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Política externa de dentro para fora

Política externa de dentro para fora

Tullo Vigevani

Professor de política internacional na Escola de Sociologia e Política (SP)

Por que, nos últimos anos, a política exterior brasileira tem sido contraditória? Será que se fala de política exterior de um jeito e se faz essa mesma política de outro?

Um exame atento da política internacional do governo brasileiro demonstrará a existência de diferentes centros de decisão que, com muita dificuldade, o Itamaraty (Ministério das Relações Exteriores) tenta conciliar e harmonizar. O constante agravamento da situação econômica e, sobretudo, o estrangulamento produzido em todos os países devedores pelas pesadas condições impostas para o pagamento da dívida externa acabaram demonstrando, mais uma vez, a existência de algumas das contradições apontadas.

Por um lado, a ação dos ministérios econômicos (Planejamento e Fazenda) busca no relacionamento direto com os bancos credores e com o Fundo Monetário Internacional uma saída que consiste, no máximo, no "rolamento" dos problemas, talvez agravando-os a médio prazo. Por outro lado, a ação do Itamaraty visa ou à constituição de uma frente de países devedores, ou, pelo menos, a uma ação conjunta dos principais países latino-americanos no sentido de transferir para o plano da negociação política as questões da dívida externa, como se viu na reunião de Cartagena, Colômbia, em junho de 1984. Um dos impasses previsíveis na política exterior do Brasil, justamente, se refere à vontade de fazer valer no plano internacional a aliança dos países pobres, latino-americanos e do Terceiro Mundo frente aos países ricos, os capitalistas avançados.

Somando com os países não alinhados

A partir de 1974, começaram os governos a repetir freqüentemente que não se deve esquecer que o Brasil pertence ao mesmo tempo ao Mundo Ocidental e ao Terceiro Mundo. Esta idéia tem raízes profundas no Itamaraty e foi elaborada ao longo dos anos 60 e 70, tendo no embaixador Araújo Castro um de seus formuladores principais. Deriva deste conceito uma atitude da nossa diplomacia pela qual o Brasil se soma, na maioria das ocasiões, ao bloco dos países não-alinhados.

Por exemplo, no caso da guerra das Malvinas, entre a Argentina e a Grã-Bretanha, o Brasil sustentou as posições argentinas, ainda que fazendo apelo à negociação pacífica. No que se refere à América Central, o Brasil tem reiteradamente repetido seu apoio ao "Grupo de Contadora" (México, Venezuela, Colômbia, Panamá), que propôs a resolução pacífica dos conflitos sem interferências externas. Mas nesse caso, também, verifica-se a existência de desacordo entre diferentes áreas governamentais. Esse desacordo se manifesta pela posição pouco firme do Brasil, sob a alegação de que a América Central se situa além de seus interesses imediatos. Manifesta-se também por ações contraditórias, como a venda de armamentos ao governo de Honduras.

Nas falas da nossa política exterior, também, é comum a crítica da política das grandes potências, admitindo como favorável ao Brasil um contexto internacional de paz e distensão. É verdade que os países da América Latina, de certa forma, não se encontram no centro das grandes decisões internacionais. Mas a crítica da atual situação do sistema internacional teria mais eficácia se fosse acompanhada de um maior dinamismo. Por exemplo, na discussão das relações entre os países pobres e ricos. O Brasil participa dessa discussão, mas, preso às contradições apontadas, acaba não podendo influir na medida que seria esperada pelo conjunto dos outros países.

No governo Geisel algumas medidas de política exterior causaram impacto e, certamente, fizeram crescer o interesse pela ação internacional do Brasil. Nesse quadro, a própria formulação do conceito do "pragmatismo responsável" (adotado então) reflete uma modificação na ação diplomática. Na prática, esse conceito se traduziu nas seguintes ações: reconhecimento do governo do MPLA (Movimento Popular pela Libertação de Angola), quando ele ainda não tinha assegurado o domínio sobre todo o território; voto de condenação ao sionismo nas Nações Unidas; distanciamento da política internacional dos Estados Unidos; esfriamento das relações com a África do Sul (onde vigora a política de apartheid, de violenta segregação racial); maior aproximação aos países africanos e árabes; reconhecimento da China comunista, etc.

Relembrando um velho princípio

Partindo destas constatações, faz-se necessário refletir sobre por que, nos anos mais recentes, uma política que em linhas gerais não sofreu modificações conceituais foi em certa medida contida em seus desdobramentos. Ou, se quisermos, poderíamos colocar a questão sob outro ângulo: por que a política iniciada em 1974 acabou presa no emaranhado que o quadro sócio-político do Brasil gerou nos últimos anos?

É importante relembrar um velho princípio de política internacional, segundo o qual há um estreito relacionamento entre política externa e interna. Ainda que não possamos nos aprofundar a este respeito, cabe assinalar que um eventual refluxo na capacidade de iniciativa externa está relacionado com os condicionamentos que este setor da política estatal sofre. É óbvio que, na conjuntura dos anos 80, esta referência vale em particular para a política econômica. Mas o quadro político e o pensamento militar também têm ampla significação.

O Brasil, como qualquer nação, não poderia deixar de considerar sua própria política exterior como um dos suportes para a sustentação de um determinado projeto. Algumas condições específicas do Brasil o colocam, entre os países pobres, numa situação de relativa vantagem, que deriva de condições particulares: possibilidade de expansão da fronteira agrícola, base industrial significativa, alternativas energéticas, não existência de conflito com outros países, etc. Desta forma, a política exterior poderia ser alavanca poderosa para a criação de condições melhores para avançar-se na direção de determinados objetivos. Quais são eles?

Ao falarmos de impasses na política exterior, nos referimos também à incapacidade de se traçar objetivos claros e conseqüentes justamente pela falta de projeto. O que seria este projeto? Um projeto é a capacidade de articular forças da sociedade para atingir determinados objetivos. Desta forma, as dificuldades de visualização de uma política global, de fôlego, de parte do governo acabam gerando impasses, ou, no melhor dos casos, a rotinização nas diversas esferas da administração pública.

Um exemplo disso é a dificuldade em se formular uma política de integração para a América Latina. Ao contrário, a crise econômica internacional incide no adiamento até mesmo dos modestos objetivos estabelecidos ao longo da década de 70. Justiça seja feita: isto não é situação peculiar ao Brasil, mas afeta quase todos os governos latino-americanos.

As diferentes teorias das relações internacionais — conservadora, liberal, socialista — têm como ponto comum reconhecer que a consistência do papel internacional de um país está relacionada com a solidez e constância em sua ação. Bem sabemos que esta solidez e constância não são dados abstratos, mas estão determinados pelas forças internas, ou seja, pelas relações entre as classes e pelo ordenamento dado pela Constituição, pelas leis e pelas instituições do governo. Por isso mesmo não se pode falar de política exterior do Brasil, se não temos em consideração a situação interna do país.

Uma política exterior mais consistente

Este ano de 1984, com a crise, sobretudo política, que afeta a tudo e a todos, coloca no centro do cenário massas de homens e mulheres nunca antes vistas. Esta irrupção coloca como possibilidade o debate de questões fundamentais. Entre estas, conforme a evolução ainda não definida dos fatos, está a do amplo debate, pela sociedade, da política internacional em geral e da política exterior do Brasil em particular. A experiência histórica ensina que este debate, ao qual deveria seguir a capacidade de formulação e de controle de parte dos órgãos representativos, pode ser o mecanismo que fará aflorar, então, uma política exterior consistente.

É importante refletir sobre uma outra questão. Em muitas ocasiões, considera-se justificada uma ação de política exterior que visa a adaptar princípios às necessidades imediatas. Entre outros, poderíamos citar dois casos: o da importação de petróleo e o da exportação de armamentos. Como sabemos, a ação diplomática, nos dois casos, tem servido como suporte facilitador da importação num caso e da exportação no outro. Certamente, tanto a questão do petróleo quanto a das armas são extremamente complexas e seria superficial querer tratá-las aqui.

A partir destes dois exemplos, queremos falar da necessidade de uma ação política que, sem deixar de ser realista, considere objetivamente as relações de força. Uma política que se apóie também sobre princípios que permitam ao Brasil, em qualquer circunstância, surgir como ator do sistema internacional defensor destes mesmos princípios, independentemente de interesses imediatistas. Ao surgirem conflitos envolvendo países com os quais há relações particularmente privilegiadas, para mantê-las corre-se o risco de ter de tomar partido, quando uma análise global indicaria outras alternativas possíveis.

Certamente, o governo Figueiredo manteve uma ação intensa de contatos internacionais. Ainda em 1984, houve viagens ao exterior: Marrocos, Espanha, Japão, China; visitas importantes de chefes de Estado: México, Peru, etc. A busca da diversificação e da ampliação das relações em todas as latitudes e longitudes é uma necessidade real, que interessa a todos. A observação a se fazer é, ainda, sobre a capacidade de atingir-se objetivos claros na atual situação. Os impasses sobre os quais procuramos chamar a atenção são, então, de duas ordens principais.

Sinais de cansaço do "pragmatismo responsável"

Em primeiro lugar, qualquer que seja a evolução dos fatos políticos, no Brasil, é preciso observar o relativo esgotamento da atitude do "pragmatismo responsável" na política exterior. Não que não tenha tido o seu papel, mas a insuficiência de seu alcance é visível numa situação internacional mais complexa, em razão de novas necessidades do país. Isto é, o realismo deve ser acompanhado por uma maior capacidade de posicionamento definido. Porque, sem isto, corre-se o risco de ficar cada vez mais a reboque dos acontecimentos.

As forças conservadoras, como as representadas pelo senador Roberto Campos, entre outros, não se cansam de apontar, a seu modo, os impasses. Uma atitude firme e conseqüente de defesa de princípios, assim como a ação decidida na execução de políticas aprovadas, reforçaria a posição brasileira no contexto internacional. E isto não no sentido de sua capacidade geopolítica, mas, ao contrário, como ação de solidificação dos interesses dos países pobres. Certamente — não é demais repeti-lo —, esta parte dos impasses só poderá ser superada se as condições de política interna o permitirem.

Em segundo lugar, existe a questão, já vista, da formulação de uma política positiva. As formas históricas concretas, assim como as realidades internacionais existentes, alimentam esta conclusão: a resolução dos problemas gravíssimos que enfrentamos, e que não são apenas de momento, dependem não só das políticas internas de cada país, mas também da capacidade de cooperação internacional.

Uma política positiva significa ter capacidade de formulação de estratégias de cooperação entre países em condições semelhantes (em primeiro lugar os da América Latina ou parte deles). Política que possa levar a uma atenuação do grau de dependência e à colocação de bases — ainda que para um futuro longínquo — para políticas que efetivamente permitam o estabelecimento de centros de decisão autônomos em todos os campos de ação humana. Neste caso o impasse está no reconhecimento dessa necessidade e da atual impossibilidade de formulação de políticas de real integração e cooperação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1984
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