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A esquerda e o compromisso com a democracia

A esquerda e o compromisso com a democracia

O direito que todos os partidos políticos e as organizações de esquerda têm de atuar livre e legalmente na sociedade é, sem sombre de dúvidas, um dos temas mais importantes da atualidade. Colocado em discussão, porém, o tema nos remete ao outro lado da moeda, ou seja, como essas organizações abordam a questão da democracia e da pluralidade dos partidos políticos?

A revista Lua Nova convidou alguns nomes expressivos e lideranças para falar sobre o assunto. Tendo como moderador o historiador Marco Aurélio Garcia, participaram do debate: Armênio Guedes, ex-membro da direção nacional do PCB; Fúlvio Abramo, ex-militante trotskista; Josimar Melo, dirigente da Liberdade e Luta; e Cláudio Campos, principal líder do MR-8.

Também foram convidados os senhores Luiz Carlos Prestes, Giocondo Dias e João Amazonas. Prestes disse: "Eu não me sento à mesma mesa com esses senhores"; Giocondo Dias alegou estar impossibilidado de participar e sugeriu um representante, o senhor José Paulo Netto, que, convidado, também não compareceu e, finalmente, João Amazonas alegou já estar comprometido com outras atividades e negou-se a enviar representante para falar em seu nome ou do PC do B. O deputado federal Aurélio Perez (PMDB-SP), convidado, também confirmou a sua presença, mas acabou não comparecendo.

MARCO AURÉLIO GARCIA — A preocupação principal deste debate é com a legalidade dos partidos políticos hoje clandestinos. Mas nós queremos ir um pouco adiante, pois a discussão não tem avançado muito sobre o sentido mais profundo dessa questão, considerando-se tanto a diversidade das correntes políticas como, no caso dos comunistas e da esquerda, a sua relação com a democracia. Tem-se tratado pouco da hipótese dessas correntes, que pleiteiam a sua legalidade, conquistar o poder e, assim, estabelecer relações com as outras correntes e partidos políticos.

FÚLVIO ABRAMO — Eu assinaria, assino, assinei e assinarei vinte mil vezes, como já fiz, o pedido de reconhecimento do Partido Comunista. É uma questão de princípio do que acredito ser a luta proletária pela derrubada da ditadura, das atuais classes dominantes capitalistas, contra a burguesia. No entanto, não discutiria estas questões com um membro do Partido Comunista, porque, dentro da lógica do Partido Comunista, eu, tido como trotskista, sou considerado um traidor. Não há como discutir a legalidade sem que eu exija que o Partido Comunista lute, no Brasil, pela legalidade dos partidos trotskistas, o que nunca farão.

Para mim, todos os partidos operários são órgãos da classe operária, que almeja tomar o poder e organizar a sociedade de uma forma determinada. Uma vez desencadeado o processo de tomada de poder, é o partido quem deve, sozinho ou junto com outras forças da mesma classe, orientar a formação do novo Estado, que tem de ser um Estado de passagem, revolucionário, fundado nos princípios que a gente aceita, de Estado como ditadura do proletariado nacional. Ora, como posso discutir este problema com um membro do Partido Comunista, se eu sei que de antemão eles excluem a possibilidade de eu me aproximar deste problema?

No momento, visamos a modificar as formas de poder da burguesia. Não queremos derrubá-la e instaurar uma ditadura do proletariado, mas, apenas, que a forma de poder militar-burocrático, que se instalou com o golpe de 64, seja modificada por uma forma democrático-burguesa que permita mais algumas liberdades. Por isso, quero que a luta seja levada explicitamente pela legalização de todos os partidos.

ARMÊNIO GUEDES — Também acho que todos os partidos têm direito à legalidade. Isso é essencial para garantir o funcionamento de um regime democrático e pluralista. É por isso que defendo e luto pela legalização dos partidos que ainda vivem na clandestinidade, como é o caso do PCB.

Porém, há sempre algo obscuro nos programas da maioria dos PCs quando se trata da democracia. Fala-se em pluralismo, mas nada se diz sobre alternância de poder. Penso que se os comunistas brasileiros fossem mais claros em relação a essa questão, defendendo a democracia como um valor universal, isso certamente seria um fator positivo para colocar do lado deles, na luta pela legalização de seus partidos, a maioria das forças democráticas de nosso país. É claro que o principal obstáculo à legalização das atividades dos comunistas é a tradição, o ranço autoritário e reacionário das nossas classes dominantes. Se lutamos contra tal tradição, precisamos igualmente lutar contra a visão autoritária que permeia a cultura do "povo comunista". Seria preciso deixar bem claro que não queremos a democracia apenas para conquistar o socialismo, mas também que a desejamos e dela não podemos prescindir para construir e dirigir uma sociedade socialista.

Se um partido fala em democracia, mas apresenta posições diferentes em relação ao autoritarismo militar brasileiro e o autoritarismo militar polonês, seu discurso fica comprometido, inautêntico. O PCB tem uma concepção truncada e deformada da democracia. A democracia que nós de esquerda — especialmente do Partido Comunista — chamamos, durante muito tempo, de democracia formal é necessária. A "outra" democracia é suspeita. Mesmo porque a democracia não é só formal, mas real. Uma transformação social no Brasil só teria sentido se fossem mantidos o voto secreto, o parlamento e as outras instituições democráticas, as organizações de massas e os movimentos sociais autônomos. Isto que se chama democracia formal, na verdade, corresponde a liberdades conquistadas pelos povos em duras lutas através da História.

Eu acho difícil, caso perdurem as condições atuais — em virtude de sua formação —, que o PCB assuma a democracia como um valor universal. A própria organização interna do partido mostra uma estrutura inteiramente antidemocrática, negando, na prática, a defesa da democracia como estratégia.

Acho que um fator que concorreu muito para que o PCB não partisse de uma forma definitiva na busca pela legalidade foi a necessidade de controlar o aparelho partidário, de dar prioridade à luta interna e não à inserção do Partido na sociedade. O Partido ainda é orientado pelo modelo soviético.

CLÁUDIO CAMPOS — O desenvolvimento e crescimento da democracia é a questão política central da luta revolucionária. Enquanto estamos numa democracia burguesa é evidente que o que nós podemos ter é só uma democracia burguesa. No socialismo, porém, ela deve e precisa ser aprofundada, no sentido de que não seja mais a dominação. Quando nós tivermos essa situação, com toda a população participando do conjunto das tarefas do Estado, não mais teremos a necessidade do Estado, que começa a deixar de existir como um instrumento à parte da sociedade. Aí teremos atingido o comunismo.

A questão central do pluralismo é que a participação do conjunto da população pode, ou não, estar dividida em partidos. Desse processo pode ocorrer uma unificação e integração do pensamento popular. No entanto, se verificarmos a experiência internacional, vamos ver que não é isso que tem ocorrido. Isto, porque a experiência socialista ainda é o pólo secundário na contradição socialismo-capitalismo a nível internacional.

Existe um certo tipo de insegurança, de fechamento, nas experiências socialistas, o que poderá e será superado na nova fase a qual estamos lutando para atingir: há um processo histórico para se chegar lá. Eu não diria que a responsabilidade principal pelo "fechamento" seja do próprio socialismo. Acho que realmente existiu a contra-revolução dentro das lutas revolucionárias feitas até aqui. E quando a contra-revolução passa a atuar de forma antidemocrática é preciso reprimir. Se colocada dentro das normas democráticas estabelecidas pela sociedade, porém, é natural que ela exista. Qualquer forma de democracia coloca determinadas condições para participação, que se resumem no respeito à legislação e às normas que a sociedade defina. Enfim, eu não considero que o Estado soviético é um estado autoritário. Todo Estado ê autoritário e o Estado soviético é o mais democrático que existe hoje no mundo. Porém, acho que nós podemos avançar mais ainda esta democracia.

JOSIMAR MELLO — Desde os fundadores do socialismo moderno, a questão da democracia sempre foi posta como necessidade da classe operária para que ela possa se expressar enquanto setor fundamental da sociedade capitalista e possibilitar o desenvolvimento e aperfeiçoamento da sua elaboração política e da sua intervenção, inclusive no interior do seu próprio movimento. A legalidade dos partidos e, mesmo, o problema da democracia política, hoje, mais do que nunca, devem ser uma luta incondicional para o movimento operário. No ponto em que chegou o capitalismo, todas as implicações sociais e políticas fazem com que as bandeiras da democracia tenham praticamente deixado o programa burguês. As reivindicações democráticas, para a burguesia, são agora um obstáculo para o seu desenvolvimento enquanto classe. A classe operária nada tem a temer, ao contrário, só ganha com a democracia.

Acho, porém, que as questões da organização internacional dos trabalhadores, da organização leninista do partido e a ditadura do proletariado, que estão sendo abandonadas pelos vários partidos comunistas, ainda são atuais. O internacionalismo é uma das bases constitutivas do movimento operário. Mas os partidos comunistas monopolizaram e deformaram estas idéias de forma tal que a noção de ditadura do proletariado chega a causar terror a um operário polonês, ainda que, na prática, ele esteja construindo instrumentos de ditadura do proletariado.

O movimento Solidariedade, ao colocar as questões da revolução política, da derrubada da burocracia, do questionamento ao Partido Operário Unificado Polonês, o partido único, em nenhum momento questionou o socialismo. Ao contrário, ele constituiu-se de organismos de poder pela base que é a essência do socialismo. Sempre defendeu o socialismo, discutiu e colocou toda uma elaboração política demonstrando que socialismo e liberdade são compatíveis.

Esta discussão nos países chamados socialistas não é abstrata. A sucessão de explosões de massas, desde a década de 50 para cá, na Hungria, Tchecoslováquia e, hoje, na Polônia, demonstra a importância que tem a liberdade política para o movimento operário.

FÚLVIO — Neste momento em que o país está procurando reconquistar as liberdades da burguesia, quero lembrar algo importante: existem sinais muito fortes de que há um medo enorme da burguesia, da pequena burguesia especialmente, nos setores que dirigem a atual luta pela democracia no Brasil, do avanço das pretensões dos operários. Qualquer manifestação de operários é vista como uma provocação policial, e os partidos que se dizem do proletariado não estão atentos a esse fenômeno.

MARCO AURÉLIO — Essa questão colocada pelo Fúlvio nos coloca ante outro problema: como cada um de nós vê a transição política do autoritarismo para a democracia. E como isso se articula com um projeto de transformação maior?

CLÁUDIO — A ruptura da dependência do Brasil, com relaçãoao capital financeiro internacional, é a questão fundamental: do ponto de vista econômico-social, é o que, ao nível da base, corresponde ao problema da democracia no nível político. Aprofundar esse processo de democratização interessa vivamente a um conjunto de classes sociais, ao proletariado, à classe média, à burguesia e inclusive ao grande empresariado nacional, que está sendo sufocado pela atual subserviência ao capital financeiro internacional. Durante um determinado tempo essa política de submissão permitia a tais setores se desenvolverem, crescerem. Por isto apoiavam-na. Mas chega um momento em que esta possibilidade de crescimento dentro da dependência se esgota, e então eles vão sentindo a necessidade de romper com ela. Na medida em que o proletariado toma consciência dessa situação, tem interesse em avançar em determinada direção, a classe média noutra e a grande burguesia noutra ainda. Para alcançar a democracia, porém, temos de garantir a unidade desses setores.

É uma luta difícil. Muitos continuarão do lado da dependência, outros serão neutralizados e outros podem ser traídos. É fundamental, porém, a gente defender todos os espaços possíveis para o proletariado, enfrentar a burguesia, mas manter a unidade. Isso é possível, assim como a tentativa de caracterizar as reivindicações operárias de provocação é inevitável. Temos de defender os interesses do proletariado e desmascarar esse tipo de pressão contra a base da sociedade.

JOSIMAR — O atual movimento pela democracia é obra da burguesia democrática, das lideranças liberais, mas seu ritmo e intensidade são impostos pelas massas trabalhadoras mobilizadas. A intervenção das massas trabalhadoras dando o tom e o ritmo da luta política do país provoca, inclusive, os vários posicionamentos da burguesia. Independente de previsão ocorre um processo de revolução que amadurece e acaba determinando as formas de transição que se pode ter para além do regime militar. Cada vez mais se estreita a possibilidade de a ditadura estabelecer uma transição política e controlada para qualquer outra forma de governo. A ruptura é inevitável, inclusive, porque a burguesia no Brasil só conta com uma forma de governo: a ditadura militar. E qualquer alteração institucional implica uma junção de massa, o que significa a perda de controle por parte da burguesia.

O que aponta na direção da necessidade de uma ruptura é a ilegitimidade das instituições, hoje totalmente distanciadas da vontade majoritária da nação. O Colégio Eleitoral, por exemplo, é ilegítimo. Essa ruptura deve procurar resolver esta contradição entre a vontade majoritária da nação e as instituições que decidem seu futuro.

Se os trabalhadores assumissem a bandeira da Assembléia Constituinte, como poder de decisão, ela seria efetivamente muito útil para se poder interferir no atual processo político. Não seria a solução para todos os males, mas um dos passos necessários, das massas contra a ditadura militar para impor essa ruptura. Por isso, a saída do atual processo político dependerá muito do grau de organização que consiga alcançar o movimento operário autônomo.

ARMÊNIO — O discurso político das esquerdas tem abusado tanto da palavra revolução que eu, às vezes, quando vou falar ou escrevê-la, penso muito antes e acabo derivando para outras formulações como "transformação social profunda" e outras menos comprometidas com o voluntarismo e as perspectivas golpistas das transformações sociais. Outro dia, lendo o poeta Antônio Machado, deparei com o seguinte verso: Donde hay vino, beben vino; Donde no hay vino, água fresca. Eu fiquei pensando sobre a razão de eu gostar tanto desse verso: seria por realismo político, diante da vida, ou por oportunismo? Mas concluí que não era comodismo, mas realismo. Então, que ruptura nós precisamos hoje no Brasil? Precisamos de uma ruptura com o autoritarismo, o autoritarismo técno-burocrático que se instalou no país. Mas não como foi exercido nos últimos 20 anos, porque este país é impregnado de autoritarismo: na relação do trabalho com o capital, entre as diversas classes sociais. E até mesmo dentro dos partidos comunistas, onde impera o autoritarismo. Eu discordo do Josimar quando ele diz que a burguesia não tem outra forma de governo. Eu acho que tem e que temos de conviver com a burguesia ainda durante muito tempo.

Desta forma, eu acho que com a Constituinte poderíamos organizar um novo pacto social, o que no Brasil teria o caráter de uma verdadeira revolução, pois poderia ser uma ruptura com as formas autoritárias de Estado. Essa ruptura poderia ocorrer sem um peso específico ainda muito grande no movimento operário, que estará presente, mas não creio que disputando ou dividindo a condução dessa luta com amplos setores das classes dominantes que hoje estão chegando à conclusão que, até mesmo para organizar o capital, elas têm de se transformar em classes dirigentes e não só classe dominante. A questão nacional hoje é uma questão de afirmação da soberania do país, que é contestada pelas forças do capital internacional, do FMI em particular, pela política desenvolvida por certos setores do governo que às vezes se chocam internamente. A questão nacional também é subordinada à questão democrática.

FÚLVIO — A cultura que herdamos do Estado colonial português é a do colonialismo mais feroz. Começa com a fundação do reino em Portugal e os grandes erros que o reino teve na sua luta e na conquista desse imenso império a partir de um pequeniníssimo ponto, satisfazendo todos os seus súditos, que se tornavam, cada um, donos de um pedaço de mundo. Esse autoritarismo está impresso na formação dos portugueses e brasileiros. O que ocorreu em Portugal — a "Revolução dos Cravos" — está ocorrendo agora no Brasil. É uma revolução cultural onde esse espírito autoritário tende a diminuir e ser destroçado. A forma concreta de combatê-lo agora é através da Assembléia Constituinte como a próxima etapa da luta pelas diretas ou para a organização da eleição direta.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1984
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