Acessibilidade / Reportar erro

VARIAÇÕES E CATEGORIAS NO CONCEITO DE HEGEMONIA EM ERNESTO LACLAU

VARIATIONS AND CATEGORIES IN THE CONCEPT OF HEGEMONY IN ERNESTO LACLAU

Resumo:

Este artigo explora a importância da ideia de hegemonia nas obras de Ernesto Laclau, destacando suas transformações conceituais ao longo do tempo. Laclau adota uma abordagem interdisciplinar, dialogando com diversas correntes teóricas, como o marxismo, o pós-estruturalismo e a psicanálise, proporcionando uma compreensão abrangente e complexa da hegemonia. Laclau demonstra, ao longo de suas obras, a importância das mudanças de abordagem, por exemplo quando substitui a ênfase no antagonismo pelo conceito de deslocamento e passa a integrar a noção de desconstrução como elemento fundamental para a compreensão da hegemonia. Argumenta-se que a concepção de hegemonia passou por quatro momentos: classe fundamental, antagonismo, deslocamento e desconstrução, em um processo marcado pelo diálogo enriquecedor com pensadores influentes, tais quais Antonio Gramsci, Louis Althusser, Jacques Lacan, Slavoj Žižek, Jacques Derrida e Michel Foucault.

Palavras-chave:
Hegemonia; Ernesto Laclau; Antagonismo; Deslocamento; Desconstrução

Abstract:

This study explores the central importance of hegemony in the work of Ernesto Laclau, highlighting its conceptual transformations over time. Laclau adopts an interdisciplinary approach, engaging with various theoretical currents such as Marxism, post-structuralism, and psychoanalysis, and providing a comprehensive and complex understanding of hegemony. Throughout his work, the author shows the significance of shifts in approach, such as when he replaces the emphasis on antagonism with the concept of displacement and integrates the notion of deconstruction as fundamental to understanding hegemony. It is argued that the conception of hegemony has experienced different moments, such as fundamental class, antagonism, displacement, and deconstruction, in a process marked by an enriching dialogue with influential thinkers such as Antonio Gramsci, Louis Althusser, Jacques Lacan, Slavoj Žižek, Jacques Derrida, and Michel Foucault.

Keywords:
Hegemony ; Ernesto Laclau ; Antagonism ; Displacement ; Identity ; Deconstruction

Introdução

As obras de Ernesto Laclau destacam-se pela sua abordagem singular do conceito de hegemonia, sendo enfatizado pelo autor como uma “categoria central para a teorização da política” (Laclau, 1996bLACLAU, Ernesto. 1996b. Deconstruction, Pragmatism, Hegemony. In: CRITCHLEY, Simon; MOUFFE, Chantal (ed.). Deconstruction and Pragmatism. London: Routledge. , p. 49). Essa afirmação, proveniente da década de 1990, sintetiza a importância atribuída à hegemonia ao longo das obras do teórico político argentino. Antes de Laclau, hegemonia era frequentemente vista como uma luta entre grupos predefinidos, com interesses claramente pré-estabelecidos. Esses “grupos” seriam como entidades fixas, com identidades claras e objetivas (Marchart, 2006 MARCHART, Oliver. 2006. En el nombre del pueblo La razón populista y el sujeto de lo político. Cuadernos del Cendes, v. 23, n. 62, pp. 39-60. Disponível em: https://bit.ly/3TTQ25H . Acesso em: 20 mar. 2024.
https://bit.ly/3TTQ25H...
). No entanto, Laclau propõe uma abordagem distinta. O autor argumenta que os interesses políticos não são necessariamente estabelecidos de antemão. Em vez disso, eles emergem e são construídos durante o processo de luta política. Esse processo de construção de identidades não fixas em uma sociedade aberta é o que Laclau denomina como hegemonia. Para Laclau e Mouffe, a hegemonia não é apenas uma noção abstrata; é o terreno próprio das disputas políticas, a possibilidade de se fazer política em um lugar “não determinável na topografia do social” ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. , p. 219).

David Howarth ( 2004HOWARTH, David. 2004. Hegemony, Political Subjectivity, and Radical Democracy. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (org.). Laclau: A Critical Reader. London: Routledge. ) sugere que a teoria de hegemonia em Laclau pode ser compreendida por meio de três modelos distintos: o modelo relacionado à tradição marxista-gramsciana, o modelo influenciado pela tradição pós-estruturalista e o modelo que emerge como resposta às críticas, especialmente aquelas feitas por Slavoj Žižek. No entanto, esta pesquisa adota uma perspectiva mais abrangente, que destaca os diálogos com autores e categorias fundamentais para a compreensão da ideia de hegemonia de Laclau. Nesse sentido, identifica-se quatro momentos distintos no desenvolvimento dessa noção: hegemonia como classe fundamental, hegemonia como antagonismo, hegemonia como deslocamento e hegemonia como desconstrução. É importante ressaltar que esses momentos não são fixos ou excludentes, nem esgotam as possibilidades de interpretação da obra de Laclau. Eles representam ajustes e reformulações ao longo do tempo, nos quais elementos cruciais foram incorporados e/ou aprimorados no conceito de hegemonia. Essa fluidez contínua e as complexidades inerentes à hegemonia fornecem o contexto propício para uma compreensão mais aprofundada desse conceito em constante mutação. 1 1 Meus sinceros agradecimentos aos dois revisores anônimos, cujas contribuições foram essenciais para o aprimoramento da versão final deste artigo.

O ponto de partida dessa jornada intelectual é Politics and Ideology in Marxist Theory: Capitalism, Fascism, Populism (PIMT), de 1977, inserida em um diálogo reformista dentro do pensamento marxista do século XX. Em PIMT, é notável a influência direta de Gramsci em Laclau, especialmente na adoção da noção de hegemonia. Apesar de suas críticas iniciais ao que ele denominou de “reducionismo de classe”, Laclau ressalta a relevância do conceito de hegemonia conforme definido por Gramsci e oferece indícios do que faria posteriormente a partir dessa noção: “o conceito de hegemonia, tal como definido por Gramsci, é crucial na análise política marxista e requer uma exploração completa de todas as suas implicações” ( 1977LACLAU, Ernesto. 1977. Politics and Ideology in Marxist Theory: Capitalism, Fascism, Populism. London: NLB. , p. 141). No entanto, é Althusser quem se destaca como a principal referência de Laclau na virada da década 1970 para 1980, influenciando significativamente suas primeiras abordagens, especialmente por meio das proposições althusserianas sobre interpelação e sobredeterminação (Sosa, 2011SOSA, Maria. 2011. Discurso, política y sujeto: las huellas de la problemática althusseriana en la propuesta teórica de Ernesto Laclau. In: CALETTI, Sérgio; ROMÉ, Natalia (ed.). La intervención de Althusser. Revisiones y Debates. Buenos Aires: Prometeo. ). Gramsci e Althusser representam o que este artigo identifica como uma constante dinâmica de aproximações e afastamentos presentes nas obras de Laclau. David Howarth vai mais longe ao afirmar que:

[…] os escritos de Ernesto Laclau, incluindo aqueles coescritos com Chantal Mouffe, representam talvez o esforço mais concentrado para sintetizar duas correntes proeminentes no marxismo ocidental – o althusserianismo e o gramscianismo – com uma série de movimentos filosóficos contemporâneos, como o pós-estruturalismo europeu, a filosofia pós-analítica anglo-saxônica e a psicanálise lacaniana

( 2007 HOWARTH, David. 2007. Reflections on Ernesto Laclau’s new reflections on the revolution of our time. Politikon, v. 19, n. 1, pp. 120-133. DOI: https://doi.org/10.1080/02589349108704963 .
https://doi.org/10.1080/0258934910870496...
, p. 120).

Desde então, Laclau trilhou novos caminhos e reexaminou suas ideias sobre hegemonia, sociedade e luta política. Na década seguinte, em colaboração com Chantal Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ), na obra Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics (HES), 2 2 Daqui em diante, neste texto, será usado “HES” como abreviação do título da obra publicada em português: Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical ( 1985/2015 ). Laclau desafiou o determinismo econômico e o essencialismo presentes em categorias-chave como “classe fundamental” e “luta de classes”, marcando uma nova fronteira em relação ao marxismo. Conforme ressalta Lotar Rasiński ( 2011 RASIŃSKI, Lotar. 2011. Power, Discourse, and Subject. The Case of Laclau and Foucault. Polish Journal of Philosophy, v. 5, n. 1, p. 117-136. DOI: https://doi.org/10.5840/pjphil2011516 .
https://doi.org/10.5840/pjphil2011516...
), HES representou não apenas uma rejeição às estruturas tradicionais, mas também uma assimilação de elementos críticos do pós-estruturalismo. O objetivo de Laclau, em parceria com Mouffe, era construir uma teoria do poder que transcendesse as limitações das divisões econômicas rigidamente definidas. Eles buscavam compreender as disputas hegemônicas que surgiam no complexo campo social da segunda metade do século XX, evitando assim o que o autor denominou de “modelo de Leviatã”, isto é, o estado de natureza como a impossibilidade da política, de um lado; e o Estado como a centralidade do poder, de outro:

[…] uma abordagem que torna a política impensável é encontrada em Hobbes. Aqui, o elemento de deslocamento, a impossibilidade de uma ordem, representa muito mais do que a dimensão de impureza e contingência encontrada em toda realidade empírica: constitui a própria definição do estado de natureza 3 3 Todas as traduções das citações em língua estrangeira são de minha autoria.

(Laclau, 2000bLACLAU, Ernesto. 2000b. La imposibilidad de la sociedad. In: LACLAU, Ernesto. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. Buenos Aires: Nueva Visión. , p. 86).

Alinhado com a noção de poder de Foucault, Laclau procurava uma abordagem que reconhecesse a descentralização desses conflitos, refletindo a multiplicidade de atores e de dinâmicas presentes no cenário social emergente: “o que está em jogo aqui não é apenas a eliminação do economicismo marxista, mas também, e talvez mais importante, a eliminação de um tipo específico de discurso liberal ou jurídico, nomeado por Foucault como troca contratual” (Rasiński, 2011 RASIŃSKI, Lotar. 2011. Power, Discourse, and Subject. The Case of Laclau and Foucault. Polish Journal of Philosophy, v. 5, n. 1, p. 117-136. DOI: https://doi.org/10.5840/pjphil2011516 .
https://doi.org/10.5840/pjphil2011516...
, p. 134).

Por meio de suas obras, Laclau consolidou diversos saberes, estimulando diálogos profundos e discussões críticas com importantes intelectuais, embora não seja possível abarcar todos esses movimentos nesse espaço. 4 4 Um exemplo notável desses encontros é o diálogo entre Laclau e Stuart Hall, no qual muitos identificam influências mútuas e contrastes que, de certa forma, também os aproximam (Colpani, 2022 ). Esses diálogos exploraram tanto as convergências quanto as divergências com uma ampla gama de correntes teóricas, desde o marxismo até o pós-estruturalismo e a psicanálise. Esses movimentos, que denomino diálogos contingentes, focam, especialmente, em figuras como Louis Althusser, Antonio Gramsci, Jacques Lacan, Slavoj Žižek, Jacques Derrida e Michel Foucault. Explorar essas diferentes referências filosóficas e teóricas enriqueceu a análise de Laclau, resultando em uma abordagem mais plural. Esse mergulho nas diversas correntes proporciona uma base robusta para a construção de uma noção singular de hegemonia.

É reconhecido que a concepção de hegemonia em Ernesto Laclau passou por uma série de variações ao longo de suas obras, acompanhadas por categorias fundamentais, as quais não pressupõem necessariamente um desenvolvimento linear ou contínuo do conceito ao longo do tempo. 5 5 Cabe destacar que as variações aqui referidas não implicam a noção de mudança de paradigma no sentido “kuhniano” (Kuhn, 1970 ) da palavra. Variações indicam mais ajustes, aproximações e distanciamentos de conceitos, autores e perspectivas do que uma progressão linear ou hierárquica de ideias. Entre elas, destaca-se o papel central da noção de antagonismo. Em HES ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ), 6 6 Todas as referências datadas de 2015 de HES se referem à edição da obra originalmente publicada em 1985. o antagonismo é essencial na esfera política e constitui a própria impossibilidade do Eu, uma vez que é o antagonismo que impede a cristalização de qualquer identidade. Assim, o antagonismo é simultaneamente a condição e a impossibilidade plena do Eu. No contexto da obra de 1985, o antagonismo desempenha um papel central na compreensão da ideia de hegemonia desenvolvida por Laclau e Mouffe, cujo objetivo era claramente se distanciar do sistema de identidades fechadas. 7 7 Laclau e Mouffe ( 2015 ) descrevem as identidades como “contingentes” ou “construídas discursivamente” e não dadas a priori . Segundos os autores, “é porque a hegemonia supõe um caráter aberto e incompleto do social, que ela só pode ter lugar num campo dominado por práticas articulatórias” (Laclau e Mouffe, 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. , p. 213). Em outras palavras, o conflito e a oposição inerentes ao antagonismo tornam impossível a criação de identidades cristalizadas, desafiando a estabilidade das categorias tradicionais. Dessa forma, o antagonismo não apenas se revela como uma condição essencial para a luta hegemônica, mas também como a ruptura fundamental na consolidação de identidades políticas estáveis. Esse movimento não implica necessariamente uma contradição, ou seja, na impossibilidade da hegemonia, mas sim ressalta que toda hegemonia apresenta uma natureza contingente e temporária.

HES ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ) representa uma ruptura significativa na abordagem de Laclau em relação à sua obra PIMT ( 1977LACLAU, Ernesto. 1977. Politics and Ideology in Marxist Theory: Capitalism, Fascism, Populism. London: NLB. ). No entanto, essa mudança não provoca uma rejeição das categorias fundamentais para a análise social, como a hegemonia (inspirada em Gramsci) e a sobredeterminação (inspirada em Althusser). Pelo contrário, essa transição implica uma reinterpretação radical desses conceitos, como destacam os autores: “Está claro como podemos recuperar os conceitos básicos da análise gramsciana, embora seja necessário radicalizá-los numa direção que nos leve além de Gramsci” (Laclau e Mouffe, 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. , p. 215). Em outro momento, os autores criticam o racionalismo de Althusser em relação à sobredeterminação, buscando desenvolver todas as implicações desse conceito e destacando a impossibilidade de um determinismo último, enfatizando o caráter precário e relacional de toda identidade (Laclau e Mouffe, 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. , p. 171).

Na década de 1990, Laclau temporariamente abandona a ênfase central na categoria de antagonismo em favor da ideia de deslocamento, inspirado na psicanálise lacaniana. No entanto, o antagonismo volta ao centro do debate laclauniano na obra On Populist Reason ( 2005LACLAU, Ernesto. 2005. On Populist Reason. London: Verso. ). Nesse trabalho, o autor enfatiza a importância de compreender a relação antagônica para entender o populismo e ressalta que o antagonismo não pode surgir a priori . Em sua obra Emancipation(s) , de 1996, Laclau destaca uma mudança de perspectiva em relação à categoria de antagonismo. Enquanto em HES ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ) o antagonismo foi concebido como um limite para a objetividade, na publicação de 1990, New Reflections on the Revolution of Our Time (NR), Laclau o entende como uma articulação discursiva. Em NR, Laclau também introduz a categoria de deslocamento, argumentando que o antagonismo é resultado de uma articulação discursiva, não uma condição prévia das identidades (Glynos e Stavrakakis, 2004GLYNOS, Jason; STAVRAKAKIS, Yannis. 2004. Encounters of the real kind: sussing out the limits of Laclau’s embrace of Lacan. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (org.). Laclau: a critical reader. London: Routledge. ). O deslocamento em Laclau é a condição de possibilidade de criação e rearticulação hegemônica, não sendo apenas um trauma; essa posição coloca Laclau muito próxima a Lacan. Nesse sentido, deslocamento não é apenas negativo; ele também é positivado no que “ele chama de significante vazio” (Glynos e Stavrakakis, 2004GLYNOS, Jason; STAVRAKAKIS, Yannis. 2004. Encounters of the real kind: sussing out the limits of Laclau’s embrace of Lacan. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (org.). Laclau: a critical reader. London: Routledge. , p. 207).

Em NR ( 1990LACLAU, Ernesto. 1990. New reflections on the revolution of our time. London: Verso. ), Laclau destaca que os deslocamentos implicam em dicotomias: eles podem ser perturbadores ao ameaçar identidades estabelecidas, mas também são construtivos ao fornecer a base para a formação de novas identidades. Laclau ( 1990LACLAU, Ernesto. 1990. New reflections on the revolution of our time. London: Verso. , p. 39) adota o conceito de deslocamento argumentando que “toda identidade é deslocada na medida em que depende de um exterior que, ao mesmo tempo em que a nega, também é sua condição de possibilidade”. Esses deslocamentos são cruciais, pois atuam tanto como limites quanto como impulsionadores na criação de identidades. Laclau chama esse processo de “significante vazio”. Todos os sistemas têm o potencial de serem deslocados, embora esse deslocamento não necessariamente leve ao antagonismo. A separação entre o antagonismo e o deslocamento nos permite pensar no antagonismo como um resultado histórico contingente, que não é inerente à estrutura diferenciada e paradoxal do sistema. Os deslocamentos são vistos como um efeito natural da constituição diferenciada do sistema, enquanto os antagonismos representam uma forma específica de articulação que surge a partir desse deslocamento (Critchley e Marchart, 2004CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (ed.). 2004. Laclau: A Critical Reader. London: Routledge. ).

Por outro lado, Laclau recorre a Derrida ao aproximar o conceito de hegemonia da ideia de desconstrução. Ao destacar que as relações sociais não são predeterminadas, mas sim contingentes – ou seja, estão sujeitas ao jogo das disputas políticas e à luta pela hegemonia – Laclau sugere que hegemonizar algo implica preencher lacunas. Nesse contexto, a estrutura discursiva desempenha um papel crucial, uma ideia que Egidius Berns identifica como a afinidade entre Laclau e Derrida, afirmando que “hegemonia se encaixa com um estilo desconstrutivo, especialmente com sua estrutura discursiva e sua insistência na decisão como a instância final da solução do indecidível” ( 1996 BERNS, Egidius. 1996. Decision, hegemony and law: Derrida and Laclau. Philosophy & Social Criticism, v. 22, n. 4, pp. 71-80. DOI: https://doi.org/10.1177/019145379602200404 .
https://doi.org/10.1177/0191453796022004...
, p. 72). Esse ponto é relevante porque sugere que o conceito de hegemonia pode oferecer uma abordagem inovadora ao desenvolvimento da filosofia política em um estilo desconstrutivo.

É crucial ressaltar que os modelos de hegemonia estão intrinsecamente ligados às categorias exploradas por Laclau. De fato, é impossível examinar a noção de hegemonia sem abordar essas categorias fundamentais. 8 8 Ao longo de sua obra, Laclau dedicou-se à investigação de uma variedade de conceitos que enriqueceram sua teoria discursiva. Identidade, discurso, prática articulatória, antagonismo, deslocamento, falta e desconstrução são alguns exemplos dessas categorias que desempenharam papéis cruciais na definição dos fundamentos da hegemonia. Desenvolvidos ao longo de décadas, esses conceitos contribuíram significativamente para a compreensão e análise da dinâmica hegemônica na teoria de Laclau.

Para abordar as questões levantadas acima, além desta introdução e das considerações finais, o artigo está organizado em cinco seções. Na primeira, contextualiza-se a reflexão inicial de Laclau sobre a hegemonia, situada no cerne do debate marxista da segunda metade do século XX, como evidenciado em sua obra PIMT de 1977. Ainda nessa seção, destaca-se o enriquecedor debate presente nas obras de Laclau e discute-se como suas interlocuções com diversos intelectuais foram cruciais para a conceituação da hegemonia. Nas duas seções seguintes, explora-se a centralidade do antagonismo na concepção de hegemonia em HES de 1985, bem como a rearticulação desse conceito por Laclau, influenciado por Lacan e Derrida, e a incorporação de categorias como deslocamento e desconstrução ao conceito de hegemonia. Por fim, nas duas últimas seções, enfatiza-se o papel crucial do discurso em Laclau e apresentam-se os quatro momentos da hegemonia no pensamento do teórico político.

Diálogos contingentes

Antes da chamada virada pós-marxista, Ernesto Laclau ( 1977LACLAU, Ernesto. 1977. Politics and Ideology in Marxist Theory: Capitalism, Fascism, Populism. London: NLB. ) já explorava a noção de populismo, a qual seria posteriormente expandida e modificada em sua obra clássica On Populist Reason , publicada em 2005. Durante esse processo, Laclau foi influenciado pela abordagem de Althusser sobre ideologia, especialmente pelo conceito de interpelação. Introduzida por Althusser ( 1970ALTHUSSER, Louis. 1970. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Lisboa: Editorial Presença. ), interpelação é uma forma específica de articulação presente nos discursos sociais e ideológicos, referindo-se ao processo pelo qual os sujeitos são convocados ou chamados a se identificarem com determinadas categorias ou papéis sociais. Laclau destacou a relevância do trabalho de Althusser sobre ideologia ao argumentar que “Poulantzas não deu o devido destaque à importância da interpelação, que é a concepção central de Althusser sobre a função primordial de toda ideologia” (Laclau, 1977LACLAU, Ernesto. 1977. Politics and Ideology in Marxist Theory: Capitalism, Fascism, Populism. London: NLB. , p. 100). Howarth argumenta que “as teses apresentadas em HES são uma tentativa de desenvolver os argumentos teóricos que são delineados em PIMT e nos escritos de Mouffe sobre Gramsci” (Howarth, 2007 HOWARTH, David. 2007. Reflections on Ernesto Laclau’s new reflections on the revolution of our time. Politikon, v. 19, n. 1, pp. 120-133. DOI: https://doi.org/10.1080/02589349108704963 .
https://doi.org/10.1080/0258934910870496...
, p. 121).

Já em HES, Laclau e Mouffe adotaram o “princípio articulatório”, também inspirado em Althusser, embora criticando o universalismo abstrato da economia como uma ferramenta conceitual para compreender de que forma as identidades políticas e sociais são formadas pela articulação de diferentes elementos dentro do discurso político. Segundo os autores, “chamaremos de articulação qualquer prática que estabeleça uma relação entre elementos de tal modo que a sua identidade seja modificada como um resultado da prática articulatória” (Laclau e Mouffe, 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. , p. 178). O que diferencia Laclau de Althusser é a concepção de uma formação discursiva desprovida de um sujeito transcendental e de planos de constituição anterior ou exterior. Laclau e Mouffe defendem que:

o caráter aberto e não apriorístico de toda identidade social permite sua articulação a diferentes formações histórico-discursivas, isto é, a ‘blocos’ no sentido de Sorel e Gramsci”, enquanto que “a identidade da força articulatória se constitui no campo geral da discursividade, o que elimina qualquer referência a um sujeito transcendental ou originário

( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. , p. 189).

O conceito de hegemonia, conforme apresentado por Gramsci, representa a síntese de tradições russas convergindo para o bloco histórico. 9 9 Mouffe ( 1979 ) define bloco histórico como a aliança de classes que forma a base política e social de uma hegemonia específica. É uma coalizão de grupos sociais com interesses diversos, unidos em torno de um projeto político comum liderado por uma classe dominante. Na genealogia proposta pelos autores em HES, é em Gramsci que a hegemonia “adquire um novo tipo de centralidade, transcende seu uso tático ou estratégico: ‘hegemonia’ se torna o conceito-chave na compreensão da própria unidade existente numa formação social concreta” ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. , p. 58). Nesse ponto, Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ) retomam os conceitos fundamentais de Gramsci, buscando expandi-los para além do que o autor sardo propôs. Entre Gramsci, Laclau e Mouffe, a aproximação significativa é o reconhecimento da importância da hegemonia como um elemento crucial na análise das relações de poder e das lutas políticas.

No entanto, um dos principais distanciamentos está no entendimento do sujeito articulador dessas lutas. Enquanto Gramsci enfatiza a importância da classe trabalhadora como sujeito histórico capaz de liderar uma transformação revolucionária, Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ) ampliam o escopo da noção de sujeito político, argumentando que a hegemonia pode ser construída por diferentes grupos e identidades em luta por reconhecimento e poder. Rasiński ( 2011 RASIŃSKI, Lotar. 2011. Power, Discourse, and Subject. The Case of Laclau and Foucault. Polish Journal of Philosophy, v. 5, n. 1, p. 117-136. DOI: https://doi.org/10.5840/pjphil2011516 .
https://doi.org/10.5840/pjphil2011516...
) argumenta que essa abordagem do conceito de hegemonia herda da tradição marxista a ideia de restauração e reparação. Nesse contexto, a hegemonia pode ser compreendida como um projeto político definido, com objetivos concretos de adquirir poder sobre o Estado e neutralizar os esforços hegemônicos dos grupos oprimidos. No entanto, uma divergência pode ser aberta em relação a Rasiński ( 2011 RASIŃSKI, Lotar. 2011. Power, Discourse, and Subject. The Case of Laclau and Foucault. Polish Journal of Philosophy, v. 5, n. 1, p. 117-136. DOI: https://doi.org/10.5840/pjphil2011516 .
https://doi.org/10.5840/pjphil2011516...
), considerando o trabalho de Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ) em HES.

Os autores não pensam na emergência da hegemonia em um sistema fechado, focando no Estado como opressor, 10 10 E aqui, destaca-se que os autores estão comprometidos com a ideia de radicalizar a democracia, oferecendo uma resposta direta à onda conservadora que “deslocou a fronteira do social” (Laclau e Mouffe, 2015 , p. 263), minando as conquistas sociais. mas em um sujeito articulador que emerge em um campo atravessado por antagonismos. Esse movimento dos autores parece sugerir a noção de elementos dispersos e desagregados, descentralizados de qualquer figura apriorística, incluindo o Estado. Hillis Miller ( 2003MILLER, Hillis. 2003. Taking Up a Task: Momentos of decision in Ernesto Laclau’s thought. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (org.). Laclau: a critical reader. London: Routledge. ) e Ana Alves ( 2010 ALVES, Ana Rodrigues Cavalcanti. 2010. O conceito de hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe. Lua Nova, v. 80, pp. 71-96, 2010. Disponível em: https://bit.ly/43qGWQQ . Acesso em: 20 mar. 2024.
https://bit.ly/43qGWQQ...
) argumentam que a concepção de poder se descentraliza, destacando que em Gramsci a dicotomia do marxismo clássico não foi completamente superada. Isso torna a ideia de hegemonia um momento de transição do essencialismo clássico marxista. Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ), ao redefinirem o conceito de hegemonia, desvincularam-no da ideia tradicional de domínio exercido por um poder governamental estabelecido, seja dentro de um país específico ou em âmbito internacional, como no caso do imperialismo ou colonialismo. A distinção entre a abordagem de hegemonia de Gramsci e a desenvolvida por Laclau e Mouffe reside no sujeito articulador da hegemonia.

A questão central que surge é: quem assume o papel de articulador da hegemonia? Laclau e Mouffe ( 2015LACLAU, Ernesto. 2015. An interview with Ernesto Laclau: questions from David Howarth. In: LACLAU, Ernesto. Post-marxism, populism and critique. London: Routledge. ) argumentam que a hegemonia não é baseada em uma classe fundamental que precede a própria dinâmica política, como anteriormente mencionado. As relações hegemônicas não são relações sintáticas fundamentadas em categorias que as precedem. O afastamento em relação a Gramsci tem correspondência direta com o essencialismo da “classe fundamental”. Em primeiro lugar, ambos os autores refutam a ideia de uma constituição dos sujeitos no plano das classes fundamentais. Em segundo lugar, contestam a centralidade de toda formação hegemônica em um único ponto. Laclau e Mouffe discordam da idealização de que “toda formação social se estrutura em torno de um único centro hegemônico” ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. , p. 217). É precisamente essa diversidade de abordagens que possibilita a construção do conceito de hegemonia, com as variações resultantes desses diálogos contingentes.

O discurso desempenha um papel central na análise da questão hegemônica e assume uma importância crucial no pluralismo de saberes proposto pelo teórico argentino. Laclau e Mouffe definem o discurso como uma totalidade significativa que vai além da distinção entre o linguístico e o extralinguístico (Howarth, 2015HOWARTH, David. 2015. Ernesto Laclau: post-Marxism, populism and critique. London: Routledge. ). Os autores em questão recorrem a Ludwig Wittgenstein para afirmar que o campo social é linguagem. 11 11 Wittgenstein ( 1994 ) defende a visão de que a linguagem tem uma estrutura lógica que reflete a estrutura do mundo. Um dos argumentos na obra é que a função da linguagem é representar fatos e proposições, e a função da filosofia é justamente esclarecer a linguagem e ajudar a formular proposições claras. O discurso não diz respeito meramente ao mundo das ideias, mas tem caráter material. A noção do discurso não se concentra nos fatos em si, mas sim nas condições que tornam esses fatos possíveis e significativos, ou seja, não se trata de desvendar “o que há por trás do discurso”. Ao contrário de Kant, argumenta Laclau ( 1995LACLAU, Ernesto. 1995. Discourse. In: GOODIN, Robert; PETTIT, Philip; POGGE, Thomas (ed.). A Companion to Contemporary Political Philosophy. Oxford: Blackwell Publishers. , p. 541), em que o a priori representa uma estrutura fundamental da mente humana que transcende as variações históricas, as teorias contemporâneas do discurso reconhecem sua natureza eminentemente histórica. Essas teorias buscam estudar os campos discursivos que estão sujeitos a mudanças ao longo do tempo, mesmo que desempenhem um papel transcendental. A luta que procura estabelecer significados fixos, mesmo que precários e contingentes, é o que é chamado de hegemonia (Howarth, 2015HOWARTH, David. 2015. Ernesto Laclau: post-Marxism, populism and critique. London: Routledge. ).

Se o mundo é significado pelo discurso, a sua prática discursiva ganha relevo na fixação e na detenção desses significados. Nesse sentido, é importante reconhecer que o significado não é completamente fixo e que qualquer tentativa de fixação é contingente, dado o excesso de significados possíveis. O discurso está constantemente transbordando os limites de qualquer estabilização possível, desafiando referências (Laclau e Mouffe, 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ). Paradoxalmente, essa falta de fixidez é fundamental para a emergência da hegemonia. A contingência é o terreno fértil onde ocorrem as lutas pela hegemonia. Quanto maior for a contingência, maior será o espaço para a contestação hegemônica. Esse é um ponto crucial no argumento da contingência: “o mundo pós-guerra está se tornando mais contingente devido à globalização em expansão, demandas democráticas crescentes, aumento de conflitos e antagonismos” (Jessop, 2019 JESSOP, Bob. 2019. Critical discourse analysis in Laclau and Mouffe’s post-Marxism. Simbiótica. Revista Eletrônica, v. 6, n. 2, pp. 8-30. DOI: https://doi.org/10.47456/simbitica.v6i2.28400 .
https://doi.org/10.47456/simbitica.v6i2....
, p. 295).

A reflexão sobre a noção de sociedade aberta, incompleta ou vazia, conforme discutido pelos autores, destaca a importância das disputas por significados no campo social e a busca pelo preenchimento desses “vazios”. Para Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ), todos os objetos do campo social são significativos e seus significados são, por conseguinte, conferidos por sistemas particulares de diferenças. Em outras palavras, o social é significado pelo discurso – são os discursos que conferem significado ao campo social. Assim sendo, os trabalhos de Laclau e Mouffe visam mostrar a natureza discursiva do social, compreendendo o campo social como construído e articulado pelos discursos (Glynos e Stavrakakis, 2003GLYNOS, Jason; STAVRAKAKIS, Yannis. 2004. Encounters of the real kind: sussing out the limits of Laclau’s embrace of Lacan. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (org.). Laclau: a critical reader. London: Routledge. ). O discurso é uma tentativa de lidar com desarticulações discursivas fornecendo fixações parciais de significado. É a própria construção de limites discursivos que torna constitutivos para todo discurso. Ao focar no discurso, Laclau e Mouffe inauguram o discurso como teoria social (Jorgensen e Phillips, 2002 JORGENSEN, Marianne; PHILLIPS, J. Louise. 2002. Laclau and Mouffe’s discourse theory. In: Discourse Analysis as Theory and Method. London: Sage. DOI: https://doi.org/10.4135/9781849208871 .
https://doi.org/10.4135/9781849208871...
).

Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ) exploram conceitos como a complexidade intrínseca do campo social, sua dinâmica constante e a natureza incessantemente contestada da sociedade, destacando a originalidade de seu pensamento em relação à noção de hegemonia. É dentro dessa complexidade ao abordar o campo social que Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ) e Laclau ( 1990LACLAU, Ernesto. 1990. New reflections on the revolution of our time. London: Verso. , 1996aLACLAU, Ernesto. 1996a. Emancipation(s). London: Verso. ) encontram na psicanálise, particularmente nas contribuições de Lacan, as ferramentas essenciais para contemplar a ideia de hegemonia. Conforme defende Maria Sosa ( 2009 SOSA, Maria. 2009. Discurso y sujetos políticos en la propuesta teórica de Ernesto Laclau: Una indagación de los aportes del psicoanálisis a la construcción de categorías para el análisis político. Maestría en Ciencia Política y Sociología. Buenos Aires: FLACSO. Disponível em: https://encr.pw/WlAau . Acesso em: abril de 2023.
https://encr.pw/WlAau...
, 2011SOSA, Maria. 2011. Discurso, política y sujeto: las huellas de la problemática althusseriana en la propuesta teórica de Ernesto Laclau. In: CALETTI, Sérgio; ROMÉ, Natalia (ed.). La intervención de Althusser. Revisiones y Debates. Buenos Aires: Prometeo. ), embora não esteja totalmente desenvolvido e sistematizado em sua amplitude na análise social, é possível identificar uma série de formulações que buscam na psicanálise ferramentas para pensar de forma mais específica os sujeitos políticos, suas formas de constituição e suas modalidades de intervenção. Dessa forma, as categorias provenientes da psicanálise estão presentes ao longo da obra de Laclau (e de Mouffe) na articulação de núcleos entrelaçados no discurso, na política e no sujeito.

Em 1990, na obra NR, Laclau reserva um capítulo à abordagem da sociedade como uma impossibilidade. A impossibilidade destacada pelo autor assemelha-se à noção lacaniana do real como fissura, evidenciando a precariedade de qualquer construção social e a impossibilidade definitiva de uma sutura completa. Essa perspectiva ressalta a ausência de um destino final para a concepção de sociedade. 12 12 Segundo Lacan ( 2005 ), o real é entendido como algo que escapa à simbolização e à representação, sendo aquilo que não pode ser totalmente compreendido ou simbolizado pela linguagem. O real é caracterizado por sua resistência à simbolização e pela sua natureza intratável. Essa construção vai ter importância fundamental para se pensar as disputas hegemônicas, uma vez que essa impossibilidade do social acarreta uma permanente disputa discursiva e hegemônica. Segundo Laclau, “o social só existe como uma tentativa vã de instituir esse objeto impossível: a sociedade. A utopia é a essência de qualquer comunicação e prática social” ( 1990LACLAU, Ernesto. 1990. New reflections on the revolution of our time. London: Verso. , p. 92). O real, de Lacan, traz à tona a amplitude em termos teóricos dos escritos dos autores, em particular a aproximação das categorias de Laclau já inseridas nas obras da psicanálise lacaniana, como falha, sutura, identidade, ponto nodal, entre outras. 13 13 Lacan já está presente na obra de 1985, em conjunto com Mouffe, como parte do que Sosa ( 2011 ) chama de matriz de leitura althusseriana de Lacan, a qual foi absorvida por Laclau. Embora a teoria lacaniana não ofereça respostas definitivas sobre o que é a sociedade, ela tem o papel de dizer o que não é, tornando-se assim uma peça importante, sobretudo, no pensamento de Laclau e na teoria social em geral, como observado por Yannis Stavrakakis ( 1999STAVRAKAKIS, Yannis. 1999. Lacan and the Political. London: Routledge. ).

É relevante notar que, embora Laclau se aproxime do pensamento de Lacan, isso não significa que a teoria lacaniana seja seu principal referencial teórico, ainda que esteja entre os mais influentes. A noção de ponto nodal 14 14 Um ponto nodal, no sentido lacaniano, opera como um “significante privilegiado que fixa o significado de outros significantes nessa cadeia de significação” (Laclau, 1990 , p. 152). é um exemplo marcante dessa aproximação, já presente em HES ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ) e reafirmada em NR ( 1990LACLAU, Ernesto. 1990. New reflections on the revolution of our time. London: Verso. ) e Emancipation(s) ( 1996aLACLAU, Ernesto. 1996a. Emancipation(s). London: Verso. ). Nessas obras, a influência lacaniana se torna mais evidente. Alguns autores atribuem a mudança na importância dada ao psicanalista à crítica de Žižek, defendendo que tal crítica levou a uma redefinição significativa de algumas categorias, especialmente na ideia de posições dos sujeitos e na compreensão do sujeito como falta (Glynos e Stavrakakis, 2003GLYNOS, Jason; STAVRAKAKIS, Yannis. 2004. Encounters of the real kind: sussing out the limits of Laclau’s embrace of Lacan. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (org.). Laclau: a critical reader. London: Routledge. ; Howarth, 2015HOWARTH, David. 2015. Ernesto Laclau: post-Marxism, populism and critique. London: Routledge. ). Laclau ( 1990LACLAU, Ernesto. 1990. New reflections on the revolution of our time. London: Verso. ) adota a concepção do sujeito como falta, influenciado por Lacan. Ele amplia a noção de contingência tanto para os sujeitos envolvidos nos projetos hegemônicos quanto para as estruturas sociais. Essas últimas são consideradas entidades “indecidíveis”, sempre implicando uma dimensão constitutiva externa que, ao mesmo tempo, ameaça sua própria existência.

A relação entre Laclau e Foucault pode ser dividida em dois períodos distintos, os quais refletem as abordagens metodológicas de Foucault. O primeiro período é caracterizado pelo método arqueológico, como observado em sua obra A arqueologia do saber (1969). Já o segundo período é delineado no ensaio Nietzsche, a genealogia e a história (1971), evidenciando uma nova abordagem genealógica. Em suma, no período arqueológico, Foucault estava preocupado em apresentar um método de investigação que visava compreender como determinados saberes se organizavam (Soage, 2006SOAGE, Ana. 2006. La teoría del discurso de la Escuela de Essex en su contexto teórico. Círculo de Lingüística Aplicada a la Comunicación, v. 25, pp. 45-61. ; Taylor, 2018TAYLOR, Dianna. 2018. Michel Foucault: conceitos fundamentais. Tradução de Fábio Creder. Petrópolis: Vozes. ). Nesse período, Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ) adotam uma posição distinta do filósofo francês ao afirmarem que as relações sociais são fenômenos linguísticos e que uma estrutura discursiva é uma prática articulatória que constitui e organiza as relações sociais, em vez de ser uma entidade cognitiva (Stäheli, 2004STÄHELI, Urs. 2004. Competing Figures of The Limit: dispersion, transgression, antagonism and indifference. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver. Laclau: a critical reader. London: Routledge. ). 15 15 Paula Biglieri e Gloria Perelló ( 2012 ) defendem que o deslocamento é considerado um elemento extradiscursivo porque vai além do âmbito do discurso em si. Enquanto o discurso é uma forma de construção de significado por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos, o deslocamento refere-se a processos e condições que ocorrem fora do discurso e que afetam sua formação e interpretação Howarth ( 2000HOWARTH, David. 2000. Discourse. Buckingham: Open University Press. 2000. ) destaca uma segunda divergência significativa entre Laclau, Mouffe e Foucault, relacionada ao modelo linguístico de Foucault, o qual é considerado fechado. 16 16 De acordo com a perspectiva de Foucault, o discurso é considerado um tipo de objeto que é construído por meio do ato de enunciação, ou seja, da produção de discursos por indivíduos em contextos específicos. Esses discursos são vistos como distintos de outros tipos de objetos, como objetos materiais ou estruturas sociais, e são entendidos como produtos das práticas discursivas de uma sociedade em um determinado momento histórico (Rasiński, 2011 ). Enquanto Foucault destaca a presença de sistemas não discursivos, observando que “[…] a arqueologia também revela relações entre formações discursivas e domínios não discursivos (como instituições, eventos políticos, práticas e processos econômicos)” ( 2008FOUCAULT, Michel. 2008. A Arqueologia do Saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária. , p. 182), Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. , pp. 180-182) questionam “a distinção entre práticas discursivas e não discursivas”, ao citar Wittgenstein para sugerir que “os elementos discursivos não são apenas justapostos, mas constituem um sistema diferencial e estruturado de posições – isto é, um discurso”. 17 17 Nick Hardy argumenta que “o extradiscursivo, como um conceito explicitamente utilizado, mas não totalmente teorizado, na obra de Foucault, é muito mais proeminente em sua fase”arqueológica” anterior do que em seus escritos posteriores. Embora sua transição para a “genealogia” tenha sido uma tentativa explícita de criar um engajamento mais dinâmico com o extra-discursivo” ( 2011 , pp. 68-69). Enquanto a arqueologia pressupunha a unidade de um campo discursivo que não podia apelar para qualquer princípio mais profundo de unificação, “a genealogia tentava localizar os elementos que entram em uma configuração discursiva dentro do quadro de uma história descontínua cujos elementos não tinham nenhum princípio de unidade teleológica” (Howarth, 2015HOWARTH, David. 2015. Ernesto Laclau: post-Marxism, populism and critique. London: Routledge. , p. 29).

Derrida, por sua vez, desempenhou papel singular nos escritos de Laclau e Mouffe e figura entre as principais influências na elaboração do conceito de hegemonia. Paula Biglieri e Gustavo Guille ( 2017 BIGLIERI, Paula; GUILLE, Gustavo. 2017. The Deconstructivist Laclau. The Undecidable Unconscious: A Journal of Deconstruction and Psychoanalysis, v. 4, pp. 1-26. DOI: https://doi.org/10.1353/ujd.2017.0000 .
https://doi.org/10.1353/ujd.2017.0000...
, p. 21) argumentam que a noção de desconstrução de Derrida foi fundamental para que os autores pudessem estabelecer distinções discursivas e teóricas acerca do marxismo, afirmando que a dimensão de Derrida no trabalho de Laclau operou na “desconstrução do marxismo e do populismo”. Particularmente, Laclau utiliza a concepção de Derrida sobre a indecidibilidade 18 18 A expressão undecidable denota uma situação em que não existe qualquer razão objetiva ou prioridade ontológica que possa determinar, para além de um puro ato de decisão, o sentido da ação em toda a sua singularidade e arbitrariedade. para teorizar o conceito de hegemonia. Uma abordagem hegemônica da política e da ideologia concentra a atenção na lógica da articulação, enfatizando a maneira como as práticas sociais formam sistematicamente as identidades de sujeitos e os objetos ao conectar uma série de elementos significativos. Isso fornece ferramentas teóricas e metodológicas para romper com pressupostos topográficos e essencialistas sobre a formação e dissolução de identidades. A estratégia argumentativa geral de Laclau baseia-se em um envolvimento com a desconstrução de Derrida. 19 19 Laclau também identifica grande potencial no pragmatismo enquanto ferramenta de compreensão do cenário da política da segunda metade do século XX (Laclau, 1996b ). Laclau, que propôs, segundo Mouffe ( 1996MOUFFE, Chantal. 1996. Deconstruction and Pragmatism: Simon Critchley, Jacques Derrida, Ernesto Laclau and Richard Rorty. London: Routledge. ), vincular a desconstrução à lógica da hegemonia. A autora ( 1996MOUFFE, Chantal. 1996. Deconstruction and Pragmatism: Simon Critchley, Jacques Derrida, Ernesto Laclau and Richard Rorty. London: Routledge. ) defende que as principais dimensões da desconstrução são a indecibilidade e a decisão e que ambas ajudam a compreender os processos políticos e sociais. Para Laclau ( 1996bLACLAU, Ernesto. 1996b. Deconstruction, Pragmatism, Hegemony. In: CRITCHLEY, Simon; MOUFFE, Chantal (ed.). Deconstruction and Pragmatism. London: Routledge. ), indecidibilidade e decisão são elementos fundamentais que contribuem para a dinâmica da sociedade política. Ele argumenta que a indecidibilidade, ou seja, a falta de uma clara resolução ou determinação em certos aspectos sociais, é uma característica intrínseca à estrutura da sociedade. Essa indecidibilidade cria uma tensão que é essencial para a existência e funcionamento de uma sociedade política. No entanto, a desconstrução, que revela essa indecidibilidade, não é suficiente por si só para explicar totalmente os processos políticos. Ele argumenta que é necessária uma teoria da hegemonia para compreender completamente como essa indecidibilidade se traduz em decisões políticas concretas (Laclau, 1996bLACLAU, Ernesto. 1996b. Deconstruction, Pragmatism, Hegemony. In: CRITCHLEY, Simon; MOUFFE, Chantal (ed.). Deconstruction and Pragmatism. London: Routledge. ).

A hegemonia, nesse contexto, refere-se à capacidade de um grupo dominante impor sua visão de mundo e seus interesses sobre outros grupos na sociedade, tornar um conteúdo particular, universal. Portanto, Laclau sugere que apenas uma teoria da hegemonia pode ajudar a elucidar a relação entre a indecidibilidade estrutural subjacente à sociedade e as decisões políticas tomadas dentro dessa estrutura. Em outras palavras, o autor está argumentando que tanto a desconstrução quanto a hegemonia são elementos cruciais para entender como as relações sociais são formadas e mantidas (Berns, 1996 BERNS, Egidius. 1996. Decision, hegemony and law: Derrida and Laclau. Philosophy & Social Criticism, v. 22, n. 4, pp. 71-80. DOI: https://doi.org/10.1177/019145379602200404 .
https://doi.org/10.1177/0191453796022004...
). A desconstrução, ao revelar a indecisão estrutural nas relações sociais, torna possível entender que muitas dessas relações não são determinadas por lógicas necessárias, mas sim por escolhas. Por outro lado, a hegemonia, que é a capacidade de uma ideia ou grupo dominante influenciar e moldar a sociedade, também é necessária para entender como essas decisões são tomadas e implementadas em um contexto social. 20 20 E aqui a ideia de sociedade deve ser afastada do princpio da totalidade saturada, ou seja, conforme afirma Joanildo A. Burity ( 1997 , p. 14): “não existe”sociedade” no sentido de um único princípio subjacente fixando e constituindo todo o campo das diferenças. É no terreno da tensão insolúvel entre interioridade e exterioridade que o social se constitui”. Assim, a desconstrução mostra a indecisão subjacente nas relações sociais, enquanto a hegemonia fornece o quadro teórico para entender como essas relações são efetivamente estruturadas e mantidas (Laclau, 1996bLACLAU, Ernesto. 1996b. Deconstruction, Pragmatism, Hegemony. In: CRITCHLEY, Simon; MOUFFE, Chantal (ed.). Deconstruction and Pragmatism. London: Routledge. ).

Enquanto a desconstrução revela a indecisão estrutural nas relações sociais, a hegemonia fornece o quadro teórico para entender como essas relações são efetivamente estruturadas e mantidas. Assim, a desconstrução e a hegemonia são vistas como complementares na análise das dinâmicas políticas e sociais, fornecendo ferramentas teóricas para romper com pressupostos essencialistas sobre a formação de identidades e relações sociais.

Antagonismo: a impossibilidade do Eu

Na obra HES , de 1985, Laclau e Mouffe atribuem um novo significado ao conceito tradicional de antagonismo no campo social e político, argumentando que o Outro é precisamente o que eles entendem como antagonismo. Tal como expresso pelos autores “não há identidade social plenamente protegida de um exterior discursivo que a deforme e impeça que ela se torne plenamente suturada” ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. , p. 185). Na genealogia do conceito, eles reconhecem que a ideia de antagonismo não está inserida na tradição racionalista das filosofias cânones. Ao contrário, o antagonismo opera justamente nos limites da objetividade social. O antagonismo, nesse sentido, sugere a falta da completude identitária. Essa relação não pode surgir da completude, em vez disso, nasce da impossibilidade do Eu em relação à existência do Outro. Antagonismo, portanto, é a negatividade da identidade é o que o Eu não é, o que se nega: “ser uma coisa é sempre não ser outra (ser A implica não ser B)” (Laclau e Mouffe, 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. , p. 206).

A partir dessa compreensão, o antagonismo não é entendido como um simples conflito entre sujeitos sociais com identidades e interesses totalmente formados. Na verdade, ele ocorre devido à impossibilidade de uma constituição plena do Eu. Conforme Howarth ( 2000HOWARTH, David. 2000. Discourse. Buckingham: Open University Press. 2000. ) destaca, o antagonismo é o obstáculo responsável pela incapacidade de estabelecer uma identidade completa, ou seja, é ele que causa essa falha constitutiva na identidade. Quando uma identidade bloqueia a outra, essa falha é uma experiência mútua, uma experiência antagonista. Portanto, central na construção das identidades é o entendimento acerca das forças antagonistas e da fricção mútua que o embate entre identidades forja. Essas falhas, de acordo com Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ), não podem ser explicadas por nenhuma lógica positivista ou essencialista da sociedade. O antagonismo revela a precariedade e contingência de qualquer identidade, uma vez que ela está o tempo todo ameaçada por um discurso externo (ameaça que possibilita a sua existência). A categoria antagonismo se mostra crucial para a compreensão das disputas hegemônicas, seja no âmbito doméstico, seja no âmbito externo, uma vez que ele revela limites das identidades e das fronteiras políticas, sendo contestadas por forças externas detentoras do discurso predominante, o limite daquela ordem hegemônica (Howarth, 2000HOWARTH, David. 2000. Discourse. Buckingham: Open University Press. 2000. ).

Com a noção de antagonismo elaborada por Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ), eles se distanciam da concepção tradicional de contradição, a qual o social tem um sentido mais ou menos predeterminado dos sujeitos 21 21 João Alberto Wohlfart ( 2018 ) faz uma contribuição relevante ao reconstruir a noção de contradição hegeliana e o seu papel na história universal. . Nesse sentido, a concepção da classe trabalhadora como uma identidade fixa e pré-concebida não é adequada, uma vez que essa visão ignora a sua natureza dinâmica e moldável, que é formada por meio de uma disputa política contingencial. Antagonismo seria o contrário da premissa de contradição, tendo como resultado uma dificuldade ainda maior de solução prévia. A abordagem de Laclau e Mouffe levanta duas questões cruciais em relação à noção de antagonismo: em primeiro lugar, a identidade dos atores é concebida como uma construção negativa, emergindo da oposição e do conflito; em segundo lugar, e relacionado à primeira questão, destaca-se que as identidades não são completamente cristalizadas. A característica central dessa identidade reside em sua precariedade, sendo formada de maneira contingencial dentro de um contexto específico de possibilidades. Segundo os teóricos Laclau e Mouffe, “todos nós participamos de uma série de sistemas de crenças mutuamente contraditórios e, no entanto, nenhum antagonismo emerge destas contradições. A contradição, portanto, não necessariamente implica uma relação antagonística” ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. , p. 201). No caso do antagonismo, diferentemente da oposição real ou a contradição, nos deparamos com a situação cuja presença do Outro é um bloqueio: o antagonismo, longe de ser uma relação objetiva, é uma relação que se mostra os limites de toda objetividade, o limite do social (Laclau e Mouffe, 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ). Os autores em questão argumentam que as disputas políticas surgem por meio de conflitos discursivos, disputas de identidade em processo de construção e lutas contingenciais, em vez de serem baseadas em identidades rígidas. Na impossibilidade de alcançar uma identidade plenamente coesa e consolidada, assim como seus respectivos interesses, surge a construção do inimigo – aquele considerado responsável por essa falha. Essa afirmação, fundamentada no conceito de antagonismo, lança dúvidas sobre a existência de um inimigo predefinido. Essa questão torna-se crucial para orientar Laclau, a partir da década de 1990, na incorporação da noção de deslocamento, como será discutido na próxima seção.

A categoria antagonismo revela as fronteiras políticas de uma construção social, o exato momento em que a identidade não pode mais ser estabilizada, sendo, portanto, contestada por forças que se situam no limite daquela ordem: antagonismo como a impossibilidade do Eu. A partir dessa perspectiva, Laclau e Mouffe avançam na compreensão de como as identidades podem compartilhar interesses comuns ao mesmo tempo em que se diferenciam de um inimigo externo. É a negatividade inerente à identidade que possibilita a formação de uma hegemonia, conforme mencionado anteriormente. Portanto, o antagonismo é entendido como “o limite de sentido que o sistema discursivo poderia alcançar tendo em vista a presença do seu corte antagônico […]” (Mendonça, 2012 MENDONÇA, Daniel. 2012. Antagonismo como identificação política. Revista de Ciência Política, n. 9, pp. 205-228. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n9/08.pdf . Acesso em: 20 mar. 2024.
http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n9/08.pd...
, p. 211).

HES suscitou uma série de questionamentos, em que um dos mais significativos foi apresentado pelo filósofo Slavoj Žižek ( 2000ŽIŽEK, Slavoj. 2000. Más allá del análisis del discurso. In: LACLAU, Ernesto. Nuevas Reflexiones Sobre la Revolución de Nuestro Tiempo. 2. ed. Buenos Aires: Nueva Visión. ). 22 22 A crítica original de Žižek está na obra NR de 1990. A versão de 2000 foi traduzida para o espanhol. Žižek fundamentalmente critica a omissão da ideia de “classe social” na obra HES ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ) e o conceito de antagonismo dos autores. Enquanto a luta de classes é considerada apenas uma entre muitas lutas possíveis, com prioridade dada às lutas identitárias, Žižek ( 2000ŽIŽEK, Slavoj. 2000. Más allá del análisis del discurso. In: LACLAU, Ernesto. Nuevas Reflexiones Sobre la Revolución de Nuestro Tiempo. 2. ed. Buenos Aires: Nueva Visión. ) argumenta que a pluralidade dessas lutas obscurece as injustiças do capitalismo e impede mudanças no sistema. Além da crítica acerca do capitalismo, Žižek ( 2000ŽIŽEK, Slavoj. 2000. Más allá del análisis del discurso. In: LACLAU, Ernesto. Nuevas Reflexiones Sobre la Revolución de Nuestro Tiempo. 2. ed. Buenos Aires: Nueva Visión. ) questiona igualmente a centralidade da ideia de antagonismo, argumentando que essa concepção já estava presente na obra de Lacan, mas com outra roupagem: o real lacaniano. Para Žižek, “devemos então distinguir a experiência do antagonismo em sua forma radical, como um limite do social, como a impossibilidade em torno da qual o campo social é estruturado, do antagonismo como relação entre posições sujeitas ao antagonismo” em termos lacanianos, “devemos distinguir o antagonismo como real da realidade social da luta antagonística” ( 2000ŽIŽEK, Slavoj. 2000. Más allá del análisis del discurso. In: LACLAU, Ernesto. Nuevas Reflexiones Sobre la Revolución de Nuestro Tiempo. 2. ed. Buenos Aires: Nueva Visión. , p. 253).

Para Žižek ( 2000ŽIŽEK, Slavoj. 2000. Más allá del análisis del discurso. In: LACLAU, Ernesto. Nuevas Reflexiones Sobre la Revolución de Nuestro Tiempo. 2. ed. Buenos Aires: Nueva Visión. ), o impedimento do Eu para alcançar sua plenitude em termos de identidade não decorre do inimigo externo, mas sim da constatação de que cada identidade já está bloqueada, já está marcada por uma impossibilidade. O antagonismo, portanto, tem sua importância minimizada, pois a falta constitutiva independe do Outro, do antagonismo externo. Žižek ( 2000ŽIŽEK, Slavoj. 2000. Más allá del análisis del discurso. In: LACLAU, Ernesto. Nuevas Reflexiones Sobre la Revolución de Nuestro Tiempo. 2. ed. Buenos Aires: Nueva Visión. ) recorre a Sigmund Freud para argumentar que existe no sujeito um impedimento radical e constitutivo, um autoimpedimento do instinto. Ao vencer o inimigo externo antagônico, experimenta-se o antagonismo na sua versão mais radical, e completa, como auto-obstáculo, ou seja, o momento da vitória é também o momento da maior perda. Segundo Howarth, “o sujeito é inerentemente e ontologicamente dividido, de modo que os antagonismos são uma projeção dessa divisão interna sobre um outro externo” ( 2004HOWARTH, David. 2004. Hegemony, Political Subjectivity, and Radical Democracy. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (org.). Laclau: A Critical Reader. London: Routledge. , p. 260).

A interpretação de Lacan a respeito do sujeito apresentada por Žižek ( 2000ŽIŽEK, Slavoj. 2000. Más allá del análisis del discurso. In: LACLAU, Ernesto. Nuevas Reflexiones Sobre la Revolución de Nuestro Tiempo. 2. ed. Buenos Aires: Nueva Visión. ) pode ser compreendida como uma relação pura do antagonismo, não o antagonismo/Outro, mas o autobloqueio, um limite que impede forjar a identidade plena, o sujeito nessa ótica é seu próprio limite: “o sujeito é o correlato do seu próprio limite, o elemento que não pode ser subjetivado; ele é o nome do vazio que não pode ser preenchido pela subjetivação: o sujeito é o ponto de falha da subjetivação” (Žižek, 2000ŽIŽEK, Slavoj. 2000. Más allá del análisis del discurso. In: LACLAU, Ernesto. Nuevas Reflexiones Sobre la Revolución de Nuestro Tiempo. 2. ed. Buenos Aires: Nueva Visión. , p. 174). Nesse contexto, Žižek ( 2000ŽIŽEK, Slavoj. 2000. Más allá del análisis del discurso. In: LACLAU, Ernesto. Nuevas Reflexiones Sobre la Revolución de Nuestro Tiempo. 2. ed. Buenos Aires: Nueva Visión. ) apresenta uma ideia dupla de antagonismo: por um lado, o antagonismo que bloqueia qualquer identidade, em consonância com o Outro exterior de Laclau e Mouffe; por outro lado, a externalização da impossibilidade intrínseca e imanente do Eu, extraída de uma perspectiva lacaniana.

Laclau ( 1995LACLAU, Ernesto. 1995. Discourse. In: GOODIN, Robert; PETTIT, Philip; POGGE, Thomas (ed.). A Companion to Contemporary Political Philosophy. Oxford: Blackwell Publishers. ) argumenta que Žižek empreendeu uma significativa tentativa de estender a teoria do discurso para o domínio da análise política, por meio de uma abordagem que combina “a psicanálise lacaniana, a filosofia hegeliana e algumas tendências da filosofia analítica, especialmente o anti-descritivismo de Saul Kripke”. O cerne da abordagem de Žižek reside em sua tentativa de reintroduzir a categoria do sujeito, porém, desprovida de qualquer conotação essencialista. Seu “sujeito não é o cogito substancial da tradição filosófica da modernidade, mas também não é a dispersão das posições de sujeito que o estruturalismo havia postulado” ( 1995LACLAU, Ernesto. 1995. Discourse. In: GOODIN, Robert; PETTIT, Philip; POGGE, Thomas (ed.). A Companion to Contemporary Political Philosophy. Oxford: Blackwell Publishers. , p. 546). O sujeito é a falta, o vazio, a tentativa vã de preenchimento. Žižek ( 2000ŽIŽEK, Slavoj. 2000. Más allá del análisis del discurso. In: LACLAU, Ernesto. Nuevas Reflexiones Sobre la Revolución de Nuestro Tiempo. 2. ed. Buenos Aires: Nueva Visión. ) evidencia a complexidade inerente a todo processo de identificação no sentido psicanalítico, buscando assim elucidar a formação de identidades políticas a partir desse entendimento.

Apesar da importância das interações intelectuais de Laclau com diversos pensadores, em algumas ocasiões não foram marcadas por relações amistosas e construtivas em termos intelectuais. É relevante destacar as duras críticas direcionadas a Žižek pela sua “falta de respeito agonístico nas trocas” com Laclau. Howarth destaca os “diversos ataques de Norman Geras ao livro Hegemonia e Estratégia Socialista, ou nas reações cada vez mais hostis de Slavoj Žižek a alguns aspectos do seu trabalho” ( 2015HOWARTH, David. 2015. Ernesto Laclau: post-Marxism, populism and critique. London: Routledge. , pp. 270-271). Em resposta a Howarth, Laclau enfatizou a importância das muitas expressões de apreço intelectual de colegas de muitos espectros diferentes: “e me sinto parte de uma enorme comunidade política e acadêmica que, com muitas nuances e diferenças, está trabalhando junta na luta pelo progresso social e pela emancipação política”. Robert Miklitsch oferece uma crítica detalhada ao afirmar que “Žižek interpreta de forma radicalmente equivocada a verdadeira lacuna no cerne do projeto de Laclau e Mouffe, ameaçando assim aprofundar os problemas já significativos que acompanham o referido projeto” ( 1995 MIKLITSCH, Robert. 1995. The Rhetoric of Post-Marxism: Discourse and Institutionality in Laclau and Mouffe, Resnick and Wolff. Social Text, n. 45, pp. 167-196. DOI: https://doi.org/10.2307/466680 .
https://doi.org/10.2307/466680...
, p. 187). Seguindo essa linha de discordância, Urs Stäheli também contribui com uma perspectiva valiosa ao destacar a importância de esclarecer as condições históricas que possibilitam a articulação antagônica. Ele salienta que, “uma vez que os antagonismos políticos não são naturais, a própria construção do antagonismo se torna o local potencial do político” ( 2004STÄHELI, Urs. 2004. Competing Figures of The Limit: dispersion, transgression, antagonism and indifference. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver. Laclau: a critical reader. London: Routledge. , p. 239). Essa abordagem amplia a compreensão da análise do discurso político, contextualizando-a dentro de um quadro teórico mais abrangente. 23 23 É importante notar que esse debate excede os limites deste artigo e merece uma investigação mais aprofundada em futuras pesquisas acadêmicas.

Essas interações contingentes não apenas revelam as complexidades da abordagem de Laclau, mas também ressaltam sua relevância e impacto na teoria social. Em consonância com essas trocas intelectuais, a obra On Populist Reason ( 2005LACLAU, Ernesto. 2005. On Populist Reason. London: Verso. ) reitera sua abordagem teórica ao explorar a noção de antagonismo e sua relação com o populismo. No livro, Laclau enfatiza a importância do antagonismo ao definir o populismo como a formação de uma fronteira interna antagônica, separando o povo do poder. Essa definição estabelece os parâmetros para compreender o populismo dentro de seu quadro teórico: “o populismo pode ser definido a partir da formação de uma fronteira interna antagônica, ou seja, uma separação entre o povo e o poder” (Laclau, 2005LACLAU, Ernesto. 2005. On Populist Reason. London: Verso. , p. 99).

Deslocamento e desconstrução: o momento de ruptura

No livro HES ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ), Laclau e Mouffe apresentam a formulação inicial do conceito de hegemonia. Posteriormente, em NR ( 1990LACLAU, Ernesto. 1990. New reflections on the revolution of our time. London: Verso. ), o autor reformulou essas dimensões básicas, estreitando sua relação com a categoria de deslocamento (Laclau, 1996bLACLAU, Ernesto. 1996b. Deconstruction, Pragmatism, Hegemony. In: CRITCHLEY, Simon; MOUFFE, Chantal (ed.). Deconstruction and Pragmatism. London: Routledge. ). Em NR, Laclau retoma a ideia de deslocamento e retira o status privilegiado de antagonismo, cuja característica principal da identidade é a relação Eu/Outro. Laclau ( 1990LACLAU, Ernesto. 1990. New reflections on the revolution of our time. London: Verso. ) substitui a noção de posição do sujeito pela ideia do sujeito como falta, influenciado pela psicanálise lacaniana. O conceito de deslocamento, entendido como uma condição que questiona a identidade, gera efeitos contraditórios; ou seja, a ameaça é fundamental para a constituição da identidade política. Em outras palavras, o deslocamento ocorre quando um processo ou sistema político atinge seus limites de significado, resultando em uma ruptura e confronto com o real. Assim, o deslocamento desafia e revela as limitações da estrutura política (Mendonça, 2014 MENDONÇA, Daniel. 2014. O limite da normatividade na teoria política de Ernesto Laclau. Lua Nova, v. 91, pp. 135-167. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ln/n91/n91a06.pdf . Acesso em: 20 mar. 2024.
http://www.scielo.br/pdf/ln/n91/n91a06.p...
).

Ao adotar cada vez mais uma abordagem centrada no deslocamento em detrimento do antagonismo, Laclau promove uma mudança de curso, embora não definitiva, influenciada tanto pelas críticas recebidas em relação à HES quanto por sua imersão nas leituras da psicanálise. Para Laclau, “cada identidade é deslocada na medida em que depende de um exterior que nega essa identidade e ao mesmo tempo fornece sua condição de possibilidade” ( 1990LACLAU, Ernesto. 1990. New reflections on the revolution of our time. London: Verso. , p. 39). Em HES, é o antagonismo político que é tanto constitutivo quanto disruptivo da identidade, enquanto em NR parece que o deslocamento assume o papel central. Uma possível resposta a esse dilema seria argumentar que a construção do antagonismo constitui, por si só, uma forma de deslocamento, embora o deslocamento não se restrinja a essa única manifestação. Deslocamento surge para Laclau como uma espécie de remédio que se aproxima do real lacaniano: “enquanto o antagonismo está do lado da ordem imaginária-simbólica da realidade, o deslocamento está do lado da ordem real. Nesta perspectiva, o deslocamento se torna o índice da dimensão negativa do real como limite do discurso” (Glynos e Stavrakakis, 2004GLYNOS, Jason; STAVRAKAKIS, Yannis. 2004. Encounters of the real kind: sussing out the limits of Laclau’s embrace of Lacan. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (org.). Laclau: a critical reader. London: Routledge. , p. 206).

A noção de deslocamento ganha destaque na abordagem de Laclau em sua aproximação com a psicanálise de Lacan. Segundo Jason Glynos e Yannis Stavrakakis ( 2004GLYNOS, Jason; STAVRAKAKIS, Yannis. 2004. Encounters of the real kind: sussing out the limits of Laclau’s embrace of Lacan. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (org.). Laclau: a critical reader. London: Routledge. ), a categoria do deslocamento do real lacaniano é considerada mais precisa que a do antagonismo. Os deslocamentos, na perspectiva psicanalítica, são vistos como traumas que ameaçam a identidade, mas também têm o potencial de gerar algo novo, ao forjarem novas identidades. De acordo com Glynos e Stavrakakis, “a emergência desse conceito de deslocamento real como central para o político’ é um dos mais importantes resultados do diálogo de Laclau com a psicanálise, ligando diretamente seu argumento sobre a impossibilidade da sociedade à irredutibilidade do real no discurso lacaniano” ( 2004GLYNOS, Jason; STAVRAKAKIS, Yannis. 2004. Encounters of the real kind: sussing out the limits of Laclau’s embrace of Lacan. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (org.). Laclau: a critical reader. London: Routledge. , p. 324). O deslocamento é, senão, o momento da impossibilidade da significação. A lógica discursiva que fixa sentidos parciais e depende de uma prática articulatória difere do momento do deslocamento. Como sugere Mendonça, é justamente o momento em que a estrutura não consegue significar algo novo, nesse sentido, deslocamento é o limite do discurso, o “encontro com o real” ( 2014 MENDONÇA, Daniel. 2014. O limite da normatividade na teoria política de Ernesto Laclau. Lua Nova, v. 91, pp. 135-167. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ln/n91/n91a06.pdf . Acesso em: 20 mar. 2024.
http://www.scielo.br/pdf/ln/n91/n91a06.p...
, p. 159). Enquanto a lógica do antagonismo está associada à articulação de sentidos parciais e à luta política, o deslocamento representa um momento de impossibilidade de significação, um encontro com o real que desafia a estrutura discursiva existente. Portanto, ao enfatizar o deslocamento em favor do antagonismo, Laclau promove uma mudança de foco na compreensão da política e da identidade.

No contexto da hegemonia, a concepção de deslocamento parte do princípio de que um discurso hegemônico estável é desafiado e se desloca diante de novos eventos que ele não consegue explicar ou representar adequadamente. 24 24 Um exemplo ilustrativo desse fenômeno ocorre quando um significante inicialmente vinculado à esfera econômica é transferido para o âmbito político. Nessa situação, torna-se evidente a incapacidade de uma determinada classe capitalista em resolver questões sociais urgentes, expondo, assim, os limites de sua abordagem hegemônica. Esse processo revela a fragilidade do discurso dominante em lidar com desafios emergentes, o que muitas vezes resulta na necessidade de uma reavaliação das estruturas e relações de poder subjacentes à hegemonia estabelecida (Laclau, 1996a ). A identidade social emerge de uma passagem necessária de toda identidade construída por meio da ordem da negatividade radical. Ocorre que o deslocamento é tanto uma condição prévia quanto o resultado da construção antagônica da identidade. Se a repetição pura é impossível, sempre haverá uma nova transformação, a objetividade social também é impossível (Laclau, 1996bLACLAU, Ernesto. 1996b. Deconstruction, Pragmatism, Hegemony. In: CRITCHLEY, Simon; MOUFFE, Chantal (ed.). Deconstruction and Pragmatism. London: Routledge. ). Podemos, portanto, definir o espaço social articulado como um ato de negatividade radical (antagonismo) que pode ser ativado por meio do deslocamento, como uma impossibilidade de significação.

Glynos e Howarth ( 2007 HOWARTH, David. 2007. Reflections on Ernesto Laclau’s new reflections on the revolution of our time. Politikon, v. 19, n. 1, pp. 120-133. DOI: https://doi.org/10.1080/02589349108704963 .
https://doi.org/10.1080/0258934910870496...
) abordam a questão do deslocamento como um momento em que a identidade do indivíduo é perturbada, conforme mencionado anteriormente na tradição lacaniana. Isso ocorre devido à negatividade presente no nível social, que resulta em uma falha inerente que pode se manifestar de forma evidente nos momentos de deslocamento. A falha que está presente na constituição da identidade é, portanto, impossível de ser preenchida completamente pela negatividade. O deslocamento, no entanto, implica tanto a dimensão interna quanto externa da identidade, que estão constantemente em conflito, resultando na instabilidade do Eu. Glynos e Howarth ( 2007 HOWARTH, David. 2007. Reflections on Ernesto Laclau’s new reflections on the revolution of our time. Politikon, v. 19, n. 1, pp. 120-133. DOI: https://doi.org/10.1080/02589349108704963 .
https://doi.org/10.1080/0258934910870496...
) reforçam os aspectos mais significativos das dimensões de deslocamento: interrupção interna, infiltração e contaminação externa. A crise como deslocamento diz respeito em primeira instância: a capacidade de produção de subjetividade precisamente dentro desse universo daquilo que não se pode determinar.

A categoria deslocamento reafirma a dimensão contingencial do social, uma vez que a falta de fundamentos estáveis e a variabilidade real da significação são só parcialmente fixadas. Por isso, o campo social está o tempo todo em crise ou, como define Mouffe ( 2015MOUFFE, Chantal. 2015. Sobre o Político. Tradução de Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes. ), o conflito político é inerradicável, o conflito é inerente à vida social. Em consonância com Mouffe ( 2015MOUFFE, Chantal. 2015. Sobre o Político. Tradução de Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes. ), é possível concluir que o deslocamento representa a ausência de base, de fundamento social, e repousa tanto no sujeito quanto no todo social. Em que o social é confrontado com seu terreno ausente, o caráter essencialmente propenso a crises e contingente da significação não pode mais ser contestado. Deslocamento deve ser visto como a precondição primária para a liberdade. Isso abre possibilidades para a ação política exatamente onde os fundamentos estão abertos para novos significados. Compreender o social implica reconhecer sua natureza constantemente em fluxo, e é exatamente essa falta de bases sólidas que alimenta as disputas hegemônicas (Nabers, 2019 NABERS, Dirk. 2019. Discursive Dislocation: Toward a Poststructuralist Theory of Crisis in Global Politics. New Political Science, v. 41, n. 2, pp. 263-278. DOI: https://doi.org/10.1080/07393148.2019.1596684 .
https://doi.org/10.1080/07393148.2019.15...
). Laclau ( 1996aLACLAU, Ernesto. 1996a. Emancipation(s). London: Verso. ) emprega o conceito de deslocamento para examinar a ideia de liberdade, considerando-o uma condição preliminar para a emancipação. Dessa forma, ele sugere a viabilidade de ações políticas direcionadas à emancipação. No entanto, o autor amplia a noção de emancipação, indo além das perspectivas iluministas tradicionais, e encontra inspiração na filosofia de Derrida, especialmente em sua concepção de desconstrução.

A categoria desconstrução está presente na obra de Laclau desde HES em 1985. Naquela época, a desconstrução era concebida como a impossibilidade de uma estrutura ser unificada por um significado transcendental. Conforme aponta Lasse Thomassen, “a desconstrução fornece um argumento a favor da contingência e, portanto, da centralidade da hegemonia entendida como a articulação de elementos diferenciais ligados contingentemente num todo mais ou menos estável” ( 2006 THOMASSEN, Lasse. 2005. Antagonism, hegemony and ideology after heterogeneity. Journal of Political Ideologies, v. 10, n. 3, pp. 289-309. DOI: https://doi.org/10.1080/13569310500244313 .
https://doi.org/10.1080/1356931050024431...
, p. 291). A autora argumenta que “não há hegemonia sem contingência e desconstrução da estrutura”. A hegemonia requer a desconstrução sem a indecidibilidade estrutural radical trazida pela intervenção desconstrutiva, muitas camadas das relações sociais pareceriam essencialmente ligadas por lógicas necessárias e não haveria nada para ser hegemonizado. Por outro lado, a desconstrução também requer hegemonia, ou seja, uma teoria da decisão tomada em um terreno indecidível: “sem uma teoria da decisão, essa distância entre a indecidibilidade estrutural e a atualidade permaneceria não teorizada. Mas essa decisão só pode ser uma decisão hegemônica” (Laclau, 1996bLACLAU, Ernesto. 1996b. Deconstruction, Pragmatism, Hegemony. In: CRITCHLEY, Simon; MOUFFE, Chantal (ed.). Deconstruction and Pragmatism. London: Routledge. , p. 62). O terreno da desconstrução é o terreno de novas possibilidades, segundo Laclau ( 1996bLACLAU, Ernesto. 1996b. Deconstruction, Pragmatism, Hegemony. In: CRITCHLEY, Simon; MOUFFE, Chantal (ed.). Deconstruction and Pragmatism. London: Routledge. ), inclusive com possibilidades de intersecções relevantes entre desconstrução e deslocamento. Laclau nos instiga a pensar que a desconstrução e a hegemonia se cruzam: “pois se a desconstrução descobre o papel da decisão a partir da indecidibilidade da estrutura, a hegemonia, como teoria da decisão tomada em um terreno indecidível, requer que o caráter contingente das conexões existentes nesse terreno seja totalmente demonstrado pela desconstrução” ( 1996aLACLAU, Ernesto. 1996a. Emancipation(s). London: Verso. , p. 90).

Laclau reafirma a potência da lógica da desconstrução derridariana em sua própria obra: “meu próprio trabalho tem-se concentrado muito na desconstrução dos textos marxistas, e eu poderia, prima facie , vincular o que tenho chamado de lógica hegemônica – que silenciosamente desconstrói categorias marxistas – à lógica do espectro descrita por Derrida” (Laclau, 2015LACLAU, Ernesto. 2015. An interview with Ernesto Laclau: questions from David Howarth. In: LACLAU, Ernesto. Post-marxism, populism and critique. London: Routledge. , p. 203). O teórico social argentino ( 1996aLACLAU, Ernesto. 1996a. Emancipation(s). London: Verso. ) está propondo uma estratégia alternativa em relação aos movimentos de pensamento que simplesmente invertem os princípios fundamentais da modernidade para alcançar a pós-modernidade. Em vez de apenas inverter esses princípios, ele sugere desconstruir o terreno que torna possível essa dicotomia entre modernidade e pós-modernidade. Isso evidencia que as categorias fundamentais da modernidade não formam um bloco unificado e essencial, mas surgem de articulações contingentes. Ao reconhecer o caráter contingente dessas articulações, ampliam-se os horizontes para explorar outras possibilidades. Essa abordagem demanda uma nova perspectiva em relação à modernidade, não como uma ruptura radical, mas como uma reconfiguração dos temas e uma hegemonização sob uma perspectiva alternativa. Além disso, amplia-se o campo político, proporcionando mais espaço para a indecisão estrutural e, por conseguinte, para a tomada de decisões políticas. Nesse contexto, a desconstrução e a hegemonia surgem como dois aspectos complementares de uma mesma operação (Laclau, 1996aLACLAU, Ernesto. 1996a. Emancipation(s). London: Verso. ).

Hegemonia e discurso

Hegemonia é, antes de tudo, um movimento estratégico, uma ação política que exige a negociação entre elementos discursivos inicialmente contraditórios. Ela requer uma prática discursiva que estabelece uma articulação entre identidades dispersas. Hegemonia é uma construção constantemente contestada e não uma ordem fixa ou estável. Para Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ), hegemonia, como disputa política, supõe o caráter aberto e incompleto do social. Essa afirmação implica uma série de questões sobre o social e sobre a luta política pela significação da sociedade complexa a partir dos discursos. Por essa razão o discurso é uma categoria central nas obras dos autores em questão, tendo relevante importância para a compreensão de hegemonia.

O caráter da hegemonia se revela uma estratégia em constante movimento, uma ação política que demanda a negociação entre elementos discursivos, inicialmente contraditórios. Este conceito pressupõe uma prática discursiva que estabelece conexões entre identidades dispersas. Para Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ), a hegemonia, enquanto disputa política, reflete a natureza aberta e incompleta do social. Tal afirmação suscita diversas questões sobre o social e sobre a luta política pela construção de significados na complexa arena discursiva. Por esta razão, entre outras, o discurso se destaca como uma categoria central nas obras desses autores, desempenhando um papel relevante na compreensão da hegemonia. Um aspecto crucial a ser destacado, que impulsiona os autores e distingue a noção de hegemonia, está relacionado à sua concepção pós-estruturalista, que busca evitar o essencialismo e adota uma abordagem fundamentalmente discursiva. Em sua obra HES, Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ) adotam uma interpretação que enfatiza a centralidade da luta política e que não pressupõe sujeitos privilegiados para essa contenda. Nessa perspectiva, a hegemonia pressupõe a natureza aberta e incompleta do social e dos significados que permeiam essa arena política.

O sujeito articulador da hegemonia não é fixo, tampouco uma classe fundamental destinada a transformar a sociedade. Segundo Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ), o sujeito hegemônico deve estar exteriorizado em relação ao que ele articula. Em outras palavras, os discursos que são articulados na construção de uma hegemonia não podem ser totalmente constituídos. É crucial notar, desde o início, uma diferenciação fundamental na categoria de hegemonia explorada pelos autores. Hegemonia, nesse contexto, não se restringe ao Estado, mas é forjada no nível micro da sociedade. Nesse aspecto, as ideias de Foucault sobre o poder, que permeia toda a sociedade, são relevantes, manifestando-se por meio de formas disciplinares e micropoderes (Lynch, 2018LYNCH, A. Richard. 2018. A teoria do poder de Foucault. In: TAYLOR, Dianna. Michel Foucault: conceitos fundamentais. Tradução de Fábio Creder. Petrópolis: Vozes. ). Essa perspectiva amplia o alcance das disputas hegemônicas para além dos Estados nacionais, demonstrando que o poder e a hegemonia podem emergir em diversas relações sociais.

A hegemonia acontece quando uma determinada identidade passa a representar múltiplas identidades, o que Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ) chamam de relação de equivalência. O objetivo da hegemonia é transformar as demandas de alguns grupos sociais em demandas universais (Rasiński, 2011 RASIŃSKI, Lotar. 2011. Power, Discourse, and Subject. The Case of Laclau and Foucault. Polish Journal of Philosophy, v. 5, n. 1, p. 117-136. DOI: https://doi.org/10.5840/pjphil2011516 .
https://doi.org/10.5840/pjphil2011516...
). Na relação de equivalência, as diferenças são subsumidas e as diferenças são contingencialmente canceladas para expressar algo comum a elas: “a equivalência existe apenas no ato de subverter o caráter diferencial daqueles termos” (Laclau e Mouffe, 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. , p. 206). Como as identidades são relacionais e, portanto, não totalmente excludentes, é possível que haja uma quebra de barreiras para que determinada demanda específica seja representada por um conjunto de demandas. Hegemonia é, assim, um esforço estratégico e complexo entre “superfícies discursivas mutuamente contraditórias” (Laclau e Mouffe, 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. , p. 163).

Para a construção da hegemonia, é necessária uma prática articulatória que envolve a soma de diversas demandas de diferentes setores da sociedade, com o objetivo de resistir a uma prática política predatória. Conforme observado por Mendonça ( 2010 MENDONÇA, Daniel. 2010. Teorizando o agonismo: crítica a um modelo incompleto. Sociedade e Estado. v. 25, n. 3. pp. 479-497. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922010000300004 . Acesso em: 20 mar. 2024.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
), essa prática passa por diversas etapas até culminar no ponto de convergência entre os sujeitos. A articulação discursiva é uma prática estabelecida entre sujeitos, os quais se conectam entre si, fundindo-se através da articulação estabelecida. Seu objetivo primordial é instaurar uma relação entre elementos de forma a modificar as identidades envolvidas. A formação discursiva, portanto, não está submetida a uma lógica coerente, mas se insere na ideia foucaultiana de “regularidade em dispersão” (Laclau e Mouffe, 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ).

Se o campo da hegemonia é entendido como o campo da discursividade, uma arena onde predominam práticas articulatórias que pressupõem a natureza aberta e incompleta da sociedade, então esse campo também se revela como o campo da política. As práticas hegemônicas desempenham um papel crucial na teoria social de Laclau, ilustrando a ação política ao unir diferentes identidades e forças políticas em um projeto comum. Essas práticas têm a capacidade de estimular o surgimento de novas ordens sociais através da conexão de diversos elementos dispersos. As categorias mencionadas formam a base da teoria discursiva de Laclau e Mouffe e, mais do que isso, facilitam a articulação das lutas políticas em torno da hegemonia. Ao utilizar conceitos como antagonismo, deslocamento e desconstrução, Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ) e Laclau ( 1990LACLAU, Ernesto. 1990. New reflections on the revolution of our time. London: Verso. , 1996aLACLAU, Ernesto. 1996a. Emancipation(s). London: Verso. , 1996bLACLAU, Ernesto. 1996b. Deconstruction, Pragmatism, Hegemony. In: CRITCHLEY, Simon; MOUFFE, Chantal (ed.). Deconstruction and Pragmatism. London: Routledge. , 2005LACLAU, Ernesto. 2005. On Populist Reason. London: Verso. ) destacam a fluidez e a instabilidade inerentes às relações sociais. Nesse contexto, a hegemonia não busca estabelecer uma ordem universal fixa, mas sim representa uma luta constante em um campo de significados contingentes.

Variações da hegemonia

Os diálogos contingentes mencionados anteriormente estabelecem o contexto para a interpretação contínua associada à categoria de hegemonia. Ao longo deste artigo, examinamos a evolução do pensamento de Ernesto Laclau sobre a hegemonia, identificando quatro momentos distintos que refletem suas mudanças conceituais ao longo do tempo. A partir da década de 1970, Laclau dedicou-se ao refinamento da ideia de hegemonia, resultando em quatro momentos distintos vinculados a categorias importantes na linguagem do teórico argentino: hegemonia como classe fundamental, abandonada por Laclau na obra HES; hegemonia como antagonismo (pré-existente), um conceito ainda marcado por resquícios de essencialismo; hegemonia como deslocamento, influenciada pela psicanálise de Lacan, que redefine a centralidade do antagonismo e dá mais corpo à abordagem de Laclau na década de 1990; e, posteriormente, hegemonia como desconstrução, quando o pensamento de Laclau dialoga com Derrida.

Na fase que compreende a obra PIMT ( 1977LACLAU, Ernesto. 1977. Politics and Ideology in Marxist Theory: Capitalism, Fascism, Populism. London: NLB. ), Laclau ainda mantinha diálogos com autores marxistas do século XX e sustentava um certo essencialismo que, mais tarde, seria abandonado. Nessa obra, o autor ( 1977LACLAU, Ernesto. 1977. Politics and Ideology in Marxist Theory: Capitalism, Fascism, Populism. London: NLB. , p. 90) flertava com a ideia de que a hegemonia era constituída por blocos, como quando cita o fascismo como “uma reorganização que impõe a hegemonia de uma nova fração de classe: o grande capital monopolista”. Contudo, ele questionava a premissa de que pertencer a uma classe fundamental seria inerente ao povo. No livro HES ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ), que marca um segundo momento em seu pensamento, Laclau e Mouffe postulam que todos os elementos são contingentes e suscetíveis à negociação. É essa contingência das relações sociais que possibilita a prática articulatória. O modelo proposto por eles ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ) visa principalmente estabilizar o sistema de significados por meio de formações hegemônicas, mesmo que sejam frágeis e incompletas devido à negatividade intrínseca à identidade, tendo como ponto de partida o antagonismo. A construção do significado social implica um campo permeado por elementos antagônicos, os quais podem ser articulados através de identidades anteriormente dispersas, em um projeto político de busca pela hegemonia. O antagonismo é a fronteira e a impossibilidade do Eu. Nos anos 1990, Laclau ( 1990LACLAU, Ernesto. 1990. New reflections on the revolution of our time. London: Verso. , p. 39) afirma que o deslocamento é o momento do rompimento da ordem, eventos que não podem mais ser simbolizados por uma ordem discursiva, sendo assim contribuem peremptoriamente para o rompimento e o surgimento de uma nova hegemonia. Nas sociedades contemporâneas, caracterizadas pela complexidade, a questão do deslocamento se torna ainda mais evidente, especialmente quando se observam os processos acelerados de globalização. Deslocamento tira a centralidade do antagonismo, possibilitando o surgimento de novas hegemonias que só podem ser acompanhadas por emergentes subjetividades que se originam desse deslocamento. Laclau ( 1990LACLAU, Ernesto. 1990. New reflections on the revolution of our time. London: Verso. ) chama esses novos espaços de representação de mito, 25 25 Para Laclau ( 1990 , p. 59), o mito pode abrir “novas especificações para a luta popular no mundo, terreno real sobre o qual a regulação econômica terá que ocorrer em uma era do capitalismo desorganizado: o das comunidades supranacionais”. que têm a capacidade de preencher, ainda que de forma precária, os vazios gerados pelos deslocamentos. Laclau ( 1990LACLAU, Ernesto. 1990. New reflections on the revolution of our time. London: Verso. , p. 64) define um imaginário social como um limite que estrutura um campo de inteligibilidade. O autor apresenta exemplos desses imaginários, que vão desde a concepção positivista de progresso (como o Iluminismo) até o cristianismo do século XX. Para concluir, Laclau ( 1990LACLAU, Ernesto. 1990. New reflections on the revolution of our time. London: Verso. , p. 60) sustenta o deslocamento como “fonte de liberdade”, mas “não como liberdade de uma identidade positiva”, em vez disso, “é a liberdade de uma falha estrutural que só pode construir uma identidade através de atos de identificação”.

Em Emancipation(s) ( 1996aLACLAU, Ernesto. 1996a. Emancipation(s). London: Verso. ), Laclau elabora mais profundamente um conceito que será crucial para a noção de hegemonia: a desconstrução derridariana. No que chamo de quarto momento, a hegemonia recorre à desconstrução para descrever uma sociedade ou situação social específica como algo que está em constante processo de formação e transformação. Laclau ( 1996aLACLAU, Ernesto. 1996a. Emancipation(s). London: Verso. ) retrata essa esfera social como uma estrutura em evolução, que não pode ser completamente compreendida devido à sua natureza fluida e em constante mudança. A ideia é que essa abordagem reconhece a complexidade e a incompletude das dinâmicas sociais, destacando que essas questões não podem ser rigidamente definidas ou limitadas por fronteiras precisas. 26 26 Judith Butler ( 2000 , p. 12) aborda essa questão ao apresentar duas interpretações da incompletude: “(1) como a falha de qualquer articulação específica em descrever adequadamente a população que representa; (2) que cada sujeito é formado de maneira diferenciada, e o que é produzido como o ‘fora constitutivo’ do sujeito nunca pode ser completamente internalizado ou tornar-se imanente”. Conforme mencionado anteriormente, a desconstrução e a hegemonia são duas dimensões cruciais que se entrelaçam. Não é possível pensar em desconstrução no campo puramente teórico, segundo Laclau ( 1996aLACLAU, Ernesto. 1996a. Emancipation(s). London: Verso. ), o que está em jogo é a possibilidade de justiça no próprio campo da política. Enquanto a desconstrução desafia as estruturas estabelecidas e questiona os fundamentos das teorias políticas tradicionais, a hegemonia se concentra na articulação de significados e na busca pelo domínio político em um campo indecidível. A hegemonia requer a desconstrução: sem a indecidibilidade estrutural radical gerada pela intervenção desconstrutiva, muitos estratos de relações sociais pareceriam essencialmente ligados por lógicas necessárias, e não haveria nada a ser hegemonizado. No entanto, a desconstrução também demanda a hegemonia, isto é, uma teoria da decisão tomada em um terreno indecidível.

Laclau recupera a noção de autonomia do sujeito e “a distância entre a indecidibilidade da estrutura e a decisão” (Miller, 2003MILLER, Hillis. 2003. Taking Up a Task: Momentos of decision in Ernesto Laclau’s thought. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (org.). Laclau: a critical reader. London: Routledge. , p. 219). A desconstrução derridariana de Laclau ( 1996bLACLAU, Ernesto. 1996b. Deconstruction, Pragmatism, Hegemony. In: CRITCHLEY, Simon; MOUFFE, Chantal (ed.). Deconstruction and Pragmatism. London: Routledge. ) propõe questionar os fundamentos provenientes das teorias clássicas da política. Ao radicalizar as lógicas políticas em um contexto de luta hegemônica no terreno do indecidível, a desconstrução busca desestabilizar as bases estabelecidas. Dito isso, o terreno da desconstrução se entrelaça com o da hegemonia. As disputas discursivas em torno das formas de estabelecer o significado de termos como “democracia”, por exemplo, desempenham um papel central na explicação da semântica política do nosso mundo contemporâneo. Essa parcial fixação da relação entre o significante e o significado é o que é referido, nesses trabalhos, como hegemonia. Conforme defende Laclau ( 1995LACLAU, Ernesto. 1995. Discourse. In: GOODIN, Robert; PETTIT, Philip; POGGE, Thomas (ed.). A Companion to Contemporary Political Philosophy. Oxford: Blackwell Publishers. , p. 545) “a desconstrução mostra que as várias conexões possíveis entre os elementos da estrutura são, em termos próprios, indecidíveis”. Esse é o papel de uma força hegemônica: uma teoria das decisões tomadas em um terreno do não determinado.

Em suma, as variações na concepção de hegemonia de Laclau refletem sua incessante busca por compreender a complexidade da luta política e da dinâmica social. Desde a hegemonia como classe fundamental até a hegemonia como desconstrução, Laclau desenvolveu uma teoria sofisticada que reconhece a contingência e a fluidez das relações sociais, destacando a importância da articulação política e da busca pela hegemonia em um campo indecidível. Essas articulações conceituais oferecem perspectivas valiosas para a compreensão dos desafios enfrentados na construção de uma sociedade mais justa e democrática.

Considerações Finais

A hegemonia revela-se de extrema importância ao apresentar as diversas possibilidades de luta política que anteriormente eram concebidas apenas dentro do âmbito da macropolítica e do poder estatal, ou a partir de formações hegemônicas determinadas a priori . Nas palavras de Laclau ( 2000aLACLAU, Ernesto. 2000a. Identity and hegemony: the role of universality in the constitution of political logics’. In: BUTLER, Judith; LACLAU, Ernesto; ŽIŽEK, Slavoj. Contingency, Hegemony, Universality: Contemporary Dialogues on the Left. London: Verso. , p. 44), a hegemonia é ela mesma “o terreno em que uma relação política se constitui verdadeiramente”.

Ao longo deste artigo, exploramos a trajetória intelectual de Ernesto Laclau em relação à ideia de hegemonia, examinando as transformações e conceitos fundamentais que a moldaram. Ficou evidente que a abordagem de Laclau sobre a hegemonia não foi estática; ao contrário, suas concepções foram influenciadas por diferentes campos do conhecimento e por diálogos com importantes interlocutores. Em PIMT ( 1977LACLAU, Ernesto. 1977. Politics and Ideology in Marxist Theory: Capitalism, Fascism, Populism. London: NLB. ), Laclau participa de debates cruciais no campo do marxismo, abordando questões como capitalismo, populismo e fascismo. A produção de conceitos dentro desse debate forma a base para explicações mais concretas sobre o estado capitalista, o fascismo, a ideologia populista e a especificidade da identidade popular-democrática. Embora mantenha uma abordagem essencialista, com o repertório marxista desempenhando um papel central na formulação da hegemonia, a influência da noção gramsciana de hegemonia persiste até a década seguinte, quando Laclau e Mouffe optam por uma abordagem mais radical do conceito (Howarth, 2007 HOWARTH, David. 2007. Reflections on Ernesto Laclau’s new reflections on the revolution of our time. Politikon, v. 19, n. 1, pp. 120-133. DOI: https://doi.org/10.1080/02589349108704963 .
https://doi.org/10.1080/0258934910870496...
).

Na década seguinte, HES representou um ponto de partida crucial. Nesta obra, Laclau e Mouffe ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ) buscaram enfrentar os desafios da esquerda tradicional, incorporando contribuições do marxismo (e se afastando ao mesmo tempo), do pós-estruturalismo e da psicanálise. Essas influências foram cruciais para dar forma à noção de hegemonia, ancorada no conceito de antagonismo. Na década de 1990, Laclau reavaliou a centralidade do antagonismo em favor do conceito de deslocamento, inspirado na psicanálise lacaniana. Essa mudança de perspectiva redefiniu a compreensão da hegemonia como um processo em constante transformação, destacando sua natureza dinâmica e sua interação com elementos externos. Ao incorporar a noção de desconstrução de Derrida, Laclau fortaleceu ainda mais a relação intrínseca entre sua concepção de hegemonia e os princípios da desconstrução do autor francês.

Laclau utilizou uma série de categorias que enriqueceram sua teoria discursiva como, por exemplo, antagonismo, deslocamento e desconstrução. Essas categorias fundamentais também foram reinterpretadas ao longo das décadas, contribuindo para estabelecer parâmetros essenciais em relação à hegemonia. A concepção de hegemonia de Laclau passou por significativas variações ao longo das décadas, resultando em quatro momentos: hegemonia como classe fundamental (década de 1970), hegemonia como antagonismo (década de 1980), hegemonia como deslocamento e hegemonia como desconstrução (todas em obras escritas na década de 1990). Em 2005, Laclau retoma a noção de hegemonia como central para entender o populismo. É evidente que as obras de Ernesto Laclau estão vivas e passam por constantes processos de reinterpretação. Este artigo priorizou alguns aspectos em detrimento de outros, destacando a riqueza conceitual, teórica e prática dos escritos de Laclau. Tais escolhas implicam em renúncias, ressaltando a importância de revisitar categorias e conceitos essenciais presentes nas obras do teórico argentino.

Bibliografia

  • ALTHUSSER, Louis. 1970. Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado. Lisboa: Editorial Presença.
  • ALVES, Ana Rodrigues Cavalcanti. 2010. O conceito de hegemonia: de Gramsci a Laclau e Mouffe. Lua Nova, v. 80, pp. 71-96, 2010. Disponível em: https://bit.ly/43qGWQQ . Acesso em: 20 mar. 2024.
    » https://bit.ly/43qGWQQ
  • BERNS, Egidius. 1996. Decision, hegemony and law: Derrida and Laclau. Philosophy & Social Criticism, v. 22, n. 4, pp. 71-80. DOI: https://doi.org/10.1177/019145379602200404 .
    » https://doi.org/10.1177/019145379602200404
  • BIGLIERI, Paula; PERELLÓ, Gloria. 2012. The Names of the Real in Laclau’s Theory: Antagonism, Dislocation, and Heterogeneity. Filozofski Vestnik, v. 32, n. 2. Disponível em: https://bit.ly/3vbsUWK . Acesso em: 20 mar. 2024.
    » https://bit.ly/3vbsUWK
  • BIGLIERI, Paula; GUILLE, Gustavo. 2017. The Deconstructivist Laclau. The Undecidable Unconscious: A Journal of Deconstruction and Psychoanalysis, v. 4, pp. 1-26. DOI: https://doi.org/10.1353/ujd.2017.0000 .
    » https://doi.org/10.1353/ujd.2017.0000
  • BURITY, A. Joanildo. 1997. Desconstrução, Hegemonia e Democracia: o pós-marxismo de Ernesto Laclau. Dissertação de Mestrado em Ciência Política. Recife: UFPE. Disponível em: https://bit.ly/3TswBza . Acesso em: 20 mar. 2024.
    » https://bit.ly/3TswBza
  • BUTLER, Judith. 2000. Restaging the Universal: Hegemony and the Limits of Formalism. In: BUTLER, Judith; LACLAU, Ernesto; ŽIŽEK, Slavoj. Contingency, Hegemony, Universality: Contemporary Dialogues on the Left. London: Verso.
  • COLPANI. Gianmaria. 2022. Two Theories of Hegemony: Stuart Hall and Ernesto Laclau in Conversation. Political Theory, v. 50, n. 2, pp. 221-246. DOI: https://doi.org/10.1177/00905917211019392 .
    » https://doi.org/10.1177/00905917211019392
  • CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (ed.). 2004. Laclau: A Critical Reader. London: Routledge.
  • FOUCAULT, Michel. 1996. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola.
  • FOUCAULT, Michel. 2008. A Arqueologia do Saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
  • GLYNOS, Jason; STAVRAKAKIS, Yannis. 2004. Encounters of the real kind: sussing out the limits of Laclau’s embrace of Lacan. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (org.). Laclau: a critical reader. London: Routledge.
  • HARDY, Nick. 2011. Foucault, Genealogy, Emergence: Re-Examining The Extra-Discursive. Journal for the Theory of Social Behaviour, v. 41, pp. 68-91. DOI: https://doi.org/10.1111/j.1468-5914.2010.00446.x .
    » https://doi.org/10.1111/j.1468-5914.2010.00446.x
  • HOWARTH, David. 2000. Discourse. Buckingham: Open University Press. 2000.
  • HOWARTH, David. 2004. Hegemony, Political Subjectivity, and Radical Democracy. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (org.). Laclau: A Critical Reader. London: Routledge.
  • HOWARTH, David. 2007. Reflections on Ernesto Laclau’s new reflections on the revolution of our time. Politikon, v. 19, n. 1, pp. 120-133. DOI: https://doi.org/10.1080/02589349108704963 .
    » https://doi.org/10.1080/02589349108704963
  • HOWARTH, David. 2015. Ernesto Laclau: post-Marxism, populism and critique. London: Routledge.
  • JESSOP, Bob. 2019. Critical discourse analysis in Laclau and Mouffe’s post-Marxism. Simbiótica. Revista Eletrônica, v. 6, n. 2, pp. 8-30. DOI: https://doi.org/10.47456/simbitica.v6i2.28400 .
    » https://doi.org/10.47456/simbitica.v6i2.28400
  • JORGENSEN, Marianne; PHILLIPS, J. Louise. 2002. Laclau and Mouffe’s discourse theory. In: Discourse Analysis as Theory and Method. London: Sage. DOI: https://doi.org/10.4135/9781849208871 .
    » https://doi.org/10.4135/9781849208871
  • KUHN, Thomas.1970. The Structure of Scientific Revolutions. 2. ed. Chicago: University of Chicago Press.
  • LACAN, Jacques. 2005. O seminário, livro 10: A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • LACLAU, Ernesto. 1977. Politics and Ideology in Marxist Theory: Capitalism, Fascism, Populism. London: NLB.
  • LACLAU, Ernesto. 1990. New reflections on the revolution of our time. London: Verso.
  • LACLAU, Ernesto. 1995. Discourse. In: GOODIN, Robert; PETTIT, Philip; POGGE, Thomas (ed.). A Companion to Contemporary Political Philosophy. Oxford: Blackwell Publishers.
  • LACLAU, Ernesto. 1996a. Emancipation(s). London: Verso.
  • LACLAU, Ernesto. 1996b. Deconstruction, Pragmatism, Hegemony. In: CRITCHLEY, Simon; MOUFFE, Chantal (ed.). Deconstruction and Pragmatism. London: Routledge.
  • LACLAU, Ernesto. 2000a. Identity and hegemony: the role of universality in the constitution of political logics’. In: BUTLER, Judith; LACLAU, Ernesto; ŽIŽEK, Slavoj. Contingency, Hegemony, Universality: Contemporary Dialogues on the Left. London: Verso.
  • LACLAU, Ernesto. 2000b. La imposibilidad de la sociedad. In: LACLAU, Ernesto. Nuevas reflexiones sobre la revolución de nuestro tiempo. Buenos Aires: Nueva Visión.
  • LACLAU, Ernesto. 2005. On Populist Reason. London: Verso.
  • LACLAU, Ernesto. 2015. An interview with Ernesto Laclau: questions from David Howarth. In: LACLAU, Ernesto. Post-marxism, populism and critique. London: Routledge.
  • LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical Democratic Politics. London: Verso.
  • LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios.
  • LYNCH, A. Richard. 2018. A teoria do poder de Foucault. In: TAYLOR, Dianna. Michel Foucault: conceitos fundamentais. Tradução de Fábio Creder. Petrópolis: Vozes.
  • MARCHART, Oliver. 2006. En el nombre del pueblo La razón populista y el sujeto de lo político. Cuadernos del Cendes, v. 23, n. 62, pp. 39-60. Disponível em: https://bit.ly/3TTQ25H . Acesso em: 20 mar. 2024.
    » https://bit.ly/3TTQ25H
  • MENDONÇA, Daniel. 2010. Teorizando o agonismo: crítica a um modelo incompleto. Sociedade e Estado. v. 25, n. 3. pp. 479-497. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922010000300004 . Acesso em: 20 mar. 2024.
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69922010000300004
  • MENDONÇA, Daniel. 2012. Antagonismo como identificação política. Revista de Ciência Política, n. 9, pp. 205-228. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n9/08.pdf . Acesso em: 20 mar. 2024.
    » http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n9/08.pdf
  • MENDONÇA, Daniel. 2014. O limite da normatividade na teoria política de Ernesto Laclau. Lua Nova, v. 91, pp. 135-167. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ln/n91/n91a06.pdf . Acesso em: 20 mar. 2024.
    » http://www.scielo.br/pdf/ln/n91/n91a06.pdf
  • MIKLITSCH, Robert. 1995. The Rhetoric of Post-Marxism: Discourse and Institutionality in Laclau and Mouffe, Resnick and Wolff. Social Text, n. 45, pp. 167-196. DOI: https://doi.org/10.2307/466680 .
    » https://doi.org/10.2307/466680
  • MILLER, Hillis. 2003. Taking Up a Task: Momentos of decision in Ernesto Laclau’s thought. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver (org.). Laclau: a critical reader. London: Routledge.
  • MOUFFE, Chantal. 1979. Gramsci and Marxist Theory (RLE: Gramsci). London: Routledge.
  • MOUFFE, Chantal. 1996. Deconstruction and Pragmatism: Simon Critchley, Jacques Derrida, Ernesto Laclau and Richard Rorty. London: Routledge.
  • MOUFFE, Chantal. 2015. Sobre o Político. Tradução de Fernando Santos. São Paulo: Martins Fontes.
  • NABERS, Dirk. 2019. Discursive Dislocation: Toward a Poststructuralist Theory of Crisis in Global Politics. New Political Science, v. 41, n. 2, pp. 263-278. DOI: https://doi.org/10.1080/07393148.2019.1596684 .
    » https://doi.org/10.1080/07393148.2019.1596684
  • RASIŃSKI, Lotar. 2011. Power, Discourse, and Subject. The Case of Laclau and Foucault. Polish Journal of Philosophy, v. 5, n. 1, p. 117-136. DOI: https://doi.org/10.5840/pjphil2011516 .
    » https://doi.org/10.5840/pjphil2011516
  • SOAGE, Ana. 2006. La teoría del discurso de la Escuela de Essex en su contexto teórico. Círculo de Lingüística Aplicada a la Comunicación, v. 25, pp. 45-61.
  • SOSA, Maria. 2009. Discurso y sujetos políticos en la propuesta teórica de Ernesto Laclau: Una indagación de los aportes del psicoanálisis a la construcción de categorías para el análisis político. Maestría en Ciencia Política y Sociología. Buenos Aires: FLACSO. Disponível em: https://encr.pw/WlAau . Acesso em: abril de 2023.
    » https://encr.pw/WlAau
  • SOSA, Maria. 2011. Discurso, política y sujeto: las huellas de la problemática althusseriana en la propuesta teórica de Ernesto Laclau. In: CALETTI, Sérgio; ROMÉ, Natalia (ed.). La intervención de Althusser. Revisiones y Debates. Buenos Aires: Prometeo.
  • STÄHELI, Urs. 2004. Competing Figures of The Limit: dispersion, transgression, antagonism and indifference. In: CRITCHLEY, Simon; MARCHART, Oliver. Laclau: a critical reader. London: Routledge.
  • STAVRAKAKIS, Yannis. 1999. Lacan and the Political. London: Routledge.
  • TAYLOR, Dianna. 2018. Michel Foucault: conceitos fundamentais. Tradução de Fábio Creder. Petrópolis: Vozes.
  • THOMASSEN, Lasse. 2005. Antagonism, hegemony and ideology after heterogeneity. Journal of Political Ideologies, v. 10, n. 3, pp. 289-309. DOI: https://doi.org/10.1080/13569310500244313 .
    » https://doi.org/10.1080/13569310500244313
  • WITTGENSTEIN, Ludwig. 1994. Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Edusp.
  • WOHLFART, A, João. 2018. A contradição na Ciência da Lógica e na Filosofia da História. Revista Opinião Filosófica, [s. l.], v. 8, n. 2, pp. 136-176. Disponível em: https://opiniaofilosofica.org/index.php/opiniaofilosofica/article/view/800 . Acesso em: 20 mar. 2024.
    » https://opiniaofilosofica.org/index.php/opiniaofilosofica/article/view/800
  • ŽIŽEK, Slavoj. 2000. Más allá del análisis del discurso. In: LACLAU, Ernesto. Nuevas Reflexiones Sobre la Revolución de Nuestro Tiempo. 2. ed. Buenos Aires: Nueva Visión.
  • 1
    Meus sinceros agradecimentos aos dois revisores anônimos, cujas contribuições foram essenciais para o aprimoramento da versão final deste artigo.
  • 2
    Daqui em diante, neste texto, será usado “HES” como abreviação do título da obra publicada em português: Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical ( 1985/2015LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. 1985/2015. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática radical. São Paulo: Intermeios. ).
  • 3
    Todas as traduções das citações em língua estrangeira são de minha autoria.
  • 4
    Um exemplo notável desses encontros é o diálogo entre Laclau e Stuart Hall, no qual muitos identificam influências mútuas e contrastes que, de certa forma, também os aproximam (Colpani, 2022 COLPANI. Gianmaria. 2022. Two Theories of Hegemony: Stuart Hall and Ernesto Laclau in Conversation. Political Theory, v. 50, n. 2, pp. 221-246. DOI: https://doi.org/10.1177/00905917211019392 .
    https://doi.org/10.1177/0090591721101939...
    ).
  • 5
    Cabe destacar que as variações aqui referidas não implicam a noção de mudança de paradigma no sentido “kuhniano” (Kuhn, 1970KUHN, Thomas.1970. The Structure of Scientific Revolutions. 2. ed. Chicago: University of Chicago Press. ) da palavra. Variações indicam mais ajustes, aproximações e distanciamentos de conceitos, autores e perspectivas do que uma progressão linear ou hierárquica de ideias.
  • 6
    Todas as referências datadas de 2015 de HES se referem à edição da obra originalmente publicada em 1985.
  • 7
    Laclau e Mouffe ( 2015LACLAU, Ernesto. 2015. An interview with Ernesto Laclau: questions from David Howarth. In: LACLAU, Ernesto. Post-marxism, populism and critique. London: Routledge. ) descrevem as identidades como “contingentes” ou “construídas discursivamente” e não dadas a priori .
  • 8
    Ao longo de sua obra, Laclau dedicou-se à investigação de uma variedade de conceitos que enriqueceram sua teoria discursiva. Identidade, discurso, prática articulatória, antagonismo, deslocamento, falta e desconstrução são alguns exemplos dessas categorias que desempenharam papéis cruciais na definição dos fundamentos da hegemonia. Desenvolvidos ao longo de décadas, esses conceitos contribuíram significativamente para a compreensão e análise da dinâmica hegemônica na teoria de Laclau.
  • 9
    Mouffe ( 1979MOUFFE, Chantal. 1979. Gramsci and Marxist Theory (RLE: Gramsci). London: Routledge. ) define bloco histórico como a aliança de classes que forma a base política e social de uma hegemonia específica. É uma coalizão de grupos sociais com interesses diversos, unidos em torno de um projeto político comum liderado por uma classe dominante.
  • 10
    E aqui, destaca-se que os autores estão comprometidos com a ideia de radicalizar a democracia, oferecendo uma resposta direta à onda conservadora que “deslocou a fronteira do social” (Laclau e Mouffe, 2015LACLAU, Ernesto. 2015. An interview with Ernesto Laclau: questions from David Howarth. In: LACLAU, Ernesto. Post-marxism, populism and critique. London: Routledge. , p. 263), minando as conquistas sociais.
  • 11
    Wittgenstein ( 1994WITTGENSTEIN, Ludwig. 1994. Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução de Luiz Henrique Lopes dos Santos. São Paulo: Edusp. ) defende a visão de que a linguagem tem uma estrutura lógica que reflete a estrutura do mundo. Um dos argumentos na obra é que a função da linguagem é representar fatos e proposições, e a função da filosofia é justamente esclarecer a linguagem e ajudar a formular proposições claras.
  • 12
    Segundo Lacan ( 2005LACAN, Jacques. 2005. O seminário, livro 10: A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ), o real é entendido como algo que escapa à simbolização e à representação, sendo aquilo que não pode ser totalmente compreendido ou simbolizado pela linguagem. O real é caracterizado por sua resistência à simbolização e pela sua natureza intratável.
  • 13
    Lacan já está presente na obra de 1985, em conjunto com Mouffe, como parte do que Sosa ( 2011SOSA, Maria. 2011. Discurso, política y sujeto: las huellas de la problemática althusseriana en la propuesta teórica de Ernesto Laclau. In: CALETTI, Sérgio; ROMÉ, Natalia (ed.). La intervención de Althusser. Revisiones y Debates. Buenos Aires: Prometeo. ) chama de matriz de leitura althusseriana de Lacan, a qual foi absorvida por Laclau.
  • 14
    Um ponto nodal, no sentido lacaniano, opera como um “significante privilegiado que fixa o significado de outros significantes nessa cadeia de significação” (Laclau, 1990LACLAU, Ernesto. 1990. New reflections on the revolution of our time. London: Verso. , p. 152).
  • 15
    Paula Biglieri e Gloria Perelló ( 2012 BIGLIERI, Paula; PERELLÓ, Gloria. 2012. The Names of the Real in Laclau’s Theory: Antagonism, Dislocation, and Heterogeneity. Filozofski Vestnik, v. 32, n. 2. Disponível em: https://bit.ly/3vbsUWK . Acesso em: 20 mar. 2024.
    https://bit.ly/3vbsUWK...
    ) defendem que o deslocamento é considerado um elemento extradiscursivo porque vai além do âmbito do discurso em si. Enquanto o discurso é uma forma de construção de significado por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos, o deslocamento refere-se a processos e condições que ocorrem fora do discurso e que afetam sua formação e interpretação
  • 16
    De acordo com a perspectiva de Foucault, o discurso é considerado um tipo de objeto que é construído por meio do ato de enunciação, ou seja, da produção de discursos por indivíduos em contextos específicos. Esses discursos são vistos como distintos de outros tipos de objetos, como objetos materiais ou estruturas sociais, e são entendidos como produtos das práticas discursivas de uma sociedade em um determinado momento histórico (Rasiński, 2011 RASIŃSKI, Lotar. 2011. Power, Discourse, and Subject. The Case of Laclau and Foucault. Polish Journal of Philosophy, v. 5, n. 1, p. 117-136. DOI: https://doi.org/10.5840/pjphil2011516 .
    https://doi.org/10.5840/pjphil2011516...
    ).
  • 17
    Nick Hardy argumenta que “o extradiscursivo, como um conceito explicitamente utilizado, mas não totalmente teorizado, na obra de Foucault, é muito mais proeminente em sua fase”arqueológica” anterior do que em seus escritos posteriores. Embora sua transição para a “genealogia” tenha sido uma tentativa explícita de criar um engajamento mais dinâmico com o extra-discursivo” ( 2011 HARDY, Nick. 2011. Foucault, Genealogy, Emergence: Re-Examining The Extra-Discursive. Journal for the Theory of Social Behaviour, v. 41, pp. 68-91. DOI: https://doi.org/10.1111/j.1468-5914.2010.00446.x .
    https://doi.org/10.1111/j.1468-5914.2010...
    , pp. 68-69).
  • 18
    A expressão undecidable denota uma situação em que não existe qualquer razão objetiva ou prioridade ontológica que possa determinar, para além de um puro ato de decisão, o sentido da ação em toda a sua singularidade e arbitrariedade.
  • 19
    Laclau também identifica grande potencial no pragmatismo enquanto ferramenta de compreensão do cenário da política da segunda metade do século XX (Laclau, 1996bLACLAU, Ernesto. 1996b. Deconstruction, Pragmatism, Hegemony. In: CRITCHLEY, Simon; MOUFFE, Chantal (ed.). Deconstruction and Pragmatism. London: Routledge. ).
  • 20
    E aqui a ideia de sociedade deve ser afastada do princpio da totalidade saturada, ou seja, conforme afirma Joanildo A. Burity ( 1997 BURITY, A. Joanildo. 1997. Desconstrução, Hegemonia e Democracia: o pós-marxismo de Ernesto Laclau. Dissertação de Mestrado em Ciência Política. Recife: UFPE. Disponível em: https://bit.ly/3TswBza . Acesso em: 20 mar. 2024.
    https://bit.ly/3TswBza...
    , p. 14): “não existe”sociedade” no sentido de um único princípio subjacente fixando e constituindo todo o campo das diferenças. É no terreno da tensão insolúvel entre interioridade e exterioridade que o social se constitui”.
  • 21
    João Alberto Wohlfart ( 2018 WOHLFART, A, João. 2018. A contradição na Ciência da Lógica e na Filosofia da História. Revista Opinião Filosófica, [s. l.], v. 8, n. 2, pp. 136-176. Disponível em: https://opiniaofilosofica.org/index.php/opiniaofilosofica/article/view/800 . Acesso em: 20 mar. 2024.
    https://opiniaofilosofica.org/index.php/...
    ) faz uma contribuição relevante ao reconstruir a noção de contradição hegeliana e o seu papel na história universal.
  • 22
    A crítica original de Žižek está na obra NR de 1990. A versão de 2000 foi traduzida para o espanhol.
  • 23
    É importante notar que esse debate excede os limites deste artigo e merece uma investigação mais aprofundada em futuras pesquisas acadêmicas.
  • 24
    Um exemplo ilustrativo desse fenômeno ocorre quando um significante inicialmente vinculado à esfera econômica é transferido para o âmbito político. Nessa situação, torna-se evidente a incapacidade de uma determinada classe capitalista em resolver questões sociais urgentes, expondo, assim, os limites de sua abordagem hegemônica. Esse processo revela a fragilidade do discurso dominante em lidar com desafios emergentes, o que muitas vezes resulta na necessidade de uma reavaliação das estruturas e relações de poder subjacentes à hegemonia estabelecida (Laclau, 1996aLACLAU, Ernesto. 1996a. Emancipation(s). London: Verso. ).
  • 25
    Para Laclau ( 1990LACLAU, Ernesto. 1990. New reflections on the revolution of our time. London: Verso. , p. 59), o mito pode abrir “novas especificações para a luta popular no mundo, terreno real sobre o qual a regulação econômica terá que ocorrer em uma era do capitalismo desorganizado: o das comunidades supranacionais”.
  • 26
    Judith Butler ( 2000BUTLER, Judith. 2000. Restaging the Universal: Hegemony and the Limits of Formalism. In: BUTLER, Judith; LACLAU, Ernesto; ŽIŽEK, Slavoj. Contingency, Hegemony, Universality: Contemporary Dialogues on the Left. London: Verso. , p. 12) aborda essa questão ao apresentar duas interpretações da incompletude: “(1) como a falha de qualquer articulação específica em descrever adequadamente a população que representa; (2) que cada sujeito é formado de maneira diferenciada, e o que é produzido como o ‘fora constitutivo’ do sujeito nunca pode ser completamente internalizado ou tornar-se imanente”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2023
  • Aceito
    01 Fev 2024
CEDEC Centro de Estudos de Cultura Contemporânea - CEDEC, Rua Riachuelo, 217 - conjunto 42 - 4°. Andar - Sé, 01007-000 São Paulo, SP - Brasil, Telefones: (55 11) 3871.2966 - Ramal 22 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: luanova@cedec.org.br