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O pânico está no ar

AIDS

O pânico está no ar

O pânico está no ar. Poucos ousam confessá-lo, porque, muito mais que o vírus da AIDS (síndrome da deficiência imunológica adquirida), está no ar o vírus do preconceito, agora com aval "científico".

Mais do que um grave problema de saúde pública — o que, certamente, não pode ser ignorado —, a AIDS se transformou num verdadeiro fenômeno de opinião pública. Criou-se um clima de boatos, onde as propostas mais radicais e absurdas — criação de guetos, discriminação e, até mesmo, extermínio — despontam como razoáveis.

Preocupada com isso, LUA NOVA fez uma consulta a personalidades da sociedade civil, aquelas que podem ser consideradas como "formadoras de opinião". Marília Garcia telefonou a algumas dessas pessoas e propôs duas perguntas:

1) Em algum momento você se sentiu pessoalmente ameaçado pela AIDS?

2) Na sua opinião, em alguma medida, as reações da sociedade com relação à ameaça da AIDS estão significando um retrocesso da moral sexual?

RENATO MEZAN (psicanalista)

1) Sim. É uma coisa que está no ar, e está circulando. É uma ameaça que, de repente, se tornou presente para mim. Eu não costumo ter contato com pessoas que pertencem aos grupos de risco. Mas, de repente, ficou complicado até ir ao dentista.

2) Sem dúvida nenhuma, as reações que têm sido vistas representam um retrocesso de certos padrões de comportamento socialmente admitidos, que não foram fáceis de conquistar. A AIDS é um veículo de fantasias e ameaças parecidas com as que eram ligadas à sífilis no século XIX. É claro que ela também é uma ameaça real. Mas, ao nível da fantasia, ela ameaça a liberdade sexual dás pessoas, uma vez que limita, ou impede, o contato sexual episódico — hábito que havia se tornado freqüente nas últimas décadas. Mais que isso. As pessoas são atingidas na sua fantasia na medida que outras formas de contágio (através do sangue, da saliva) envolvem líquidos corporais, que são carregados de significações inconscientes.

HENRY SOBEL (rabino)

1) Nunca!

2) Talvez a promiscuidade diminua. Mas não creio que o espirito liberal que hoje permeia a nossa sociedade vá se alterar. Nossa cultura está imbuída de um interesse freudiano no sexo. As pessoas estarão conscientes dos perigos da doença mas a ética liberal sexual foi longe demais para voltar atrás agora.

EUNICE MICHILES (senadora pelo PDS do Amazonas)

1) Sim. Ontem mesmo eu soube de um caso de contágio através de alicate de unhas, para cutícula. Imediatamente, mandei comprar um alicate só para mim.

2) São duas coisas diferentes. Em primeiro lugar, há o medo racional. A doença é um fato, é perigosa, é letal. Mas, sob tudo isso, está a repressão sexual, a idéia de pecado. Tem que haver uma campanha para informar os cidadãos, para evitar o pânico. Mas eu ainda não sei o que é menos pior: a imprensa divulgar e tentar informar ou evitar falar, para não cair na armadilha do pânico.

CRISTINA TAVARES (deputada federal pelo PMDB de Pernambuco)

1) Não. Na verdade, eu tenho lido pouco sobre esse assunto. Lá no Nordeste nem se ouve falar sobre essa coisa.

2) Pode-se chegar a algum controle. Mas tem que ver de que retrocesso se está falando, porque, para mim, homossexualismo não é conquista. Eu... Você me daria uma meia hora para pensar melhor sobre o assunto? Em seguida, eu telefono para vocês para responder.

(A deputada não voltou a telefonar. Diante da insistência da reportagem, a sua assessoria se desculpou e informou que, infelizmente, ela teve de viajar às pressas para o interior de Pernambuco. Não foi mais possível contatá-la antes do fechamento desta edição.)

RICARDO VERONESE (médico, professor de Doenças Infecciosas da Faculdade de Medicina da USP)

1) Não. Eu sou um heterossexual! Acho apenas que devo tomar cuidado para que a doença não entre na minha casa, como já entrou na casa de tantas pessoas.

2) É preciso saber separar as coisas. A AIDS é um problema gravíssimo de saúde pública. É uma doença nova, grave, letal. Dizer que no Brasil a AIDS é um problema menor — já que há milhares de pessoas com doença de Chagas e milhões com esquistossomose — é desumano. Porque essas pessoas não vão morrer num prazo curto. Para a saúde pública todos são seres humanos. Não interessa a opção sexual. É por isso que eu... Como professor universitário, eu não vou admitir que se utilize um problema de saúde pública para fazer propaganda de homossexualismo. Isso já está sendo feito através de cartazes, onde se lê "transe numa boa" (e sabe lá qual é a concepção deles de "transar numa boa"!).Onde se incentiva a masturbação a dois, incidindo até mesmo na formação dos menores. Essas pessoas vão ser chamadas pelo Juiz de Menores! Eles se aproveitam da fraqueza do nosso sistema de saúde pública, para fazer propaganda do homossexualismo.

VINÍCIUS CALDEIRA BRANT (sociólogo)

1) Não.

2) Não sei.

JOSÉ DIRCEU DE OLIVEIRA (secretário geral do Partido dos Trabalhadores, em São Paulo)

1) Não.

2) Eu temo que sim. Está havendo um pânico. Se ficar comprovado que as saunas, os bares, estão sendo fechados por falta de público, se ficar comprovado que mesmo os heterossexuais estão estão limitando suas vidas e restringindo o número de parceiros, por causa da AIDS, estará claro que um problema de saúde pública, de prevenção, está interferindo na liberdade das relações pessoais. Se a liberação sexual não era total, pelo menos havia um debate público desse tema. E com esse clima que se está criando, o debate pode voltar para as catacumbas, para a repressão. Há uma intenção de se usar o pânico como uma arma do preconceito contra o homossexualismo e a liberdade sexual.

FERNANDO GABEIRA (jornalista)

1) Não.

2) Sim. Os conservadores brasileiros têm grande dificuldade de entender que a ameaça da AIDS não pode ser reduzida a uma simples campanha para restringir a atividade amorosa das pessoas. Ninguém se preocupa em ver as verdadeiras causas sociais da doença. Analisar o aparecimento da AIDS, levando isso em conta, seria procurar a sua trilha real: a miséria de um Terceiro Mundo onde as pessoas pobres são brutalmente exploradas. O seu aparecimento no Haiti, onde o contrabando de sangue foi responsável pela disseminação da doença. É preciso fazer uma grande campanha educativa sobre a AIDS. A tarefa do governo e dos cientistas deve ser a de buscar caminhos para que as pessoas ampliem as suas relações sexuais com segurança maior. A ciência e o saber político devem ser postos a serviço disso.

FREI BETTO (padre e escritor)

1) Não.

2) Não acho que significa nenhum retrocesso. Retrocesso é a promiscuidade sexual que favorece a AIDS.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1985
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