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Por que terapia

Por que terapia

Fábio Herrmann

Psicanalista

Vende-se por atacado a idéia de que as pessoas têm de escolher: ou estão voltadas para si mesmas ou se interessam pela comunidade. Crendo nisso, deveríamos aceitar que somos feitos, em nosso íntimo, à imagem de um sistema social pervertido, em que cada qual procura espoliar o que é dos outros. Eis aí a armadilha. Imagina-se, por conseqüência, que, quando alguém se dedica a conhecer-se mais profundamente numa psicoterapia, está mergulhando numa espécie de poço individualista. Se na superfície eu sei que quero ganhar mais e aproveitar melhor as comodidades da vida, imagine como sou no fundo... Um monstro egoísta e aproveitador, decerto.

Não é esta a caricatura usual das terapias? Terapeuta e paciente explorando os confins da mesquinharia privada, de forma elitista, a um preço altíssimo, para que se goze melhor e que se danem os outros. Repito: tal imagem do homem e da autodescoberta serve principalmente para convencer-nos de que no fundo somos todos iguais, para mal; todos iguais a um sistema social injusto. O que justificaria a injustiça, tão-somente espelho daquilo que são os homens no fundo de si mesmos.

Ora, não é isso que encontro nos pacientes que analiso. Interesses, legítimos ou ilegítimos, ocupam, é óbvio, a superfície das preocupações cotidianas de cada um; porém, debaixo desta, acha-se o patrimônio comum dos homens, sua vida emocional. Entenda, emoção não significa descontrole ou doidice, não é apenas o que ocorre quando estou louco da vida ou louco de alegria. Ao contrário, emoção é o nome que damos à forma da relação entre homem e mundo. Torcer por um time, apoiar uma campanha política, formar uma família e até resolver um problema de aritmética são operações emocionais. Trabalhar e descansar também o são. Portanto, se quero compreender os outros — que também estão sempre fazendo uma dessas coisas — é necessário que tenha um bom contato com minhas próprias emoções.

Afinar a percepção do mundo

E como se consegue? Minhas emoções obedecem a um desenho característico, possuem um jeito que é só meu, que sou eu — todavia, seus elementos são comuns a todos e nesse desenho nós nos encontramos, pois é ele meu instrumento para conhecer os outros. Então é preciso afinar a percepção emocional do mundo humano, ou acabo por ver em todos apenas aquilo que desconheço em mim mesmo. Se acho que nunca sou covarde ou orgulhoso, é provável que me sinta sempre cercado por pessoas covardes e orgulhosas. Para afinar esse delicado instrumento, é bom que leia, que vá ao cinema, que converse e participe. E, não em último lugar, que faça uma terapia.

Terapias são principalmente úteis quando vivemos uma crise pessoal. Como tudo o mais, a idéia de crise tem também uma imagem distorcida pelas conveniências de nossa sociedade. Uma vez que temos de produzir e comprar continuamente, não é adequado que paremos para nos interrogar. Assim, acumulam-se as perguntas informuladas, até que estouram numa desorientada angústia não se sabe de quê. Ou seja, a crise pessoal — como aliás a crise social — é o produto da interrogação multiplicada pela repressão que a impedia de surgir. É oportunidade para o pensamento, não sinal de loucura. É bem verdade que, em crise, nós parecemos um tanto estranhos, não nos reconhecemos. É natural. De hábito, usamos muito pouco de nós mesmos; o resto, quando começa a surgir, vem com a fisionomia esquisita de um estrangeiro cuja língua mal percebemos. Eis onde intervém o terapeuta. Ele ajuda a traduzir essa língua estranha, a conviver com o "estrangeiro", até que este possa mostrar o que é: o desenho de nossas emoções, que usávamos para contatar com o mundo, sem saber qual era a forma do instrumento.

Dou-lhe um exemplo. Uma senhora de meia-idade, muito boa dona-de-casa, começa a viver angustiada sem motivos. Um sonho a atormenta noites seguidas: ela vê os móveis se animarem e se porem a marchar pela casa, encurralando os filhos e o marido. Às vezes são roupas, e não móveis, mas o procedimento é igual — uma espécie de parada militar que espreme os seus contra a parede da sala. Ela mesma

não aparece no sonho repetido. Procura um terapeuta e gasta a primeira entrevista contando como é cuidadosa para com a família. Tudo tem de estar sempre bem arrumado, nenhum dos filhos sai de casa com a camisa mal passada — nem deve voltar sujo ou amassado. O terapeuta faz-lhe ver que o amor que sente pela família é verdadeiro, sim, porém o problema está na forma. Reduz-se a ser cuidado. Cuidado e limpeza acabaram por tomar conta da relação afetiva inteira, é como se móveis e roupas quisessem mostrar-lhe que estava espremendo os seus contra a parede da sala, que é onde fica a porta da rua. Cuidando exageradamente, faz do lar um quartel, onde os outros ou estão espremidos ou se devem evadir. Ela mesma é a parada militar. Ao ouvir essa primeira interpretação, responde a paciente: "Ora, o senhor está exagerando, está vendo chifre em cabeça de vaca..." O que já é bom começo, posto que as vacas, ao contrário do cavalo do ditado, têm mesmo chifres na cabeça; as coisas começam a voltar para os seus lugares.

Para compreender o outro

A sexualidade, em particular, ilustra bem a perversão amesquinhada da superfície. Parece resumir-se à política do ganho fácil. Superficialmente, o que se conversa sobre sexo dá a impressão de investimentos especulativos; talvez os homens procurando mais a quantidade e o vário, muitas relações a um custo baixo, e as mulheres um pouco mais a qualidade, orgasmo melhor ou mais freqüente. De qualquer forma, a diferença é pequena, cada qual buscando um retorno melhor para seu investimento. Tanto como o voyeurismo (o prazer de espionar o corpo alheio) ou o sadismo sexual, trata-se aí de uma perversão; só que esta socialmente aceita. Digo perversão, pois é uma versão bastante restrita da sexualidade, em oposição à sexualidade plena, rica de formas e de variações.

Essa espécie de egoísmo sexual, quando tratado em terapia, deixa evidentes o medo e a vergonha que o apequenam. Mais fundo, ele não é necessariamente altruísta ou generoso, porém é, pelo menos, muito mais interessante. Uma pessoa chega então a compreender de quantas maneiras diversas a atração sexual existe, como ela se imiscui e sustenta relações sociais diversas, de um sorriso no ônibus até uma briga no bar. A vida sexual pode, então, mudar muito ou pouco, isso depende das condições objetivas de cada um, mas é certo que a própria sexualidade, conhecida, servirá de instrumento para compreender os outros.

Compreender, aqui, tem um sentido especial. Nós imaginamos viver num mundo da coisas, horários e dinheiro, mas ignoramos que a realidade humana é, por natureza, emocional. Quando uma pessoa, um grupo ou um país se encontra sob o signo da saudade, digamos, os objetos são mais vagos e o tempo escorrega tal como uma bebida macia. Se predomina entusiasmo ou medo, as relações já se tornam diferentes, e as próprias coisas são fabricadas diferentemente. Isso é lógico, porém difícil de perceber, porque as emoções produzem ao mesmo tempo as relações objetivas e o olho que as enxerga.

Um aviso de perigo

Pois bem, uma pessoa que alcançou um convívio razoável com as próprias emoções pode experimentar diversas maneiras de ser. Vendo o mundo em cores diversas, aprende ao menos que ele não é monótono. Já a neurose é uma espécie de monotonia que se esparrama sobre tudo. Em certo ponto da vida emocional, acontece um nó. Em seguida, não há em seguida; há, sim, a repetição constante da forma desse nó, em cada situação. Se sou neurótico, meu corpo, minha família e meu trabalho constituem algo assim como um espelho, refletindo sempre a forma do nó emocional. Talvez tudo seja um aviso de perigo, talvez tudo pareça sujo ou desorganizado, talvez tudo seja triste. O problema está no tudo, no sempre igual. É, em primeiro lugar, uma redução violenta das possibilidades; e, em segundo, um constante ver a si mesmo, sem se dar conta.

As psicoterapias existem para inverter a situação. Ajudando alguém a se conhecer, liberamos sua participação externa. Sobretudo, juntamos partes desconectadas.

Nas sociedades modernas, nas grandes cidades, ocorre uma divisão excessiva de funções. O diálogo que se estabelece entre as pessoas está, por assim dizer, fraturado. Meu corpo, trato no médico ou faço ginástica; no trabalho, falo de trabalho, de futebol ou novela; em casa, são as contas e um bocadinho de amor na hora marcada. Parece que a especialização acabou por matar o interesse mais integrado, aquele que junta tudo, de forma talvez gratuita, mas satisfatória. Foi preciso então reinventar um local para o diálogo perdido. E, paradoxalmente, este lugar, que são as terapias, é uma especialidade a mais e não é gratuito. Paciência. Talvez o destino das terapias seja o de desaparecer, enquanto profissão isolada, depois de reintroduzir nos espaços da vida cotidiana o diálogo integrador das emoções.

Talvez. De qualquer modo, enquanto a função terapêutica não tiver embebido suficientemente as relações humanas em geral, é bom que se lhe reserve um espaço, ainda que o de uma especialidade a mais. E é bom também que percamos a vergonha de usar esse espaço, sempre que necessário. É justamente a camada superficial de egoísmo e auto-suficiência que nos impede de penetrar no fundo humano comum de nossas emoções, o agente principal da vergonha de ser ajudado. Por um amigo ou por um profissional, por um assistente social ou por um terapeuta, numa terapia de grupo ou numa análise individual. Em todos os casos a função terapêutica pode se dar, com maior ou menor profundidade. Furando a camada do melancólico egoísmo, encontra-se em si mesmo as próprias forças, boas e más, que criam o mundo que nos cerca, podendo então modificá-lo, já que o fundo da interioridade é também o mundo real.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1985
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