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BUROCRACIA E CRISE DE LEGITIMIDADE: A PROFECIA DE MAX WEBER

BUREAUCRACY AND THE LEGITIMACY CRISIS: MAX WEBER'S PROPHECY

Resumo

A sociologia da dominação e a do direito de Max Weber representam uma mudança de paradigma no campo da teoria política. Ao deslocarem o eixo de análise dos meios de aquisição e instituição do poder dos dominadores para a crença dos dominados, operam uma notável inversão no modo de compreensão da legitimidade do poder político. A exposição da tensão entre a expansão burocrática e a estrutura da dominação democrática conferiram à reflexão weberiana um tom profético, cuja repercussão se faz sentir até os dias de hoje. A finalidade deste artigo é examinar alguns conceitos de Weber, a fim de analisar a relação entre a dominação burocrática e a legitimidade do poder político. À guisa de conclusão, empreende-se uma sucinta análise da legitimidade do Poder Judiciário na democracia brasileira.

Palavras-chave:
Poder; Dominação; Legitimidade; Burocracia; Democracia

Abstract

The legal sociology and that of domination elaborated by Max Weber represent a paradigmatic shift in the field of political theory. By moving the analysis of the means of acquisition and institution of power of dominants to the belief of the dominated, they operate a remarkable inversion in the way of understanding the political power legitimacy. Exposure of the tension between the bureaucratic expansion and the structure of democratic domination has given the Weberian reflection a prophetic tone that is still felt. The purpose of this paper is to examine some of Weber's concepts in order to analyze the relation between bureaucratic domination and legitimacy of political power. In conclusion, a brief analysis is carried out to raise some questions on the legitimacy of the Judiciary in the Brazilian democracy.

Keywords:
Power; Domination; Legitimacy; Bureaucracy; Democracy

À burocratização pertence o futuro. (Max Weber)

É uma constante da reflexão político-filosófica a pergunta relativa à dominação de homens sobre homens. Por que obedecemos às normas jurídicas? De onde o direito extrai a sua obrigatoriedade? Quais são os fundamentos de validade da ordem jurídica? A ordem jurídica é uma forma de exercício do poder? É possível distinguir poder (Macht) de dominação (Herrschaft)?

O ponto de partida para a compreensão do motivo pelo qual obedecemos consiste no fato de que nenhuma forma de poder é forte o suficiente para garantir a sua estabilidade somente por controle externo de coerção COHN, G. 1979. Crítica e resignação: fundamentos da sociologia de Max Weber. São Paulo: T.A. Queiroz.. Todo exercício de poder de caráter duradouro e estável necessita autojustificar-se para atingir corações e mentes dos dominados. Não há agrupamento humano que exerça o poder de forma contínua e regular sem retirar o seu fundamento da legitimidade, precisamente da crença e do reconhecimento daqueles que obedecem ao comando dos dominadores.

Poucos autores apresentaram uma reflexão tão explícita e profunda sobre o problema da legalidade e legitimidade quanto Max Weber. Para alguns, sua análise compreensiva da legitimidade teria desencadeado uma "reviravolta copernicana" nos campos da sociologia, do direito e, em especial, da teoria política. Tais estudos sobre a sociologia da dominação teriam modificado o modo de ver as relações de mando em consequência da mudança de paradigma: o deslocamento do eixo de análise do dominador - a exemplo da literatura que se debruça sobre as técnicas de aquisição e manutenção do poder pelo príncipe - para os motivos de submissão dos dominados.

A questão da legalidade e da legitimidade está presente em todo o desenvolvimento e todas as configurações do conflito social. O exame dos tipos de legitimidade, sobretudo a crença na legitimidade da legalidade, está intimamente ligado a uma das principais contribuições de Weber à racionalização do direito moderno. A utilização singular do método comparativo e a mobilização de um conhecimento de caráter enciclopédico são postos a serviço de sua preocupação central com o fenômeno da racionalização - não apenas do direito, da economia e da religião, mas de diversos outros âmbitos da vida social. Embora Weber não tenha tido tempo de concluir Economia e sociedade, é inestimável o valor de sua principal obra.

O escopo deste trabalho consiste em empreender uma incursão em alguns escritos de Max Weber, com o intuito de analisar a relação entre dominação burocrática e legitimidade do poder político democrático. Para tanto, adota como ponto de partida o exame de alguns dos principais conceitos da sociologia da dominação e do direito, elaborados pelo sociólogo alemão. A proposta de relacionar as respectivas sociologias ocorre em razão da impossibilidade de se dissociar sociologia, direito e política, ainda mais ao se pretender discutir legitimidade, legalidade e democracia. Na conclusão deste artigo, emprega-se parte do instrumental conceitual weberiano a fim de esboçar uma breve reflexão sobre alguns aspectos da democracia brasileira. Discute-se, portanto, sucintamente, a legitimidade do Poder Judiciário à luz da mudança de paradigma do positivismo jurídico para o pós-positivismo.

Fundamentos da dominação e da norma jurídica

A sociologia da dominação de Weber é desenvolvida em oposição à concepção dogmática jurídica, pois em sua concepção político-sociológica não há qualquer sorte de dominação estável se não houver luta entre agrupamentos humanos pelo poder político, precisamente pela dominação de homens sobre homens. A redução do direito à validade de um sistema fechado de normas jurídicas genéricas e abstratas estaria muito distante da realidade empírica "do que de fato ocorre" (realen Geschehns). Na perspectiva da sociologia do direito de Weber, a explicação e a compreensão dos fenômenos da realidade social concreta não podem ser subsumidos a preceitos normativos ou esquemas analíticos, mas se deve buscar conhecê-los por meio de regularidades observáveis na conduta de agentes. Tal modo de investigação não lida com o que se deve fazer, mas com a probabilidade (Chance) de os membros pertencentes a uma comunidade política se conduzirem em conformidade com um sentido atribuído a um ordenamento jurídico. Enquanto o direito procura, por sua vez, compreender a realidade complexa por sua redução à validade de prescrições normativas de um sistema de leis, a sociologia do direito de Weber (2003______. 2003. A "objetividade" do conhecimento nas Ciências Sociais. In: COHN, G. (org.). Max Weber. São Paulo: Ática., p. 88) quer "compreender a realidade da vida que nos rodeia e na qual nos encontramos situados naquilo que tem de específico". Dessa forma,

[...] o modo de consideração neste particular da sociologia está separado do jurídico. A jurisprudência trata, por exemplo, sob determinadas circunstâncias, o "Estado", do mesmo modo que um indivíduo, ou seja, como pessoa de direito, porque seu trabalho é dirigido para interpretação do conteúdo de sentido objetivo, isto é, para o que deve obter validade (Weber, 1988______. 1988. Gesammelte Aufsätze zur Wissenschaftslehre. Tübingen: Mohr., p. 439).

Em contrapartida, a finalidade da sociologia do direito consiste em evidenciar a regularidade do comportamento de homens concretos com linhas de ação dotadas de sentido e significado que dão existência a tais formações sociais e são influenciadas por outros indivíduos que nelas exercem funções. Isso é tão simples quanto dizer que não há Estado, família, sindicato, clubes, partidos políticos, fundações, ou seja, qualquer instituição, sem a ação de homens concretos, com comportamento fundado, entre outros motivos, na crença na existência de determinada ordem.

Vale reiterar: enquanto o direito se orienta por um ideal prescritivo do sentido "verdadeiramente correto" das normas jurídicas - ao prescrever o sentido ideal de como deve ser a conduta dos homens -, a sociologia do direito desloca sua atenção para a ação social de homens reais e procura compreender os motivos pelos quais os membros de uma comunidade política obedecem às normas jurídicas.

Não se compreende a realidade concreta da vida humana exclusivamente mediante o estudo das regras abstratas do direito contidas numa ordem jurídica, "pois em certas circunstâncias uma 'ordem jurídica', pode continuar inalterada mesmo que mudem radicalmente as relações econômicas" (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 224). Enquanto a dogmática jurídica se orienta para a validade ideal da norma, a sociologia do direito se dirige à realidade empírica. Volta-se para o exame da relação entre sentido subjetivamente visado pelos sujeitos concretos da ação social, pela representação que tem sobre a legitimidade de uma ordem. Atores sociais podem se orientar pelas expectativas do comportamento dos outros: pela possibilidade de aprovação ou desaprovação social (convenção) ou pela probabilidade de funcionários do Estado empregarem o uso da força para impor determinada ação ou omissão de acordo com a ordem jurídica impessoal. O crescimento da racionalização das ordens estatuídas pela forma racional e impessoal do direito é um fenômeno histórico, contingente, cuja influência é exercida em disputa com outras ordens, direcionada aos cursos das ações sociais. Não se pode esquecer que Weber recusa a ideia de o direito somente ser garantido pelos meios de violência. Tampouco considera "que só 'existe um 'Estado' onde e quando os meios coativos da comunidade política são efetivamente os mais fortes em comparação com todas os demais" (Weber, 2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 213). A realidade social para Weber (2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 23) é marcada pela "luta (latente) pela existência, isto é, pelas possibilidades de viver ou de sobreviver, que se dá entre indivíduos e tipos humanos".

A sociologia do direito de Weber quer compreender o motivo que possa ter guiado o comportamento humano, e de modo algum aspira prescrever-lhe um sentido "correto". O tipo de conhecimento que interessa a Weber, conforme enuncia Karl Löwith (1977LÖWITH, K. 1977. Racionalização e liberdade: o sentido da ação social. In: MARTINS, J.; FORACCHI, M. (orgs.). Sociologia e sociedade. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos., p. 147),

[...] com certeza não mostra o que se "deve" fazer, mas sim o que se pode fazer de modo consistente com determinados meios em relação a uma meta prevista. Acima de tudo, torna conhecido o que em geral realmente se "quer".

Pode-se, portanto, concluir que Weber somente elabora sua sociologia geral, e consequentemente sua sociologia do direito, a partir do estabelecimento de um dualismo entre os âmbitos normativo do dever ser e o empírico do ser - uma consequência do desenvolvimento de seus estudos sobre a ação social. Weber somente pôde desenvolver uma abordagem sociológica através da insistência na separação entre o normativo e o empírico, uma separação alcançada com sua teoria da ação social (Roth, 1978ROTH, G. 1978. Introduction. In: WEBER, M. Economy and society: an outline of interpretative sociology. Vol. 1. Berkley/Los Angeles/London: University of California Press., p. lxviii).

De acordo com Weber (2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 19; grifos meus),

[...] toda ação, especialmente a ação social e particularmente a relação social podem ser orientadas, pelo lado dos participantes, pela representação da existência de uma ordem legítima. A probabilidade de que isso ocorra de fato chamamos vigência da ordem em questão.

A relação social é um comportamento reciprocamente referido no que concerne ao conteúdo de sentido (Weber, 2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 16). É a partir de comportamentos reciprocamente referidos que podemos compreender a relação entre poder e autoridade, assim como esclarecer de onde o direito extrai sua obrigatoriedade.

A coação física ou psíquica consiste numa garantia externa do direito, que o Estado moderno, detentor de seu monopólio, lhe fornece como forma de fortalecimento do vínculo de conformação da conduta ao conteúdo da norma jurídica. Todavia, a definição da concepção do direito de Weber como ordem jurídica garantida pela possibilidade do uso da violência não quer dizer que o meio externo da coerção seja o fundamento mais comum do cumprimento da norma jurídica ou o motivo pelo qual os atores sociais orientam sua conduta. Muitas ações se orientam pelo mero sentido de obrigatoriedade, pelo hábito irrefletido, pela fé cega de um costume tão enraizado que sequer é possível ter consciência dele.

O conceito de vigência de uma "norma jurídica" não implica, de modo algum, neste sentido normal, que aqueles que se submetem à norma o façam principalmente, ou em geral, em razão de existir um aparato coativo (no sentido exposto). [...]. Ao contrário, os motivos da submissão à norma jurídica podem ser de natureza mais diversa (Weber, 2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 211; grifo meu).

Essa passagem revela que o fundamento principal da conformação da conduta à norma jurídica não reside na força, precisamente na existência de um aparato coativo, mas em diversos motivos, dentre eles alguns podem ser traduzidos como reconhecimento ou virtude da crença nos princípios da legitimação de uma ordem.

O controle de semelhante aparato para exercer a coação física não foi desde sempre o monopólio da comunidade política. Em muitos casos, a associação política usurpou o controle desses meios coativos (Weber, 2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., pp. 213, 214). A luta entre os meios coativos de associações diversas, como as disputas entre o poder espiritual da Igreja (poder invisível) e o poder temporal do Estado (poder visível), marca o processo do desenvolvimento do direito moderno. Essa contenda "no passado, muitas vezes não terminou com a vitória dos meios coativos da associação política e, ainda hoje, nem sempre isso ocorre" (Weber, 2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 214). Embora não devamos naturalizar o conceito de Estado e tampouco o poder político de outras associações ou instituições que detêm garantias para o cumprimento de suas ordens, não podemos esquecer que a associação política estatal (em um nível sociologicamente relevante) detém, entre outros, o monopólio dos meios legítimos de violência e da elaboração das leis. Não se deve deixar de perceber, porém, que o monopólio da força coercitiva pela organização estatal somente adquire durabilidade, em face das contingências da vida política, enquanto for sustentado pela crença segundo a qual o seu uso exclusivo é fruto de um direito autorizado por uma lei com qual se consentiu.

Legalidade e legitimidade

O núcleo central do qual o Estado haure a obrigatoriedade das normas reside na crença na legalidade, precisamente, no reconhecimento da retidão da norma jurídica. Acredita-se no caráter correto de uma norma jurídica na medida em que ela obedece a uma forma previamente determinada de elaboração. Uma lei tem de ser aprovada pelo Poder Legislativo para, posteriormente, submeter-se à sanção ou veto pelo chefe do Poder Executivo. Uma norma jurídica somente é validada se se sujeitar aos trâmites procedimentais. Aí, sim, encontra uma possibilidade relevante de ser legitimada pelos membros da associação política. Trata-se de uma legitimidade da forma, do procedimento de elaboração da norma jurídica e não de seu conteúdo.

Portanto, "a forma de legitimidade hoje mais corrente é a crença na legalidade, a submissão a estatutos estabelecidos pelo procedimento habitual e formalmente correto" (Weber, 2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 23). A vigência legítima de uma ordem pode ocorrer em virtude "de um estatuto existente em cuja legalidade se acredita". Nota-se como "esta legalidade [...] pode ser considerada legítima" (Weber, 2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 22; grifos meus). Weber recebeu críticas ao sustentar que a crença na legitimidade da legalidade de um preceito jurídico é a forma mais corrente de legitimidade. Carl Schmitt (1998SCHMITT, C. 1998. Legalität und Legitimität. Berlin: Duncker & Humblot. , p. 14) comenta, em Legalität und Legitimität, que a afirmação de Weber seria inconsistente: "Aqui tanto a legalidade quanto a legitimidade são reconduzidas ao conceito comum de legitimidade, significando a legalidade exatamente o oposto da legitimidade" ______. (org.). 2003. Max Weber. São Paulo: Ática.. Schmitt postula a necessidade de se distinguir inequivocamente legitimidade de legalidade e alerta sobre o perigo de redução da legitimidade à legalidade. A crença na forma vazia de um estatuto legal poderia justificar qualquer status quo, inclusive uma forma opressiva de dominação.

A diferença entre Max Weber e Carl Schmitt é que Weber não está preocupado em propugnar como deve ser a distinção entre os conceitos de legalidade e legitimidade. Aliás, diga-se de passagem, Weber tem consciência da referida distinção conceitual. O eixo de sua análise não se situa no plano normativo, mas empírico. A discordância de Schmitt com relação a Weber é apenas aparente, pois ambos os autores estão preocupados em compreender as relações de dominação da perspectiva mais próxima possível ao que de fato ocorre (was faktisch geschiet). Além disso, Schmitt concordava com Weber de que a forma mais inquebrantável de dominação era a dominação burocrática, cujo fundamento de validade residiria na crença na legalidade dessa forma específica de exercício do poder. Ambos chamavam a atenção para a impossibilidade de realizar democracia nas organizações burocráticas onde se encontravam tecnocratas portadores do saber. A relação entre poder e saber, enraizada no coração da estrutura burocrática, criara uma forma irreversível de dominação, capaz de solapar qualquer abertura à ação e decisão política livres. A irrefreável expansão burocrática revelava que, embora a burocracia fosse um fermento pujante na democracia, sua expansão acelerada provocava a despolitização, fragmentação e impossibilidade da formação de um governo democrático alicerçado no apoio popular.

Poder e dominação

Para Weber (1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 33), "poder significa toda probabilidade de impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências, seja qual for o fundamento dessa probabilidade". Não se trata de uma substância ou um elemento metafísico, mas de uma relação social. O poder é uma espécie de relação social onipresente na sociedade. Tal tipo de relação não se encontra apenas na política, nas empresas, nos bancos, sindicatos ou universidades. As relações de poder também são exercidas na família, nas comunidades religiosas, nas relações eróticas etc. (Weber, 2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 140).

Embora a situação social na qual se manifeste a relação de poder seja definida pela superioridade exercida unilateralmente por seu portador ou por um complexo de poder - a exemplo do pai, do líder de uma organização, do mercado, de associações políticas -, ela apresenta dois critérios. O primeiro critério imprescindível é que tal relação seja sempre assimétrica, em outras palavras, a relação deve enunciar uma ausência de correspondência na distribuição de poder entre os atores sociais envolvidos. Uma relação assimétrica de poder encontraria seu tipo mais puro no monopólio exercido por uma empresa no mercado (Weber, 2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 188). O traço especificamente dinâmico da relação de poder é compreendido na capacidade de "impor a própria vontade numa relação social, mesmo contra resistências" (Weber, 2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 33). A imposição da vontade, ainda que a ela se oponha resistência, ocorre em virtude da superioridade. Mas em que se alicerça essa superioridade? O conceito de poder de Weber nada diz a respeito dos motivos que o fundamentam. O motivo no qual se alicerça a imposição do poder é deixado em aberto, não sendo possível encontrá-lo sob uma forma precisa, mas sob diversas formas, como a do dinheiro, da força, da coerção física, da retórica, do conhecimento, da atração sexual, entre outras.

Na sociologia de Weber, o conceito de poder não recebe um tratamento essencialista, mas situacionista. Sua chave compreensiva reside em uma situação dada em cujas circunstâncias se apresentam características determinadas. A definição conceitual do poder apresenta elevado nível de sublimação, o que impossibilita encontrar fundamentos precisos. Por isso, Weber (2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 33) afirma que o "conceito de 'poder' é sociologicamente amorfo. Todas as qualidades imagináveis de uma pessoa e todas as espécies de constelações possíveis podem pôr alguém em condições de impor sua vontade numa dada situação".

Faz-se necessário, por conseguinte, dispor de um instrumento conceitual mais específico, que leve à distinção entre poder e dominação: "o conceito de dominação deve ser mais preciso e só pode significar a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem" (Weber, 2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 33). Mas como se define, finalmente, o conceito de dominação? "Dominação é a probabilidade de encontrar obediência a uma ordem de determinado conteúdo entre determinadas pessoas indicáveis" (p. 33).

O conceito de dominação não surge mais no sentido geral de poder, mas, ao contrário, é empregado na acepção de "um caso especial do poder" (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 187). Isso significa que o conceito de dominação apresenta dois sentidos distintos: o primeiro de caráter mais amplo, utilizado, segundo Weber, na linguagem corriqueira, com sentido impreciso ou amorfo de poder. O segundo apresenta características marcantes, como é o caso da ordem, obediência e do reconhecimento.

Antes de explicitá-los, convém salientar que toda relação social na qual se configura uma dominação é contingente, ou seja, somente pode ser compreendida na medida em que não é definida pela certeza de uma lei, mas pela "probabilidade de encontrar obediência". Em outras palavras, "o universo de eventos singulares é contingente" (Cohn, 1979COHN, G. 1979. Crítica e resignação: fundamentos da sociologia de Max Weber. São Paulo: T.A. Queiroz., p. 82). Isso significa dizer que a realidade da vida social não é governada por um princípio de causalidade cujo funcionamento é imanente aos fenômenos sociais. A contingência, amplo conjunto de possibilidades de experiência e ações humanas, cujo resultado pode ser sempre diferente do esperado, é transformada pela sociologia de Weber num meio de inteligibilidade (Palonen, 2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 21). A probabilidade de que uma pluralidade de cursos de ações sociais ocorra de um jeito e não de outro corresponde às opções feitas pelos agentes e os valores atribuídos ao sentido de suas ações. Nas relações sociais, as ações e o seu sentido limitam-se reciprocamente pelo fato de se entrecruzarem, o que reduz a complexidade e a estrutura da vida social. A construção de conceitos sociológicos aptos a se aproximarem da maior ou menor probabilidade de evidenciar a conexão de sentidos de um curso de ações sociais se observa na investigação dos motivos, cujo teor leva à obediência sob qualquer forma de dominação.

Dominação: autoridade e obediência

As características do conceito de dominação, no sentido mais específico de uma forma de manifestação do poder, podem ser pensadas à luz de duas de suas características: a noção de obediência e de autoridade. Com relação à obediência, é indispensável ressaltar que não há relação de dominação sem "o mínimo de vontade de obedecer, isto é, de interesse (externo ou interno) na obediência, faz parte de toda relação autêntica de dominação" (Weber 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 139). A obediência de um agente a uma ordem ou a um comando pode ocorrer em virtude de elementos externos ou internos. Para Weber, a definição conceitual de dominação não pode se contentar com o interesse ou atitudes meramente externas. A conduta de um agente em conformidade com uma ordem não pode ser apenas condicionada por fatores externos, como é o caso da coerção física ou psíquica, aprovação e reprovação social (convenção), mas requer uma predisposição dos submetidos à dominação. O imprescindível à definição conceitual da dominação não é a pretensão de alcançar o domínio, mas, antes de tudo, a predisposição à obediência. A obediência se traduz no reconhecimento da pretensão de dominação e apresenta-se como um elemento constitutivo das relações de dominação. O reconhecimento da pretensão de dominação pelos submetidos pode ser compreendido pela fórmula empregada por Weber: os submetidos ou dominados agem de tal modo como se elevassem o conteúdo de uma ordem ou comando à máxima de suas próprias ações. A ordem do dominador influencia de forma tão eficaz as ações dos dominados que eles não orientam sua conduta como destinatários da referida ordem recebida. Ao contrário, agem como se fossem os próprios autores do conteúdo da ordem que obedecem:

Por "dominação" compreendemos, então, aqui, uma situação de fato, em que uma vontade manifesta ("mandado") do "dominador" ou dos "dominadores" quer influenciar as ações de outras pessoas (do "dominado" ou "dominadores"), e de fato as influencia de tal modo que estas ações, num grau socialmente relevante, se realizam como se os dominados tivessem feito do próprio conteúdo do mandado a máxima de suas ações (obediência) (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 191).

Para existir dominação, não basta a mera conformidade da ação ao conteúdo de uma ordem. É insuficiente o resultado puramente externo da conduta de um agente que se guia de acordo com o comando. A estabilidade de uma situação determinada de dominação exige que o dominado não seja apenas motivado "por um sentimento de obrigação, por medo, por 'mero costume' ou por causa de vantagens pessoais" (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 191). O destinatário da ordem, que age - "num grau socialmente relevante" - como se fosse autor de seu conteúdo, transfere dignidade, precisamente autoridade à ordem do dominador. Se o comando do dominador encontra por parte do destinatário "aceitação como norma vigente", o sujeito da dominação age como se tivesse sido autorizado por aquele.

O conceito de dominação é idêntico ao conceito de autoridade. Do ponto de vista da sociologia de Weber, a relação de dominação é uma relação de autoridade. O decisivo não é o conceito amorfo ou abstrato de poder, "mas a sua existência efetiva, isto é, uma autoridade que pretende para si o direito de emitir determinados mandados encontra, num grau socialmente relevante, efetivamente obediência" (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., pp. 192-93; grifos meus). Weber compara a dominação com a situação diametralmente oposta representada pelo livre jogo de interesses do mercado. Na situação de interesses do mercado, não há obediência, mas disputa, precisamente concorrência econômica. Nas relações de poder, reinantes na disputa de interesses do mercado, a obediência não é verificável em grau socialmente relevante, impedindo que se constitua uma relação autoritária ou de dominação. Todavia, as relações provenientes da situação de interesses do mercado podem ser percebidas, em virtude da falta de regulamentação e de aparato coativo, "de forma muito mais opressiva do que uma autoridade expressamente regulamentada na forma de determinados deveres de obediência" (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 191; grifos meus).

A ausência de um princípio de legitimação, como é o caso da inexistência do reconhecimento de uma norma jurídica ou de "uma 'ordem' normativa, legalmente, existente", pode tornar as relações no mercado "muito mais opressoras". Uma dominação opressora, seja ela proveniente dos interesses em jogo no mercado, seja resultante da imposição da força bruta do poder, é instável. Ela não contém uma justificação distinta da exterioridade dos interesses econômicos ou do uso da força. Ao contrário do conceito de mercado, o conceito de dominação é empregado

[...] naquele sentido mais estreito, que se opõe diretamente ao poder condicionado por situações de interesses, particularmente as do mercado, que por toda parte se baseia, formalmente, no livre jogo de interesses. Nosso conceito é idêntico ao poder de mando autoritário (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., pp. 191-92).

A forma autoritária de dominação, no sentido do sociólogo, é caracterizada pela legitimidade, pelo fato de o exercício do poder encontrar, por um lado, uma justificativa da parte do dominador, cujo teor é alicerçado em algo diferente de um meio coercitivo ou do mero interesse; por outro lado, os dominados devem aceitar tal justificação e crer na sua retidão. O poder pode, por exemplo, ser dotado de autoridade caso se apoie na legalidade de uma ordem, no seu caráter normativo, cuja validade encontra seu fundamento na crença na forma correta de elaboração dos estatutos jurídicos, e, portanto, legítimo (Weber, 2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 19).

Toda forma de dominação, no sentido weberiano, necessita de uma justificação, que se traduza como uma pretensão à legitimidade: "toda 'dominação'", revela Weber, "no sentido técnico que damos à palavra, depende, no mais alto grau, da autojustificação mediante o apelo aos princípios de sua legitimação" (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 197; grifo meu).

Qualquer relação de dominação, em cuja estrutura se encontrem os elementos autorização e autojustificação, é legítima. A dominação legítima, portanto, é percebida numa relação autoritária em virtude de o exercício do poder ser justificado do ponto de vista das pessoas dominadas: os dominados acreditam nos princípios de justificação e conferem autoridade ao poder. Admitem a validade normativa do princípio pretendido pela parte dominante como garantia para suas ações.

A análise do tema das formas de dominação no pensamento de Weber deve levar em conta três perspectivas: (1) os tipos de ação social, (2) as garantias de legitimidade de uma ordem e (3) tipos puros de dominação legítima. Deve-se observar que entre os quatro tipos de ação, precisamente (i) a racional referida a valores, (ii) a ação afetiva ou emocional, (iii) a tradicional, (iv) a ação referida a fins é aquela que mais se distancia da noção weberiana de legitimidade. Enquanto a ação tradicional é observada na repetição quase mecânica, no hábito cego enraizado num comportamento, a ação racional referida a fins se orienta pelas expectativas de outras pessoas, como meio de atingir os próprios fins (Weber, 2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 15). Quem se sujeita à ordem por motivos racionais referidos a um fim não internaliza o seu conteúdo e tampouco o converte em máxima pela qual conduz sua ação. Essa espécie de ação relaciona-se à escolha de determinada ação mediante a ponderação das vantagens ou inconveniências para o alcance de interesse próprio. Uma ordem cumprida apenas por interesse ou cálculo é instável, porque carece do seu elemento mais importante: a crença na sua retidão,

[...] uma ordem observada somente por motivos racionais com referência a um fim, é, em geral, muito mais mutável do que a orientação por essa ordem unicamente em virtude do costume, em consequência do hábito de determinado comportamento, sendo esta a forma mais frequente de atitude interna. Mas esta, por sua vez, é ainda mais mutável do que uma ordem que aparece com o prestígio de ser modelar e obrigatória, conforme dizemos "legítima" (Weber, 2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 19).

As motivações que orientam a conduta dos agentes são variáveis, pois "as transições entre uma orientação puramente tradicional ou puramente racional referente a fins por uma ordem e a crença em sua legitimidade são, naturalmente, inteiramente fluidas na realidade" (Weber, 2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 19). É também importante salientar que, no final da mencionada passagem, Weber define a ordem legítima como aquela que se manifesta na representação dos atores sociais como "modelar e obrigatória".

É imprescindível examinar a estrutura da dominação cujo traço sociológico é percebido na relação "entre o senhor ou senhores e seu aparato, e entre estes dois e os dominados, e, além disso, de seus princípios específicos de 'organização', isto é, de distribuição dos poderes de mando" (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 197). Toda forma de dominação legítima apresenta, portanto, uma estrutura que revela: (1) a relação do dominador e seu aparato; (2) a relação entre dominador, aparato e dominados; (3) a distribuição dos poderes: "a estas situações correspondem os tipos fundamentais 'puros' da estrutura da dominação, de cuja combinação, mistura, adaptação e transformação resultam as formas que encontramos na realidade histórica" (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 198).

Na dominação cuja autoridade se funda em estatutos ou preceitos jurídicos, se obedece a uma ordem impessoal e aos seus superiores, que, a despeito de seu poder de mando, também estão submetidos a tal ordem. O chefe legal, o chanceler e o presidente de uma República eleitos - denominados por Weber de líderes plebiscitários - estão submetidos à ordem impessoal do direito. O direito, seja ele imposto ou pactuado, pode ser racionalmente estatuído. Sua validade deriva de um procedimento racional referente a valores ou a um fim, ou ambas as coisas. A sujeição às regras estatuídas de uma ordem impessoal ocorre no âmbito de sua vigência (territorial) (Weber, 2000______. 2000. Economia e sociedade. Vol. 1: Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Ed. UnB., p. 142). Em contrapartida, na dominação tradicional, os dominados sujeitam-se à pessoa do senhor legitimada pela crença na santidade da tradição, na devoção ao costume. Na dominação carismática, se obedece em virtude da devoção afetiva à pessoa do senhor. A sujeição, nesse caso, ocorre, particularmente, em virtude das capacidades mágicas ou extraordinárias atribuídas ao líder carismático: revelação, heroísmo e eloquência (poder intelectual e de oratória).

Dominação legal e servidão do futuro

O primeiro tipo puro de dominação legítimo analisado por Weber é a dominação legal, também conhecida como racional ou racional-legal. A autoridade (ou dominação) legal pode ser verificada nos Estados modernos ocidentais, sobretudo nos países que adotam uma forma de governo democrática. Sua característica especificamente moderna se revela no modo pelo qual é elaborado o direito. Este não é mais concebido como preexistente à sociedade, ao Estado, mas como direito que pode ser criado ou posto (gesatzes Recht), modificado e revogado pela vontade humana.

Na modernidade, o direito surge de forma secularizada, emancipando-se das exigências ético-religiosas, dos mandamentos ideais e laços tradicionais de dominação. A independência desses laços, a desvinculação da Igreja e a necessidade de adaptar-se aos interesses políticos de outros grupos sociais emergentes e à crescente complexidade social irão conferir ao direito um caráter mais formal e abstrato. A racionalização do direito pode ser observada na sua capacidade de transcender a casos concretos, no seu distanciamento de interesses patrimonialistas, no seu ensino universitário estimulado pelo Estado, na recepção do direito romano, em particular das pandectas (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 98). A separação entre forma e conteúdo jurídicos, direito público e privado, direito subjetivo e objetivo e o fomento do ensino jurídico especializado, por grupos políticos interessados na sua adoção, servem de impulso para o processo de racionalização e sistematização do direito (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 85).

Gradativamente, o objetivo de elaboração e aplicação do direito é conquistado pela associação política estatal. O direito livra-se das amarras de estruturas sociais e passa a ser concebido como algo contingente, que pode ser criado, elaborado mediante um procedimento ou uma forma correta. A racionalização do direito implica o crescente desenvolvimento da lógica jurídica, da abstração, formalização e sistematização3 3 Para Weber, a sistematização é um produto tardio da civilização ocidental, e, portanto, desconhecida do direito primitivo. O autor a define como "inter-relacionamento de todas as disposições jurídicas obtidas mediante a análise, de tal modo que formem entre si um sistema de regras logicamente claro, internamente consistente e, sobretudo, em princípio sem lacunas" (Weber, 1999, p. 12). (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., pp. 90-129). Assim, o direito passa a ser concebido como "um estatuto sancionado corretamente quanto à forma". Seu fundamento de legitimidade reside na crença no caráter correto do modo de elaboração: adequação aos requisitos formais de formulação de normas jurídicas.

A dominação burocrática rege-se pelas seguintes categorias: (1) hierarquia dos cargos: sistema de mando e subordinação correspondente ao grau hierárquico da autoridade; (2) documentação: registro e arquivamento do procedimento administrativo por meio da conservação de atas por funcionários que trabalham numa instituição administrativa, cujo espaço de documentação dos atos administrativos denomina-se escritório; (3) cargo profissional: não é venal, não pode ser adquirido mediante pagamento, mas ocupado mediante comprovação de qualificação profissional. Assim, não há espaço para aquisição ou apropriação do cargo, mas um direito ao seu exercício. Durante a ocupação de um cargo profissional, a fidelidade não é pessoal, mas ao cargo. Decisivo para a fidelidade dessa espécie é uma "finalidade impessoal, objetiva" (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., pp. 200-201). O ideal que orienta o funcionário é:

[...] proceder sine ira et studio, ou seja, sem influência de motivos pessoais e sem influências sentimentais de espécie alguma, livre de arbítrio e capricho e, particularmente, "sem consideração da pessoa", de modo estritamente formal segundo regras racionais ou, quando elas falham, segundo pontos de vista de conveniência objetiva (Weber, 2003______. 2003. A "objetividade" do conhecimento nas Ciências Sociais. In: COHN, G. (org.). Max Weber. São Paulo: Ática., p. 129).

O princípio sine ira et studio sintetiza uma das especificidades da cultura moderna: a ânsia pela calculabilidade do resultado. O controle racional dos meios para lograr o resultado almejado aumenta à medida que a burocracia

[...] se desumaniza, vale dizer, quanto mais perfeitamente consegue realizar aquela qualidade específica que é louvada com sua virtude: eliminação do ódio e de todos os elementos sentimentais, puramente pessoais e, de modo geral, irracionais, que se subtraem ao cálculo, na execução das tarefas oficiais (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 213; grifo meu).

A burocratização crescente provoca desumanização, despolitização e elitização. A hipertrofia da máquina burocrática e o grau de especialização do conhecimento técnico de seus funcionários chega a tal ponto que "Também o monarca absoluto, e em certo sentido precisamente ele em mais alto grau, é impotente diante da superioridade dos conhecimentos especiais burocráticos" (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 226; grifos meus). A cristalização da ação política em virtude da expansão do aparato burocrático e da ocultação da sabedoria técnica - monopólio de funcionários - não só acelera a atrofia do raio de ação política, mas impossibilita que o governo da burocracia esteja voltado ao atendimento do interesse de súditos ou cidadãos. A conversão do saber técnico especializado da burocracia em segredo se opõe a um dos princípios cardeais da democracia: a publicidade. A preeminência técnica da organização burocrática e a ampliação de suas competências esmorece o poder político do governante ao torná-lo dependente "exclusivamente das informações fornecidas pela própria burocracia" (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 226). A dominação burocrática se alicerça no planejamento, na especialização técnica com a divisão do trabalho, o que a torna praticamente impossível de ser substituída. A diferenciação quantitativa e qualitativa das tarefas administrativas da organização burocrática, a hierarquia e o conhecimento especializado dos técnicos criam entraves à realização da democracia, cujos alicerces se apoiam nos ideais da igualdade, liberdade e transparência.

A dominação burocrática é a forma de exercício do poder mais refratária à transição ou modificação: "Onde quer que a burocratização da administração tenha sido consequentemente levada a cabo, cria-se uma forma praticamente inquebrantável de dominação" (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 222; grifos meus). É notável como hoje as democracias representativas padecem de uma participação política atrofiada, provocada pela crescente burocratização, elitização e judicialização da política. O resultado desse cenário é a progressiva erosão da ética da responsabilidade, do desencantamento do mundo (Entzauberung der Welt), da perda de sentido. O espírito coagulado do aparelho burocrático compele à renúncia aos fins últimos concernentes à ética da responsabilidade em prever e controlar as consequências de complexas cadeias de ações. Posto de outra forma: a máquina burocrática que era antes um mero meio para um fim, torna-se um fim em si mesma. Com isso, a burocratização priva a "liberdade de ação individual" (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 542). Concomitantemente, transfere a responsabilidade pessoal de políticos para a impessoalidade da estrutura burocrática e das normas jurídicas abstratas (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 539). Ao contrário da dominação burocrática, na dominação carismática "o governante autenticamente carismático é responsável precisamente perante àqueles aos quais governa" (Weber, 1963, p. 287). Além disso, a burocratização acelerada emperra a máquina estatal e impossibilita a ação política responsável de lidar com a complexidade das exigências da vida social. A dominação da máquina burocrática, ao tornar-se um fim em si mesma, converte a previsibilidade de suas ações e comandos em resultados imprevisíveis, produzindo incerteza e desconfiança quanto à racionalidade do funcionamento de suas instituições. A burocracia, que encontrara suas condições de florescimento no terreno fértil da democracia, ao guardar seu conhecimento - cada vez mais especializado - no recôndito plano do secreto, termina por fechar as portas ao regime democrático à entrada das massas na política (Mommsen, 1974MOMMSEN, W. 1974.Geselschaft, Politik und Geschichte. Frankfurt a.M.: Suhrkamp., pp. 21-23).

Löwith compreende o processo de racionalização relacionado inicialmente com a liberdade de ação, ao mesmo tempo voltado para a ponderação dos meios que visam ao controle do resultado. Entretanto, para o referido autor, tal processo sofre uma inversão: a racionalidade burocrática se converte numa irracionalidade, e abre espaço para a morosidade processual, cuja consequência, entre outras, é a incapacidade de atender aos direitos individuais e coletivos. O funcionamento do aparato burocrático do Estado tenderia, em alguns casos, a se tornar autônomo às demandas das pessoas concretas da realidade social. Assim, o que ocorre é a perda de controle sobre a própria máquina burocrática do Estado, e o consequente bloqueio da ação política capaz de diminuir os níveis de imprevisibilidade da vida social. Nesse sentido, haveria uma inversão do processo de racionalização das condições de vida em que o resultado seria o fardo de uma "dominação autocrática" marcada pela irracionalidade:

[...] tal como aquele era um mero meio (para um fim de outro modo valioso) torna-se um fim ou fim em si mesmo, as ações pretendidas como um meio tornam-se independentes ao invés de orientadas para um fim, baseada no homem e suas necessidades. Este oposto marca toda cultura moderna: seus establishments, instituições e empreendimentos são racionalizados de tal maneira que essas estruturas, originalmente, preparadas pelo homem, agora, por sua vez, o envolvem e determinam como uma "prisão" (Löwith, 1977LÖWITH, K. 1977. Racionalização e liberdade: o sentido da ação social. In: MARTINS, J.; FORACCHI, M. (orgs.). Sociologia e sociedade. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos., p. 155).

A propensão irreversível à burocratização nas sociedades modernas é retratada pelo autor como perda de sentido, "desumanização", niilismo. Não por acaso, compara tal tendência a uma "máquina morta" ou a uma máquina com espírito coagulado. A tendência à burocratização é vista por Weber como uma "servidão do futuro". Ao referir-se à inexorável tendência burocratizante, o autor profetiza:

[...] uma máquina morta inanimada é espírito coagulado. Somente o fato de sê-lo proporciona-lhe poder de forçar os homens a servir-lhe e de determinar, de modo tão dominante, o dia a dia de sua vida profissional, como é, de fato, o caso na fábrica. Espírito coagulado é também aquela máquina animada representada pela burocracia, com sua especialização do trabalho profissional treinado, sua delimitação de competências, seus regulamentos e suas relações de obediência hierarquicamente graduadas. Aliada à máquina morta, ela está ocupada em fabricar a forma externa daquela servidão do futuro, à qual, talvez um dia, os homens estarão obrigados a submeter-se sem resistência, como felás do antigo Estado egípcio [...] (Weber, 1999______. 1999. Economia e sociedade. Vol. 2: Fundamentos da sociologia. Brasília: Ed. UnB., p. 199; grifos meus).

Mommsen (1974MOMMSEN, W. 1974.Geselschaft, Politik und Geschichte. Frankfurt a.M.: Suhrkamp., p. 36) enfatiza a observação dos desdobramentos do processo de burocratização:

Uma burocracia inteiramente desenvolvida, segundo Weber, faz parte das estruturas sociais de poder destruidor mais pesado. Essa construção conceitual traz à tona os perigos da burocratização de uma sociedade que se orienta pelo ideal da liberdade e da responsabilidade do indivíduo. A crescente restrição do movimento de liberdade e a iniciativa do indivíduo por meio da progressiva burocratização, e o "desencantamento do mundo por meio da ciência", considerava Weber como um destino inevitável ao qual procurava, contudo, se opor com toda força.

A ameaça do crescimento excessivo da dominação burocrática era vista por Weber como um processo inabalável que resultaria em consequências indesejáveis como a restrição do agir e decidir políticos e a impossibilidade de integrar as massas à política. Ao se tornar um fim em si mesma, a máquina burocrática invadiria as diversas esferas da vida, abarcando a organização dos partidos políticos, os métodos decisórios e restringindo a margem de governabilidade.

A sociologia da dominação e do direito de Weber promovem uma mudança de paradigma no campo da teoria política e deslocam o eixo de análise dos meios de aquisição e instituição do poder dos dominadores para a crença dos dominados nos fundamentos de legitimidade da autoridade. Assim, os estudos de Weber representam uma notável contribuição para a compreensão de uma realidade social crescentemente complexa. O instrumental conceitual elaborado pela sociologia geral de Weber deve muito aos seus estudos voltados à sociologia da dominação, principalmente no que diz respeito à distinção entre o caráter normativo do conceito jurídico do direito e o traço empírico do conceito sociológico do direito. As bases da sociologia do direito de Weber não flutuam no reino do dever ser, mas estão ancoradas no solo firme da realidade concreta do ser. Sua sociologia da dominação é marcada pelo traço realista, pois se preocupa com as ideias, os valores que orientam o curso das ações de homens concretos: homens são de carne e osso, ou, como dizia Weber, "de carne e sangue" (Fleisch und Blut).

Os tipos puros de dominação legítima encontram-se misturados na realidade empírica e estão enredados num processo intenso de racionalização do direito, que deságua numa visão pouco auspiciosa do futuro da civilização ocidental. Nas entrelinhas dos escritos de Weber, é possível vislumbrar um tom profético: a crescente burocratização dos vários âmbitos da vida deixa pouco espaço tanto para a livre ação individual quanto para a ação política responsável. Nesse sentido, a tecnoburocracia domina a política. A máquina burocrática de Estados modernos ocidentais tende a se tornar autônoma em relação a qualquer forma de democracia e suas complexas demandas sociais. A burocratização está intimamente ligada à despolitização, à transformação do conhecimento técnico especializado num fim em si mesmo. A visão sombria da dominação burocrática não significa de modo algum estigmatizá-la, mas compreendê-la como fenômeno cultural.

Atualidade de Weber: legitimidade do Poder Judiciário no pós-positivismo

A crise do positivismo jurídico após a Segunda Guerra Mundial provocou profundas mudanças na reflexão jurídica de países ocidentais. Desencadeou uma reviravolta nas noções de legalidade e legitimidade, sendo uma das repercussões políticas alçar o Poder Judiciário à guardião legítimo da Constituição. O surgimento de novas concepções jurídicas encontrou um denominador comum: a necessidade de pensar o direito à luz de direitos fundamentais positivados no texto constitucional. A experiência constitucional do pós-guerra consagrou princípios constitucionais que não apenas informam, mas também conformam diferentes ordenamentos jurídicos. Com a reconstitucionalização no pós-guerra e a aplicação dos direitos fundamentais objetivamente consagrados nesses textos, surge um novo constitucionalismo. As Constituições, além de estruturarem o poder do Estado, representariam uma tentativa de fixar um alicerce efetivo para a garantia dos direitos fundamentais positivados. A perplexidade após a hecatombe ocorrida na Segunda Guerra Mundial desencadeou um movimento de superação do positivismo jurídico e sua substituição por um mosaico de concepções do direito, cujo teor se convencionou cunhar de pós-positivismo. A diversidade de elaborações teóricas críticas ao positivismo jurídico foi designada pela experiência jurídico-política de países ocidentais com o prefixo pós, a fim de sentenciar de modo apressado o fim do positivismo jurídico, cujos fundamentos ainda orientam parte da práxis jurídica brasileira.

As democracias contemporâneas reivindicam uma teoria do direito adequada às exigências de sociedades complexas. Teorias do direito, influenciadas pelo positivismo jurídico, são insuficientes para lidar com os desafios de uma realidade concreta cada vez mais pluralista e dinâmica. Hoje é crescente a crença na efetividade de direitos fundamentais e a fé na atividade de órgãos jurisdicionais comprometidos em responder às exigências provenientes do acelerado fluxo de fatos presentes na realidade empírica. A efetivação de princípios constitucionais impõe a reflexão crítica sobre os métodos tradicionais de interpretação do direito, sua aplicação e a atividade dos órgãos principais do Estado. A perspectiva do pós-positivismo, ao contrário do positivismo jurídico, restabelece uma conexão entre direito e moral, a fim de prover o direito com os valores de justiça, democracia, igualdade, liberdade etc. A releitura moral do direito oferece um conjunto de dispositivos teóricos que tendem a relativizar em demasia a orientação da decisão por regras fixas e estabelecidas. Entre outras construções, a constitucionalização dos direitos e princípios jurídicos, a ponderação de princípios, as elaborações teóricas da retórica e argumentação, as concepções da justiça também suscitam sérios problemas. Se as variadas vertentes teóricas subsumidas à matriz pós-positivista forem naturalizadas, corre-se o risco de incorrer nos mesmos problemas do positivismo jurídico. A restituição de um fundamento moral ao direito elevou, a partir da constitucionalização de valores fundamentais, o Poder Judiciário ao status de um poder acima do bem e do mal. A sacralização das cúpulas de poderes judiciários - cujos membros demiúrgicos são os "verdadeiros" portadores da "justiça" - não pode permanecer blindada a um maior volume de investigação rigorosa e crítica fundamentada.

Com frequência, a matriz pós-positivista é apresentada como um conjunto de concepções jurídicas, cujo teor parece estar imune a qualquer forma de crítica. O fato de estar alicerçada em direitos fundamentais, com conteúdo proveniente de princípios morais de um sistema de valores pretensamente "universais", hipostasia a legitimidade de qualquer teoria crítica do positivismo jurídico. Ao contrário, sua investigação não naturaliza a leitura moral do direito, mas revela suas aporias, limites e alcance no que concerne à legitimação do Poder Judiciário em democracias.

Um dos problemas mais relevantes da teoria do direito é a legitimidade alcançada pelo poder judiciário a partir da mudança do paradigma do positivismo jurídico para o pós-positivismo. Quais elementos legitimam a decisão judicial em regimes democráticos? No vasto continente da teoria do direito, é fundamental responder à indagação sobre a legitimação da decisão judicial. A mudança de paradigma não supera a crise das distintas vertentes da teoria do direito positivista. O pós-positivismo, cuja ideia central se alicerça no restabelecimento da conexão entre direito e moral, resultaria na ampliação da subjetividade do juiz no uso de princípios constitucionais. A fundamentação de decisões judiciais com base em uma constelação de princípios morais, procedimentais, concepções de justiça tornar-se-ia um fermento de decisões discricionárias. O déficit democrático das decisões judiciais contramajoritárias ateia fogo na polêmica concernente ao pós-positivismo, principalmente no que se refere aos órgãos máximos do Poder Judiciário, os quais, sob a retórica do método e da hermenêutica da eficácia dos princípios constitucionais, não fazem outra coisa senão legislar.

A realidade atual da sociedade brasileira aponta um progressivo desgaste dos Poderes Legislativo e Executivo e abre espaço para o protagonismo exercido pelo Supremo Tribunal Federal, órgão máximo do Poder Judiciário. A elevação do Poder Judiciário à condição de ator central no cenário político brasileiro não ocorre por acaso. A erosão do sistema político, a crise da representação política e o declínio da confiança no Poder Executivo aparecem como uma das possíveis causas da emergência do Poder Judiciário como ator central, cujo ativismo desequilibra a balança dos três poderes e solapa qualquer aproximação do ideal de equilíbrio e moderação.

A densidade adquirida pelo Poder Judiciário põe em cena um fenômeno que está longe de ser apenas regional. Seu caráter é global e pode ser percebido em diversos países. A hegemonia alcançada pelo Poder Judiciário surge como uma entidade blindada às lutas políticas, às práticas de corrupção e decisões discricionárias. Isso ocorre em virtude de suas decisões serem vistas como julgamentos técnicos, apolíticos, alicerçados no conhecimento jurídico. Perscrutar os fundamentos de legitimidade do Poder Judiciário exige uma análise do modo pelo qual são escolhidos seus membros. Quais seriam os fatores de legitimação do Poder Judiciário? Seria o mérito dos aprovados em concurso público de provas e títulos? Seria a confiança depositada na Constituição Federal de 1988, cujo teor teria alçado o STF ao seu guardião e os tecnocratas ao papel de protagonistas da realização de seus princípios? A hipertrofia constitucional provoca a atrofia da democracia. Não é difícil imaginar que o fenômeno regional e global da constitucionalização do direito tende a minar qualquer tentativa de equilíbrio entre os três poderes da República democrática brasileira. O paradigma pós-positivista surge como teoria do direito alicerçada na moral, cujas consequências empalidecem os limites entre a subjetividade e a objetividade das decisões judiciais, a ponto de ampliar de forma exorbitante sua discricionariedade. Há um hiato entre o direito dos juízes e o direito da sociedade democrática. Convém acrescentar que a ampliação do papel do Poder Judiciário conduz a uma crescente burocratização, elitização e coagulação da ação política. Tal fenômeno estimula antinomicamente a criminalização da política por parte de um poder que se torna cada vez mais político. Convém observar também que, a despeito das ameaças do aumento excessivo das competências do Poder Judiciário e do notável esmorecimento do Poder Legislativo, o Poder Executivo apresenta notável força. No Brasil, há mais de uma década, o Poder Executivo controla boa parte do Senado e da Câmara de Deputados no Congresso Nacional, exerce pujante influência nas eleições estaduais e municipais e atua como máquina produtora de medidas provisórias em linha de montagem.

Há uma tensão permanente entre decisão judicial e soberania democrática. Infere-se, portanto, o fato de distintos conteúdos do pós-positivismo contribuírem com a fundamentação e legitimação das decisões judiciais e abrirem o flanco da insegurança jurídica. No contexto brasileiro da elevação dos níveis de contingência no âmbito das decisões judiciais, verifica-se a politização da justiça. A crise do sistema de representação política leva ao perigo da aceitação de toda sorte de decisões contramajoritárias proferidas por tecnocratas imbuídos em lutar pela expansão de suas competências. À discussão concernente ao modo de seleção dos membros do Poder Judiciário subjaz a tensão do Poder Judiciário, contramajoritário e meritocrático, com o fundamento democrático da soberania popular. Ficção ou não, tal princípio da soberania popular precisa adquirir alguma forma de concretude à luz de mecanismos de maior participação popular em decisões existenciais à vida individual e coletiva. Se, porventura, não se atentar à necessidade de maior participação popular nas atuais democracias, o cidadão terá a sensação peremptória de ter sido reduzido a mero destinatário de normas com as quais não mantém nenhuma relação de autoria.

No Brasil, tal crise deriva da situação do desgaste do sistema eleitoral/representativo, pois "o problema da legitimação democrática dos juízes não se esgota na forma com que os mesmos são escolhidos" (Rangel, 2014RANGEL, G. D. R. 2014. A legitimidade do Poder Judiciário no regime democrático: uma reflexão no pós-positivismo. Rio de Janeiro: Laços. ). De modo inequívoco, conclui-se que a realização de um processo eleitoral para escolha de juizes não confere maior legitimidade democrática às suas deciões. Infere-se, assim, que a democratização do Poder Judiciário não se resolve apenas pelo voto popular, pois reduzir a democracia ao voto popular é ingenuidade. Convém, por fim, ressaltar que a aceleração da judicialização da política e do ativismo judicial representam, como profetizara Max Weber há quase um século, o desdobramento de um processo irreversível de burocratização, elitização e despolitização, cuja consequência é um déficit democrático, sobretudo no concernente à ampliação da participação política.

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  • 4
    Pedro H. Villas Bôas Castelo Branco é professor adjunto do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e da pós-graduação em Direito na Universidade Veiga de Almeida (UVA), Rio de Janeiro (RJ).
  • Weber provavelmente concordaria com a observação de Jean-Jacques Rousseau (1973 [1762], p. 31): "o forte nunca é suficientemente forte para ser sempre o senhor, senão transformando força em direito e a obediência em dever".
  • 2
    Todas as passagens de textos em alemão, de obras inexistentes em português do Brasil, foram traduzidas por mim.
  • 3
    Para Weber, a sistematização é um produto tardio da civilização ocidental, e, portanto, desconhecida do direito primitivo. O autor a define como "inter-relacionamento de todas as disposições jurídicas obtidas mediante a análise, de tal modo que formem entre si um sistema de regras logicamente claro, internamente consistente e, sobretudo, em princípio sem lacunas" (Weber, 1999, p. 12).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2015
  • Aceito
    07 Out 2016
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