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Irene Ravache

PERFIL

Irene Ravache

Com a mesma força com que nos palcos vive uma história de amor, cai de cabeça numa campanha política. Nas manifestações pelas Diretas-Já esteve sempre presente. Para ela, o artista sabe colocar emoção na política. E é o que não falta a uma mulher que sempre vai em busca da sensação de estar amando. Marília Garcia, Edison Nunes e Hamilton Cardoso foram ouvir Irene Ravache.

MARÍLIA — A peça que você está encenando agora, De braços abertos, de Maria Adelaide do Amaral, tem como subtítulo Uma história de amor. Por que a escolha dessa história?

IRENE — Eu estou cansada de ver história de amor com final infeliz. Eu não acredito em história de amor com final infeliz. Acho que tem que terminar feliz sempre. Quando não acontece, é porque tem uma coisa errada e as pessoas em questão não levaram até o fim uma discussão a respeito. Uma coisa que me incomoda muito, nas relações entre as pessoas, é o seguinte: o que você sente, nem sempre é aquilo que você verbaliza. E quase sempre o que você verbaliza é uma coisa diametralmente oposta àquilo que você está sentindo. Escolhi esse texto porque acho que a gente precisa falar disso.

MARÍLIA — Você se identificou com os personagens da peça?

IRENE — São gente que eu conheci, gente de minha faixa de idade. E são duas pessoas extremamente defendidas e, por isso, incapazes de manipular com o que sentem um pelo outro. Eu acho que a situação, com algumas nuances, é muito parecida a situações que todos nós já experimentamos um dia.

MARÍLIA — Esse desencontro é o destino das mulheres que uma vez tomaram consciência da situação de opressão em que viviam e foram batalhar?

Tanta dificuldade com o amor!

IRENE — Não. Não é o destino de quem foi batalhar pelo seu. É o destino da maioria dos que eu tenho visto por aqui, tão canhestros para tratar de amor, com tanta dificuldade... E é engraçado, porque a gente acha que tem determinadas coisas que solucionam esse tipo de problema. A gente acha que uma pessoa muito talentosa não teria esse problema, que uma pessoa muito realizada materialmente não teria esse problema... É uma mentira!

Uma das grandes decepções que eu tive, como ser humano, partiu de uma pessoa que é extremamente talentosa. A dificuldade de lidar com os sentimentos dele foi uma coisa... Meu Deus do céu! A gente sempre acha que o talento abona. Se a pessoa é sensível pra escrever, pra compor ou pra pintar, é porque deve ser sensível também no amor. E não é, necessariamente. Quer dizer, é sensível, mas a própria sensibilidade atrapalha, não sabe o que fazer com ela, fica torto.

MARÍLIA — Do jeito que você está dizendo, a relação homem-mulher — a maioria, pelo menos — está sempre condenada a um desencontro, no final?

IRENE — Num casamento, num acasalamento, seja qual for o nome que a gente dê — e isso independe se for uma relação homossexual ou heterossexual —, por mais que as pessoas estejam atentas, começa sempre a ter o papel do opressor e do oprimido, do que vai explorar a relação e do que vai usufruir e... é uma merda! Esse relacionamento amoroso é tão complicado que às vezes eu acho que não tem saída. Tem sempre uns componentes que fazem com que o relacionamento vá se esgarçando.

Eu acho a mulher muito mais interessada do que o homem. Ela é muito mais lúcida, muito mais inventiva. O homem é isso enquanto ele está no jogo da caça. Enquanto ele ainda não tem. Quando ele se apodera, eu acho que passa na cabeça dele o seguinte: "Bom, agora nós já somos — ela já é ou minha namorada ou minha amante, minha mulher, seja lá o que for — então eu não preciso de tanto esforço, eu não preciso de tanto mistério". A partir do momento que ele possui, ele perde a imaginação.

Um homem com imaginação

Hoje, se eu tivesse que escolher um homem, se eu me separasse e tivesse que começar tudo de novo, eu não ia querer um homem rico, poderoso, inteligente... eu queria um homem com um mínimo de imaginação!

MARÍLIA — Isso tem alguma relação com o personagem masculino da peça ou é uma visão mais geral?

IRENE — Eu acho que tem a ver com todos os homens. Os homens perdem o fascínio pelo jogo amoroso muito cedo. Eles querem logo um enquadramento. Eu acho gozadíssimo, por exemplo, aquele tipo de homem que tem a sua mulher, e arranja uma amante — porque o casamento estava chato. Aí ele pega e enquadra a amante, quase igual à mulher dele. Tem gente que tem duas casas funcionando direitinho, tem até filho. Quando está tudo enquadradinho, ele parte para uma terceira!

A mulher sempre vai em busca do amor, da sensação de estar amando. Porque, às vezes, ela tem mais curiosidade pela sensação do amor do que pelo próprio amor. Quando o meu casamento estava em crise, teve uma época que eu queria muito estar apaixonada. Mas eu não queria nenhum risco da paixão. Lembrando disso, tem uma frase da peça que é minha. Eu digo: "Teria sido perfeito se você partisse pra Legião Estrangeira depois daquele encontro". Porque era tudo o que eu queria. Eu queria encontrar um homem e ficar com ele uns cinco dias, depois eu queria que ele fosse pra Legião Estrangeira! Mas longe pra cacete! Porque eu queria viver o bom da paixão sem o menor compromisso, sem a menor chateação. Claro que não acontece! Não acontece mesmo! Podem desistir...

MARÍLIA — Uma coisa que a gente escuta de muitas pessoas que passaram dos trinta é "eu não tenho mais idade pra ter paixão". Como você reage diante disso?

O risco inevitável da paixão

IRENE — Eu, por exemplo. Eu acho que eu não tenho mais idade pra ter paixão. Eu adoraria. Mas é uma questão de temperamento. Paixão implica risco. Eu acho que eu sou muito medíocre. Eu sempre me imaginei uma pessoa muito corajosa. "Imagina! A hora que pintar uma paixão, eu largo tudo! Porque eu sou assim: verdadeira, eu vou atrás do amor". Mentira mesmo! Eu continuo como estou, fantasiando as paixões.

EDISON — Mas a imagem que o público tem de você é exatamente essa de...

IRENE — De que eu largaria tudo? É sim. Mas eu também tinha essa imagem idealizada de mim mesma. Para me libertar dela tive que travar uma batalha muito grande na análise. Porque, para admitir que era uma imagem falsa, eu tive que admitir uma limitação. E foi um horror! Admitir a limitação foi uma coisa de morte, de fim de linha, de não ter mais o que fazer. E eu, que achava que era uma heroína...

MARÍLIA — Isso afetou também o seu desempenho profissional?

IRENE — Afetou toda a minha vida. O limite, como eu o encarava, era uma coisa tipo aposentadoria. Hoje, eu acho que não. Hoje eu acho que o fato de eu saber dos meus limites faz até com que eu me exercite mais em outras coisas.

HAMILTON — Você incluiria a sua atuação política entre essas áreas diferentes, em que você passou a se exercitar quando descobriu os seus limites? É por isso que a sua opinião política tem sido tão requisitada ultimamente?

IRENE — A opinião de um artista, muitas vezes, não é tão inteligente, tão brilhante, até mesmo, tão adequada, quanto a de um professor ou de um especialista no assunto. Mas, quando um artista dá a sua opinião, ele faz com uma carga emocional tão grande, que a emoção se encarrega de suprir o que lhe faltou em verbo, o que lhe faltou em conhecimento. Porque emoção é uma coisa viva!

Tanto que, durante o movimento das diretas-já, eu via os políticos discursando — quase sempre eram discursos muito chatos — e a impressão que eu tinha era que eles não estavam falando para aquelas pessoas que estavam lá embaixo. Ao invés de olharem para as pessoas, eles olhavam muito para o horizonte, para o alto.

Procurando mais emoção

Aí chegava um artista e fazia um discurso que era uma bobagem mas que vinha impregnado de calor humano! E esse calor humano queria dizer: "Olha, a gente está mais ou menos junto nisso aqui. A gente também não sabe bem o que é, mas está procurando entender". Eu acho que isso vale por dez discursos de políticos. Quando nos procuram estão procurando o lado humano, um lado mais caloroso, mais emocional.

Pelo menos, todas as vezes que eu fui indagada sobre um assunto mais político eu procurei deixar esse lado fluir mais. Porque esse é o lado com que eu lido com as pessoas, com o meu público de teatro e televisão. E cada vez mais a gente está precisando de pessoas que reforcem esse lado da emoção, já que quem devia estar fazendo isso não está.

EDISON — Assim, parece que o papel dos artistas nessas manifestações foi o de suprir alguma coisa que os políticos deixaram de dar. Mas o político também não deveria ver esse lado humano?

IRENE — Mas sim! Vamos dizer até que ele não teria obrigação de vir tão carregado de emoção. Mas ele devia pelo menos falar numa linguagem mais acessível, para se mostrar mais próximo de nós. Os políticos desaprenderam muita coisa nos últimos anos.

Há, de maneira geral, uma falta de moralidade, uma falta de lideranças, que se reflete até na área da cultura, agravada ainda pela penetração maciça da televisão.

EDISON — O que precisa mudar na área da cultura?

IRENE — A primeira coisa que deveria ser feita é uma política de descentralização, porque no Brasil a cultura está centralizada no eixo Rio-São Paulo. Deveria ser obrigatório, por lei, que nas regiões brasileiras se produzissem e se exibissem espetáculos feitos com artistas e técnicos da própria região.

Como é que faz o cara que nasce com talento no Ceará? Se não vier para o Rio e para São Paulo, morre? Hoje, não lhe restam alternativas. O governo precisa ter a descentralização cultural como meta, senão, daqui a pouco, o Brasil vai virar uma grande Ipanema e a própria Ipanema vai perder todo o seu sabor.

A partir do momento em que Vila Isabel fica igual a Ipanema, Vila Isabel fica uma bosta e Ipanema também. Porque Ipanema era fantástica enquanto ela era um bairro, um pedaço de praia. Mas quando ela vira modelo padrão para todo o país, a coisa fica muito diferente! Tem muita gente pra se ver, muita coisa pra se aprender por este país afora. Há programas fantásticos para se fazer, temas até o ano 2000. Você, que nasceu no eixo Rio-São Paulo, que vem de uma família européia, chega até a ficar com um complexo de culpa terrível! De repente você diz assim: "Ai, como eu queria ser a Elba Ramalho, a Tânia Alves!" Você começa a se achar menos Brasil do que elas. Mas não é verdade. Você, que vem de uma família de imigrantes, também é Brasil.

Garantia a cultura regional

Então, eu acho que se não tiver uma lei que garanta a produção cultural regional, principalmente para a televisão e rádio, muita coisa boa vai se perder. No Brasil, existe um monopólio da cultura. Daí, o que acontece? Ninguém agüenta mais o Michael Jackson, que é um excelente cantor. Por quê? Porque foi dado a ele um valor que nem Cristo agüenta. Cristo ia dizer assim: "Pelo amor de Deus, gente, pára com isso!" E a gente fica sem escolha.

O monopólio da televisão afeta tudo. No teatro, por exemplo, produtores te convidam pra fazer uma peça, você não pode, e indica uma outra pessoa que é perfeita para o papel. Se essa pessoa não teve sua cara vinculada à Globo, o teu aval sobre ela ou o próprio curriculum dela não valem absolutamente nada. Os produtores acham que só uma pessoa conhecida pela televisão é que vai levar um público para o teatro. Se a montagem é boa ou não, isso fica para segundo plano. Eu me lembro quando eu ganhei o meu primeiro Molière, até dentro da minha família as pessoas diziam assim: "Que bom! Quem sabe agora a Globo te chama..." Como se só então eu começasse a ser artista. No Brasil, se você não é famoso via Rede Globo, você não passa de um curioso em arte.

MARÍLIA — Se você fizer um balanço do início da tua carreira até hoje, você diria que teve as suas expectativas correspondidas?

IRENE — No início da vida profissional a gente tem um tipo de fantasia: aquilo que vai fazer e aquilo que você não vai fazer. Você acha que nunca vai fazer concessões; você vai fazer textos fantásticos! Isso não aconteceu. Você acha que não vai fazer televisão. Essas coisas acabaram acontecendo. Mas o confronto não foi tão ruim. Porque as coisas foram acontecendo naturalmente, no momento certo, e sem uma grande violentação. Você fantasia, quando você não tem conhecimento. Mas eu não tive chance de fazer nada que eu execrasse como "puta que pariu, isso era uma coisa que não era pra eu ter feito!". Isso não. Eu cheguei lá e agora estou vivendo um momento muito especial.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1985
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