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A gente somos inútil: Nós ou o FMI?

A gente somos inútil. Nós ou o FMI?

Gilson Schwartz

Economista e professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da FGV

"A gente faz dívida e não consegue pagar, a gente somos inútil..."

A música, muitas vezes, é capaz de expor numa forma concisa e contundente sentimentos que pairam no ar. Pois não foi sem espanto que dei de encontro com um rock, repetido pelas rádios, chocando na forma e no conteúdo: inútil, inútil...

Afinal, por que inúteis? De onde vêm essas sensações de impotência e submissão — que sem dúvida não é uma sensação totalmente falsa nos dias de hoje — mas que o tal rock apresenta de forma suficientemente escrachada a ponto de a gente desconfiar e até colocar essa sensação no ridículo?

Dando tratos à bola, finalmente me perguntei: o que é ser útil ou inútil? Bem, um objeto é tanto mais útil quanto maior o número de possíveis aplicações a que venha servir. Uma faca é útil. Pode ser usada em inúmeras ocasiões para cortar, separar, amassar. Um objeto útil, então, é isso: pode ser usado de muitos modos... dependendo do interesse e da habilidade dos que possuem e manipulam o objeto. Estranha descoberta: o valor de uma coisa útil depende do que outra (pessoa) determina. Ser útil (ou inútil) é não ter valor em si mesmo, mas ter o próprio valor na dependência de uma vontade alheia.

O que é mais útil na economia?

Resolvi levar o raciocínio adiante e me perguntar qual a coisa mais útil na economia. Seriam as máquinas? Ou a agricultura? O Estado? Acontece que cada uma dessas coisas é, de certa forma, rígida, tem uma utilidade que não muda com freqüência ao longo do tempo e ao sabor das vontades. Uma usina hidrelétrica é útil, mas a sua utilidade é definida, limitada. Mas e o dinheiro? Bem, com o dinheiro é possível comprar qualquer coisa a qualquer momento, quando o proprietário de dinheiro bem entender.

A conclusão é imediata: quem tem dinheiro tem a coisa mais útil da economia. Se de repente há uma crise de petróleo, ai dos proprietários de carros a gasolina: subitamente eles são donos de coisas que ficam mais inúteis. Quem tem dinheiro pode procurar, a partir daquele momento, coisas que pareçam mais úteis.

Se o dinheiro é a coisa mais útil da economia, por que o rock insiste em dizer que nós (o povo brasileiro) somos inúteis? Isso se deve não apenas ao fato de que a maioria do povo ganha pouco (portanto tem pouco dinheiro), mas ao fato de que o próprio dinheiro, que seria a coisa mais útil da economia, também tem a sua utilidade (e o seu valor...) limitada por vontades alheias às do povo brasileiro. Somos inúteis porque a nossa coisa mais útil vai ficando cada vez mais inútil. Mas que vontades determinam esse processo de destruição da nossa identidade?

O FMI e o governo brasileiro

Durante o século XIX, a Inglaterra tinha determinado a utilidade de cada país no mundo: uns podiam produzir café, outros, bananas; máquinas era um privilégio quase exclusivo dos ingleses. E o dinheiro mais útil era a moeda britânica, os principais bancos eram ingleses. Já com a Primeira Guerra a situação começou a mudar e depois da Segunda Guerra os americanos tinham se tornado a grande potência militar e econômica. Faltava ainda, para que a situação de potência mundial dominadora se consolidasse, a imposição do dólar como o dinheiro fundamental (a coisa mais útil do capitalismo internacional). Proprietários da coisa mais útil, os EUA poderiam então ditar quem faz o que na divisão internacional do trabalho.

O Fundo Monetário Internacional (e seu irmão gêmeo, o Banco Mundial) foi criado em 1944, durante uma conferência promovida em Bretton Woods, nos Estados Unidos, para cumprir a finalidade de garantir a consolidação norte-americana como potência financeira, isto é, como controlador dos fluxos de dinheiro associados ao comércio internacional.

Antes dos anos 30 funcionava o sistema do "padrão-ouro", em que os países vinculavam (através do câmbio) o valor de seus dinheiros ao valor do ouro. Assim, quem exportava mais atraía para si o ouro mundial; quem não conseguia exportar mais que importar acabava tendo de "entregar o ouro", contraindo a oferta de dinheiro interna ao país (ficando assim com a economia menos alimentada de dinheiro). O comércio internacional determinava, assim, os rumos da política monetária interna aos países. Como esse comércio era dominado pelas potências imperialistas, as nações pobres e as colônias eram sempre prejudicadas.

Com a crise dos anos 30 o padrão-ouro foi abandonado, e depois da guerra passou a vigorar o "sistema de Bretton Woods": nenhum país (e o Brasil foi um dos países que "ajudaram" a criar o sistema — somos fundadores do Fundo!) poderia impor restrições à realização de pagamentos e transferências monetárias internacionais, principalmente através de desvalorizações ou alterações arbitrárias na relação entre cada dinheiro nacional e os demais dinheiros do mundo, sem autorização do Fundo. Ao mesmo tempo, para socorrer países com problemas de pagamento ou saneamento da balança de pagamento, cada país contribuía com uma quota em dinheiro.

Assim, quando algum país tivesse dificuldades no comércio exterior, ao invés de promover políticas protecionistas (prejudicando assim a "harmonia" do comércio internacional), recorria às reservas do Fundo, sendo esse acesso proporcional à participação com quotas correspondentes ao país.

Ocorre, entretanto, que só os EUA possuem pelo menos 25% do volume de reservas do Fundo (e portanto do poder de decidir a quem emprestar, quando e quanto). E o país que recorre à ajuda do Fundo tem de seguir recomendações de política econômica em todas as áreas da economia (no caso brasileiro atual, seguindo uma estratégia recessiva). Exportar mais, para poder receber novos empréstimos, é querer o ovo sem a galinha, pois o que está em crise atualmente é a própria estrutura do comércio internacional. Entretanto, essa é a receita do FMI: exportem a todo custo, mesmo que a renda e a produção internas tenham de ser sacrificadas.

Até o Fundo é inútil

Desde a criação do Fundo, o Brasil já recorreu a ele 16 vezes. Acontece que o Fundo funcionou bem enquanto os problemas de pagamento dos países-membros eram localizados em poucos países e dispersos no tempo. Mas em 1971, depois da guerra do Vietnã e com uma crescente concorrência internacional, os EUA desvalorizaram o dólar pela primeira vez desde a Segunda Guerra, prosseguindo com essa política nos anos seguintes. O principal jogador mudava as regras do jogo! O dólar passou a flutuar, desvinculado de qualquer relação estável com o ouro ou com outras moedas.

A concorrência internacional, por outro lado, nos anos do pós-guerra passou a ter como principais protagonistas as nossas conhecidas empresas multinacionais. Os lucros dessas empresas (dólares) podiam ser remetidos de volta aos EUA (por exemplo), onde seriam tributados, ou então podiam ser depositados em bancos com agências na Europa, fora do controle do Banco Central americano ou do FMI. Começou a crescer o que foi batizado de "euromercado", onde circulavam os "eurodólares". Resultado: enquanto a concorrência internacional ia ficando cada vez mais aguda (e os americanos "perdendo" para japoneses, alemães), o poder de controle sobre a coisa mais útil da economia internacional também se deteriorava (nem o FMI nem o dólar conseguindo manter a hegemonia).

Portanto, tem ocorrido nos últimos anos um processo análogo ao que ocorreu no século XIX: rompe-se uma estrutura internacional de dominação. Ela se torna útil. E o FMI, nesse cenário, torna-se uma instituição não adequada aos novos tempos.

Nós ou eles?

Resta saber por que as autoridades do governo brasileiro se submetem com tanto empenho ao receituário de uma instituição estrangeira e em crise. A resposta deve estar no interesse dessas autoridades em contribuir para a manutenção da hegemonia americana na economia internacional.

Não se trata, por outro lado, de simplesmente romper com o mundo, declarar a moratória "pouco se lixando" para o que acontece com o mundo capitalista. Mas submeter-se ao caminho indicado pelos americanos é levar ao absurdo a tese de que o melhor para eles é bom para nós. Mais do que proclamar-se inútil (assumindo a posição de coisa que é usada de várias formas por uma vontade alheia), significa perder a oportunidade de participar até mesmo na definição de como ser útil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1984
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