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Argentina: a macropolítica e o cotidiano

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Argentina: a macropolítica e o cotidiano

Guilhermo O'Donnel

Cientista político, professor visitante do Departamento de Ciência Política da USP, diretor acadêmico do Kellogg's Instituto e pesquisador do CEBRAP

Este ensaio é breve e provisório. É a antecipação de um livro que talvez algum dia escreverei, acerca do cotidiano em Buenos Aires durante os anos mais repressivos do regime que hoje desaba. Nas páginas que se seguem, não escondo seu caráter subjetivo e de testemunho, ao mesmo tempo em que não renuncio, cientista social que sou, a sugerir algumas relações que me parecem importantes, tanto prática quanto teoricamente. Tanto em um caso como no outro, não ignoro, e nem pretendo atenuar implicações polêmicas.

Isto não se deve só às características do tema. Surge também enquanto tema de reflexão que aqui apenas posso deixar indicado, da particular problematicidade do conhecimento do social sob um regime decidido a suprimir, brutal e sistematicamente, boa parte da informação disponível, ou suscetível de ser obtida, em condições de razoável liberdade. Entre muitas outras conseqüências, na minha experiência ao menos, tais circunstâncias colocam perguntas cruciais acerca dos modos e possível validade das tentativas de descobrir situações e processos em relação aos quais os modos habituais de investigação foram tornados impraticáveis. Ao mesmo tempo, situações limites como as vividas durante esses anos mostram à qualquer estudioso razoavelmente atento e autocrítico, se não a inutilidade, ao menos a insuficiência dos conceitos habitualmente usados nas ciências sociais, inclusive, certamente, aqueles relacionados com a problemática do autoritarismo. Pelo menos, em situações extremas como as vividas recentemente na Argentina, em parte pela impossibilidade de acesso a dados mais agregados, mas também atendendo a uma autêntica necessidade intelectual, não ocorreu somente a mim prestar muito mais atenção aos contextos micro da vida social, às tramas celulares do cotidiano para, a partir deles, tentar traçar suas relações com os grandes cenários da política e do Estado. O presente ensaio é um primeiro rascunho nessa árdua mas, parece-me, indispensável direção.

Outra conseqüência é a de que, ao tentar trabalhar sob tais circunstâncias, não podemos senão tornar, e tornar para nós mesmos, muito mais explícitos os valores com base nos quais, e pelos quais, ainda parece reivindicável (embora durante um tempo só possa sê-lo nos pequenos círculos que de alguma forma sobrevivem à repressão) a legitimidade de uma prática intelectual como esta.

Nestes dias de comemoração da derrubada desse regime maldito, talvez não seja demais compartilhar perguntas acerca das marcas, nem todas elas facilmente visíveis, que aqueles anos deixaram, e sobre as conseqüências que estas poderão trazer para a consolidação da democracia na Argentina. E com essa intenção que publico estas páginas.

I

Nestes apontamentos discuto alguns aspectos da vida cotidiana da Argentina entre 1976 e 1980. Como já assinalei, os que vivemos naquela Argentina, o fizemos de uma maneira que a situação imperante tornava, e temo torna ainda, impossível de ser reconstruída globalmente e de forma razoavelmente convincente. Este fato me impede de lançar mão de dados suficientes como para confirmar minhas impressões:1 1 Os que éramos realmente contra o que ocorria (isto é, incondicional e globalmente contra, e não apenas insatisfeitos com este ou aquele aspecto do regime), adotamos curiosas maneiras de, primeiro sobreviver e, depois, não enlouquecer - literalmente, creio - diante do extremado isolamento a que nos autocondenávamos com uma tal oposição. Uma dessas formas foi a que adotamos minha mulher, Cecília Galli, e eu: fazer uma proto-investigação sobre diversos aspectos de Buenos Aires. Digo que se tratou de uma "proto"investigação porque realizamos entrevistas com pessoas de distintos setores e ath/idades sociais que, sob as circunstâncias dadas, sentimos que podíamos entrevistar, sem pretender uma amostra "representativa". Simplesmente, entrevistamos aquelas pessoas que não nos assustava demasiado entrevistar. Fizemos, também, outras coisas: esmiuçamos, com a "devida discrição", diversas instituições educacionais e organizações profissionais; lemos (e, o cúmulo do masoquismo, impusemonos assistir e ouvir peia televisão) os discursos e gestos dos personagens do regime, e a auto-imagem deste na sua propaganda. Ademais, condenados a uma microfenomenologia do cotidiano, simplesmente olhamos, através da lente da nossa preocupação por encontrar ali certos impactos dos horrores e terrores do regime, a rua e diversas atividades profissionais. Por outro lado, Cecília, pela sua condição de mulher e graças ao seu óbvio sotaque estrangeiro, permitiu-se fazer "perguntas inocentes", acerca do que havia ocorrido e estava ocorrendo em nosso país, a garçons, motoristas de táxi, quitandeiros, jornaleiros e essa miríada de pequenos-grandes personagens do cotidiano de Buenos Aires. Da massa de informação resultante, que ainda não conseguimos digerir, nem intelectual nem emocionalmente, surgiu algo assim como uma etnografia das conseqüências, não poucas vezes inconscientes para os próprios atores, de viver sob um regime excepcionalmente repressivo. Este caráter de exceção derivava não somente da violência física exercida pelo regime, mas também pelo propósito de modificar radicalmente, numa direção convergente com seus próprios padrões, as relações de autoridade na sociedade. O presente texto baseia-se em alguns aspectos sobre os quais esta proto-investigação despertou a nossa sensibilidade. Quem sabe um dia possamos escrever o livro que destile muito mais globalmente estas experiências. imagino que as entrevistas que tenham se realizado na época foram, e continuam sendo, como tantas outras coisas, SEGREDO DE ESTADO. Porém, creio que vale a pena discutir alguns temas que podem ter sutis, mas provavelmente importantes, conseqüências para o futuro.

Algumas das características do regime inaugurado em março de 1976 têm sido já indicadas e analisadas. Uma delas é sua descomunal repressividade, não só em termos da quantidade de horrores que impôs, mas também por seu caráter terrorista e clandestino. Outra, o sentido político e historicamente vingativo contra a Argentina "plebéia-populista e imigrante"das últimas décadas, que teve a política econômica e social destes anos2 2 Dentre os trabalhos sobre o tema, parece-me particularmente esclarecedor o de Jorge Schvarzer, Martínez de Hoz: la lógica política de la política econômica (Buenos Aires: Ensayos y Tesis CISEA, 1982). Uma tentativa precoce de discutir estes temas, fizemos com Roberto Frenkel em "Los programas de Estabilización convenidos con el FMI y sus impactos internos"(Buenos Aires: Estúdios CEDES, 1978). Algumas destas discussões retomei em "Fuerzas Armadas y Estado Autoritário", ín Norbert Lechner, ed.. Estado y Política en América Latina (México DF: Siglo XXI. 1981). . Estas são, certamente, características cruciais do que se fez e do que se tentou fazer desde esse regime. Há ainda uma terceira, que me parece não menos importante. Mas, talvez porque transcorreu em planos menos espetaculares que os anteriormente referidos, tem despertado menos atenção. Trata-se da sistemática, persistente e profunda tentativa de penetrar capilarmente na sociedade para também ali, em todos os contextos atingidos pela longa mão desse governo, implantar a ORDEM e a AUTORIDADE; ambos calcados na visão autoritária, vertical e paternalista que o próprio governo, e o regime que tentou se implantar nos seus momentos mais triunfais, tinha de si mesmo. Esta tentativa, como também a peculiar destrutividade da política econômica, é o que aproxima a Argentina do Chile e Uruguai contemporâneos, marcando uma diferença entre o nosso passado próximo e autoritarismos mais mitigados como o do Brasil pós-64 e inclusive da Argentina 1966-1972. A perversa combinação entre o que aconteceu antes de março de 1976 e a furiosa paranóia dos então ganhadores, conduziu ao diagnóstico de que era o "corpo social"inteiro, ainda nos seus "tecidos"mais microscópicos, quem tinha sido "infeccionado"pela subversão (desconfio que poucas vezes na história a extrema direita martelou tanto nas suas metáforas, tipicamente organicistas, como o fez durante esses anos). O "caos", a "subversão"e a "dissolução da autoridade"não haviam ocorrido apenas nos grandes cenários da política nem estavam expressos somente nas ações das organizações guerrilheiras: a doença existia também, e desde ali alimentara aqueles "sintomas"mais visíveis, em quase qualquer canto da sociedade. Deste diagnóstico nasceu um pathos microscópico, orientado para penetrar capilarmente na sociedade para "reorganizá-la"de forma tal que ficasse garantida, para sempre, uma meta central: que nunca mais seria subvertida a AUTORIDADE daqueles que, à imagem e semelhança dos grandes mandões do regime, tinham em cada microcontexto, de acordo com esta visão, o direito e a obrigação de MANDAR. Se desde o aparato estatal se nos despojou da nossa condição de cidadãos e se tentou nos reduzir, via mecanismos de mercados, à condição de obedientes e despolitizadas formigas, nos contextos do cotidiano - o das relações sociais e dos padrões de autoridade que tecem a vida diária - tentou-se realizar uma obra similar de submissão e infantilização: os que tinham "direito a mandar", mandando despoticamente na escola, no local de trabalho, na família e na rua; os que "deviam obedecer", obedecendo mansa e caladamente, uniformizados na aceitação de que ainda o mando mais despótico era para o bem dos que desta forma obedeciam, porque se assim não fosse, não se poderia separar o trigo dos mansos do joio dos subversivos e porque, ainda, havia ficado concludentemente demonstrado que a insolência dos "inferiores"só levava ao caos. Esta visão da autoridade não podia ser mais vertical, autoritária e negadora da autonomia daqueles que pretendeu submeter e nem conseguiu, apesar do tom paternalista com que revestia seus argumentos, ocultar a imensa violência, não só física, sobre a que se sustentava. Desta forma, quase perdemos o direito de andar pela rua que só nos era concedido se vestíssemos o uniforme civil: cabelo curto, paletó, gravata, cores foscas, que os mandões, militares e civis, consideravam adequado. Assim, passou a ser altamente aconselhável não ser diferente nem dar opiniões pouco convencionais ainda sobre os temas aparentemente mais triviais. Assim, também, foi anátema nas instituições educacionais, para os que só tinham que aprender passivamente sem perguntar, duvidar e até se reunir. Inclusive, em muitos locais de trabalho (fábricas, obviamente, mas não só), entre essa coação e a do crescente desemprego, perseguia-se tudo o que não fosse, como nos demais contextos, submetido à obediência. Foi assim também na família: em parte porque, como argumentarei mais adiante, esse pathos autoritário encontrou ecos importantes, em parte porque muitos pais sentiram que "retomando o mando"poderiam garantir a despolitização dos seus filhos, que os salvaria do destino de tantos outros jovens; pela incidência destes dois fatores, acentuaram-se fortemente os traços mais repressivos e infantilizantes de muitas famílias (modelo patriarcal sobre o qual, por outro lado, martelavam insistentemente a propaganda oficial e comercial)3 3 A Cecília e a mim chamou-nos a atenção a frequência com que ambas publicações reproduziam uma cena típica, que talvez melhor do que outra qualquer, fosse a auto-imagem preferida desse despotismo. Trata-se de um homem "perfeitamente vestido"de acordo com os padrões que se impunham à época, retornando à sua casa depois do trabalho, cansado, mas feliz, ternamente recebido pela esposa, não menos feliz por ter ficado em casa limpando, cuidando das crianças e cozinhando. Outra personagem desta cena é um ancião, vovô, boníssimo e reverenciado, portador da imagem de um passado mais antigo que o recente, no qual essa deliciosa família encontra seu sentido de continuidade. E, para baixo, absolutamente nenhum jovem, imagem subversiva cuidadosamente eliminada. Somente crianças pequenas, sorridentes, limpíssimas e obviamente, totalmente obedientes. Com a suposição de que a reiteração dessa imagem prototípica na publicidade teria de obedecer a instruções do governo, entrevistamos alguns publicitários. Através deles, afora as proibições "moralizantes"impostas pela televisão - que não obrigavam necessariamente a se restringir àquela imagem, - ficamos sabendo, com profunda surpresa e ainda mais profunda preocupação, que eram as próprias empresas que solicitavam essa cena social e psicologicamente regressiva. Segundo estas, assessoradas pelos seus analistas de mercado, era a situação que mais ajudava a vender os produtos. Ironicamente, a publicidade que quebrava mais freqüentemente com este esquema, e até mostrava jovens, era a de algumas filiais de empresas multinacionais, que reproduzia os pacotes publicitários importados de suas matrizes. , segundo sugerem as nossas entrevistas com psicanalistas e psicólogos. Não vale a pena sequer mencionar o que foi feito com tudo que cheirasse a "hippie", droga (a começar pela maconha, essa terrível arma de subversão contra a civilização ocidental e cristã) ou "perversões sexuais".4 4 Sobre este ponto, veja Nestor Perlongher, "La represión a los homosexuales en la Argentina", São Paulo, mimeo, 1982. Este trabalho é notável não só pelos horrores que o autor mostra foram cometidos nessa matéria a partir de 1976, mas também porque sugere a continuidade de uma enorme intolerância antes desta data.

II

Não quero, nem vale a pena fazer aqui, um inventário particularmente horrível. O ponto ao qual queria chegar é que tudo indica que nessas tentativas o governo obteve considerável sucesso. Esse sucesso consistiu não só em que muitos de nós nos submetemos, calamos, disfarçamos e dissimulamos frente a essa enorme pressão para que parecêssemos crianças obedientes, uniformizadas e caladas, dispostos a deixar que os que "sabiam"(na economia e na administração terrorista da violência, e também na rua e em tantos outros microcontextos) se ocupassem do que, no fim, ia ser o bem de todos. Essa tarefa tinha que começar por colocar tudo "no seu lugar", desde a mulher na casa e os ex-cidadãos trabalhando fora, até os militares e cadavéricos oligarcas mandando. O problema foi, e o meu argumento vai por ali, que a pressão para aceitar uma tal infantilização fosse tão enorme. Mas para exercê-la não bastavam, não teriam bastado jamais, os militares e os funcionários do governo; nem sequer se, com descomunal pathos autoritário, estes tivessem chegado a controlar tão capilar, minuciosa e detalhadamente tantos comportamentos. Para que isso viesse a acontecer houve uma sociedade que patrulhou a si própria: mais precisamente, houve numerosas pessoas, não sei quantas, mas com certeza não foram poucas que, sem "necessidade"oficial alguma, simplesmente porque queriam, porque lhes parecia certo, porque aceitavam a proposta dessa ordem que o regime, vitoriosamente, lhes propunha como única alternativa para a constantemente evocada imagem do "caos"pré-76, se ocuparam ativa e zelosamente, de exercer o seu próprio pathos autoritário. Foram Kapós5 5 Kapós foram aqueles prisioneiros que, nos campos de concentração nazistas, se identificavam plenamente com o agressor, e tinham sob sua responsabilidade diversos aspectos da "disciplina"do campo. Estudos e memórias de sobreviventes insistem em afirmar que eles eram em muitas ocasiões ainda mais cruéis que os S. S., e aplicavam, ainda com mais rigor do que estes, os regulamentos do campo. que, assumindo os valores do seu negado agressor, vimos não poucas vezes indo mais além daquilo que aquele regime muito autoritário demandava.

Não é fácil nem simpático apresentar esta questão, mas me parece que a questão da democracia na Argentina, como em todo e qualquer caso passado e futuro em que tenham sido cometidas atrocidades semelhantes, passa também pelo doloroso momento de reconhecer que não houve apenas um governo brutalmente despótico, mas também uma sociedade que durante esses anos foi muito mais autoritária e repressiva do que nunca, e que não foram poucos os que determinaram que assim fosse. Tal como se deu em relação aos mortos e desaparecidos, estes micio-horrores somente podem ser ignorados pagando o preço individual e coletivo de toda negação: não poder olhar para nós mesmos no espelho daquilo que somos e, portanto, nos esquivarmos da possibilidade dolorosa mas criativa, de reformularmos identidades e valores de forma a evitar a repetição dos nossos lados mais destrutivos.

Talvez seja um exagero. Talvez tenha me calado demasiadas vezes durante as nossas entrevistas, por obrigação metodológica e por temor, e talvez tenha odiado demasiado o sadismo dos Kapós que encontramos na nossa proto-investigação, e aqueles outros com que tropeçávamos todo dia, porque assim era o cotidiano daqueles anos. Talvez seja exagero, mas seria ainda mais exagerado, e muito pior, se, projetando tudo nesse regime maldito, nos escusássemos de olhar, e tratar de entender, o que aconteceu na sociedade argentina. Durante aqueles anos vinha-me insistentemente uma metáfora que acredito continua sendo válida: que a implantação daquele autoritarismo sem piedade, na política, deixava soltos os lobos na sociedade. Não se tratava somente daquilo que o governo explicitamente encorajava, mas também, mais sutil e fortemente, a "licença"que concedia para que não poucos exercessem os seus minidespotismos perante trabalhadores, estudantes e todo o tipo de "subordinados", incluindo pedestres e filhos, para não falar do que mais tarde, seguindo uma lógica terrível, se mostrou que podia ser feito com soldados. Aqueles que não quisemos, ou não pudemos, exercer este tipo de poder, aprendemos, pela eloquência brutal da inversão o que significava a ausência de um contexto geral razoavelmente democrático: ficar à mercê dos lobos porque não tínhamos qualquer direito, e se algum, teoricamente, ainda nos restava, não tínhamos a quem recorrer para garantir o seu exercício. A partir disto, e do pathos, mandão e onipotente, que transpirava o regime, a nossa sociedade, pontilhada por Kapós nos seus contextos, e pelo patrulhamento de comportamentos que muitos "voluntários"fizeram em locais públicos, submeteu-se ao despotismo estatal, alguns assumindo-o como próprio, outros sofrendo-o em raivoso silêncio. Jamais saberemos quantos foram uns e outros, mas seguramente não foram poucos, nem uns nem outros.

III

Agora que, finalmente, esse regime entrou em vertiginoso colapso, e que tantas vozes silenciadas tornam a ser ouvidas, e que se recomeça a exercer a liberdade de ser diferente, é importante reconhecer o nada desprezível êxito que o regime obteve neste plano, e, temo, o grau tampouco desprezível em que esses êxitos não foram revertidos. Não se trata apenas de que tantos Kapós, tantos microdéspotas, continuam nos seus postos. Nem tampouco do fato de que muitos se negaram firmemente a saber o que se estava passando com a repressão, ou a atribuíam a maldosos boatos, ou então, quando era impossível negar certos horrores, culpavam as próprias vítimas com aquela terrível condenação do "Algo terão feito..."que tanto ouvimos durante esses anos. Tudo isto eram ecos de coisas que a gente não se permitia acreditar, até que em algum momento se deparava com elas, coisas que não só ocorriam em outras partes do mundo. Nem se trata tampouco de que não poucos daqueles Kapós e negadores, com a apaixonada sinceridade daquele que precisa inconscientemente não ter tido nada a ver com aquilo que já ninguém pode defender, hoje investem sua fúria contra o regime pelo desastre econômico, pelas Malvinas e pela corrupção dos militares, como se somente isso tivesse acontecido.

Trata-se, além disso, e para o nosso futuro creio que mais fundamentalmente, da persistência de padrões extremamente autoritários nos nossos microcontextos; da atitude mandona e onipotente que muitos deles conservam; da forte intolerância que subsiste a respeito da vestimenta, a sexualidade e as preferências dos outros, e até da negação do direito de perguntar, exigindo razoável fundamentação, acerca do sentido das ordens do "superior". Estas são algumas coisas. A elas devemos acrescentar, como cápsula que as contém e transporta para o futuro, creio, a insuficiente percepção do grau em que a concepção prevalecente da autoridade na educação é insolitamente repressiva, disciplinadora e finalmente violenta contra os pobres "educandos", da escola primária à universidade.

O que foi dito até aqui gera duas perguntas importantes, que deixamos apenas colocadas. A primeira refere-se ao porquê do não insignificante êxito obtido quanto a tornar mais autoritária a nossa sociedade. Cabe chamar a atenção, como quando na Europa foram formuladas perguntas do mesmo teor, a respeito da desfacistização, para a responsabilidade de evitarmos as respostas fáceis.

A resposta mais óbvia, e mais escapista, consistiria em projetar toda a responsabilidade nos governantes dos últimos anos (o que não implica deixar de lhes atribuir a responsabilidade imensa que lhes cabe). Por outro lado, ao longo de vários anos o triunfo ideológico daquele regime foi encurralar muitos no dilema de ter de aceitar a "ordem"oferecida, ou retornar ao "caos"anterior ao golpe de 1976.6 6 Uma esmagadora maioria dos nossos entrevistados (aproximadamente 90%) mostrou claramente a "isca"subjetiva que o discurso estatal utilizou durante vários anos, para impor este falso, mas eficiente dilema. Entrevistados das mais diversas posições e ativtdades sociais, tanto como opiniões políticas, escolheram espontaneamente os anos imediatamente precedentes a 1976 como o período (que convidávamos a determinar) com o qual eram comparadas suas sensações acerca de como viviam e como estavam as coisas no nosso país em 1979 (momento em que realizamos a maior parte dessas entrevistas). A escolha daquele período era feita, na maior parte dos casos, como lembrança do que as pessoas consideravam como um período de caos, violência e incerteza insuportáveis, frente ao qual qualquer alternativa de ordem parecia-lhes preferível. Isto não impedia que muitos dos entrevistados estivessem descontentes com diversos aspectos da política governamental (a grande maioria dessas críticas referia-se à política econômica; as referências à repressão, censura e coisas do gênero foram bastante mais escassas). Mas esses insatisfeitos, na medida em que a visão dos sujeitos continuava presa naquele dilema "caos-ordem"(ou, em outras palavras, na medida em que o regime tinha conseguido suprimir alternativas que quebrassem essa disjuntiva com uma proposta de ordem subordinada a uma outra lógica política e valorativa), não chegavam a modificar a extremada privatização da vida diária (incluindo uma forte queda em atividades associativas afastadas de qualquer conotação política) em que encontramos estes entrevistados. Houve casos em que foi-nos dito que, até que a nossa entrevista os forçara a fazê-lo, fazia muito tempo que não pensavam em, ou não se preocupavam por, "questões públicas ou políticas". Cabe anotar aqui, para discutir talvez numa outra ocasião, que isto também era verdade no caso de pessoas que foram fortemente politizadas antes de 1976. Não resta dúvida que um tal aprisionamento da visão geral (corresponde à descidadanização verificada em todas as esferas) soava já naquela hora como precária. E, de fato, tudo indica que, como tantas outras coisas desse período, começou a explodir com a transição presidencial de Videla para Viola em 1981, e acabou de fazé-lo com as Malvinas. Eu ficaria muito surpreso se para esses entrevistados o referencial negativo organizador da sua visão do presente e de suas expectativas para o futuro (o predicado do "qualquer coisa antes que a volta àquilo", que ouvimos tantas e tantas vezes) não fosse hoje o período posterior à março de 1976, não mais o anterior. Na medida em que assim foi, num contexto em que os mecanismos de formulação e reconhecimento de identidades políticas alternativas foram suprimidos, muitos tiveram desarticulada a possibilidade de se oporem - e reconhecer em outros a mesma oposição - à lógica autoritária com que se tentava, do aparato estatal, penetrar e "reorganizar"a sociedade. Não parece haver dúvidas quanto ao fato de que, depois dos anos de grande mobilização e hiper-politização da primeira metade da década de 70, muitas pessoas estavam predispostas àquilo que a repressão e a propaganda pós-76 queriam conseguir: uma forte virada no sentido da privatização das vidas, um generalizado anseio de redução da incerteza na vida diária (para o qual, obviamente, ficava claro que havia que andar na linha segundo o desejavam os governantes), e, também, a sensação de que nos anos que precederam o golpe, os padrões de autoridade, não só na política, mas também em inúmeros microcontextos, atingiram um ponto de pessoalmente intolerável e socialmente suicida anarquização. Acerca destas predisposições há vários indícios naquilo que foi dito, e no que foi silenciado e se preferiu ignorar, a partir de 1976.

Assim sendo, a pergunta sobre por que em não poucos setores e contextos da sociedade o regime obteve êxitos importantes no que diz respeito à sua vocação autoritária, poderia ser respondida deslocando boa parte do peso da explicação para esses violentos, e em não poucos sentidos, realmente loucos e caóticos anos que precederam o golpe de março de 1976. Minha impressão é de que esses anos deram, efetivamente, uma importante contribuição ao que veio depois, inclusive neste plano micro, socialmente intersticial, que estou discutindo. Essa contribuição não consistiu apenas, parece-me, na brutal violência reacionária que engendrou. Influiu também, mais sutilmente mas com profundas conseqüências, para que mais além do medo que provocava com a sua repressão, aquele regime conseguisse fazer o que fez com tão escassa oposição durante uns cinco anos. Isto é: parece ter havido uma tendência psicológica e politicamente regressiva, freqüentemente manifestada nas nossas entrevistas, mas que o olho atento podia detectar também em inúmeras manifestações da vida diária. Estou me referindo àquele anseio de que venha a surgir um poder supremo capaz de garantir alguma ordem, após um período vivenciado como o sumum do caos, da violência e da incerteza. Essa problemática, que Hobbes e alguns analistas do fascismo compreenderam bem, sugere alguns dos custos menos visíveis - mas nem por isso menos graves - que um período como o anterior a 1976 pode gerar.

Pelo que foi dito até aqui, a questão poderia ficar centrada ao redor de discussões acerca de se cabe atribuir ao pré ou ao pós-76 o peso principal em relação ao problema que estou colocando. Não creio que uma tal discussão tenha maior sentido, embora seja fácil imaginar que ênfase sobre um ou outro período estaria fortemente influencida pelas posições políticas de cada um. Não só pela óbvia razão de que não sabemos como atribuir pesos relativos a fenômenos tão complexos, mas também porque no momento atual a questão ainda não foi suficientemente explorada. Sendo assim, as afirmações de que os avanços no autoritarismo aparentemente verificados na sociedade argentina dos últimos anos são conseqüência direta do regime pós-76, e de que as predisposições e a ocasião para isso foram em boa medida semeadas nos anos imediatamente anteriores; embora me pareçam corretas, também as acho insuficientes. Sem pretender uma regressão causal infinita, o que acabamos de dizer introduz a pergunta acerca de por que nosso país veio a se impingir os danos, e os tremendos custos a médio prazo, desses anos pré-76 que os nossos entrevistados recordavam como tão intoleráveis. Dispomos de trabalhos que permitem compreender parte da questão, do ponto de vista do que fizeram e deixaram de fazer os atores da política e certos grandes agregados sociais. Mas, insistindo no nível em que estou posicionado neste ensaio, surge ainda mais uma pergunta. Isto é: qual é o grau e quais as possíveis correspondências temporais em que as concepções e padrões de autoridade nos contextos do cotidiano foram influenciados por, ao mesmo tempo que podem ter influenciado, uma longa história que em termos desses atores políticos e grandes agregados sociais, é a de um reiterado fracasso na tentativa de estabelecer formas mais democráticas, e enfim, mais humanas de articulação da vida da sociedade.

IV

Está longe das possibilidades deste ensaio (e do seu autor) tentar dar uma resposta para essa pergunta. No entanto, embora não saibamos como respondê-la, parece-me que não podemos deixar de formulá-la. Não se trata de um tema de arqueologia cultural; ao contrário, talvez seja a pista para reconhecer velhas tendências escassamente democráticas da nossa sociedade, o que nos permitiria compreender o passado recente como uma acentuação brutal daquelas mesmas tendências, e não como uma novidade causada unilateralmente a partir do nível macro seja pelo pré e/ou pelo pós-76. Embora reconhecendo as nossas ignorâncias sobre os diversos níveis e temporalidades envolvidos numa visão histórica mais abrangente e interativa, as conseqüências de formular ou não esta questão não me parecem triviais. Nos últimos anos parece ter havido uma extensão e provavelmente também um aprofundamento dos microdespotismos em numerosos contextos sociais. Se as causas disso, ao menos as principais, podem ser encontradas na política e no Estado dos anos imediatamente anteriores ou posteriores ao golpe de 1976, então o problema da democracia na Argentina pode ser resolvido exclusivamente a partir de uma política e de um Estado democratizados. Dessa perspectiva, as setas causais iriam do macro ao micro, e somente compreenderiam um reduzido período de tempo. Infelizmente, como acabo de insinuar, o problema parece-me bastante mais complicado e de longo alcance.

Não estou pretendendo negar a crucial importância da "grande política"aquela que é feita nos grandes cenários da vida nacional, por parte de atores "políticos"ou não, organizados para esse fim. Mas receio que a interpretação ora esboçada, padece de um perigoso politicismo. Com isto quero dizer que, por um lado, estar-se-ia esperando demasiado da democratização da política e do Estado em relação com as suas possibilidades reais. E, por outro lado, estar-se-ia negando a possibilidade, prática e teórica, de explorar a mútua realimentação que a difusão de valores e práticas democráticas em ambos os níveis, macro e micro, poderia gerar. Dos clássicos mais antigos até os dias de hoje, poderia se lotar uma biblioteca com textos relevantes para a problemática das relações entre diversos planos da ação social. Embora seguramente após esse esforço chegaríamos à conclusão de que não é muito o que se pode afirmar com razoável certeza, podemos, no entanto, arriscar algumas proposições de interesse para o nosso tema. Uma delas é que essas relações micro-macro não são tão diretas nem tão lineares como para que certo grau significativo (que não sabemos, por outro lado, qual seria) de democratização da sociedade* * O autor explora essas tendências, numa abordagem comparada com o caso brasileiro, no ensaio "E eu com isso?"in Contrapontos. Autoritarismo e Democratização (São Paulo; Vértice, 1986). (N.T.) * Um tratamento mais sistemático desta questão pode ser encontrado em 0'Donnell, Guilhemo, "Hiatos, instituições e perspectivas democráticas"in 0'Donnell, G. e Reis, F.W. (orgs.), Brasil: Dilemas e Oportunidades da Democracia (São Paulo: Edições Vórtice, no prelo). (N.T.). possa ser condição necessária ou suficiente para a implantação de um regime político democrático. Uma segunda proposição é que, como a prática da democracia, inclusive ao nível estritamente político, depende de um longo aprendizado entre atores envolvidos em complexas interações, e essa prática pressupõe uma concepção de cidadania na qual o indivíduo aparece como sujeito portador de direitos que tem de aprender a usar e a fazer valer essa aprendizagem (ainda que fosse, e não é o caso, só em vistas ao recrutamento do pessoal que irá jogar o jogo da política democrática), somente pode ter lugar, na quantidade e intensidade intuitivamente necessárias, se diversos, e numerosos, contextos do cotidiano, da infância à vida adulta, são, não apenas coerentes, mas mutuamente reforçadores dessas práticas. Um corolário desta proposição seria que importantes avanços na democraticidade da sociedade seriam, senão condição suficiente, provavelmente condição necessária para a consolidação e, ainda mais, para a expansão em direções mais participativas e socialmente mais justas, de um regime de democracia política.

Este é, precisamente, o ponto que pode ficar bloqueado pela visão politicista e historicamente míope que rascunhei mais atrás. Para dizê-lo com todas as letras creio, primeiro, que o problema da consolidação e expansão da democracia na Argentina passa tanto pelo Estado e a política quanto pela sociedade, e, segundo, que os obstáculos existentes neste último plano, embora brutalmente acentuados na década de 70, sobretudo a partir de 1976, são de longa data. Em terceiro lugar, acrescento que, segundo tudo parece indicar, os infortúnios da vida política argentina vêm se realimentando perversamente com as fortes tendências autoritárias existentes na sociedade, e inclusive na cultura, do nosso país.

Infelizmente (ou ainda bem) não há neste plano nenhum nó gordiano que possa ser cortado por uma facada. Se o problema for real, ele só pode ser encarado com uma perspectiva de longo prazo. Esta só pode derivar de um projeto de democratização que saiba reconhecer que é necessário chegar a um regime de democracia política, mas que saiba também que as expectativas, esforços e lutas orientadas a esse fim não são suficientes para resolver esse velho enigma da democracia na Argentina.

Se até alguns parágrafos atrás apoiei-me, apesar de suas limitações metodológicas, na nossa proto-investigação** ** Guillermo O'Connell e Cecília Galli: "Apuntes e Interrogantes acerca de algunos aspectos individuales y microsociales, baseados en un estudio de Argentina contemporanea", Buenos Aires, outubro de 1979, mimeo. ( N.T.) para sustentar a verossimilitude de alguns argumentos, é claro que no ponto atual do meu raciocínio, já nem posso lançar mão disso. Quem sabe apenas possam ser úteis alguns indícios que passo a esboçar. Creio que um dos problemas tem sido que muito argentinos (entre os que me incluo) cometemos um erro em que os clássicos (incluindo cabeças tão diferentes como Hobbes e Tocqueville) não caíram: não perceber que uma sociedade - como a nossa pelo menos até 1976 -pode ser bastante igualitária (do ponto de vista do trato pessoal entre classes à distribuição da renda) e, ao mesmo tempo ser sumamente autoritária. A partir do momento em que a direita ficou sem votos mas conservou o controle das terras dos pampas, de numerosos circuitos financeiros e de um notável (tanto pela sua força quanto pela sua extemporaneidade) prestígio cultural, o nosso país percorreu um agitado caminho de igualação social. Primeiro com o radicalismo e mais tarde com o peronismo, ambos acompanhados de mil processos sociais concomitantes, a Argentina tinha chegado à primeira metade da década de 70 com um grau (comparativamente ao menos) notável de igualização social.7 7 Não foi acidental, certamente, que de 1976 em diante rudes militares e elegantes economistas coincidiram com o propósito (que teve muito a ver com os avanços do autoritarismo na sociedade) de pôr, de uma vez por todas - como alguém me dissera durante memorável briga familiar - lodo mundo no seu lugar". Ou seja: aqueles "em cima", sabendo tudo que tinha que ser feito e mandado; os de "baixo", de crianças até operários, cabisbaixos e obedecendo sem dar um pio; e os do meio, na sua eterna esquizofrenia de mandar e obedecer, sabendo muito bem a quem obedecer e em quem mandar, e - "modernização econômica"mediante - deslumbrados com quanto gadget importado aparecia e com a admiração do estilo de vida oligárquico, suntuoso e fariseu que os meios de comunicação se esmeravam em transmitir. Mas no terreno da política, por trás da sistemática deslealdade com que a partir de então a direita jogou o jogo democrático (apelando em algumas oportunidades à democracia pelas razões mais oportunistas), nenhuma das demais forças políticas escapou de sofrer, para dizê-lo de maneira suave, fortes ataques de ceticismo no que diz respeito à democracia política. Não vou repetir aqui temas conhecidos. Basta lembrar que dali surgiu uma sociedade política particularmente débil, ciclicamente arrasada pela lógica corporativa de diversas forças sociais, e facilmente "dispensável"cada vez que aquelas forças (e a outra força, a armada) concordavam em que assim fosse, ou quando chegavam a um impasse relativamente prolongado.

Como resultado desse processo, nosso sistema político acabou se parecendo muito mais, estranha invenção, a um corporativismo anárquico do que a qualquer outra coisa. Esses conflitos quase sem mediações propriamente políticas, terminaram por mostrar que os que mais perdiam eram os mais fracos, nessa sociedade de classes que continuamos a ser. E antes de 1976 parecia que cada vez mais a principal mediação entre atores sociais e políticos consistia em violentos confrontos que, pela sua própria lógica levavam à re-monopolização da violência, da pior maneira e pelas piores razões possíveis, nas mãos da mais armada daquelas forças. Desta forma, chegou-se ao terrível limite de um relativo igualitarismo confrontacional, pouco controlado por visões um pouco mais convivenciais - que só podiam derivar daquilo mesmo que esse jogo tornava cada vez mais impossível. Isto é: instâncias generalizadoras dos interesses cruamente corporativos e institucionais que monopolizavam, e tornavam tão primitiva, esta forma de fazer política.8 8 Sobre o tema ver os excelentes trabalhos de Marcelo Cavarozzi, especialmente Autoritarismo y democracia en ia Argentina (Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1983). Tradução de Rolando Lazarte Este trabalho foi escrito em 1983, na Argentina, em momentos em que o regime militar inaugurado em março de 1976, com a derrubada da presidenta Maria Esteia Martínez de Perón, apressava a entrega do poder aos civis, antecipando a data das eleições presidenciais. O regime havia manifestado não muito antes de sua queda, que "as umas estão bem guardadas", e que o Processo de Reorganização Nacional (nome que deram a si mesmos os golpistas) "não tem prazos, mas sim objetivos". (N.T.) Mas o meu interesse aqui é tentar reconhecer ecos desse estilo nos planos micro sobre os quais venho insistindo.

Indo direto ao ponto, num tema ingrato: tenho a impressão de que, juntamente com o comparativamente considerável igualitarismo no trato pessoal e entre classes no nosso país, e juntamente também com a aguda consciência dos direitos que a cada um correspondem enquanto membro desta ou daquela classe ou categoria ocupacional (elementos estes que em outro contexto global seriam muito positivos para estabelecer e fundamentar uma polis democrática), as relações sociais, os padrões de autoridade em diversos microcontextos e até os critérios de percepção e avaliação desse outro-que-não-é--a-gente, há já muito tempo que são sumamente autoritários e intolerantes na Argentina. O moralismo puritano e hipócrita da direita e, freqüentemente da esquerda; a sempre remanescente visão maniqueísta da nossa história e dos nossos fracassos; o racismo de não poucos, não somente como anti-semitismo, mas também como o arrogante mito do país "branco"e "europeu"frente a uma América Latina índia e mulata; a descomunal repressividade de hábitos e identidades sexuais; a interação epitomizada pela sinistra figura dos bedéis encarregados de "disciplinas"nos colégios entre uma autoridade educacional repressiva e infantilizante por um lado, e rebeliões de raiva anônima, por outro; a reprodução de um modelo rigidamente patriarcal de organização familiar... enfim, a repetição do gesto duro que barra, por via das dúvidas, uma atitude cooperativa, respaldando-se na suposição de que somente os bobos podem pensar mais além de sua pessoa, do seu grupo, ou do segmento social a que pertencem.

A - parece-me - difundida e antiga presença destes outros sinais marca o que provavelmente seja o mais cruel dos paradoxos da nossa história e, ao mesmo tempo, o mais importante enigma a decifrar nesta nova tentativa de construir uma democracia na Argentina: o caminho percorrido por um país que conseguiu um alto grau de igualitarismo social mas que, por razões aqui apenas insinuadas, fracassou em repetidas ocasiões na tentativa de enquadrar essas conquistas em práticas e valores que estabelecessem planos de generalização de identidades e interesses, com base nos quais poderia ter se elaborado visões razoavelmente compatíveis da ordem social. Ao contrário, cada fracasso parece ter produzido uma aprendizagem perversa, setorializada e antagonística, que por sua vez foi tornando o seguinte fracasso ainda mais catastrófico.

Após ter acreditado nisso por diversas ocasiões, parece que desta vez realmente chegamos ao fundo do poço que de há muitas gerações viemos cavando. E ali não estava a "bolivianização", e sim o rosto cheio de cicatrizes desta Argentina tão destruída, tão violenta e tão à margem da história. Isto implica a possibilidade de extrair, após um período tão terrível, lições que sejam, pela primeira vez - sutil mas imensa novidade - coerentes com uma articulação societal (para usar o nome mais contudente que me ocorre) mais civilizada.

O mais catastrófico inclui esse lado de esperança que pode se sentir não só no colapso do regime e na condenação, agora quase unâmime, dos horrores cometidos em tantos âmbitos mas, ainda mais, no fato de que nunca houve na Argentina tantas vozes tão sinceras propondo a conquista da democracia que veio se nos escapando em tantos meandros da história. Mas para tornar isso realidade, para que o caminho percorrido seja de tal maneira consolidado que os mandões não possam revertê-lo e para que com a conseqüente democratização do poder possa se governar fazendo com que o preço desta velha crise seja pago por aqueles que já demasiado, e por demasiado tempo, têm se aproveitado dela, para que tudo isso ocorra, convém, que olhemos para nós mesmos. Poderíamos fugir mais uma vez, pondo "neles"toda a responsabilidade pelo que ocorreu e pelo que agora deve ser feito. Isto não seria difícil, porque efetivamente, a violência generalizada do pré-1976 causou enormes danos e muito preparou o terreno do que sobreveio pouco depois; porque, sem dúvida nada poderá jamais isentar o regime pós-76 e seus prepostos pelo que fizeram; e, também, porque hoje está claro que cabe aos políticos a principal responsabilidade de navegar pelos redemoinhos que ainda falta percorrer até a inauguração de um governo democraticamente eleito. Entretanto, apesar de tudo isto ser verdade, insisto no meu argumento: somos de há muito tempo, e recentemente fomos ainda mais, uma sociedade fortemente autoritária, antagonística, intolerante, povoada de minidespotismos e particularmente propensa -como poderia tornar a ocorrer se tudo carregássemos na conta "deles"- a explicações paranóides dos nossos infortúnios. No combate microscópico dessas tendências, na luta com garra de cidadãos democratas que o são também nos seus microcontextos, e na recontextualização do imenso potencial igualitário e autoconsciente da sociedade argentina, inclusive, e principalmente do seu setor popular, se decide não menos do que em outros âmbitos mais visíveis, o imenso desafio com que hoje nos defrontamos.

Notas:

  • * O autor explora essas tendências, numa abordagem comparada com o caso brasileiro, no ensaio "E eu com isso?"in Contrapontos. Autoritarismo e Democratização (São Paulo; Vértice, 1986).
  • * Um tratamento mais sistemático desta questão pode ser encontrado em 0'Donnell, Guilhemo, "Hiatos, instituições e perspectivas democráticas"in 0'Donnell, G. e Reis, F.W. (orgs.), Brasil: Dilemas e Oportunidades da Democracia (São Paulo: Edições Vórtice, no prelo).
  • ** Guillermo O'Connell e Cecília Galli: "Apuntes e Interrogantes acerca de algunos aspectos individuales y microsociales, baseados en un estudio de Argentina contemporanea", Buenos Aires, outubro de 1979, mimeo.
  • 2 Dentre os trabalhos sobre o tema, parece-me particularmente esclarecedor o de Jorge Schvarzer, Martínez de Hoz: la lógica política de la política econômica (Buenos Aires: Ensayos y Tesis CISEA, 1982).
  • Uma tentativa precoce de discutir estes temas, fizemos com Roberto Frenkel em "Los programas de Estabilización convenidos con el FMI y sus impactos internos"(Buenos Aires: Estúdios CEDES, 1978).
  • Algumas destas discussões retomei em "Fuerzas Armadas y Estado Autoritário", ín Norbert Lechner, ed.. Estado y Política en América Latina (México DF: Siglo XXI. 1981).
  • 4 Sobre este ponto, veja Nestor Perlongher, "La represión a los homosexuales en la Argentina", São Paulo, mimeo, 1982.
  • 8 Sobre o tema ver os excelentes trabalhos de Marcelo Cavarozzi, especialmente Autoritarismo y democracia en ia Argentina (Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1983).
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    O autor explora essas tendências, numa abordagem comparada com o caso brasileiro, no ensaio "E eu com isso?"in
    Contrapontos. Autoritarismo e Democratização (São Paulo; Vértice, 1986). (N.T.)
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    Um tratamento mais sistemático desta questão pode ser encontrado em 0'Donnell, Guilhemo, "Hiatos, instituições e perspectivas democráticas"in 0'Donnell, G. e Reis, F.W. (orgs.),
    Brasil: Dilemas e Oportunidades da Democracia (São Paulo: Edições Vórtice, no prelo). (N.T.).
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    Guillermo O'Connell e Cecília Galli: "Apuntes e Interrogantes acerca de algunos aspectos individuales y microsociales, baseados en un estudio de Argentina contemporanea", Buenos Aires, outubro de 1979,
    mimeo. ( N.T.)
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    Os que éramos realmente contra o que ocorria (isto é, incondicional e globalmente contra, e não apenas insatisfeitos com este ou aquele aspecto do regime), adotamos curiosas maneiras de, primeiro sobreviver e, depois, não enlouquecer - literalmente, creio - diante do extremado isolamento a que nos autocondenávamos com uma tal oposição. Uma dessas formas foi a que adotamos minha mulher, Cecília Galli, e eu: fazer uma proto-investigação sobre diversos aspectos de Buenos Aires. Digo que se tratou de uma "proto"investigação porque realizamos entrevistas com pessoas de distintos setores e ath/idades sociais que, sob as circunstâncias dadas, sentimos que podíamos entrevistar, sem pretender uma amostra "representativa". Simplesmente, entrevistamos aquelas pessoas que não nos assustava demasiado entrevistar. Fizemos, também, outras coisas: esmiuçamos, com a "devida discrição", diversas instituições educacionais e organizações profissionais; lemos (e, o cúmulo do masoquismo, impusemonos assistir e ouvir peia televisão) os discursos e gestos dos personagens do regime, e a auto-imagem deste na sua propaganda. Ademais, condenados a uma microfenomenologia do cotidiano, simplesmente
    olhamos, através da lente da nossa preocupação por encontrar ali certos impactos dos horrores e terrores do regime, a rua e diversas atividades profissionais. Por outro lado, Cecília, pela sua condição de mulher e graças ao seu óbvio sotaque estrangeiro, permitiu-se fazer "perguntas inocentes", acerca do que havia ocorrido e estava ocorrendo em nosso país, a garçons, motoristas de táxi, quitandeiros, jornaleiros e essa miríada de pequenos-grandes personagens do cotidiano de Buenos Aires. Da massa de informação resultante, que ainda não conseguimos digerir, nem intelectual nem emocionalmente, surgiu algo assim como uma etnografia das conseqüências, não poucas vezes inconscientes para os próprios atores, de viver sob um regime excepcionalmente repressivo. Este caráter de exceção derivava não somente da violência física exercida pelo regime, mas também pelo propósito de modificar radicalmente, numa direção convergente com seus próprios padrões, as relações de autoridade
    na sociedade. O presente texto baseia-se em alguns aspectos sobre os quais esta proto-investigação despertou a nossa sensibilidade. Quem sabe um dia possamos escrever o livro que destile muito mais globalmente estas experiências.
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    Dentre os trabalhos sobre o tema, parece-me particularmente esclarecedor o de Jorge Schvarzer,
    Martínez de Hoz: la lógica política de la política econômica (Buenos Aires: Ensayos y Tesis CISEA, 1982). Uma tentativa precoce de discutir estes temas, fizemos com Roberto Frenkel em "Los programas de Estabilización convenidos con el FMI y sus impactos internos"(Buenos Aires:
    Estúdios CEDES, 1978). Algumas destas discussões retomei em "Fuerzas Armadas y Estado Autoritário", ín Norbert Lechner, ed..
    Estado y Política en América Latina (México DF: Siglo XXI. 1981).
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    A Cecília e a mim chamou-nos a atenção a frequência com que ambas publicações reproduziam uma cena típica, que talvez melhor do que outra qualquer, fosse a auto-imagem preferida desse despotismo. Trata-se de um homem "perfeitamente vestido"de acordo com os padrões que se impunham à época, retornando à sua casa depois do trabalho, cansado, mas feliz, ternamente recebido pela esposa, não menos feliz por ter ficado em casa limpando, cuidando das crianças e cozinhando. Outra personagem desta cena é um ancião, vovô, boníssimo e reverenciado, portador da imagem de um passado mais antigo que o recente, no qual essa deliciosa família encontra seu sentido de continuidade. E, para baixo, absolutamente nenhum jovem, imagem subversiva cuidadosamente eliminada. Somente crianças pequenas, sorridentes, limpíssimas e obviamente, totalmente obedientes. Com a suposição de que a reiteração dessa imagem prototípica na publicidade teria de obedecer a instruções do governo, entrevistamos alguns publicitários. Através deles, afora as proibições "moralizantes"impostas pela televisão - que não obrigavam necessariamente a se restringir àquela imagem, - ficamos sabendo, com profunda surpresa e ainda mais profunda preocupação, que eram as próprias empresas que solicitavam essa cena social e psicologicamente regressiva. Segundo estas, assessoradas pelos seus analistas de mercado, era a situação que mais ajudava a vender os produtos. Ironicamente, a publicidade que quebrava mais freqüentemente com este esquema, e até mostrava jovens, era a de algumas filiais de empresas multinacionais, que reproduzia os pacotes publicitários importados de suas matrizes.
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    Sobre este ponto, veja Nestor Perlongher, "La represión a los homosexuales en la Argentina", São Paulo,
    mimeo, 1982. Este trabalho é notável não só pelos horrores que o autor mostra foram cometidos nessa matéria a partir de 1976, mas também porque sugere a continuidade de uma enorme intolerância antes desta data.
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    Kapós foram aqueles prisioneiros que, nos campos de concentração nazistas, se identificavam plenamente com o agressor, e tinham sob sua responsabilidade diversos aspectos da "disciplina"do campo. Estudos e memórias de sobreviventes insistem em afirmar que eles eram em muitas ocasiões ainda mais cruéis que os S. S., e aplicavam, ainda com mais rigor do que estes, os regulamentos do campo.
  • 6
    Uma esmagadora maioria dos nossos entrevistados (aproximadamente 90%) mostrou claramente a "isca"subjetiva que o discurso estatal utilizou durante vários anos, para impor este falso, mas eficiente dilema. Entrevistados das mais diversas posições e ativtdades sociais, tanto como opiniões políticas, escolheram espontaneamente os anos imediatamente precedentes a 1976 como o período (que convidávamos a determinar) com o qual eram comparadas suas sensações acerca de como viviam e como estavam as coisas no nosso país em 1979 (momento em que realizamos a maior parte dessas entrevistas). A escolha daquele período era feita, na maior parte dos casos, como lembrança do que as pessoas consideravam como um período de caos, violência e incerteza insuportáveis, frente ao qual qualquer alternativa de
    ordem parecia-lhes preferível. Isto não impedia que muitos dos entrevistados estivessem descontentes com diversos aspectos da política governamental (a grande maioria dessas críticas referia-se à política econômica; as referências à repressão, censura e coisas do gênero foram bastante mais escassas). Mas esses insatisfeitos, na medida em que a visão dos sujeitos continuava presa naquele dilema "caos-ordem"(ou, em outras palavras, na medida em que o regime tinha conseguido suprimir alternativas que quebrassem essa disjuntiva com uma proposta de ordem subordinada a uma outra lógica política e valorativa), não chegavam a modificar a extremada privatização da vida diária (incluindo uma forte queda em atividades associativas afastadas de qualquer conotação política) em que encontramos estes entrevistados. Houve casos em que foi-nos dito que, até que a nossa entrevista os forçara a fazê-lo, fazia muito tempo que não pensavam em, ou não se preocupavam por, "questões públicas ou políticas". Cabe anotar aqui, para discutir talvez numa outra ocasião, que isto também era verdade no caso de pessoas que foram fortemente politizadas antes de 1976.
    Não resta dúvida que um tal aprisionamento da visão geral (corresponde à descidadanização verificada em todas as esferas) soava já naquela hora como precária. E, de fato, tudo indica que, como tantas outras coisas desse período, começou a explodir com a transição presidencial de Videla para Viola em 1981, e acabou de fazé-lo com as Malvinas. Eu ficaria muito surpreso se para esses entrevistados o referencial negativo organizador da sua visão do presente e de suas expectativas para o futuro (o predicado do "qualquer coisa antes que a volta àquilo", que ouvimos tantas e tantas vezes) não fosse hoje o período posterior à março de 1976, não mais o anterior.
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    Não foi acidental, certamente, que de 1976 em diante rudes militares e elegantes economistas coincidiram com o propósito (que teve muito a ver com os avanços do autoritarismo na sociedade) de pôr, de uma vez por todas - como alguém me dissera durante memorável briga familiar - lodo mundo no seu lugar". Ou seja: aqueles "em cima", sabendo tudo que tinha que ser feito e mandado; os de "baixo", de crianças até operários, cabisbaixos e obedecendo sem dar um pio; e os do meio, na sua eterna esquizofrenia de mandar e obedecer, sabendo muito bem a quem obedecer e em quem mandar, e - "modernização econômica"mediante - deslumbrados com quanto
    gadget importado aparecia e com a admiração do estilo de vida oligárquico, suntuoso e fariseu que os meios de comunicação se esmeravam em transmitir.
  • 8
    Sobre o tema ver os excelentes trabalhos de Marcelo Cavarozzi, especialmente
    Autoritarismo y democracia en ia Argentina (Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1983).
    Tradução de Rolando Lazarte
    Este trabalho foi escrito em 1983, na Argentina, em momentos em que o regime militar inaugurado em março de 1976, com a derrubada da presidenta Maria Esteia Martínez de Perón, apressava a entrega do poder aos civis, antecipando a data das eleições presidenciais. O regime havia manifestado não muito antes de sua queda, que "as umas estão bem guardadas", e que o Processo de Reorganização Nacional (nome que deram a si mesmos os golpistas) "não tem prazos, mas sim objetivos". (N.T.)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jan 2011
    • Data do Fascículo
      Jun 1988
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