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Ideologia e função do modelo liberal de direito e estado

ESPECIAL

Ideologia e função do modelo liberal de direito e estado

José Eduardo Faria

Professor adjunto do Dep. de Filosofia e Teoria do Direito da USP e coordenador do grupo de trabalho Direito e Sociedade da ANPOCS. Ex-prof. visitante da UnB e visiting-college da Universidade de Winsconsin Law School. Madison, EUA

Introdução

Embora tão citado em prosa e verso, o liberalismo é hoje uma expressão vaga, ambígua - um lugar comum a indicar um movimento partidário, uma ética, uma estrutura institucional ou mesmo uma reflexão política. E como são muitas as práticas, os interesses e os argumentos que atualmente se escondem sob o rótulo "liberal", o conceito de liberalismo encontra-se semanticamente desgastado: diante de tanta imprecisão conceitual, como distinguir os vários adjetivos do substantivo, isto é, as diferentes experiências históricas consideradas "liberais", por um lado, e o conceito de liberalismo, por outro? Mais do que isso: haverá algumas possibilidades de se falar num liberalismo no singular, ou seja, unívoco e universal?

Este artigo não tem por objetivo responder a esta questão, mas partir dela para discutir algumas dificuldades enfrentadas pelo liberalismo no âmbito do Direito e do Estado capitalista - universo no qual as ideologias liberais sempre encontraram solo fértil para se desenvolver. Postulando-se assim que o liberalismo encerra formas e conteúdo variáveis, cobrindo um vasto conjunto de fenômenos políticos e jurídicos que tradicionalmente despertam atitudes e reações emotivas ideológicas, podendo por isso ser examinado como recurso linguístico para a consecução de certos fins, assume-se aqui a impossibilidade de se falar num liberalismo no singular - como se tal expressão pudesse por si designar um único e verdadeiro padrão de organização institucional baseado na liberdade tutelada pela lei, na igualdade formal, na certeza jurídica, no equilíbrio entre os poderes e no Estado de Direito.

O que se quer dizer é que, enquanto um dos mais conhecidos e poderosos lugares-comuns inerentes à prática jurídico-política moderna e contemporânea, o liberalismo tem um caráter simultaneamente descritivo/informativo e emotivo/persuasivo. Ou seja: de um lado expressa uma forma específica de organização do Estado; de outro, como as palavras vão adquirindo diferentes sentidos conforme as circunstâncias em que são utilizadas e como seus significados acabam sendo determinados por funcionalidades intencionais, projetando-se operativamente a serviço de inúmeras ideologias e grupos políticos, o liberalismo contém um imenso potencial de uso retórico, mediante o disfarce das intencionalidades valorativas sob uma roupagem aparentemente descritiva.

Na vida social, as ações costumam estar tanto ou mais estimuladas por motivações ideológicas emanadas do contexto sócio-econômico do que pelo conteúdo descritivo que as principais palavras da linguagem política possam conter. Graças à alta carga emotiva dessas palavras, como "liberdade"e "igualdade", elas permitem a defesa de valores abstratos por aqueles que as invocam - o que explica a razão pela qual o liberalismo jurídico-político, partindo da noção de liberdade formal, se converte num eficiente recurso retórico de que se vale uma dada classe para, num dado momento da história, agir hegemonicamente numa dada formação social. Ao mascarar a presença de significados emotivos pela aparência de conteúdos informativos, esses expedientes retóricos abrem caminho para a conquista da unanimidade de um conjunto de atitudes, hábitos e procedimentos. Ou seja: produzem reações de aprovação/ desaprovação e amor/ódio não propriamente por meio de indagações sobre a realidade, mas por meio de predeterminações ideológicas disfarçadas como dados inquestionáveis sobre o mundo.

A força operativa desses expedientes retóricos é que faz do liberalismo jurídico-político e de sua ênfase à noção de liberdade tutelada pela lei, um dos mais importantes estereótipos políticos do mundo moderno e contemporâneo. Vinculado aos conflitos de interesse e à luta pelo poder, o estereótipo político é um termo em que as aparências descritivas envolvem, manipulam e escondem emoções, permitindo aos governantes conquistar a adesão dos governados aos valores prevalecentes pela força mágica dos elementos significantes, em detrimento das significações. As expressões estereotipadas na linguagem política cumprem, assim, um papel decisivo na reprodução das formas de poder - e é nesse sentido que o estereótipo "liberalismo", produzindo o efeito de distanciação e o conseqüente espaço ideológico no qual o Estado moderno monopoliza a produção do Direito e manipula os instrumentos normativos e políticos necessários à manutenção de um padrão específico de dominação, provoca uma alienação cognoscitiva entre os "cidadãos"formalmente "iguais": afinal ao serem levados a acreditar na possibilidade de uma ordem legal equilibrada e harmoniosa, na qual os conflitos sócio-econômicos são mascarados e "resolvidos"pela força retórica das normas que regulam e decidem os conflitos jurídicos, tais "cidadãos"tornam-se incapazes de compreender e dominar as estruturas sociais em que eles, enquanto indivíduos historicamente situados, estão inseridos.

Por causa dessa conexão entre as funções descritivas e persuasivas das palavras que animam a vida política, em cujo âmbito a linguagem se converte num instrumento não só de compreensão, mas também de modificação e transformação das pautas valorativas em função das mudanças sócio-econômicas, nomear com a expressão "liberal"um sistema político significa rotulá-lo de modo "positivo", possibilitando a indução de comportamentos, a formação de hábitos e a consolidação de crenças. As definições de termos dotados de grande carga emotiva têm assim um caráter pragmático, pois seu uso de forma estereotipada decorre das exigências inerentes ao aparecimento e/ou continuidade de uma dada estrutura de dominação, mediante a orientação das emoções favoráveis/desfavoráveis e o emprego de expressões-chave para os objetos que se deseja prestigiar/censurar, enfatizar/ suavizar, canonizar/desprezar.

Em suma: como a palavra "liberalismo"adquiriu enorme força operativa ao longo da história moderna e contemporânea, sua enorme carga emotiva acaba prejudicando seu significado cognoscitivo. Por quê? Porque tem servido como um fator de referência positiva, uma espécie de "condecoração", permitindo sua ampla manipulação na aplicação aos mais diversos e contraditórios fenômenos políticos. Mesmo no plano da teoria jurídico-política e do direito constitucional a expressão "liberalismo"também encerra inúmeras armadilhas, na medida em que seu sentido pode resultar de uma reflexão doutrinária impulsionada pelo desejo (consciente ou inconsciente) do teórico em justificar, desprezar e contestar situações específicas.

Liberalismo + democracia: a fórmula retórica do "Estado de Direito"

Tudo o que foi dito a respeito da expressão liberalismo pode, igualmente, ser repetido com relação à noção de democracia: ela é igualmente um topos -isto é, uma fórmula de procura aberta e indeterminada, representa um importante ponto de apoio para a argumentação política, ao mesmo tempo que serve de orientação prática na elaboração de estratégias cujo sentido também é fixado conforme as necessidade históricas de interdependência dos diversos grupos e classes que compõem uma sociedade estruturalmente diferenciada.

A exemplo do liberalismo, o topos democracia também traduz inúmeras combinatórias temporárias e diferentes equilíbrios ad hoc de interesses que a própria práxis política vai reformulando à medida que as necessidades de cada segmento e cada grupo social em confronto com os demais são alteradas. Nesse sentido, aliás, a própria história do liberalismo encontra-se intimamente associada à historia da democracia moderna, num processo de contínuas transformações sócio-econômicas e político-culturais sob a égide do capital, sendo por isso difícil, como afirma Bobbio, chegar-se a um consenso acerca do que existe de liberal e do que existe de democrático nos regimes que costumam apresentar-se como "democracias liberais".

Se pretendemos portanto analisar algumas das contradições inerentes ao termo "liberalismo", especialmente no âmbito do Direito e do Estado capitalista, antes somos obrigados a atribuir-lhe alguns significados mínimos. Isto porque não se pode distinguir o regime liberal dos regimes não-liberais sem, preliminarmente, explicitarem-se as ambiguidades que a expressão "liberalismo"costuma expressar na linguagem política corrente. Somente assim é que se torna possível entender algumas distinções conceituais importantes na teoria e na prática política - distinções estas muitas vezes pressupostas sem que delas se tenha consciência, suscitando pseudo-questões filosóficas. Desta maneira, a questão relativa ao conceito de liberalismo é deslocada da busca de sua natureza ou essência para uma investigação sobre os critérios vigentes no uso comum dessa palavra no plano do Estado e do Direito.

Historicamente, a identidade do sistema jurídico-político liberal tem sido tradicionalmente associada à forma pela qual ele, para assegurar a propriedade privada e garantir o livre jogo do mercado, entre outros objetivos, cultivou a noção de espaço público como domínio de sociabilidade oposto ao domínio privado. Este é o domínio no qual o homem realiza sua natureza, privilegiando ao mesmo tempo a noção de liberdade formal mediante a institucionalização de um poder enquadrado num sistema de regras impessoais e genéricas. Na medida em que a este poder corresponde apenas a tarefa de regular as formas de convivência e garantir sua conservação, a economia se converte numa questão eminentemente privada e o Direito, por sua vez, se torna predominantemente Direito Civil, consagrando os princípios jurídicos fundamentais ao desenvolvimento capitalista, como os da autonomia da vontade, livre disposição contratual e "pacta sunt servanda". Ao possibilitar a aparente harmonia entre os interesses individuais e coletivos, as regras impessoais e genéricas do direito positivo cumprem, no período do capitalismo industrial e concorrencial, funções precisas: por um lado, cabe-lhes limitar juridicamente a intervenção estatal no domínio privado - intervenção essa que, para garantir as formas de convivência, visa dispersar as contradições sociais para mantê-las em níveis tensionais funcionalmente controláveis e "administráveis"; por outro lado, ao garantir retoricamente a cada cidadão o "pleno"exercício de seus direitos de propriedade e opinião, ele aparentemente deixa a sociedade "livre"para, a partir do jogo do mercado econômico e político, determinar seu "próprio"desenvolvimento.

Ao agir como instância de mediação entre o político e o econômico nas formações sociais capitalistas, nas quais o nível de latência e explosão das contradições é sempre desigual e a pacificação global das tensões é inatingível, o princípio da legalidade é o elemento básico do Estado liberal. Graças a ele, a liberdade formal tem um caráter "negativo"e "defensivo", na medida em que é transformada pelo Estado de Direito em certeza jurídica e garantia individual - dois instrumentos retóricos cuja finalidade prática é garantir as condições de reprodução do padrão de dominação vigente e, ao mesmo tempo, ocultar esse papel mediante a pretensa autonomia e exterioridade do Direito. Esse caráter "negativo"e "defensivo"da liberdade formal, por meio do qual tudo o que não está proibido por lei é automaticamente permitido, não implica apenas o "topos"da "salvaguarda dos direitos"de cada cidadão contra as pressões do Estado (um "topos"que também encerra uma grande contradição pois, se de um lado tal "salvaguarda"é apresentada como uma garantia contra os eventuais abusos do poder do Estado, de outro ela somente tem condições de funcionar através do próprio Estado). Requer, igualmente, uma estrutura específica de participação política e representação de interesses ( a qual, sob pretexto de institucionalizar a organização das vontades políticas de homens livres e harmonizar suas demandas, atua de fato com a finalidade de neutralizar pressões, descarregar tensões e tornar difusas as resistências à ordem vigente).

É por isso que liberalismo e democracia encontram-se intimamente ligados, um costumando ser considerado pressuposto do outro. O denominador comum entre ambos é a noção de Estado de Direito, fórmula por meio da qual a ordem democrático-liberal articula a conversão dos interesses particulares e contraditórios em "interesses gerais", mediante a aparente conciliação do pluralismo sócio-econômico com a unidade do sistema legal - conciliação essa retoricamente justificada em nome da necessidade de um mínimo de segurança das expectativas obtidas a partir da validade formal de uma Constituição. Ao regular as relações e os conflitos sociais num plano de elevada abstração conceituai, sob a forma de um sistema normativo coerentemente articulado do ponto de vista lógico-formal, a Constituição nada mais é do que uma ficção a cumprir uma função pragmática precisa: fixar os limites das reações sociais, programando comportamentos, calibrando expectativas e induzindo à obediência no sentido de uma vigorosa "prontidão generalizada"de todos os cidadãos para a aceitação passiva das normas gerais e impessoais - ou seja, das prescrições legais ainda indeterminadas quanto ao seu conteúdo concreto.

Essa ficção é necessária porque as funções sociais capitalistas são heterogêneas em suas formas organizativas e contraditórias em suas estruturas sócio-econômicas, exigindo de suas instituições jurídico-políticas constantes ajustamentos no padrão de dominação política em vigor, sem, no entanto, resolver/superar as contradições em que ela se assenta. Para poder cumprir seu papel de dispersar essas contradições, a ordem jurídica liberal é obrigada a postular a completude, a ausência de lacunas e a racionalidade sistêmica de seus códigos e leis. Como a homogeneidade e a univocidade dessa ordem jurídica são apenas postuladas, pois em termos concretos o ritmo, a intensidade e a diversidade de formas dos conflitos exigem diferentes mecanismos normativos capazes de dispersá-los, configurando assim o caráter assimétrico e fragmentário das instituições de Direito, a efetividade do processo de legitimação legal-racional formulado pelo liberalismo jurídico-político depende do acatamento das regras do jogo, da aceitação a crítica de suas normas básicas e da internalização de um sentido de obediência capaz de propiciar o que foi acima chamado "prontidão generalizada".

Decorre daí a necessidade que a ordem jurídico-política liberal tem de um permanente reforço ideológico de um sentimento genérico de legalidade, por meio do qual os "sujeitos de direito"- apresentados como seres autônomos dotados de direitos e tratados ao mesmo tempo como súditos submetidos a deveres - são estimulados a assumirem sua "quota de responsabilidade"na defesa dos valores considerados superiores - especialmente os consagrados pela Constituição. Sem esse reforço, a segurança formal propiciada por um sistema legal supostamente coerente, lógico e completo e pretensamente capaz de harmonizar os aspectos materiais e formais dos conflitos, por si só não é capaz de assegurar nem a estabilidade social, ou seja, de manter as contradições e tensões em níveis tensionais funcionalmente controláveis, nem a própria continuidade da ordem liberal, É por essa razão que a submissão dos "sujeitos de direitos"à vontade da lei precisa estar solidamente fundada na crença de que existem imperativos específicos que todos os "bons cidadãos"devem obedecer.

Havendo alguma dúvida sobre esses imperativos, e existindo interpretações ambíguas ou discrepantes quanto ao seu sentido, os pilares básicos do sistema legal se desmoronam, na medida em que todos podem perder a confiança na legitimidade/autoridade do legislador e na "neutralidade"/ "imparcialidade"dos intérpretes judiciais.

No caso específico dos países de industrialização recente, que enfrentaram num curto espaço de tempo - e sob regimes autoritários - a transição das estruturas sócio-econômicas tradicionais para estruturas mais evoluídas e diversificadas, tal reforço ideológico é ainda muito mais importante: ao deflagrar amplas mudanças nos padrões vigentes de comportamento, nas formas de organização da produção e nas mentalidades secularmente enraizadas, os programas de modernização e desenvolvimento constituem um processo de transformação altamente dependente da eficácia de um sistema de comunicação entre governantes e governados. Ou seja: de um sistema em que a linguagem e os discursos dos primeiros sejam pragmaticamente formulados em conformidade com os valores e as perspectivas cognitivas destes últimos. Mesmo porque, se é certo que as novas estruturas sócio-econômicas não podem ser exclusivamente impostas e/ou asseguradas mediante normas com funções meramente protetoras e repressivas, como aquelas formuladas pelo liberalismo jurídico-político no apogeu do capitalismo industrial concorrencial, também é correto que, sem a socialização dos novos valores por parte de todos os grupos e classes sociais e a subjacente internalização das recompensas e intimidações inerentes às normas jurídicas assentadas em técnicas de estímulo e encorajamento, a ordem jurídica "modernizante"tende a se tornar operacionalmente inócua e, portanto, ineficaz.

É por isso que a clareza e a coerência lógico-formal postuladas pela ordem jurídico-política liberal são, como foi dito antes, simples instrumentos retóricos destinados a ocultar a diversificação interna tanto das formas legais quanto das estruturas normativas e institucionais em que operam. Isso significa que, na dinâmica da ordem jurídica oriunda do modelo liberal de organização do Estado e do Direito, suas leis não se limitam a informar, ou seja, a proibir ou autorizar condutas, a estimular ou desencorajar novos comportamentos. Elas também sutilmente procuram formar a opinião dos indivíduos, ou seja, calibrar suas expectativas, forjar seus desejos e padronizar suas reações, motivo pelo qual, investidas de autoridade e estruturadas de modo diretivo, apelam tanto para os símbolos quanto para os ideais presentes no imaginário social com a finalidade de moldar os indivíduos segundo "o espírito da legalidade"burguesa.

A linguagem e os mitos de ordem jurídica liberal

A linguagem, como se sugeriu no inicio deste artigo, é produto do modo de viver de uma dada sociedade - a própria formação das palavras leva os indivíduos a terem ou não conhecimento das experiências que enfrentam. Ela não é uma reunião aleatória de símbolos, porém um sistema de símbolos que têm sentido num código. O código linguístico é uma estrutura normativa paralela à composta por normas e valores societários. A linguagem é assim um instrumento não só para a compreensão mas, igualmente, para a modificação e transformação das pautas ideológicas que as mudanças sócio-econômicas fazem aflorar. Ela não permite apenas o intercâmbio de informações e de conhecimentos humanos, funcionando também como meio de controle desses conhecimentos. No processo de comunicação, as palavras e expressões adquirem sentidos em função das circunstâncias em que são utilizadas; logo, para saber o que o emissor tenta comunicar, não basta saber abstratamente o que as palavras significam; mais do que isso, é preciso recorrer a uma análise das intenções ou propósitos dos usuários. A questão da determinação dos usuários, como um fator alterante das significações, tem sido conhecido pelo nome de "usos da linguagem"ou "problemática funcional". Tal problemática se produz quando não se pode clarear a força intencional ou motivacional de uma expressão.

Para se verificar a eficácia de uma situação comunicativa, portanto, é necessário antes saber como descobrir as forças intencionais ou motivacionais nela presentes. Nesse sentido, é possível apontar esquematicamente cinco usos ou funções básicas da linguagem. A primeira delas é a função informativa, por meio da qual uma informação pode ser verdadeira ou falsa - o que interessa é a transmissão de um estado de coisas. Por conseguinte, não se deve confundir a intenção informativa como significado informativo. A segunda função é a emotiva: nesse caso, a linguagem é usada como elemento canalizador das emoções, de modo que as palavras tendem a um papel expressivo. A terceira função é a diretiva - aquela pela qual o emissor, valendo-se das emoções na transmissão das informações, procura orientar e determinar a conduta do receptor. As funções anteriores se tornam operativas quando associadas a um sistema normativo vigente que outorga um sentido objetivo a certos atos de vontade. A última função é a fabuladora - consiste na apresentação de uma proposição sem pretensões de verdade, com a finalidade de fazer crer em determinadas situações inexistentes. Mais do que uma falsidade, trata-se de uma ficção que permite tanto dissimular transgressões voluntárias ou involuntárias aos tabus sociais quanto utilizar as fábulas para fins didáticos na apresentação operacional de certos atos.

No campo do direito, graças à mitificação da ordem legal-estatal racionalmente criada, o jurista liberal tenta levar seus ouvintes a acreditar na realidade substancial das instituições jurídicas capitalistas. Na perspectiva do "império do direito", a comunicação entre o legislador e os legislados revela-se assim hierarquizante e subordinante: toda regra jurídica tem um caráter obrigatoriamente dogmático e, à medida que uma de suas funções é assegurar a reprodução dos padrões de dominação vigentes, garantindo formalmente um mínimo de certeza nas expectativas e uma certa margem de segurança nas decisões, ela não pode ser desafiada e descumprida. Ao mesmo tempo, como a efetividade das instituições de Direito depende da internalização dos valores de obediência, as leis são revestidas da aparente neutralidade - o que é possível graças à perversão ideológica que dissimula as funções diretivas, operativas e fabuladoras das normas, sob a máscara de suas funções informativas. Daí, como vimos, a tendência da ordem jurídico-política liberal é ampliar as abstrações generalizantes e indeterminadas de suas normas, procurando controlar relações sociais contraditórias cada vez menos "reguláveis"pelos processos jurídicos formais estritos e tipificantes, bem como integrar o universo dos litígios, incongruências e tensões decorrentes dessas relações mediante textos legais dotados de uma aparência de objetividade, imparcialidade e coerência.

Eis, pois, como são ocultados os valores e os interesses materiais subjacentes ao sistema legal originariamente criado pelo liberalismo jurídico-político para regular sociedades por ele imaginadas como relativamente estáveis e integradas pela economia de mercado. Mas diante da tendência do mercado às crises cíclicas, evidenciando a incapacidade do capitalismo industrial e concorrencial em autoregular-se e precisando cada vez mais da intervenção "normalizadora"do Estado, qual a resposta da ordem jurídico-política liberal? Se é certo, como diz Boaventura Santos, que a atomização dos conflitos obtida pelos mecanismos de dispersão das contradições também contribui para novos antagonismos e novas polarizações em momento posterior, e, conseqüentemente, para novas atuações contraditórias por parte do sistema legal, como a ordem jurídico-política liberal reage à ampliação da complexidade sócio- econômica determinada pelo capitalismo oligopolista/monopolista, pela expansão das lutas sociais e pela generalização do fenômeno burocrático? Dito de outro modo: forjado num dado momento da história e na suposição de que sua matriz organizacional do Direito e do Estado deveria universalizar-se, o que ocorre com o liberalismo jurídico-político diante da explosão de litigiosidade que, sob as mais variadas formas e os mais diversificados pontos de ruptura da ordem social, hoje caracteriza as sociedades de classes?

Em termos esquemáticos e gerais, como a gestão da crise econômica traz consigo modelos de inter-relação social incapazes de serem regulados pelas categorias da igualdade, da generalidade e da abstração jurídicas, a ordem juridico-política liberal não reagiu a essa explosão por meio do reforço de suas formas tradicionais, mas pelo abrandamento de sua rigidez hierárquica e de sua coerência lógico-formal - e o preço dessa estratégia é a progressiva desfiguração de suas características básicas, na medida em que o Estado se expande cada vez mais para além de seus aparelhos formais. Isto porque, à medida que a complexidade sócio-econômica determinada pelo capitalismo oligopolista/ monopolista amplia os antagonismos de classe, acelera o processo de concentração/centralização do capital e estimula a burocratização das organizações formais, o Estado responde a essa complexidade aumentando seu poder de regulação, controle e planejamento - de modo que se por um lado seu intervencionismo dá a idéia de "socializar"(e despolitizar) as esferas privadas, por outro as ações públicas acabam sendo "reprivatizadas"(e repolitizadas) mediante a consagração dos interesses de grupos, associações e movimentos antes tutelados apenas pelo direito privado.

Nesse processo de publicização"do privado é "reprivatização"do público, vão-se expandindo no interior do aparelho estatal centros de poder novos e relativamente autônomos que, escapando aos controles constitucionais forjados pelo liberalismo jurídico-político e invocando argumentos "técnicos"para justificar sua práxis decisória, regulam-se informalmente através de dispositivos "interna corporis"de caráter eminentemente estamental. Ao "tecnificar"dessa maneira a política, convertendo reivindicações oriundas de partidos, grupos profissionais, associações e movimentos populares em demandas "econômicas"e as transformando em seguida em meros problemas "administrativos"com o objetivo de trazê-las para o interior dos seus "anéis"burocráticos, a fim de melhor controlá-las, o Estado dito "intervencionista"acaba adotando uma estratégia peculiar: ele respalda-se na aparente neutralidade técnica, dos interesses que organiza ao nível do Executivo, procurando assim aliviar a sobrecarga das categorias jurídicas tradicionais e das demais instituições (Judiciário e Legislativo) deflagrada por pressões que elas não podem suportar, sob o risco de comprometimento da funcionalidade do sistema jurídico como um todo.

Na execução dessa estratégia de despolitização dos conflitos e de sua posterior repolitização controlada no âmbito do Executivo, o recurso a normas crescentemente indeterminadas e conceitualmente abstraias termina por representar, sob a fachada de um formalismo jurídico dotado de funcionalidade legitimadora, a concentração de todo o processo decisório no interior de ordem burocrática estatal intrincada e voltada à articulação, negociação e ajuste dos interesses dos grupos sociais e frações de classe mais mobilizadas e com maior poder de conflito. E, quanto mais essa ordem burocrática transforma as normas cogentes da legislação ordinária em simples instrumentos normativos de caráter dispositivos, com o objetivo de neutralizar os conflitos coletivos potencialmente incontroláveis resultantes da agudização das contradições sociais, paradoxalmente mais ela aumenta o risco de uma politização total de toda a vida social.

É por essa razão que o Estado intervencionista encontra-se hoje numa posição difícil, ou seja: ele está diante da impossibilidade de regular a vida social em todos os seus pontos mais explosivos ao mesmo tempo que é obrigado a manter desmobilizados, controlados e/ou cooptados as massas marginalizadas e os grupos e frações de classe descontentes, tendo assim dê inibir a organização dos protestos e das contestações numa oposição articulada, orgânica e polar. É por isso, igualmente, que o legislador tecnocrata se vê diante de um duplo desafio: por um lado, o de aprender a conviver com um consenso crescentemente escasso, e, por outro, o de maximizar* as funções diretivas, operativas e fabuladoras de um discurso normativo cada vez mais abrangente, genérico, abstrato, programático e sem base material. Um discurso cuja finalidade básica é, em suma, propiciar a "epicização"ou a "epopeização"do Estado, permitindo que seus dirigentes se apresentem como "heróis públicos"empenhados em atuar como grandes e iluminados "servidores do povo".

O direito no Estado intervencionista

Na perspectiva do liberalismo jurídico-político, como vimos na seção precedente, a fórmula legitimadora de seu sistema legal não está na obtenção do consenso em torno do conteúdo de suas normas ou de decisões de políticas substantivas, porém no respeito unânime aos procedimentos formais que definem as regras do jogo. Já na perspectiva do Estado dito "intervencionista", a fórmula legitimadora de sua ação regulatória depende de sua eficácia tanto em promover a despolitização dos conflitos para repolitizá-los de modo controlado quanto em ampliar a prontidão generalizada para aceitação de suas decisões independentemente de seu conteúdo, permitindo-lhe assim garantir o engajamento e a mobilização dos diferentes grupos e classes sociais em torno da ordem vigente.

Embora aparentemente colidentes entre si, numa pretensa oposição (weberiana) entre racionalidade formal e material, ambas as fórmulas se complementam e se fundem no capitalismo oligopolista/monopolista, já que a manutenção de sua ordem jurídico-política não pode ser confiada exclusivamente nem à presumida força integrativa da consciência coletiva nem ao pretenso respeito às "regras do jogo". Daí a preocupação do Estado intervencionista em revestir sua práxis jurídica assimétrica e fragmentária com um formalismo de fachada, pelo recurso a categorias normativas abertas e capazes de permitir uma ação livre e ao mesmo tempo formalmente legitimada, na medida em que os decantados princípios gerais de Direito do liberalismo jurídico-político ainda hoje propiciam às sociedades de classes um efeito de coesão e consenso em torno de alguns valores básicos. Todavia, como esse consenso é fictício e repousa sobre diferenças reais e inconciliáveis, ele cada vez mais tem de ser forjado na perspectiva de uma legalidade difusa capaz de encobrir as desigualdades materiais e os confrontos hegemômicos inerentes às contradições sociais. Utilizando instrumentalmente a racionalidade formal, mas sem se subordinar ele próprio a qualquer estatuto jurídico, e consciente de que a aceitação de suas decisões também está vinculada a um mínimo de formalização e sistematização na comunicação entre legisladores e legislados, o Estado intervencionista acaba reconhecendo o que era em vão negado pelos juristas do Estado liberal: o fato de que a eficácia do direito depende bem menos da coerência lógico-formal de seus sistemas normativos e muito mais de um amplo universo simbólico sutilmente difundido em meio a valores culturais e sociais, onde imperaria o símbolo da "justiça", tornando-se secundária sua importância para uma eventual aplicação a casos concretos e específicos.

É no âmbito dessa ambiguidade entre o law in book e o law in action que vêm emergindo, portanto, as dificuldades crescentemente intransponíveis para que o processo de legitimação "legal-racional"forjado pelo liberalismo jurídico-político possa continuar cumprindo seu papel ideológico e retórico em contextos cada vez mais complexos. Afinal, se por um lado as leis não podem deixar de ser genéricas, abstratas e impessoais, por outro, a sua formulação, em razão do próprio caráter programático e corporativo da ação regulatória do Estado intervencionista, é cada vez mais verticalizada, abrindo caminho para a profusão de instruções normativas, resoluções administrativas e decretos-leis. E, a um ponto tal, que a flexibilidade e a diversidade dos novos modos de juridicidade vão, como num círculo vicioso, acarretando inúmeros problemas cuja solução exige novo alargamento da "jurisdição"administrativo-normativa dos "anéis burocráticos", sem que existam técnicas retóricas em condições de elevar ainda mais a generalidade, a abstração e a impessoalidade das normas básicas que compõem o sistema legal.

Assim, quanto mais maleáveis e plásticas forem as novas leis e menos específicos os objetos por elas tutelados, maior a possibilidade de incertezas sobre o alcance e o sentido de suas normas. Por extensão, maior necessidade têm os governantes de dispersar e inibir a conversão dessas dúvidas e incertezas numa contra-reação organizada, uma vez que as manifestações sociais potencialmente aglutinadoras, em contextos estigmatizados por lutas de classes, expandem drasticamente as oportunidades de contestação à retórica legalista e ao próprio ordenamento constitucional. Frente ao risco de politização total de todas as dimensões da vida social, no âmbito do capitalismo oligopolista/monopolista, o Estado intervencionista se vê assim, como foi dito anteriormente, face aos desafio de regulá-las formalmente, ao mesmo tempo que é obrigado a continuar tentando manter desmobilizados os grupos e classes sociais politicamente emergentes, a fim de impedir sua mobilização numa ação coletiva de natureza confrontacional. De que modo superar esse desafio?

É nesse momento, pois, que os veículos tradicionais da práxis jurídica de caráter liberal, como as "salvaguardas"de Direito, os tribunais "soberanos"e as garantias processuais, deixam de ser articuláveis com os novos veículos de práxis jurídica do Estado intervencionista, como as negociações, as arbitragens e as decisões tomadas no âmbito dos "anéis burocráticos"e apresentadas sob a forma de portarias, decretos e instruções normativas. Ao contrário do discurso jurídico do Estado liberal, que se caracterizava por ser prescritivo, aparentemente informativo e pretensamente objetivo, fundado na transcedência das idéias e dos valores, o discurso jurídico do Estado intervencionista agora se torna ético, programático e pedagógico, fundado em critérios específicos de eficiência. Dito de outro modo: enquanto o discurso jurídico liberal invocava a isenção ideológica de uma cientificidade "positiva"para "nomear"o real, assegurar o monopólio da produção do direito, enfatizar a unidade lógico-formal do Estado e estabelecer as fronteiras entre o lícito e o proibido, o discurso jurídico do Estado intervencionista é operativo, diretivo e fabulador, uma vez que sua legitimidade repousa, em última instância, no sucesso - isto é, em sua capacidade de dar respostas minimamente plausíveis às contradições e dilemas gerados pelo desenvolvimento capitalista. No limite, portanto, esse sucesso sempre encerra um ato de força e arbítrio - mas uma força e um arbítrio mascarados por uma cosmovisão garantidora da dominação, ou seja: a retórica da "justiça social"a ideologia do "progresso", etc.

No entanto, como as formas e as práticas jurídicas do Estado intervencionista são cada vez mais diversificadas, assimétricas e fragmentárias, já que por trás das instituições formais o que prevalece é uma organização burocrático-administrativa baseada na expansão contínua de relações paralelas de poder, haverá uma lógica global capaz de dar um mínimo de coerência a esses múltiplos e diversificados modos de juridicidade e de lhes impor alguns limites estruturais? Diante da expansão dos "anéis burocráticos", em virtude da complexidade sócio-econômica gerada pelo capitalismo oligopolista/monopolista, qual o equilíbrio interno do Estado intervencionista? Não haverá o risco de existirem tantos discursos da eficiência quantos forem os "anéis"existentes e os lugares hierárquicos no âmbito do aparelho estatal em condições de tomar decisões - por menores que sejam? Como se estabelecem os elos da continuidade nos diferentes círculos decisórios? Qual o ponto de equilíbrio entre as relações paralelas de poder e os comandos do núcleo central do Executivo? De que maneira os diversos códigos, as inúmeras leis, os múltiplos decretos, a legislação dispositiva e os procedimentos paralegais, mantêm entre si um relacionamento sincrônico e congruente? Em suma: face a explosão de litigiosidade no âmbito do capitalismo olipolista/monopolista, qual o limite máximo da fragmentação, da assimetria e da amplitude dos modos e práticas de juridicidade do Estado intervencionista?

Este artigo pão comporta o aprofundamento dessa discussão. O que importa é chamar atenção para sua importância e atualidade - entre outras razões porque, entre nós, questões como essas revelam os motivos pelos quais o Estado brasileiro continua esbarrando no paradoxo de negar a legalidade formal, a rigidez hierárquica e a segurança do Direito em sua práxis decisória e, ao mesmo tempo, precisar de um sistema legal minimanente articulado, capaz tanto de coordenar quanto de ocultar a diversidade, a heterogeneidade e a assimetria de suas formas jurídicas e de seus instrumentos normativos, obtendo os efeitos de univocidade, completude e perfeição lógica mediante recurso ao arsenal retórico e conceituai do liberalismo jurídico-político.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1988
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