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Performãe – 1º capítulo

Performom – 1st chapter

Quando der oito da noite, sei que vou querer te ligar. Preciso contar que estou lendo, numa espécie de leitura tardia, um romance que se passa naquela Minas Gerais que você tanto detestava. Se chama Crônica da Casa Assassinada, é do Lúcio Cardoso. Ainda estou no início, o romance é enorme, deve ter mais de quinhentas páginas. Preciso te falar também sobre minha súbita preferência pela leitura de livros grossos, algo completamente inimaginável diante daquela preguiça adolescente. Nas últimas férias, me enveredei por uma tetralogia italiana. O primeiro estava já traduzido, mas os outros três estavam todos em italiano mesmo, e só consegui porque o Stefano vinha passar uns dias aqui. Enchi a mala dele de peso e os meus dias com alguma coisa para fazer.

Foi um furor, eu tinha muito mais vontade de ficar lendo a história daquelas mulheres do que viver minha vida; em um mês, li os três volumes que faltavam. E, mesmo passando no subúrbio de Nápoles, elas pareciam saídas lá do bairro onde você cresceu. Tudo horrível e belo ao mesmo tempo. Não sei se você teria paciência para isso. A narradora tinha mais ou menos a tua idade, e a tetralogia vai da infância à velhice. Nada boba a autora, né? Imagina o bando de gente atrás da continuação da história. Eu, pelo menos, já peguei a série completa. Só agora, um ano depois, o terceiro volume foi traduzido. Que tortura deve ser esperar o final de uma história. Enfim, você odiaria Nápoles. Lembra a primeira vez que pisei em Roma e te mandei uma foto? Você disse que eu ficava mais linda na Itália, mas as fotos de Nápoles estão terríveis e, mesmo que o costume de enviar fotos pelo celular tenha permanecido, faltava você para vê-las, me ver naqueles lugares aonde seu medo de avião nunca te deixou ir.

É verdade que todos os dias, por volta de oito ou nove da noite, parece que me esqueci de alguma coisa. No início, eu ligava para minha irmã e quase nunca para meu pai. Depois nem isso. Contigo sempre foi diferente. Acho que muita gente se espantaria se soubesse que eu limpei seu guarda-roupa e doei tudo antes de trocar de operadora de celular. Isso foi a última coisa que fiz, e numa sisuação tragicômica: a menina do call center me oferecia um mundo de vantagens para seguir ali, óbvio: cliente faladora, assídua e sem medo de gastar com telefone. E eu só queria cortar a linha. Ela me perguntava o motivo e eu dizia que não era insatisfação. Ela prosseguia com o caminhão de ofertas, eu prosseguia com o rechaço. Por fim, para acabar logo com aquilo, eu disse: – Porra, corta logo esse contrato. Não faz mais sentido essa linha. Ela só existia por causa da minha mãe. E minha mãe morreu ontem.

Histórias de mãe existem aos montes. Se olhar de perto, a maioria começa quando a mãe do narrador morreu. É que esse negócio é estranho mesmo. A minha pode ser mais uma: mais uma história, mais uma mãe.

Sobre ela, a minha, só eu posso contar. Entre a angústia e a saudade, ou eu escrevo isso ou eu piro toda noite.

Eu bem que queria ter ido para Minas nestas férias. Se não fosse o medo da culpa, iria para qualquer lugar que não fosse Belo Horizonte, mas dessa vez não vai dar. Meu pai, há duas semanas, dormiu no trabalho e caiu. Parece que seu corpo obeso cansou de se esforçar para parecer normal, e nisso as garrafas de cachaça que ele guarda em cada canto ajudaram.

Eu estava indo para a aula de alemão (sim, depois de vinte anos, voltei a isso) quando o celular tocou e era a Rafaela. A cobrar, não temos a mesma operadora. Apressada para viajar, ela só me disse para ficar atenta, que ele estava bem, mas que se fosse preciso era para eu ir para lá, já que ela ficaria uma semana fora. O que me espantou nem foi tanto a ligação, mas a cena repetida, tirada de uma noite mal dormida. É que naquela noite eu tinha sonhado contigo; estávamos nós quatro num corredor de uma casa caindo aos pedaços, mas eu estava do lado do meu pai. Como num filme ou sei lá o quê, sua voz aparecia avisando: agora você está sozinha com ele (importante: eu não te via nessa hora, só ouvia o que me dizia num ambiente cheio de fumaça, estranho à beça... cenografia tensa, com direito a voz em off).

Se isso era pesadelo, dias depois virou realidade. No final de semana fui ficar com ele e o encontrei em um estado horrível, típico de um doente deprimido cheio de álcool e peso. Sabe que me sinto péssima por falar dele assim, mas sempre fui honesta contigo, mentir agora seria bizarro, ainda mais se for verdade que, quando se morre, se pode ver as coisas. Ainda questiono isso e acho muito obscena e coercitiva essa ingerência dos espíritos na vida da gente. A Rafaela discorda. Aliás, ela nem sonha que estou escrevendo essa história. Quando souber – se souber – aposto que vai fazer umas rezas para a gente e defumar com erva e sal grosso cada linha.

Não sei a gravidade da situação. Todo mundo se envolveu: tias, primos, ex-noivo psicólogo-com-portamental, filha e eu. Teve neurologista receitando remédio que ele não quis tomar, teve promessa de final de semana com grupo de autoajuda, teve enfermeira para ele não ficar sozinho, teve um monte de interurbano. A conta vai ser alta este mês. Agora eu me desliguei um pouco. Assim como você, para mim, ele está doente; para as outras pessoas, não. Estou torcendo para não ter razão, pois não quero me meter nisso. Ainda estou com ressaca do que vivemos há dois anos. Perdão, a culpa não é sua.

No livro que estou lendo, o do Lúcio Cardoso, tudo gira ao redor de relatos sobre uma família mineira. Tradicional, como a do meu pai, como as que você sempre odiou. Aquelas famílias endocanibalistas, “briga de gafieira: quem tá dentro não sai, quem tá fora não entra” ou como naquele filme dinamarquês que a gente tanto gostou quando viu, aquele da família que se encontra e, na hora do brinde, destapa a merda toda. Sempre imaginei meus tios assim. Cheios de podre. Fedendo. Enxofre disfarçado de alfazema, alma de flores, colônia mauá.

Ainda não sei o que me fez mais mal na semana passada; se foi ter ficado lá de babá dele ou ter sido obrigada a conviver tão de perto com essa família. Até grupo no whatsapp eu fiz, alistando todo mundo numa espécie de gincana da salvação. Que vergonha.

O estranho é que essa vergonha tem a ver contigo. Ali, naquela sala do microapartamento dele, enquanto eu representava a boa filha, aquela que mesmo morando em outra cidade larga tudo para cuidar dos genitores, na frente das irmãs dele era como se eu te traísse. Eu sei que é maluco isso, mas a menina que sempre esteve ao lado da mãe, mendigando pelo carinho das tias, ainda vive numa parte em terapia em mim. Você sempre foi tão diferente delas e todos sabíamos disso, e era por essa razão que eu me sentia tão confusa naquelas reuniões familiares. Havia uma ansiedade de estar lá, talvez pela ilusão de que aquela oportunidade me faria sentir parte da gafieira. Você continuava do lado de fora, e eu nunca consegui dançar com ninguém dali. Hoje é ainda pior: só consigo achar essa coreografia genealógica um horror e, se pudesse, cortava o som da música, pegava um microfone e mandava todo mundo à merda.

Seria mentira se eu dissesse que sempre me orgulhei de seu jeito irreverente. Não. Isso nasceu depois da sua morte. Não sei ainda se minha analista pensa que esse sentimento é derivado de culpa ou reconhecimento; acho que surgiu com a maternidade, quando me vi no seu lugar, mesmo depois de ter um filho de quatro anos. É, acho que virei mãe meio tarde. Enquanto você estava ali, esse lugar era seu. A cada picada de mosquito, a cada cólica ou febre, a gente se ligava sem parar. Eu ia para a sua casa, e você cuidava da gente, do bebê doente e da sua filha mais velha. Agora, é comigo e, se eu pudesse te ligar agora, falaria com toda franqueza sobre como é difícil ser mãe. Como sempre te ouvi dizer, “esse negócio não tem roteiro”, lembra? Dizia sempre que eu me lamentava por estar fazendo alguma coisa errada com esse papel que, naquele momento, nem tinha personagem. Só me vi nisso depois da sua ausência.

A falta deixa a gente sem saber muito bem como preencher as coisas. Meu marido viajou ontem com a filha dele para a Espanha. Eu não quis ir dessa vez. Não sei o que mais te surpreenderia disso: saber que recusei uma viagem ou que me casei de novo. O casamento não te surpreenderia, a gente sempre debochou de que eu gostava de brincar de casinha. A questão é que a casa está vazia. O Lucas está com o pai, a Marisa chegou de Montevidéu e eles irão passar duas semanas juntos. É bom que ele conviva com a avó que restou. Eu os convidei para jantar aqui em casa, devo fazer o strogonoff que eles gostam de comer, e ela disse que fará a torta Quaker, o único doce que, depois de anos, te vi comer com prazer. Há quase seis anos não como, espero que a mão dela não tenha desandado.

Não sou a melhor amiga do Fernando, mas, desde que ele se separou, a gente tem se falado melhor. No dia seguinte ao aniversário deste ano, Lucas começou a reclamar de dores na perna, então passamos, os três, um dia todo no hospital (ou os quatro, porque lá estava eu com a narradora da tetralogia napolitana). Depois disso, posso dizer que aquela dor nas articulações, diagnosticada como “sinovite transitória de quadril”, obrigou os pais a se articularem melhor. O médico ortopedista que o atendeu disse que era por causa de alguma virose anterior, não sei bem, parece que é uma sequela transitória algo assim. O cara devia ter menos que a minha idade: sarado, grandalhudo, fortão, encarnando o que sempre ouvi sobre os ortopedistas lá em casa. Fiquei com muito medo de ser algo mais grave, o que não é nada surpreendente para quem só pensa em coisa ruim. Dois dias depois, quando já estava quase tudo normal, contei para a Rafa e, na semana seguinte, para meu pai. Não tinha por que ligar antes.

Enquanto escrevo, paro e olho para a janela do novo apartamento, o segundo desde aquele que você conheceu. Aqui é grande e fica perto do shopping. Mesmo não gostando da cidade, acho que você iria gostar do lugar. O prédio é num padrão bem acima dos anteriores, o que só se tornou possível porque dividimos as contas. No fundo, sempre soube que você não gostava daqui porque parecia Minas com mar, mas não como Paraty. Parecia aquela família mineira sem a montanha para justificar o encapsulamento. E as praias não tinham a areia branca como a de Cabo Frio, onde a gente passava as férias de janeiro e julho, como toda família de classe média “belzontina”. A gente, assim, era quase normal.

Das poucas vezes que esteve aqui, não me lembro de termos ido à praia. Não importa, você não queria outro lugar que não fosse aquele da memória. O novo, embora te seduzisse, assustava demais. E me ver aqui era saber que eu não estava mais no apartamento de frente ao seu, porta a porta.

Escrevo no seu laptop. Realmente, é ótimo, só não dá para ouvir música, porque você fez alguma coisa na configuração, e até hoje não me animei a levá-lo à assistência técnica. Tenho medo que percam meus arquivos, ainda mais agora que resolvi escrever isso. Ouço música no celular. Agora não estou ouvindo nada. Lembrar de você faz muito barulho, e eu preciso encontrar uma forma de organizar esse relato. Por enquanto, essas ideias soltas podem seguir. Ainda não sei muito bem se seria mais interessante dividir por idades, episódios, brigas, confissões, não sei. Acho que os leitores podem compreender melhor se houver um tema que encabece alguma coisa que vivemos, como, por exemplo, “adolescência”, daí começo a contar que fui emancipada porque você tinha medo de ser presa no meu lugar – eu que naquela época era uma adolescente hipponga que adorava gastar dinheiro e namorava um maluco –, e daí continuo com outras memórias. Confesso que não sei se seria o mais interessante. Estranhamente, essa ideia de livro começou com aquele outro sonho, em que você aparecia ao meu lado, no novo sofá da sala da casa nova, e dizia que meu problema era usar muito o lado direito, que eu precisava mais usar o esquerdo. Para uma ambidestra, é cifragem demais num sonho só. E sempre achei aquele trem de desenhar com o lado direito (ou esquerdo?) do cérebro coisa para tirar dinheiro de gente boba. Você achava o máximo, mas era esperta o bastante para nunca ter se inscrito nisso. Além do mais, como você, também não sei qual é a direita e qual é a esquerda. Digo sempre desse lado de cá, e aponto com uma das mãos, ou desse lado de cá, apontando com a outra mão. Li na internet que isso é um dos trinta e um sinais da dislexia. Bem, taí: se essa história ficar ruim, já temos uma boa desculpa.

De todas as lembranças, as mais fortes são da sua voz e de seu olhar. Não é à toa que, a cada dia, do jeito que ando fumando, me aproximo mais do seu timbre. Quando me olho no espelho, seu olhar também está ali. Transitando entre a maturidade e o desencanto, que no fundo são a mesma coisa, nossa mirada realmente tem se encontrado, se misturado. Há quem diga, no auge de um comentário “sem-noção”, que dá nervoso olhar para mim. Lembram de você. No enterro da minha avó foi só isso que ouvi. Você estava mais viva do que todos nós ali. Começar por essas recordações tão suas pode ser um caminho para capitular um pouquinho do que passamos juntas. De algum jeito, te botar no papel e te fazer de personagem junto comigo é imaginar que a nossa história continua. E que a gente só parou de se ver ou de se telefonar.

– Minha mãe tá com um cisto na cabeça. Tô desesperada. Vim com ela na neurologista e a médica disse que ela tem uma doença no cérebro, por isso ela tá com dificuldade de andar, porque o negócio tá fazendo pressão lá dentro. Me ajuda, o que que eu faço?

Foi assim que descobri que minha mãe estava doente. Era uma sexta à tarde, vinte e três de maio de 2014. Naquela época eu ainda dava aulas no curso que fazia parte de um programa de reinserção de pessoas à universidade, similar aos programas de graduação convencionais. O telefone tocou e eu havia me esquecido de colocar no silencioso. Era a Rafaela, minha irmã. Envergonhada, saí e menti para a turma dizendo que era uma chamada da coordenadora do curso. A mentira caiu dois minutos depois, quando me viram passar chorando para o banheiro e pedir a uma aluna que pegasse minha bolsa para que eu acendesse, ainda sem entender nada, um cigarro.

Nunca me lembro de minha mãe sem vê-la tomando um ou dois comprimidos por dia. Espirrar perto dela era ter acesso a um leque de medicamentos que poderiam variar entre antialérgicos e os mais potentes comprimidos descobertos na semana anterior para o combate da gripe aviária, suína, bovina ou de qualquer outro bicho. Médica, ela tinha acesso ao que, imagino, faz parte do desejo de mais de 99% da população mundial: a receita. E também aos atestados, claro, isso sempre encheu minha casa de gente, clamando por uma urticária que justificasse a ausência ao trabalho ou à prova na faculdade. Ela nunca negou. Sempre houve ali um gosto da transgressão, e ela ajudou muita gente inventando erisipela ou qualquer prurido contra o patrão e seus descontos de falta.

Quem cresce vendo a mãe medicando, se medicando e te medicando, aprende a conviver com remédios e acaba aprendendo o nome das drogas, das doenças, seus sintomas e até brinca de fazer diagnóstico. Sempre foi assim lá em casa. Por isso que, dias antes daquele telefonema, quando ela me disse que havia pedido para si mesma uma tomografia e que aguardava o resultado, eu me estressei ao celular e disse que ela estava completamente louca, “procurando chifre em cabeça de cavalo”, como a gente diz lá em Minas.

Ela não andava bem, literalmente. Uma semana antes de saber do cisto, ela me ligou, quando eu estava passeando com o Lucas. Sua voz estava péssima, e cortei logo. A sua tristeza nos últimos anos era complicada. Ela se isolava do mundo e via séries, filmes, documentários de gente sequestrada em condições bizarras, populações dizimadas por vírus alienígenas, cidades-fantasma, toda a porcaria que passa na tv por assinatura para confinar as pessoas dentro de casa, confusas entre o medo criado e o terror palpável.

Achei que ela tinha alguma coisa mesmo na cabeça, talvez loucura, maluquice, depressão, mania, hipocondria, excentricidade, achaques. Nunca imaginei que pudesse ser um câncer incurável, com um nome e um grau tão invasivos e incompreensíveis que enchem de medo para tudo que eu olho: glioblastoma multiforme de grau IV. Alojado num lugar incurável. Irreversível e radical como ela sempre foi. Olhando com a distância que não consigo ter, minha mãe nunca morreria com um câncer de mama. Era tudo ou nada. Sem operação, sem tratamento. Sem chance. Ou vai ou racha. Era ela ali em forma de doença. Como aquelas brincadeiras que as crianças fazem quando se imaginam outra coisa, se a ela fosse perguntado algo do gênero, certamente diria isso. Eu diria infarto. As cardiopatias me parecem mais líricas que as células assassinas.

Depois do cigarro, voltei para a sala e, completamente perdida, continuei a ler o texto com meus alunos. A aula não acabou ali. Nem eu saí correndo para Beagá. Fui somente três dias depois e já a encontrei atirada na cama, sob efeito de remédios para dor de cabeça e com muito sono. Algumas pessoas parecem adoecer ainda mais depois de se saberem doentes. Com ela foi assim. Em menos de uma hora, a ambulância do plano de saúde viria buscá-la para a sua primeira internação. Ainda era um cisto. Horas depois, no intervalo de 30 minutos em que eu saí e fui levar o Lucas à casa de uma amiga para que lá dormisse, o médico de plantão na neurocirurgia chamou minha irmã e disse o que minha mãe tinha.

A noite anterior foi a última em que as duas dormiram juntas na mesma cama. Rafa, doze anos mais nova do que eu, teve o cordão umbilical cortado ali, por um médico torpe, por uma mãe doente e por uma irmã que só queria que as coisas não fossem ainda mais pesadas do que já estavam sendo, pela simples incapacidade de movimento. Naquela noite, quem dormiu no hospital foi eu.

A música sempre esteve presente na minha casa. Tudo que eu faço é ouvindo alguma coisa. Agora, enquanto escrevo isso, ouço a trilha de Good Bye, Lenin. Na primeira vez que vi esse filme, a cena em que a mãe se levanta da cama e vê a estátua do Lenin sendo retirada, como se lhe desse adeus, me provocou um choro convulsivo no cinema. Não me lembro bem com quem havia ido, mas acho que era com o Tiago, um amigo que hoje é oncologista em São Paulo e foi um grande companheiro na doença dela. Antes do cisto virar tumor irreversível na nossa compreensão, esse meu amigo já estava com as imagens nas mãos e a voz completamente embargada. Essa gente que mexe com doença ruim o dia todo sabe como funciona. O vacilo dele, logo ele, irritantemente efusivo o tempo todo, até quando não cabe, denunciou sua tristeza em grau IV. O maior.

Nossa saga naquele hospital, na primeira internação, não durou muito. Dois dias depois de minha mãe ter dado entrada, fizeram-lhe uma biópsia para ver a intensidade. Há cinco anos sem conversar com meu pai, ao acordar dos efeitos da anestesia, ela estava ali: de mãos dadas a ele e a suas duas filhas. Parecíamos personagens das novelas daquele diretor que só se passam no Leblon, com música do Tom Jobim na voz da Miúcha ou da Bebel Gilberto. Minha mãe se chamaria Helena, com certeza. Essa cena toda, com direito a trilha e horário nobre, nunca saiu da minha cabeça. Ali, do jeito deles, eles reviviam sua história complicada de afeto e se casariam pela terceira vez.

Meu pai foi muito importante naquele momento. Ia todos os dias, levava tudo o que ela gostava de comer (e, como ela não gostava de comer, ele desempenhava um exímio trabalho arqueológico pelos restaurantes da cidade). Nos finais de semana, a gente corria atrás de manicures, cabeleireiras que se dispusessem a ir ao hospital, durantes as internações, ou à nossa casa nos breves intervalos entre um oncológico e outro. No meio disso tudo, até um anel de ouro na mão da aliança de casada apareceu. Tinha no meio uma pedrinha, uma ametista lilás, que ela colocava para baixo, dissimulando para que a gente não percebesse o movimento. Era uma aliança improvisada, de urgência, como aquela volta dos dois.

Antes de meu pai cair no trabalho, minha irmã me contou que ele falou que era viúvo, quando a secretária de um médico com quem ele tinha se consultado por problemas de pressão perguntou sobre seu estado civil. Rafa disse que ficou morrendo de pena dele. Não sei o que senti, mas ele não poderia ter dito outra coisa mesmo. Na lápide dela, pedi para colocarem o sobrenome dele. Sei que isso está fora de moda, mas vai dizer isso para quem se casou em 1977 e tinha, no sobrenome do marido, durante os anos de divórcio, sua maior imagem de separação. Se ela odiava tanto quando lhe chamavam assim, amaria ver que eu meti o nome de novo lá. Minha mãe era de extremos, e respeitei isso até o final.

Os três meses da doença nos atropelaram. E o choque foi tanto que até hoje lutamos, cada um à sua maneira, para compreender o que aconteceu. Minha irmã virou espírita-leninista (e ai de mim quando digo que isso é inconciliável!). Eu gasto o dinheiro que não tenho com minha analista (segundo meu pai e minha irmã, “a pilantra”. Ela sabe, eu contei). E meu pai bebe. Ou bebia, não liguei nos últimos dois dias para saber. Nessa última semana, a equipe do whatsapp se dispersou. Acham que ele está bem. Como eu penso diferente, o problema sou eu.

A saudade dela cresce ainda mais nesses momentos. Entre nós, havia uma cumplicidade ferina. Ela sempre soube de tudo. Mesmo que eu fizesse alguma coisa muito grave, e fiz muitas, ela estava ali para me dizer que “sua filha não tinha defeitos; buscava a felicidade”. Tenho certeza que isso a absolvia também, afinal, ser mãe num universo performativo obriga a assumir culpas. A gente trocava a culpa por um cigarro e um café juntas. Daí, quando você perde sua maior aliada, você gasta o que tem e o que não tem com analista. Só isso pode justificar o que faço com a Bebeth (só eu a chamo assim, ela não sabe. É coisa minha). Minha consciência acha um horror pagar tudo isso num país em que pessoas ainda morrem de fome, mas como quem tem mais poder é o inconsciente, não consigo fazer outra coisa agora. Isso também a gente aprende fazendo terapia.

Aliado a isso, tomo Prozac. Enfim, somando tudo, viro assunto para meu pai e minha irmã, irredutíveis em meu diagnóstico de problemática. À sua maneira, cada um busca um motivo para justificar o problema que criaram para mim: segundo meu pai, é por causa do parto. Fórceps forçado, desacordada, quase morremos eu e minha mãe em plena quarta-feira de cinzas. Quanto a Rafa, não sei o que ela pensa, infelizmente, acho que temos nos distanciado a cada tentativa de aproximação. Ela não sabe, ou sabe, mas foi no momento em que mais estivemos juntas que começou a separação.

Depois da biópsia, minha mãe precisava saber que estava com câncer. Ela até poderia suspeitar, mas ainda havia esperança no cisto. Quem contou foi eu. Essa história de não haver segredos entre nós teve um peso decisivo durante a doença dela. Era de manhã, estávamos só nós duas no quarto do hospital. Diante da letalidade do quadro, o neurologista nem cogitou retirar o cigarro dela. Aquele quarto virou o inferninho do andar: fumávamos, tomávamos café, ríamos, debochávamos do pouco que havia ainda para sorrir, ou melhor, gargalhar. Minha mãe não sorria bem, só gargalhava mesmo. Ela me olhou e perguntou o que tinha, sabendo que eu sabia. Na cumplicidade que sempre houve entre nós, o silêncio também gritava muito, e isso me ajudou a não precisar elaborar muito. Ela entendeu e eu só precisei dizer “é”. Ao contrário do que havia acontecido com a descoberta do cisto, uma fúria de viver a invadiu naquele momento. Há anos eu não via minha mãe tão entusiasmada com um projeto. Ela queria viver, só que seu tumor ignorava isso, crescendo e comprimindo tudo que havia de pensante dentro daquele cérebro. E a mãe lúcida e cheia de vida daquela manhã, de tarde, já apresentaria seus primeiros sinais de demência.

Depois que ela morreu, por várias vezes imaginei como seria se fosse de outra forma. Pensei que um acidente poderia ser menos traumático, por exemplo: ela atravessando a rua, vinha um carro e bum! Acabou. Isso algumas vezes me deu a ilusão de que seria menos amedrontador do que uma coisa que aparece no órgão mais misterioso do nosso corpo. Não sei se as pessoas têm dimensão do que é um tumor cerebral, mas o bicho é pior que traça. Sai comendo tudo: locomoção, controle da urina, fala, visão, sem pena e com pressa. Porém, come alternando as beiradas. Um dia comprime mais a parte que responde pelas pernas, no outro a que controla os esfíncteres, e assim vai brincando de foder tudo dentro e ao redor. Toda vez que me vejo de frente a um hipocondríaco que começa a desfolhar o rosário de lágrimas sobre o último espirro, lanço essa. É infalível. As pessoas têm medo de morrer de verdade.

Uma das coisas mais tensas da doença é ter que lidar com os médicos. Naqueles dias, convivemos com vários. Todos muito desagradáveis. A oncologista parecia saída de um filme infantil; falava como se minha mãe fosse uma demente. Eu sei que uma coisa levava à outra, mas a delicadeza daquela figura me dava nojo, ainda mais na fase terminal, quando minha mãe, com muita dificuldade, lhe perguntava quando poderia voltar para casa e ela respondia “daqui a pouco, lindinha”, e ao sair do quarto, chamava a mim e à minha irmã e dizia, com cara de tristeza profunda: “ai, meninas, não passa de três dias”.

Cada um tem uma noção diferente de tempo, e isso ficou bem claro ali: as tais 72 horas se transformaram numa quarentena, com direito a médico religioso entubando uma pessoa que só precisava de uma condição digna de morte. Uma das coisas que aprendi também é que precisamos rezar muito para não topar com um médico crédulo no caminho. Eles são capazes das maiores atrocidades para não ficar em débito com o que acreditam como Deus. Quando minha mãe foi para o CTI, aquele plantonista com uma cruz no pescoço se esforçou para exercer sua profissão nos angustiando por mais 14 dias.

Foi na noite anterior que minha história de separação com a Rafa começou a se desenhar. E isso parece uma tragédia de Sófocles: nós duas nos vimos diante de um conflito inegociável, o tal dilema indissolúvel que leva ao famoso erro trágico.

Quando resolveram suspender todos os tratamentos paliativos, minha mãe foi transferida do oncológico para o hospital bonito da cidade. Era para morrer, uma questão de espera apenas. E foi nesse contexto que os oncologistas (a essa altura já eram três) iam lhe visitar para mentir descaradamente sobre seu quadro terminal. Se aquilo era capaz de dar um alento ao cérebro em demência, para quem estava ali ao lado, lutando para permanecer lúcido, era um espetáculo macabro. Ela só piorava e as decisões recaíam sobre as duas filhas.

Quem cresce numa casa onde o lema é “quem diz a verdade merece perdão” pira quando se depara com a mentira que acalenta, não por moral, mas por não saber lidar com isso. Minha mãe nos ensinou com sua franqueza que, se a verdade dói, a mentira mata. E a gente aprendeu isso direitinho, a ponto de devolver a ela, em forma de honestidade, tudo aquilo que os médicos estavam lhe retirando há dias. Eram mais ou menos onze horas da noite. Rafa e eu acabávamos de jantar e estávamos voltando para casa quando, ao estacionarmos o carro, decidimos que minha mãe precisava saber que iria morrer. Era justo que toda aquela farsa acabasse. Não sei a quem fazia mais mal, mas hoje vejo que aquilo nos adoecia.

Ainda não sei também se o que nos moveu foi um desejo de responder à verdade, à honestidade que sempre aprendemos com ela ou, num caminho meio perverso, acabar logo com aquele circo. É horrível velar em vida alguém que tanto se ama. E foi assim que decidimos ir ao hospital e contar tudo. Tudo.

Nesse ponto, o cérebro já estava todo comprimido pelo glioblastoma. Entretanto, naquela hora, acho que até o tumor ficou com medo da gente e deu uma trégua, dando licença de alguma zona que comprimia a compreensão. Ela entendeu tudo, e entendeu tão bem que no dia seguinte foi transferida para o CTI. A gente se despediu dando a ela a dignidade que nos foi ensinada. O problema é aceitar que, de alguma maneira, eu posso ter sido mais cruel que verdadeira; ter sido cruel por ser verdadeira. Rafa não pensa assim, e sobre isso não conversamos nunca. Nem conversaremos. Ela queria contar, eu titubeava. Ela queria ir sozinha dizer tudo. Eu procurava outra cúmplice. Não sei de quem é a falha, aliás, se há ou deve haver uma falha para que seja trágico. Nós não tínhamos saída e fizemos o que podíamos diante de tanta corrosão.

A primeira noite no CTI foi vivenciada por quem estava fora como um descanso. Era a primeira vez, naqueles quase três meses, que não gastaríamos com acompanhantes para dormir ao lado dela, nem nos revezaríamos vendo de perto nossa mãe morrer sem se dar conta (duvido que ela não se dava conta, e isso foi decisivo para que a gente contasse tudo). Era uma sexta-feira também, quase véspera do dia dos pais. Enquanto os enfermeiros iam com ela e o médico de plantão para o CTI, eu e Rafa erámos levadas para casa por nossos namorados. Ao contrário do da minha irmã, o meu foi ausente todo o tempo, só aparecendo neste final de semana porque a Rafa lhe pediu que viesse. O dela foi irretocável. Embora não morasse na mesma cidade, vinha quase três vezes por semana para lhe fazer companhia. No dia do velório, foi ele que me acompanhou ao cartório para a expedição do atestado de óbito e me abraçou quando o caixão desceu. Um mês depois eles terminaram, e eu me “casei” com o namorado que não foi ao enterro da minha mãe.

Eu sabia que tocar nesse assunto poderia fazer com que me perdesse na história. O problema da ausência é que abre porta para que outras pessoas se façam presentes. Num momento assim, até a vizinha chata que comparece ao enterro e lamenta por não poder ver sua mãe, porque você não abriu mão de que o caixão estivesse fechado durante todo o processo de velório, se torna alguém querido num abraço. Mas não adianta muito. O enterro da minha mãe me deixou ainda mais incrédula em relação às pessoas. Havia tanta gente que não sei se é porque ela era de fato querida ou porque a curiosidade pode ser mais letal que um tumor dançando no cérebro. Se for pela última hipótese, a narrativa de cada passo da doença me ajudou a meter medo naquele povo todo. Ao mesmo tempo, eu me vingava das pessoas vivas, purgava a morte da minha mãe e o comportamento de morto-vivo do meu namorado.

Na semana passada, quando eu estava cuidando do meu pai lá em Beagá, pensei em como seria se ele morresse. O que teríamos que fazer quanto à parte burocrática que nessa hora ainda consegue ser ainda mais pesada. No dia em que minha mãe morreu, eu estava no tatuador, escolhendo o desenho da próxima tatuagem. Sei que é estranho inventar uma ideia dessa em pleno contexto de despedida, mas quem tem tatuagem (não estou me referindo a uma estrelinha no pulso ou uma borboleta no ombro, muito menos um “carpe diem” perdido em algum canto) sabe o que isso representa em determinados momentos. É como um ritual de passagem que se estabelece entre a pele, o desejo e a dor de mais de onze agulhas colorindo o corpo. Dessa vez, o desenho era uma pena. O telefone tocou como naquela tarde do cisto, mas dessa vez a voz da Rafa tinha bem menos desespero. Haviam ligado do hospital e ela acabara de falecer.

A primeira pessoa que abracei foi o Tito, meu tatuador e dela também. Era ele quem estava ali, completamente inábil para lidar com aquela dor. Há menos de seis meses, ele tinha feito uma tatuagem igual em mim e na minha mãe. Escrevemos ambas algo que marcasse para sempre a nossa cumplicidade, como fazem os adolescentes. Intempestivas ou como alguém que sabe não ter muito tempo. Perdida no meio de outros desenhos, a expressão todas loucas se mistura com a pena-tinteiro que veio depois, numa espécie de reminiscência escrita que guardo em mim.

Saí correndo, peguei o primeiro táxi para chegar à casa dela e ver minha irmã antes de irmos para o hospital. No caminho, me agarrei ao celular e comecei a procurar pessoas para ligar e falar da minha perda. Namorado, exnamorado, ex-noivo. Ex-marido nem pensar. Nessa época, minha relação com Fernando ficou insuportável. Liguei para os outros. Cada um em um canto, e eu à procura de colo, sozinha. Ao chegar, escolhi dentro das roupas que ainda não havíamos doado a que melhor lhe coubesse. Ainda acho que o blaiser branco de linho ficaria bem, mas a terra come tudo, igual ao tumor, e aquele blaiser era lindo. Ficou para mim, embora eu não use. Falta coragem. Peguei um colar de pérola, uma calça jeans e sapato. Eu não sabia que se enterra descalça uma pessoa. Minha mãe tinha mais de 50 pares de sapato, por isso o mais lógico era escolher um bem bonitinho para ela. Não. Morto não usa nada no pé e isso é mais que uma gafe. Deve ter algo bem religioso que explique essa implicância. Eu desconheço. Aquele que escolhi, tive que levar de volta para casa.

Botei tudo numa bolsa e atravessei a rua. O prédio da minha mãe ficava perto da funerária. Entrei naquele lugar como quem entra numa loja de móveis. Menos de uma hora e meia antes eu fora avisada de sua morte e já estava ali, desfilando entre caixões maiores ou menores, claros ou escuros, caros ou medianos. Barato não existe porque a morte é cara. Há quem gaste mais num funeral do que numa viagem de volta ao mundo, depende unicamente da ilusão de futuro depositada em cada uma das circunstâncias.

Só uma amiga faz o que fiz. Filha não faz. Ou melhor, não deve fazer, não se espera que faça. Não corresponde. É por isso que meu pai, quando descobriu que eu já estava na funerária preparando tudo e deixando terminantemente proibido o uso de flores, surtou comigo. Segundo ele, que tinha experiência em enterrar mãe, no próprio hospital há uma equipe funerária bem treinada para proceder com discrição e profissionalismo, a fim de que a família tome menos parte quanto for possível nessa empreitada dos finalmente.

Fiz tudo ao contrário. Escolhi o caixão, a cor, o tamanho, o preço. Dividi em 3 parcelas. Mudei a faixa e pedi que cortassem uma frase que não tinha a ver com ela. Combinei o horário do velório e os procedimentos. Em hipótese alguma o caixão seria aberto. Foi fechado e, segundo meu pai também, isso foi muito antipático da nossa parte.

Parece piada.

Ela sempre detestou flores. Dizia que era alérgica e que aquilo era coisa de gente morta. Ela detestava defuntos também. Sempre debochava dizendo que se morresse e a gente colocasse flores sobre seu corpo, ela levantaria do caixão e quebraria tudo aquilo só de raiva. Será que eu errei cuidando de tudo? E se ela levantasse mesmo?

Não. Viver, quero dizer, morrer não dá qualquer filme de comédia. Preferi seguir o que ela sempre pareceu querer para os outros: um enterro sem espetáculos, sem gente se apoiando sobre o corpo do morto, sem cena de novela, tia velha carpideira ou prima comendo biscoito sobre o caixão. A cerimônia talvez tenha sido a parte mais digna daqueles meses. Ah, e é claro que a gente tirou aquele negócio de padre rezando, ela sempre detestou os discursos de culpa e expiação dessas horas. Eu mesma falei e do meu jeito, do jeito que aprendi a ser ao lado dela.

Custa muito falar disso, falar da morte e de tudo por que passamos desde o dia em que se descobriu o câncer ainda disfarçado de cisto. Quando pensei em contar a história dela, sabia que se não falasse dessa parte não conseguiria tocar no que mais me faz falta de nossa relação. Querendo ou não, o que passei ao seu lado durante essa fase só foi possível porque, durante os 33 anos anteriores àquela tarde de maio, tive uma amiga mais presente do que a mãe, ou ao menos essa imagem de mãe que a gente cria a partir do contato com outras pessoas, sempre em comparação. Enquanto ela estava viva, eu ia garimpando essa figura através de colegas e amigos. Entre eles, minha própria mãe. Muitos anos da minha vida foram ao lado da minha avó, com quem compartilhei enormes momentos de carinho físico, desde o colo ao prato favorito feito para me agradar no almoço. Minha mãe não era disso. Ela gostava de micro-ondas, café instantâneo e comida pronta. Seu abraço era tímido e seu corpo muitas vezes era duro, rígido. Só me lembro de ter chorado em seu colo uma única vez, quando ouvi de um professor da graduação que eu tinha mais vocação para a odontologia do que para o que eu estava fazendo. Naquela noite chorei muito. E ela me abraçou e disse o que eu precisava ouvir: ele era não tinha razão.

O fato é que essa mãe que a gente imagina vira uma sombra quando não se sabe ou não se acredita nela. Talvez a minha avó tenha desempenhado tão bem essa performance que minha mãe, desde muito nova, se dispôs a rejeitar. Quando eu nasci, ela acabara de iniciar seu curso de medicina. Acho que, por mais que quisessem um filho (há que se questionar muito esse querer), aquele não era o momento. Meu pai estava desempregado (pela primeira vez de muitas que se seguiram) e ela era uma estudante com um bebê que adoecia direto, tendo que faltar às aulas e sem alguma boa alma que lhe conferisse um atestado – como ela o fazia a quem pedisse depois de formada. Por dois anos, teve que trancar o curso. Em sua formatura, ao contrário dos colegas que recebiam o diploma pelas mãos de seus pais, quem participou disso foi eu. Com sete anos e vários dentes faltando na boca, a foto da formatura coloca lado a lado duas amigas com 25 anos de diferença entre si. Só por isso eu não fui ao baile.

Enquanto rememoro tudo isso, a mãe vai ficando menor do que a amiga. Escrever pode ser uma maneira de entender como cada uma se misturava nela, e como posso dar conta dessa ausência dupla. No dia do seu enterro, foram enterradas a mãe e a cúmplice. Em outro túmulo, joguei alguns amigos e uma série de mães imaginárias que criei pela vida. A minha mãe morreu no mesmo dia em que eu matei um monte de gente. Se quando ela era viva não me parecia um problema brincar de chamar alguém de mãe, e eu chamava várias, depois dali essa palavra só serviu para uma pessoa. Só para mim e na minha complicada relação com Lucas. Entre perdas e ganhos, se ele perdeu a avó naquela tarde, dias depois ele ganharia uma mãe. O difícil é aprender a ser isso.

E assim como quem promete um dia passar pela casa da gente, você veio. E como se fosse esse mesmo tipo de pessoa, que a gente revê depois de um longo tempo, seja bem-vindo(a).

Foi amor de uma noite de sábado ou de uma tarde de domingo: aquele amor que a gente curte durante uma semana de agitação e malabarismos e só realiza no descanso; amor perfumado, amor fissura.

E eu que nunca pude entender o milagre da vida, vejo que o estou realizando e o compreendo ainda menos.

Sabe, é difícil para mim conceber a ideia de um ser tão imperfeito se unir a outro, também imperfeito, e criar algo tão complexo e original: um novo ser, uma nova vida, que na soma de um + um, contraria toda a inútil lógica matemática dando 1 – indivisível, somatório e único.

E o que dizer a você? É tanto que fico embaralhada com as palavras. Falar de mim, de seu pai.... imperfeições adicionadas, tentando o caminho perfeito. Minha insatisfação diante do que tem que ser, a mania de querer agitar, nunca parando, nunca querendo chegar à realização, que aos meus sentidos soa a estagnação. Nossos pensamentos sombrios, nossa preocupação com a vida e esse mundo que está aí. Nossos momentos de felicidade – alegria, nossos encontros e desencontros com as pessoas do dia-a-dia. O coração do seu pai que, às vezes, lhe dá rasteiras. A seriedade dele diante dos fatos e a minha jocosidade, numa tentativa louca de nunca deixar morrer a criança que fui.

Sei que você existe, que você ocupa o meu ventre e cresce. Sei, sinto e receio.

Receio passar para você, antes do tempo, toda uma carga de realidade e desgaste que terá oportunidade, de sobra, para verificar. Receio de meu ser ser muito pequeno para conter sua alma. Deus, receio de tudo isso! Sabe, você tem uma progenitora medrosa.

Sabe, às vezes, eu fico pensando e imaginando a sua pessoinha, sem conseguir, é claro! Mas posso sentir o seu sorriso, aqui fora, para o mundo: sorriso que me faz sonhar e é ao mesmo tempo uma flor sangrenta na minha pele. Porque esse mundo fere, esse mundo é a boca aberta eternamente insatisfeita do dragão, engolindo tudo de bom que a gente tem.

Esse mundo é levar você a ter uma cabeça incrível, estruturá-lo emocionalmente, amar tanto e ver as pessoas somente satisfeitas quando você grita que o abuso já é demais. Esse mundo é vê-lo na adolescência se envergonhar de um carinho daqui, vê-lo se afastando e não conseguindo evitar, vê-lo se autoafirmando, (porque as pessoas cobram isso) em cima daquilo que eram seus valores.

Esse mundo e essa chaga é vê-lo, antecipadamente, dando cabeçadas, repetindo todos os erros, (ou a maioria) e sem poder fazer nada, porque a vida é sua.

E eu quero lutar para você ter mais estrutura, sem roubar a sua autonomia. E quando, algum dia, eu ou seu pai o estivermos sufocando, pode gritar, mas grite baixo: é por amor e medo.

Eu não deveria estar lhe falando tudo isso, pois o tempo mostra gradativamente tudo. E com tanta porcaria, existe também felicidade: segundos, minutos, ou mesmo sempre. Vai depender de você, pois ela é estado de espírito. Assim também é a paz: estará em você e não nos outros (ninguém pode dar o que não tem). Às vezes, encontrará alguém muito legal, gente que já se encontrou e que dá de si, sem cobrar – acontece.

Mas deixa isso prá lá – eu te amo muito: amor novo, inusitado e medroso – você é muito amado(a) por nós, não importa quem seja e onde nos encontramos antes.

29/agosto/1980

Minha amiga (às vezes é difícil diferenciar isso), minha filha...

Que nosso amor nunca sinta o arranhão dos “surtos” ocasionais (vice-versa).

Que esse natal seja o início de vários outros: nós, juntos.

Já estou sentindo saudades: de você, das nossas conversas, do nosso mau-humor, de tudo.

Eu te amo muito.

Mãe.

Dez/natal/2000

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2017

Histórico

  • Recebido
    15 Dez 2016
  • Aceito
    04 Fev 2017
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