conceitos de face e polidez, bem como sua relação apresentados por Brown e Levinson, foram/são contestados por autores como Izadi e Zilaie (2015IZADI, A.; ZILAIE, F. Refusal Strategies in Persian. International Journal of Applied Linguistics, v. 25, n. 2, p. 247-263, 2015.), Haugh e Bargiela-Chiappini (2010HAUGH, M.; BARGIELA-CHIAPPINI, F. Face in interaction. Journal of Pragmatics, v. 42, n. 8, p. 2073-2077, 2010.) e Haugh (2009). Para estes autores, face e polidez/cortesia não são a mesma coisa, devendo, por isso, haver uma distinção clara dos dois conceitos.

Neste contexto, pode conceptualizar-se a face como sendo inerente a aspectos de autoestima e imagem positiva que os interlocutores (indivíduo ou grupo de indivíduos) desejam que lhes sejam respeitados ou promovidos em um ato comunicativo. A face está sempre presente em cada ato comunicativo (cf. Jiang, 2015JIANG, J. An Empirical Study on Pragmatic Transfer in Refusal Speech Act Produced by Chinese High School EFL. English Language Teaching, v. 8, n. 7, p. 95-113, 2015.; Izadi Zilaie, 2015IZADI, A.; ZILAIE, F. Refusal Strategies in Persian. International Journal of Applied Linguistics, v. 25, n. 2, p. 247-263, 2015.; Haugh, 2009HAUGH, M. Face and interaction. In: Francesca Bargiela-Chiappini and Michael Haugh (eds.). Face, Communication and Social Interaction. Equinox, London, 2009. p. 1-30.). A polidez/cortesia, por seu turno, consiste em um conjunto de estratégias linguísticas e/ou extralinguísticas tendentes a criar um ambiente comunicativo harmonioso entre os interlocutores, é dependente de aspectos socioculturais e de proficiência linguística (Jiang, 2015, p. 97; Hai, 2021HAI, Y. V. T. Frequency Employments of Direct Refusal Strategies of Offers by the Native Speakers of American English and the Vietnamese. Advances in Social Science, Education and Humanities Research, v. 533, p. 241-246, 2021. Proceedings of the 17th International Conference of the Asia Association of Computer-Assisted Language Learning (AsiaCALL 2021)., p. 241).

De forma geral, os autores arrolados nos parágrafos anteriores (deste mesmo subtópico), concordam com Brown e Levinson (1987BROWN, P.; LEVINSON, S. C. Politeness: Some Universals in Language Usage. Cambridge: University Press, 1987.) no que diz respeito à tipologia das faces. Segundo estes autores, a face positiva está relacionada com a natureza humana de querer ser reconhecido, ver sua ideia/ato ilocutório valorizado e aprovado; ao passo que o caráter de querer preservar sua personalidade e privacidade e de não gostar de imposições representa a face negativa de cada falante. Na verdade, trata-se de aspectos de que o indivíduo necessita como falante e de aspectos que cada um não gostaria que lhe fossem tocados (postos em causa).

Face can be further classified into positive face and negative face. Positive face refers to the speakers’ desire to be accepted and appreciated by others. It puts more emphasis on the speaker’s self-esteem. One’s face would be threatened if he or she is ignored by others. Negative face refers to one’s free choice of actions and his desire not to be imposed on by others. It put stress on the freedom of action (Jiang, 2021, p. 97).

Neste âmbito, o fato de o ato de recusa contradizer a intenção do interlocutor e, consequentemente, ameaçar as faces deste, capitaliza a relevância do recurso a aspectos de cortesia e polidez na interação verbal. Aliás, de acordo com Leech (1983), Brown e Levinson (1987BROWN, P.; LEVINSON, S. C. Politeness: Some Universals in Language Usage. Cambridge: University Press, 1987.) e Rodrigues (2003RODRIGUES, D. F. Cortesia linguística: uma competência discursivo-textual. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2003.), a capacidade de comunicar com polidez é um aspecto relevante para a preservação de boas relações sociocomunicativas.

Em se tratando da necessidade de preservação das faces do interlocutor, a cortesia linguística que, na visão de Leech (1983), representa o comportamento tendente a criar e estabelecer uma interação linguística harmoniosa, é um dos mecanismos eficazes para atenuar os atos ilocutórios ameaçadores (como o da negação); faz parte dos princípios de comunicação interpessoal, implicando valores como generosidade, modéstia, simpatia e harmonia na interação comunicativa (Abarghoui, 2012ABARGHOUI, M. A. A Comparative Study of Refusal Strategies Used by Iranians and Australians. Theory and Practice in Language Studies, v. 2, n. 11, p. 2439-2445, 2012., p. 2441).

Assim, considerando as características dos atos ilocutórios de recusa, justifica-se a preocupação do falante em construir um DN composto por atos ilocutórios de recusa e de cortesia como tentativa de negar sem criar danos ao interlocutor (Rodrigues, 2003RODRIGUES, D. F. Cortesia linguística: uma competência discursivo-textual. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2003., p. 164). Segundo este autor, os falantes podem fazer uso de vários meios e estratégias linguísticas para serem corteses, como por exemplo:

  • a) Formas de tratamento;

  • b) Formas verbais para atenuação: “servem para suavizar a realização de atos diretivos, através de escolhas linguísticas que exprimem incerteza, hesitação, indireção, sugestão, etc., destinadas a proteger a face do interlocutor” (p. 178-179);

  • c) Uso de elementos linguísticos atenuadores que podem adicionar a um ato ilocutório a atitude cortês: advérbios (possivelmente, talvez...); partículas (assim, bocadinho, não sei...); verbos modais (dever, poder, julgo que...); tipos de frases (perguntas alternativas, frases de comparação...); tempos verbais no conjuntivo; fenômenos de hesitação e pausas sonoras (digamos, quer dizer, ah, eh, etc...); metacomunicação (isto é para já uma opinião pessoal, a minha opinião, quanto a mim...) (Hermann, 1984 apudRodrigues, 2003RODRIGUES, D. F. Cortesia linguística: uma competência discursivo-textual. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2003., p. 182);

  • d) pedidos de desculpas, apresentação de justificações etc.;

  • e) Uso do presente do indicativo no lugar do imperativo (o João faz-me o trabalho agora vs faça-me o trabalho agora);

  • f) Futuro do indicativo em vez do imperativo (tu falarás comigo vs fala comigo);

  • g) Condicional no lugar do imperativo (queria abrir a porta vs abra a porta). etc. (p. 193 - 228).

2.4 PRINCIPAIS TENDÊNCIAS DE RECUSA

Um estudo feito por Izadi e Zilaie (2015IZADI, A.; ZILAIE, F. Refusal Strategies in Persian. International Journal of Applied Linguistics, v. 25, n. 2, p. 247-263, 2015.) envolvendo falantes iranianos de persa (como língua materna) demonstrou que, para materializar o ato de recusa, os falantes usam preferencialmente (1) estratégias indiretas e (2) uma combinação de estratégias diretas e indiretas. Estes autores identificam, em seu trabalho, a apresentação de razões (justificativas), os agradecimentos pelo convite e o retorno do convite como estratégia de cortesia/polidez para atenuar o ato ilocutório de recusa (p. 258-259).

Por seu turno, Félix-Brasdefer (2008, p. 62), em um estudo sobre a intervenção pedagógica e o desenvolvimento da competência pragmática na aprendizagem do espanhol como língua estrangeira, demonstra claramente que os falantes em geral e os aprendentes de línguas estrangeiras em particular, recorrem, para recusar, a estratégias diretas (negação direta), indiretas (negação indireta) e a expressões adjuntas de recusa, quer em situações formais quer em situações informais de comunicação.

Fato importante que os estudos de Félix-Brasdefer (2008) e de Izadi e Zilaie (2015IZADI, A.; ZILAIE, F. Refusal Strategies in Persian. International Journal of Applied Linguistics, v. 25, n. 2, p. 247-263, 2015.) trazem à superfície é que quer os falantes nativos quer os falantes-aprendentes de línguas estrangeiras, solicitados a materializar o ato de recusa, preferem as estratégias indiretas acompanhadas por adjuntos de recusa, evitando quanto possível as diretas simples.

Tal como refere Abarghoui4 (2012ABARGHOUI, M. A. A Comparative Study of Refusal Strategies Used by Iranians and Australians. Theory and Practice in Language Studies, v. 2, n. 11, p. 2439-2445, 2012., p. 2442), corroborando Rodrigues (2003RODRIGUES, D. F. Cortesia linguística: uma competência discursivo-textual. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2003.), a recusa indireta implica (a) pedido de desculpas “perdoe-me, desculpe-me”; (b) manifestação de vontade “gostaria de ajudá-lo”; (c) sugestões de alternativas; (d) promessas para o futuro; ironia; etc. Neste âmbito, a recusa pode implicar três sequências, a pré-refusal strategy, a main refusal e a post-refusal5 5 Estratégia de pré-negação, Negação (principal) e pós-negação (nossa tradução). (2012, p. 2442) para minimizar os possíveis danos causados pela negação (Fukada; Atsato, 2004FUKADA, A. E ASATO, N. Universal Politeness Theory: Aplication to the Use of Japanese Honorifics. Jouranl of Pragmatics, v. 36, p. 1991-2002, 2004., p. 1991-2002).

As estratégias (in)diretas, entretanto, acompanhadas de adjuntos de recusa, na linguagem de Félix-Brasdefer (2008), correspondem ao que neste trabalho se denomina ato ilocutório de recusa e cortesia; um ato que serve para recusar e, ao mesmo tempo, para atenuar o impacto dessa mesma recusa.

Geralmente, em um ato de recusa e cortesia, o falante procura mostrar preocupação, em primeiro lugar, com a necessidade de seu interlocutor; em segundo, por não o poder ajudar. O recurso à expressão de sentimentos (atos expressivos), às justificações e às sugestões resultam de o fato de negar ter aquelas implicações acima referidas (ameaça às faces do interlocutor).

3 METODOLOGIA

Este estudo adota uma abordagem mista. A pesquisa de natureza qualitativa justifica-se pelo fato de permitir identificar e discutir os diferentes aspectos referentes à composição do DN, isto é, permite analisar os diferentes atos ilucotórios (ato ilocutório principal e os atenuantes/reparadores) que se mobilizam para a constituição do DN. Por seu turno, a análise quantitativa releva do fato de facilitar a comparação, em termos quantitativos, das diferentes estratégias de negação a que recorrem nossos informantes no uso das três línguas. Com esta metodologia, é possível observar qual é a estratégia de uso preferencial entre a negação direta (sem/com atenuantes) e a negação indireta (sem/com atenuantes). Paralelamente, permite identificar igualmente a natureza dos atos ilocutórios atenuantes de uso preferencial.

Nosso grupo-alvo é constituído por cerca de 30 estudantes universitários que frequentavam (na altura da realização do inquérito) o terceiro ano de graduação em Letras. Esses alunos, sendo falantes de shona e de inglês, respectivamente como línguas materna e segunda, aprendiam, como componente curricular de seus programas de graduação, o português como língua estrangeira. A consideração de estudantes do terceiro ano e com este perfil sociolinguístico justifica-se, por um lado, pelo fato de, a este nível, os alunos apresentarem competência em língua estrangeira (português) que lhes permita usar a língua com cortesia (sem causar danos no interlocutor). Por outro lado, o estudo envolvendo falantes de três línguas com estatutos sociais diferentes fundamenta-se pela necessidade de observar até que ponto a proficiência dos indivíduos em uma determina língua, o estatuto social ou mesmo a origem da língua têm implicações na constituição do discurso de negação.

A recolha de dados foi conduzida através de um questionário em que pedíamos ao aluno que recusasse dois tipos de atos diretivos, nomeadamente, um convite (Hoje é o meu aniversário e vou comemorar no Junction 24 a partir das 3 PM. Aceitas ir comigo?) e um pedido (Peço que me dês emprestado o teu carro, pretendo viajar para Marondera, por favor!). O questionário foi apresentado nas três (3) línguas, nomeadamente shona, inglês e português, e solicitamos que as respostas fossem igualmente dadas usando os três idiomas.

Neste contexto, a amostra de análise é constituída por respostas abertas aos dois atos diretivos apresentados no parágrafo anterior (um convite e um pedido). Consideramos e agrupamos todos os enunciados que exprimiam negação/recusa (incluindo negação direta e indireta, com ou sem atenuantes) aos dois atos diretivos. No total conseguimos recolher 159 enunciados que representam o DN distribuídos pelas três línguas, tal como representado na tabela 1.

Tendo em vista os objetivos definidos para este estudo, os dados (enunciados) foram organizados em função de sua constituição interna de tal forma que se identificassem e quantificassem casos de negação direta (sem/com atenuantes) e de negação indireta (sem/com atenuantes) (tabela 2). Para além disso, foi considerada, em tabela particular, a tipologia dos atos ilocutórios atenuantes (tabela 3). A análise e a discussão destes dados da amostra têm como base de referência aportes de natureza teórico-prática apresentados no ponto 2.

4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DE DADOS

Os dados apresentados nesta secção são referentes a 30 alunos que aceitaram colaborar neste estudo fornecendo informação sobre o DN ao responderem aos pedidos que lhes foram colocados em forma de inquérito. Neste exercício, conforme se pode constatar na tabela 1, a quantidade de respostas às duas perguntas não é constante, o que implica que alguns informantes não puderam responder a todos os pedidos usando as três línguas. Uma explicação para este fato pode ter a ver com os níveis de proficiência em certas línguas. Aliás, a língua portuguesa, usada como língua estrangeira, com uma soma de 46 respostas aos dois pedidos (3º parágrafo da metodologia), é a que apresenta menor número de respostas. No entanto, estes dados representam mais do que a metade (de total de respostas possíveis), o que permite identificar as estratégias tendencialmente usadas pelo grupo-alvo para construir um DN em português.

Tabela 1
Dados sobre o DN em shona, inglês e português

A tabela 1 revela um equilíbrio das respostas (ato de recusa) na língua shona, língua materna dos falantes, com 28 DN para cada ato ilocutório diretivo formulado (o convite e o pedido). Já em inglês, com maior número de respostas (57), o convite registrou a totalidade de respostas esperada (30), enquanto o pedido registrou 27 DN. A língua portuguesa, por seu turno, foi usada para dar 25 respostas ao convite e 21 ao pedido.

4.1 COMPOSIÇÃO DO DN

Conforme se referiu em tópicos anteriores, o DN pode consistir na negação direta ou na negação indireta (Félix-Bradefer, 2008; Abarghoui, 2012ABARGHOUI, M. A. A Comparative Study of Refusal Strategies Used by Iranians and Australians. Theory and Practice in Language Studies, v. 2, n. 11, p. 2439-2445, 2012.). A primeira (negação direta) é menos cortês (sobretudo quando desprovida de qualquer tipo de atenuante) e, por isso, potencialmente muito constrangedora. A segunda negação (a negação indireta) é mais cortês (é normalmente acompanhada por estratégia de suavização), o que reduz os danos no interlocutor. Entretanto, o estudo da negação a convites e pedidos por membros do grupo-alvo indica o uso dos dois tipos de negação nas três línguas, porém não de forma uniforme, conforme se pode verificar na tabela 2.

Tabela 2
Composição do DN

A análise da tabela 2 permite constatar que a estratégia direta (negação direta) é menos usada em relação à estratégia indireta, com exceção da negação em português, em que se verifica um ligeiro aumento da negação direta, fato que se pode relacionar, como referido acima, com o nível de competência linguística e comunicativa nesta língua que é aprendida e usada como língua estrangeira, portanto, com menos recursos linguísticos à disposição do grupo-alvo.

Há ainda a destacar o fato de, quer no uso da estratégia direta quer no uso da estratégia indireta, as negações atenuadas, em que se tem um ato ilocutório de recusa/negação combinado com um ou mais atos atenuantes/reparadores, superarem expressivamente as negações sem elementos reparadores ou atenuantes (Rodrigues, 2003RODRIGUES, D. F. Cortesia linguística: uma competência discursivo-textual. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2003.). Neste contexto, a negação direta atenuada apresenta 2, 17 e 20 ocorrências, enquanto a negação indireta atenuada, por sua vez, registra 46, 37 e 17 ocorrências.

Desta feita, pode postular-se que na constituição do DN, independentemente da língua usada, de seu estatuto social e da proficiência nessa língua, o grupo-alvo (e os falantes em geral) prefere usar atos ilocutórios de recusa atenuados por outros atos de fala (exemplo 1), podendo formular-se a seguinte regra (aplicável para o grupo-alvo) preferencial na constituição do DN:

DN = AIA (de recusa direta ou indireta) + Ato ilocutório atenuante/reparador (este pode antepor-se ou pospor-se ao AIA)

Exemplo 1:

  1. SH: Ndineurombo, handikwanise kuenda newe, pane zvandinofanira kuita nenguvaidzozo. (PT: Sinto muito, não posso ir contigo, há coisas que devo fazer a essa hora)

  2. EN: I beg your pardon, I can’t accompany you, I will be busy. (PT: Peço o seu perdão, não o posso acompanhar, estarei ocupado)

  3. PT: ?Desculpe meu amigo, não posso vir. Tenho de estudar. Tem um feliz aniversário.

  4. SH: Ndineurombo, handikwanise kukukweretesa mota yangu, ndinoda kuzoishandisa. (PT: Sinto muito, não lhe posso dar emprestado o meu carro, preciso de usá-lo)

  5. EN: I’m sorry, I cannot lend you my car, it’s supposed to be serviced. (Desculpe, não lhe posso dar emprestado o meu carro, deve ir à revisão)

  6. PT: ?Desculpe o meu amigo, eu preciso de usar o meu carro e a minha apólice de seguros não permitirá. Talvez *pedi para o carro da Kudzi.

Os enunciados a. b. e c. são exemplos de respostas negativas ao convite formulado, enquanto c. d. e f. correspondem à resposta ao pedido. Claramente, observa-se que o ato de recusa é acompanhado por expressão de sentimento de constrangimento e pela justificação (a. b. e d); de pedido de desculpas e justificação/explicação (c. e. e f.) e, em certos casos, de sugestões (f) (Rodrigues, 2003RODRIGUES, D. F. Cortesia linguística: uma competência discursivo-textual. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2003.).

Ainda de acordo com a tabela 2, os dados sobre o uso da estratégia indireta (com atenuante) superam os dados referentes ao uso da negação direta. Esta constatação corrobora aquilo que foi identificado por Félix-Bradefer (2008), em um estudo semelhante envolvendo aprendentes de espanhol língua estrangeira.

4.2 TIPOLOGIA DOS ATOS ILOCUTÓRIOS ATENUANTES

As expressões que atenuam/reparam os atos ilocutórios de recusa podem ser de natureza diferente e desempenham papéis pertinentes no ato da comunicação. Em função dos dados apresentados na tabela 3, verifica-se que os indivíduos podem usar, para suavizar os atos ilocutório de recusa e preservar as faces do interlocutor, atos ilocutórios assertivos, expressivos ou combinar os dois tipos.

Tabela 3
Classificação dos atos atenuantes do DN

No que tange particularmente ao grupo-alvo deste estudo, registra-se claramente o recurso aos atos ilocutórios assertivos (com 17, 4 e 10 ocorrências) e à combinação destes com os expressivos (com 37, 50 e 25 ocorrências, respectivamente na negação em shona, inglês e português) para atenuar os atos ilocutórios de recusa. Ademais, entre estas duas estratégias, a combinação dos assertivos e expressivos ultrapassa, em termos quantitativos, a estratégia de uso dos assertivos isoladamente para produzir um ato ilocutório de recusa e cortesia.

Portanto, pode indicar-se como regra preferencial para o grupo-alvo a seguinte: DN = AIA (de recusa direta ou indireta) + AIA (atenuante) + AIE (atenuante) (Exemplo 1 a. - f.). Esta regra, em função da tabela 3, apresenta 37, 50 e 25 ocorrências, respectivamente, em shona, inglês e português.

4.3 DISCUSSÃO

Os dados acima apresentados indicam que o DN é preferencialmente composto por mais de um ato ilocutório (cf. a taxonomia dos atos ilocutório segundo Searle (1976SEARLE, J. R. Classification of Illocutionary Acts. Language in Society, v. 5, n. 1, p. 1-23, 1976.)). Ademais, os falantes recorrem ao uso de estratégias diretas e indiretas para materializar o ato de recusa, no entanto, em todos os casos, nossos informantes usam preferencialmente os atos de recusa acompanhados por atenuantes/reparadores. Assim, o DN passa a ser constituído pelo menos por um ato de recusa (principal) combinado com um ou mais atos atenuantes, resultando em um ato ilocutório de recusa e cortesia.

Dentre os diferentes atos que podem funcionar como atenuantes/reparadores, os assertivos e a combinação destes com os expressivos são frequentes no ato de negação. O recurso à combinação dos atos expressivos e assertivos tem a ver, por um lado, com a necessidade que o falante tem de mostrar sua preocupação com o pedido de seu interlocutor e seu (do falante) constrangimento por não poder dar satisfação ao ouvinte. Por outro, o recurso à combinação dos atos expressivos e assertivos prende-se à necessidade de querer justificar sua recusa ou dar sugestões que possam minimizar os efeitos da recusa.

Considerando a proposta de Abarghoui (2012ABARGHOUI, M. A. A Comparative Study of Refusal Strategies Used by Iranians and Australians. Theory and Practice in Language Studies, v. 2, n. 11, p. 2439-2445, 2012.), verifica-se que, na constituição do DN, a maioria dos dados do grupo-alvo obedece à sequência pré-refusal strategy, main refusal e post-refusal (Exemplo 2 a. - c.).

Exemplo 2

  1. PT: [[Pre-refusal Desculpe] porque [Main refusal eu não *pode dar-te o meu carro] [Post-refusal porque eu *utilizarei-lhe no trabalho]].

  2. EN: [[Pre-refusal I would have loved to go with you] [Main refusal but I’m tired up today]. [Post-refusalApologies]] (PT: Gostaria de ir contigo mas estou fatigado. Perdoa-me)

  3. SH: [Pre-refusal Makhorokoto nhai shamwari yangu] [Main refusal asihandikwanise kuenda newe zuvarino]. [Post-refusalNdinehurombo]! (PT: Parabéns meu amigo, mas não posso ir contigo nesse dia. Sinto muito).

A natureza dos dados (dados escritos) não permite identificar um aspecto importante que normalmente acompanha os DN. Trata-se da expressão facial dos falantes. Mesmo assim, expressões verbais tais como desculpe, sinto muito e infelizmente revelam o estado de constrangimento que afeta os falantes no ato da negação.

Ainda que as regras da composição do DN que foram apresentadas não possam ser consideradas universais devido à insuficiência dos dados que permitiram sua formulação, elas (as regras) parecem válidas em muitos casos de comunicação.

Os atos ilocutórios expressivos e assertivos combinados e usados para atenuar os efeitos da negação são estratégias para minimizar a ameaça das faces do interlocutor (cf. Brown; Levinson, 1987BROWN, P.; LEVINSON, S. C. Politeness: Some Universals in Language Usage. Cambridge: University Press, 1987.). Os dados em análise indicam expressivamente a evitação dos atos ilocutórios de recusa não atenuados nas três línguas. Isto revela o conhecimento da força de disjunção (Freud, 1925FREUD, S. A negação. In: FREUD, S. Obras completas: o Eu e o ID autobiografia e outros textos. V. 16. São Paulo: Companhia das Letras, 1925. p. 249-255.) que a negação (sobretudo sem atenuantes) tem em um círculo comunicativo, devendo, por isso, ser atenuada.

Embora nosso estudo envolva um ato diretivo de tipo convite, à semelhança do estudo de Izadi e Zilaie (2015IZADI, A.; ZILAIE, F. Refusal Strategies in Persian. International Journal of Applied Linguistics, v. 25, n. 2, p. 247-263, 2015.), não se registra, nas respostas de nossos inquiridos, o recurso ao retorno do convite como estratégia de negação indireta ou de atenuação, em oposição às conclusões destes dois autores.

O estudo sobre o DN em shona, inglês e português revela claramente a preocupação de nosso grupo-alvo com aspectos de polidez e cortesia na realização dos discursos de recusa. Aliás a questão da cortesia no uso da língua e de forma particular na realização de DN é definida como um aspecto inerente a comportamentos socioculturais dos indivíduos no uso da língua (Izadi; Zilaie, 2015IZADI, A.; ZILAIE, F. Refusal Strategies in Persian. International Journal of Applied Linguistics, v. 25, n. 2, p. 247-263, 2015.). Neste sentido, relativamente ao estudo de Izadi e Zilaie, que envolve falantes de língua materna (persa) e destaca a influência de aspectos socioculturais como fatores determinantes no uso de certas expressões de cortesia (como, por exemplo, o retorno do convite), os dados analisados neste estudo e os respetivos resultados sugerem situação de multiculturalismo (envolvendo o shona, o inglês e o português) em que a expressão de cortesia e polidez no DN é um aspecto comum.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ato ilocutório de recusa a pedidos e convites implica a rejeição da necessidade do interlocutor e constitui uma ameaça às faces do ouvinte, por isso, precisa de ser atenuado, através de expressões corporais associadas às expressões linguísticas. Na dificuldade de usar expressões corporais (casos de discursos escritos), o uso dos atos ilocutórios expressivos e assertivos, combinados ou não, constitui estratégia pertinente. Na verdade, quem nega não satisfaz seu interlocutor, por isso, precisa de encontrar mecanismos para se desculpar. Tudo indica que é mesmo indelicado e muito ofensivo um simples não, conciso e direto.

O ato ilocutório de recusa, por sua natureza, é muito forte, e quando ríspido e direto atinge as faces do interlocutor, debilita-o e este assimila a função ilocutiva principal, que por sua vez, atrai subforças muito ofensivas; aquela força (principal) torna o interlocutor tão vulnerável que facilmente assimila as forças secundárias, através dos jogos de implicações.

Com efeito, o DN é constituído amiúde por um ato ilocutório de recusa (principal) e um ou mais atos de cortesia (atenuantes/reparadores) (ato ilocutório de recusa e cortesia). A recusa propriamente dita (simples) é um ato assertivo, no entanto, devido à necessidade de evitação de seu impacto negativo, é fundamental combiná-lo com outros atos assertivos e expressivos que, na verdade, garantem a eficácia do discurso e a salvaguarda de relações harmoniosas durante o ato comunicativo.

A cortesia em geral e, nos DN em particular, tal como dizem vários autores, é uma virtude social, humana e comportamental. Os dados que representam o DN analisados neste estudo provaram que os atos de recusa e cortesia podem ser efetivados através de diferentes tipos de frases como interrogativas, exclamativas, e diferentes tempos verbais. As formas de tratamento - expressões de carinho - advérbios e também interjeições são frequentes e deveras importantes na constituição do DN. Tal como se referiu, os dados não permitem identificar aspectos corporais que fazem parte do DN do grupo-alvo, por se tratar de textos escritos. Além disso, os dados indicaram pouca ocorrência de atos ilocutórios expressivos (não combinados com os assertivos). Isto tudo constitui matéria para outros trabalhos do gênero por forma a colmatar as lacunas deixadas por este estudo e trazer à superfície informação abrangente sobre o DN.

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  • VAN DIJK, T. A. Text and Context: Exploration in the Semantic and Pragmatic of Discourse. London; New York: Longman, 1977.
  • 1
    Em uma visão muito simplória, basta que se usem partículas negativas para se considerar um enunciado negativo ou de recusa. No entanto, esta perspetiva de análise não favorece os estudos pragmáticos. Considerando 1. Não viste o João? (pai dirigindo-se ao seu filho mais novo), e 2. Eu não gosto de brincadeira. (dito de repente por um jovem depois de ver um senhor a derrapar de patins em uma autoestrada), verifica-se que os dois enunciados (1 e 2) contêm partículas negativas (não), mas seria uma infelicidade considerá-los, naqueles contextos determinados, enunciados com a força ilocutória de recusa. Isto complexifica o estudo do ato ilocutório de recusa, já que, na língua, as partículas negativas servem para indicar negação, de fato, mas não o ato ilocutório de recusa. A recusa, na verdade, é uma resposta negativa a um ato ilocutório, geralmente diretivo (pedido, apelo, conselho...). Na pragmática, o ato ilocutório de recusa não deve ser refém do uso ou não das partículas negativas da língua; deve ser considerado simultaneamente em função do ato proposicional e do ato ilocutório, incluindo os aspectos extralinguísticos.
  • 2
    A língua shona enquadra-se na zona S10, de acordo com a distribuição de Guthrie (1967). É uma das línguas bantu faladas na região austral da África. É língua nativa do povo de Mashonaland, no Zimbábue; todavia, é igualmente falada por pequenos grupos sociais dos países vizinhos, como Botswana, Moçambique e Zâmbia.
  • 3
    Considera-se círculo comunicativo fechado o contexto em que os indivíduos se dirigem explicitamente os enunciados, como em uma conversa entre dois indivíduos ou em uma aula, na sala de aula. O círculo aberto é, entretanto, o contexto comunicativo em que os destinatários não são específicos.
  • 4
    Este autor também divide o ato de recusa em dois grupos: o grupo dos diretos e o dos indiretos.
  • 5
    Estratégia de pré-negação, Negação (principal) e pós-negação (nossa tradução).

Editado por

Editor de Seção:

Fábio José Rauen

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Jun 2021
  • Aceito
    08 Out 2023
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