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Conto não queira Deus

REFLEXÕES SOBRE O MARXISMO

CONTO

Conto não queira Deus

Damiel Fresnot

Se éramos comunistas cm Paris? Eu não diria comunistas, mas marxistas sim. Ou pelo menos bastante influenciados pelo "terceiro-mundismo", uma ideologia bem peculiar. Você vê, nós fomos hóspedes involuntários de um país rico, avançado, onde ninguém passa fome e quase não há miséria. E chegávamos de um país subdesenvolvido como dois terços do planeta. Então abraçamos esta identificação: os pobres contra os ricos, os países que foram colônias contra as antigas metrópoles. Eu morava no Quartier Latin, pertinho da catedral de Notre Dame, e me sentia mais próximo de um angolano ou de um chinês jamais visto do que dos franceses. No Brasil, reinava uma ditadura militar e acho que isto nos dava um pouco de complexos. Não tínhamos lições de democracia a receber de gente tão abastada.

Passamos uns anos almoçando em restaurantes universitários. A comida era bem fraca mas baratíssima. João Henrique fazia fila conosco, entre alguns africanos, cambojanos, etc. Todos os párias do mundo, foragidos de todas as ditaduras. Ou buscando em Paris a ciência e a verdade, a luz na cidade luz. O nosso sonho era roubar a verdade para salvar o nosso país. Um pouco como Robin Hood, tirando dos ricos para dar aos pobres.

Vou lhe contar uma aventura que quase causou a morte do meu amigo. Foi em dezembro 1971, ou início de 72. João Henrique estava nas listas dos mais procurados pela polícia e pelo exército brasileiro. Naqueles anos quem caísse nas garras da repressão era torturado sem piedade. As notícias que recebíamos do país eram de companheiros assassinados e seus crimes mal disfarçados em suicídios ou atropelamentos. Chorei a perda de muito amigo a dez mil quilômetros de distância.

João Henrique viajou ao Chile, que ainda era democrático, para uma reunião de exilados brasileiros. Na volta, levando uma maleta cheia de panfletos, tomou o vôo Santiago-Paris. Sobrevoava o Brasil quando o piloto anunciou: "Devido a um problema técnico, vamos aterrisar no Rio de Janeiro".

Para o meu companheiro, a alfândega do Rio significava a prisão e a tortura. Enquanto o avião descia, ele foi ao banheiro rasgar os documentos da maleta. A privada logo entupiu e a solução foi comer o resto dos panfletos. Necessidade é lei e João engoliu quase meio quilo de papel...

No aeroporto do Galeão os passageiros tiveram que deixar o avião e aguardar na sala de trânsito. Atrás de um painel de vidro estavam os policiais que o prenderiam se precisasse mostrar o passaporte.

Quase dez horas da noite, a sua sorte dependia dos reparos no avião. Às onze e meia, uma funcionária anunciou que o vôo fora adiado. "Problemas de turbina. Os senhores passageiros serão levados a um hotel depois de passar pela alfândega. A companhia pagará a hospedagem e a estadia no Rio". Para João Henrique isto era uma condenação à morte. Ninguém pagaria sua hospedagem e estadia nos porões da polícia carioca.

Mas se foi a política que o levou a esta situação também foi uma forma de política que o salvou. Prevendo o perigo, ele começou a protestar junto aos outros passageiros. "Isto é um absurdo. Preciso estar amanhã sem falta em Paris. Quem vai pagar o prejuízo?" Conseguiu convencer um grupo de franceses a exigir da companhia a continuação da viagem, oferecendo lugares num outro vôo que saía de madrugada. Às três horas, ele pode deixar a sala de trânsito rumo a Paris. Estava salvo. O susto foi grande.

Na França, João Henrique estudou sociologia. Eu estudei economia. Sempre ciências utilitárias que nos dessem a chave para abolir a miséria. Nada de artes, ou física, ou química, por demais afastadas da realidade social; estávamos à procura da receita mágica para o nosso país. Mas a experiência vivida costuma ser mais forte do que as ideologias. Com o correr dos anos setenta, fomos percebendo que a realidade não se enquadrava nos nossos desejos. Aos poucos, fui me descascando da utopia.

A nossa vida no exílio? É difícil responder. Ainda éramos jovens e a gente esperava. Esperava nos dois sentidos: espera e esperança. Aprendi lá a gostar de um poema de Oswald de Andrade, ele também fugiu de uma ditadura.

"Não queira Deus que eu morra

sem que volte para lá

sem que veja a rua Quinze

e o progresso de São Paulo..."

Você conhece?

Não, João Henrique não se integrou à Europa. Você vê, um europeu vem às Américas e em poucos anos é mais um americano. Mas o inverso não ocorre. É preciso umas duas gerações para se tornar francês. A França nos recebia educadamente mas mantinha as distâncias. Acho que com a Inglaterra, a Alemanha ou a Suécia é a mesma coisa. E não estávamos lá por vontade própria, isto pesa na balança.

Saudades do Brasil? Foram muitas! Eu sentia tremenda falta do calor humano e do sol. Da língua brasileira também, de todos os "inhos", estes diminutivos tão carinhosos. João Henrique também sofreu esta falta, e a do pai e a do mar. Ele teve até saudades do guaraná. Engraçado, sentir falta de um refrigerante. Em troca Paris nos oferecia museus, história, cultura e segurança. Filmes, peças de teatro, tudo o que era impossível ver no Brasil daqueles anos. E também não nos obrigou a curvar a cabeça diante do arbítrio e da injustiça. Mas creio que teríamos trocado tudo por uma caipirinha em Parati. E sem pestanejar um segundo.

Não lamento estes anos porque hoje estou de volta.

Para Abelardo e Maria Vera

Daniel Fresnot é escritor. Publicou ficção a partir de 1983, poesia e contos. É autor do romance "A Terceira Expedição", editora Marco Zero

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Nov 1989
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