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O que esperar da Constituinte?

DEBATE

O que esperar da Constituinte?

Uma vez concluída a batalha do seu Regimento Interno, mesmo com a sua soberania restringida, a Constituinte começa a enfrentar alguns dos principais problemas que conformam a face contemporânea do Brasil. Para antecipar o alcance e os limites com que, por exemplo, a questão sindical, a questão dos partidos políticos e a questão militar — entre outras — serão tratados por ela, a revista LUA NOVA reuniu três dos mais importantes cientistas sociais brasileiros para um debate, em sua redação. Maria Hermínia Tavares de Almeida, da Unicamp e do IDESP, Eliezer Rizzo de Oliveira, do Núcleo de Estudos Estratégicos, da Unicamp, e Francisco Weffort, da USP e do CEDEC, conversaram por mais de três horas, sob a coordenação de José Álvaro Moisés, diretor de LUA NOVA, para apresentarem a sua avaliação prospectiva e para discutirem o que o país pode e deve esperar da Constituinte. A seguir, o teor desse debate, cujos temas centrais foram a questão sindical, a questão dos partidos políticos e da representação e a questão militar.

A questão sindical

MARIA HERMÍNIA — Penso, como muitas outras pessoas que têm tratado da questão sindical, que a idéia de uma estrutura assentada no princípio do pluralismo seguramente é mais adequada para a organização sindical numa ordem democrática. Mesmo que, num primeiro momento, desarmar a estrutura corporativista crie problemas e desorganização, estou absolutamente convencida de que é necessário correr o risco de criar uma organização de tipo plural. Os benefícios que, a longo prazo, isso pode trazer para a democracia, para a organização do movimento dos trabalhadores, são muito maiores do que os inevitáveis problemas de desorganização que, certamente, ocorrerão com a desmontagem da estrutura corporativa.

Não estou, porém, muito otimista quanto a isso, pois acho que existem fortes fatores que empurram na direção da sua manutenção. Mas estou convencida que os democratas mais avançados têm que se esforçar para ver se pelo menos abalam esta estrutura que se opõe ao aprofundamento da democracia no país. Esta é a minha opinião, certamente um juízo de valor do qual eu parto para fazer as afirmações que se seguem.

Dessa ótica, um ponto de partida otimista é o de que, de alguma maneira, nós já convivemos com uma organização sindical parcialmente plural. Na verdade, o que existe como organização sindical, hoje, no país é algo mais do que a estrutura sindical corporativa legalmente estabelecida pela Consolidação das Leis do Trabalho. Algo um pouco mais complicado, onde convivem os princípios de um ordenamento pluralista e aqueles que possibilitam a unicidade sindical, resultante do monopólio da representação outorgado pelo Estado, que constitui o cerne da estrutura corporativista. A dimensão pluralista do sindicalismo atual manifesta-se por dois lados: um óbvio e mais visível, pela constituição das centrais sindicais. Hoje, elas são um dado da realidade, e não mais questão de opinião favorável ou contrária. Elas existem, fazem parte da dinâmica do movimento sindical e não mostram nenhuma tendência ao desaparecimento.

Obviamente, um processo repressivo pode fazer as coisas voltarem atrás. Mas não se percebe no movimento sindical qualquer sintoma de recomposição da unicidade da representação ao nível das centrais sindicais. Um segundo terreno onde se manifesta o pluralismo é aquele no qual se movem os setores que estão proibidos de se associarem sindicalmente pela legislação: os servidores públicos. Aí, espontaneamente, por força da experiência, surgiu um sistema de representação e intermediação que não se pauta pela unicidade. A representação é claramente ordenada segundo os princípios do pluralismo. Ou seja, onde a lei não regulou, o que brotou foi uma forma de representação muito mais complica da e plural. Esse é um dado da situação e é resultado do processo de ativação do movimento sindical, a partir da segunda metade da década de 70. Ele não foi resultado de nenhuma política intencional de qualquer corrente, mesmo as mais avançadas, no sentido da transformação pluralista da estrutura sindical. O novo sindicalismo da década de 70 não tinha nada a ver com o pluralismo ou com a criação de várias centrais sindicais. Na verdade, apluralização do sistema sindical foi resultado de um processo: as correntes que hoje começam a defender a representação de tipo pluralista o fazem ex-post-factum, por sensibilidade ao que foi o processo real, e não por uma política deliberada e/ou anteriormente traçada que tivesse levado a isso. Entretanto, ainda subsiste uma ambigüidade. Na verdade, o centro de gravidade do sistema corporativo é o sindicato único. Ele tem o monopólio da representação no processo de negociação e detém o grosso dos recursos. Com relação à representação única no plano sindical, as coisas são um pouco mais complicadas. A experiência e a maneira como se estruturaram mesmo as correntes renovadoras no movimento sindical, no interior do sindicato oficial, contribuíram para tornar as posições mais ambíguas, menos nítidas. Muito poucas lideranças importantes no movimento sindical estariam dispostas a abandonar um recurso de poder significativo como o monopólio outorgado da representação, para correr o risco de constituir uma estrutura sindical inspirada em princípios mais democráticos. Portanto, a idéia do sindicato único convive com formas plurais de representação, seja nos setores onde a legislação ainda não foi estendida — como o dos servidores públicos —, seja nos órgãos de cúpula do movimento sindical. Outra expressão de adesão à idéia do sindicato único se manifesta na discussão sobre a organização da representação na empresa. Aí o processo incipiente de organização foi acompanhado por um esforço enorme de colocar as comissões de representantes sob controle do sindicato, para manter o controle do sindicato sobre a regulamentação das formas de representação na empresa, sem nenhuma disposição de experimentar alternativas que possibilitassem o pluralismo na representação. Existem tendências divergentes que apontam, seja no sentido de criar uma organização sindical mais plural, seja no sentido de reforçar o ordenamento de tipo corporativista. Essas tendências não se manifestam só no interior do movimento sindical, creio que também pelo lado empresarial e pelo lado governamental. Aí as posições também tendem à ambigüidade, embora, com freqüência, as propostas de pluralismo vindas dos governos, mesmo da Nova República, sempre tenham-vindo como uma ameaça em momentos de mobilização, e com a intenção clara de assustar ou de desorganizar o movimento sindical. A proposta do Murilo Macedo, por exemplo, era muito clara nesse sentido: ela quebrava um pouco o monopólio da representação, criando alternativas de representação nas empresas como uma forma de minar o poder sindical. Os sindicatos se opuseram claramente a isso, mas toda vez que o governo não conseguia negociar com o sindicato, ele dizia: "olha que eu acabo com o imposto sindical (...)", "olha que eu estabeleço a liberdade completa de organização (...)", "introduzo a Convenção 87 da OIT". Tenho a impressão que do lado empresarial também. E não estou muito segura de que aí haja disposição efetiva para mudar. Na verdade, a idéia do fim da estrutura corporativista é muito assustadora para os que querem manter o sindicalismo sob controle. Bem ou mal, são conhecidas as virtualidades e os limites da estrutura atual. Nesse sentido, parece-me que não existe qualquer adesão a princípios mais democráticos de organização sindical no discurso dos empresários, mas sim estratégias voltadas a minar e diminuir o poder de negociação sindical. Isto também empurra os sindicatos na direção da defesa do monopólio da representação.

Diante da necessidade de alterar mais profundamente tudo isso, parece-me que seria conveniente que houvesse mais tempo para que as alternativas de reforma pudessem amadurecer no próprio desenvolvimento dos conflitos trabalhistas, e para que essa reflexão amadurecesse mais dentro dos partidos, seria de todo conveniente que houvesse mais discussão política e ideológica a respeito desta relação entre liberdade sindical e construção da democracia. Nesse sentido, na Constituinte, ainda não existem forças que possam sustentar uma reforma mais profunda da organização sindical na direção da plena liberdade e da plena autonomia. No que se refere à questão sindical, o importante não é propriamente o que vai ficar estabelecido na Constituição. Com freqüência as Constituições brasileiras estabeleceram princípios bastante avançados. Eles teriam permitido outras modalidades de organização se as forças políticas ligadas ao movimento sindical assim o tivessem querido. Tenho a sensação que a Constituinte vai consagrar alguns princípios gerais avançados de forma a não impedir o processo seguinte de construção de uma estrutura sindical livre, autônoma e democrática. Talvez não seja muito complicado garantir alguns princípios básicos e genéricos sobre temas frente aos quais existe um razoável consenso. O primeiro é, desde logo, a consagração do princípio de liberdade de organização. Liberdade de organização que deve incluir — e aí já não é tão óbvio o consenso — o conjunto dos assalariados, inclusive os servidores públicos, atualmente proibidos de se organizarem em sindicatos. O segundo tema é a valorização da negociação coletiva como instrumento de definição das regras do jogo nas relações entre o capital e o trabalho, de tal forma que se jogue para o plano da barganha uma série de questões que têm sido reguladas por lei. O terceiro tema é o direito de organização na empresa. Penso que deveria haver um dispositivo que coibisse as práticas anti-sindicais nas empresas, porque a contrapartida da liberdade de organização é o reconhecimento da prerrogativa da representação na empresa. Nesse sentido, seria o caso de se pensar alguma coisa como o estabelecido no Estatuto dos Trabalhadores Italianos. Por fim, pensa que não será apenas com o estabelecimento de um conjunto de princípios mais gerais que os problemas maiores de organização sindical irão se resolver. Neste sentido, a Constituinte tem de ser acompanhada de um aprofundamento da discussão pública e, aí, nós, os intelectuais, que temos uma visão democrática do mundo do trabalho, podemos ter um papel na direção da criação de um movimento de opinião sólido a favor de um Estatuto dos Trabalhadores mais avançado que o atual.

A questão militar

ELIEZER RIZZO — Estou em dúvida por onde entrar na discussão, pois se fosse me ater ao que provavelmente vai acontecer na Constituinte, a respeito do papel dos militares e sobre o tema subseqüente, que é o da estrutura das Forças Armadas, poderia dizer simplesmente o seguinte: muito provavelmente o papel atual das Forças Armadas vai se manter. A tendência é esta. Ou seja, de reconhecimento pelas forças políticas do direito das Forças Armadas intervirem internamente, como participantes legítimos na arena política. Quanto à estrutura, dificilmente vai se chegar a algo diferente dos atuais três ministérios militares, ainda que cada um com o seu respectivo Estado-Maior. A tese do Ministério da Defesa é muito pouco aceita entre nós. O papel das Forças Armadas tende a permanecer o mesmo, com alguma mudança parecida com as que já foram introduzidas ao longo da história republicana: reconhecimento das Forças Armadas como instituições permanentes subordinadas ao presidente da República, mas com autonomia de obediência. Quanto à Justiça Militar, a Constituinte deve dizer qual o seu limite. E sobre a estrutura atual dos três ministérios não sei se a Constituinte vai definir algo de novo. Essa é uma questão em aberto. Acho que é até mais provável se chegar a uma situação em que o Serviço Nacional de Informações se mantenha sem o seu status de ministério. Isso é mais fácil do que se reduzir os três ministérios a um, no caso, o Ministério da Defesa. Na verdade, o Serviço Nacional de Informações, o Conselho de Segurança Nacional e o Estado-Maior das Forças Armadas, que deveriam ser meros órgãos auxiliares, têm status de ministérios. E, como tais, têm imensa força de pressão e de atuação na sociedade e dentro do Estado.

No entanto, acho que é necessário insistir na tese de que as Forças Armadas devem existir para defender a integridade territorial do país, ou seja, defender a integridade política do Estado face a situações de ameaça internacional. As Forças Armadas existem só para a defesa externa ou elas também existem para a defesa interna? Se prevalecer esse último ponto de vista, trata-se de uma concepção conservadora da ordem social, as Forças Armadas se identificando em última instância com a ordem capitalista, no sentido de evitar que as coisas se transformem pela revolução social. Acredito que os militares estão com uma grande margem de vantagem neste debate e por várias razões. A Nova República surgiu também de uma decisão militar. Primeiro, porque a transição foi negociada para que saíssemos da fase da "distensão" controlada e para que o sistema militar aceitasse a candidatura de Tancredo Neves. Para isso, foi fundamental o apoio de oficiais do Alto Comando sob a influência do general Geisel. A manutenção da regra eleitoral e a inviabilização da prorrogação do mandato do general Figueiredo foram parte dessa negociação. Por outro lado, quando Tancredo Neves ficou doente e não assumiu, a decisão foi também militar; contou, sobretudo, com a participação do ministro do Exército, o que sempre foi muito negado, mas, hoje, está cada vez mais claro. Tendo, então, surgido de uma decisão também militar, o governo Sarney teve a sua base parlamentar esfacelada, logo no início, na hora de fazer a distribuição de cargos e na hora de decidir coisas mais substantivas do processo de transição, por exemplo, no tocante à reforma agrária. E, em todas as questões fundamentais do país, com exceção, talvez, do Plano Cruzado, as Forças Armadas sempre foram ouvidas e influenciaram segundo um parâmetro que tem sido regular na história do país.

Portanto, as Forças Armadas se inserem no quadro político do país com capacidade de iniciativa, de correção de curso ou mesmo de veto. Isto não é de agora, nem de 1964 para cá, é de antes. Ao debater o seu próprio papel, as Forças Armadas vivem uma dupla situação. Além disso, há o discurso militar: tanto a existência do discurso em si, que é um direito histórico adquirido pelos militares, quanto o fato da sociedade civil jamais negar a eles o direito desse discurso; esse discurso tem um elemento substantivo muito importante. Os militares estão dizendo: "o autoritarismo, de 1964 para cá, foi uma excrescência. Não era algo típico da proposta dos militares. Aconteceu". O que se deve modificar? "Deve-se modificar o regime. Porém, o regime é diferente da função militar. A função deve permanecer." O regime muda, mas não a função. Esta dialética vai caracterizar, por exemplo, as assessorias militares junto aos partidos, já que eles estão muito bem organizados para isso. Ou seja, é possível mudar ó regime. Você pode ir mais para lá ou para cá. Porém, desde que coadunado com a manutenção da função militar: essa função é aquela que está no artigo da Constituição que fala da garantia da ordem e dos poderes constitucionais. Porém, na Nova República não temos apenas o discurso da manutenção da função. Nós temos essa função em exercício o tempo todo. Quantas vezes as tropas foram para a rua, nos últimos tempos? Várias. Na greve geral de dezembro de 1986, o ministro do Exército não estava no país, mas o esquema militar foi montado pelo seu substituto. Em setembro de 1986, na greve dos motoristas de ônibus aqui em São Paulo, tivemos as tropas nas ruas, como na Cosipa, em Cubatão e no Rio de Janeiro, em outras ocasiões. Ou seja, está no plano da prática, nós é que não estamos percebendo. Eles estão no exercício dessa função que, do ponto de vista da construção de uma sociedade democrática, tem que ser definida de outra forma.

O grande problema da Constituinte é mais ou menos o seguinte: o Exército pode até vir a ser usado, em condições normais, mas desde que na condição de instrumento. Isto é, digamos que há uma situação de conflito, em que os fazendeiros estão armados. Você faz o quê? Chama a Polícia Federal? Não vai dar em nada. Então, tem que se colocar gente preparada. Em que condições? Com autorização do Congresso, por exemplo, com prazo determinado e com função específica. No caso de Itaipu, quando houve o retorno público do general Geisel, quem é que foi liberar a área ocupada pelos grevistas? A polícia do Paraná e as tropas federais, isto é, as tropas do Exército. Então, a questão é essa: as Forças Armadas são instrumentos do poder político e, portanto, submissas a ele, ou são autarquias autônomas, sujeitas a si mesmas e, portanto, algo distinto do Estado, embora parte dele? Eu não vejo partido nenhum preparado para este debate. Aliás, tem havido pressão conjuntural sobre isso, como no caso da pressão que as Forças Armadas exerceram sobre a Comissão Afonso Arinos, que recuou de sua posição inicial, mais branda. Era uma posição intermediária em relação ao que poderia ser o papel das Forças Armadas. Há uma pressão visível sobre a Constituinte, um lobby muito bem-feito junto à imprensa, de modo que sempre que aparece uma tese na qual os militares têm algum interesse, eles pressionam as redações. Ademais, a opinião do presidente da República corresponde à posição do Exército e isso é uma coisa muito importante. Porque se alguém faz a cabeça de alguém, o Leônidas faz a do Sarney. O Tancredo havia falado várias coisas interessantes sobre o Exército. Coisas bastante favoráveis como, por exemplo, o caráter de classe média, o caráter democrático da formação do oficial, que o SNI precisaria ser mudado, que as Forças Armadas tinham que se voltar para o exterior, etc. Tudo isso foi deixado de lado e substituído pela tese da manutenção do papel constitucional das Forças Armadas.

Agora, o que mais leva a crer que as Forças Armadas obterão a permanência do seu papel atual é a sua ação tutelar sobre o governo. Na falta de amplo apoio político, sem o Plano Cruzado, quem é o Sarney? O Sarney é o presidente que assumiu numa situação extremamente difícil, com seu passado de PDS, substituindo o Tancredo, este sim com um apelo emocional fortíssimo no país. Quando a sua base parlamentar se desfez, quem o sustentou? O seu apoio veio da sustentação tutelar das Forças Armadas. Isto é, elas apóiam, mas dizem, "aqui pode, aqui não pode". Há evidências, inclusive, de que, na negociação que levou à Nova República, pelo menos dois elementos foram garantidos aos militares (e a segurança com que eles tratam esses dois elementos me parece corroborar a hipótese). Primeiro, a manutenção do papel constitucional. Segundo, a manutenção do programa nuclear paralelo. Isto é, mantêm a ordem interna e dão um salto em termos de competência do poder de fogo externo. É interessante que haja um consenso nas Forças Armadas de que o autoritarismo foi péssimo para elas, do ponto de vista da competência militar. Dois anos atrás, perguntei a alguns oficiais da Marinha: "Se tropas argentinas invadissem o Rio Grande do Sul, hoje, e o país tivesse que responder com ação conjunta e combinada, envolvendo Exército, Marinha e Aeronáutica, em quanto tempo se conseguiria agir?" Eles: "Para acertar os códigos, três meses..."! De fato, na inexistência de um Estado-Maior com característica de Ministério da Defesa, os códigos são absolutamente separados. E, para muitos militares que estão atentos a isso, a Guerra das Malvinas serviu de exemplo a ser evitado. Lá houve três guerras: a da Marinha, a do Exército e a da Aeronáutica. E eles perderam as três! Alguns militares estão se aproximando muito do nosso núcleo na Unicamp; é um pessoal competente e, acredito, democrata. Mas falar sobre as Malvinas, eles não falam. Falam assim, num restaurante, mas falar em termos públicos, evitam. Porque é muito grave. A principal conclusão que resulta dessas reflexões é que o Exército tem um papel desproporcional na política, em relação àquele que exerceria, de fato, numa situação de conflito externo. Enfim, ele não vai poder agir sozinho, como age enquanto "partido verde-oliva", que é como eles se chamam. A grande força de contenção de mudanças é atribuída ao Exército, o que já é um dado importante para a Constituinte. Agora, se vocês me perguntassem: "Bem, mas por que as Forças Armadas exercem esta função tutelar?", teria que entrar, talvez, em algumas heresias em termos de ciência política brasileira. Porque o processo de "distensão" tem dois lados notáveis. Primeiro, se a gente olhar do ponto de vista das propostas mais gerais (vamos estourar o PMDB, etc.), é complicado analisar- o resultado. O PMDB não estourou, mas será que isso é uma grande vantagem? Ele, hoje, é tão contraditório que, de lato, tem dificuldades de conviver com suas próprias forças internas... Para mim, o fundamental é o seguinte: a estratégia global,de Golbery e Geisel, foi a de preservar o aparelho militar. Aliás, uma coisa interessante é que alguém como o Alfred Stepan, com toda a sagacidade e preparo que ele tem, não percebe isto. Porque ele ficou apenas com o que o Geisel e o Golbery falaram para ele. Ainda que o Geisel e o Golbery tivessem dito, sinceramente, que eles não tinham tal objetivo político, eles estavam envolvidos, por força do processo político. Havia contradições importantíssimas se desenvolvendo no aparelho militar: a estrutura de comando convivendo com a estrutura paralela do SNI; as Forças Armadas, que são previsíveis por natureza, comportando fenômenos como as mortes de Wladimir Herzog e de Manoel Fiel Filho, sem que o comandante pudesse ser, diretamente, responsabilizado. Havia uma estrutura paralela, o SNI atravessando todos os ministérios, influenciando a carreira de todo mundo. Muita gente também entrou numa contradição profunda com a carreira militar, por causa da violência que foi empregada na tortura. Eu não acredito que este elenco de contradições não estimulasse pessoas inteligentes e preparadas, apesar de extremamente conservadoras e autoritárias, com nível de estadistas, a pensar nestas questões.

O processo de "distensão", a longo prazo, nesse sentido foi militarmente rigoroso. Por quê? Porque as Forças Armadas, no início do processo, tinham alguns "nãos" fundamentais. "Hão" ao Ato Institucional nº 5. "Não" à anistia. "Não" ao julgamento das Forças Armadas. Você pega isso aí e é coisa muito bonita: é uma dialética da conquista e da concessão. Aquilo que a sociedade consegue arrancar do autoritarismo, o consegue na forma que é funcional ao autoritarismo, preservando a autonomia das Forças Armadas. No caso da anistia, é uma conquista, sem dúvida nenhuma. A minimização do AI-5 também é coisa muito importante, evidentemente. E nós andamos muito, de lá para cá. Mas, efetivamente, os dados essenciais da função das Forças Armadas, que caracterizam sobretudo o Exército como um grande "partido", dotado de Estado-Maior, com capacidade de antecipação, com tudo isso, foram mantidos. Elas não podem ser julgadas por força externa, se recusam a serem julgadas autarquicamente e mantêm a capacidade de antecipação, que é a capacidade que os partidos precisam ter, capacidade de análise conjuntural, de saber para onde vão as coisas, trabalhando com cenários alternativos. Nós não temos tradição disso no Brasil, mas eles têm. Então este processo foi militarmente vitorioso.

Hoje, nós temos a manutenção dos instrumentos fundamentais. Temos os ministérios e os órgãos militarizados, como o SNI; temos a supremacia do Exército sobre a Marinha, sobre a Aeronáutica, sobre o SNI, sobre o Conselho de Segurança. E duvido que isso mude, fundamentalmente, na Constituinte! Temos ao mesmo tempo a solução de uma grande contradição que imperou durante todo o período autoritário, que é a seguinte: Castelo Branco teve o seu ministro da Guerra; este, dentro de algum tempo, falava pela oposição militar. Sobe Costa e Silva à Presidência e no momento seguinte ocorre a mesma coisa com ele. Essa contradição, entre a Presidência e a voz do aparelho militar, é muito importante. O Stepan chama isso "os militares enquanto governo e os militares enquanto instituição". Eu chamo a isso uma contradição entre a Presidência e o aparelho militar. É que a Presidência, pela natureza do Estado, é uma função muito mais complicada do que a chefia ou liderança de uma instituição militar. E, quando algum militar era colocado lá, já por força de uma série de conflitos, ele chega; a e tinha que entrar num quadro de negociação muito mais complicado. Veja o Costa e Silva. Sai da linha dura militar e, de repente, faz uma política externa diferente do Castelo. Já é um elemento de contradição. O Geisel acertou isto. O Figueiredo mais ou menos. Mas, hoje, existe a solução desta contradição na forma tutelar. Isto é uma coisa importante. Não acredito que o Sarney seja uma força contraposta à da solução militar daquela contradição. Pelo contrário, ele vai acionar os mecanismos que forem necessários para que ela prevaleça.

O que os militares receberam em troca dessa versão da transição, além da bomba e da manutenção do seu papel político? Acho que um não claro ao Ministério da Defesa e recursos para a sua renovação tecnológica, projeto mais conhecido pelo nome de "Força Terrestre 90", que, sem que se saiba, já se iniciou. Iniciou-se com a reestruturação da distribuição territorial do Exército, de tal maneira que o tornou mais ágil e mais estruturado para a intervenção interna. Conversei com militares conservadores e eles dizem: "Não se pode deixar São Paulo, na democratização, com um II Exército muito forte. É necessário quebrar um pouco, dividindo-o". Mas, no meu modo de ver, o reconhecimento é o da autonomia. Isto é fundamental. O Exército teve reconhecido o seu caráter autárquico. Finalmente, eu gostaria de perguntar o seguinte: essas posições correspondem apenas a interesses militares? Vou dizer claramente que não. A militarização do Estado, ou o autoritarismo, se o atribuímos apenas à força política das Forças Armadas, não estamos entendendo nada. Por exemplo: não é preciso falar de 1964. Vou falar do processo de "distensão". Quando Geisel começou este processo, teve de enfrentar a extrema-direita das Forças Armadas. Mas ele teve de enfrentar, também, a FIESP, que apoiava o Delfim, e a Federação das Indústrias do Rio Grande do Sul, que queria a manutenção das coisas como estavam. Portanto, existirá apoio político, social e civil para a tese da manutenção do papel das Forças Armadas. Ninguém governou sozinho de 1964 para cá. É certo que as Forças Armadas tiveram alianças claras com os políticos e com as forças sociais, mas tiveram com a tecnocracia também. Então a minha impressão é que, provavelmente, os militares poderão trabalhar, daqui para a frente, com maior discrição do que fizeram até agora. O SNI, hoje, é muito mais competente do que antes. Com tanto apoio conservador importante, provavelmente haverá quem fale pelos militares sem que eles se queimem numa luta deste tipo. A capacidade de dissimulação que o Exército tem é enorme.

Partidos e representação

FRANCISCO WEFFORT — Habitualmente, nas constituições liberais não se diz nada sobre os partidos. De um modo geral, a idéia mais freqüente sobre eles, no pensamento liberal, é que são organizações privadas da sociedade civil. Nas democracias mais modernas e, em geral, no pensamento democrático moderno, contudo, os partidos são tratados tanto como organizações da sociedade civil, quanto como organizações do Estado. Ou como instituições que fazem a ponte entre a sociedade civil e o Estado. Eles são tratados, portanto, como instituições públicas. Ou seja, continuam sendo organizações da sociedade civil, mas organizações específicas por suas responsabilidades públicas que dizem respeito às suas pretensões de dirigir o Estado.

Acho importante mencionar essas coisas, porque pode haver discussão, na Constituinte, sobre se ela deve ou não definir algo sobre partidos e sobre que tipo de coisa ela deve definir sobre partidos. Então é matéria de opinião. E eu opinaria no sentido de que a importância dos partidos, no plural, na construção do jogo democrático é tão grande, que seria melhor entendê-los como instituições públicas. Nesse sentido, a Constituição tem que definir certos mecanismos que não apenas defendam a liberdade de organização partidária, mas que sustentem a existência dos partidos. Maria Herminia falou dos sindicatos e, obrigatoriamente, falou do corporativismo. No caso dos sindicatos, o corporativismo está definido, como ela observou, no plano institucional-legal. Mas o corporativismo é, como sabemos, um fenômeno mais amplo. Na sociedade brasileira, em geral, trata-se não apenas de um corporativismo legal, mas também de um corporativismo social. O tema do corporativismo, seja na discussão dos partidos, dos sindicatos ou dos militares, é um dos temas mais fortes da transição.

Na transição há vários corporativismos e têm signos diferentes. Por exemplo, na fase de resistência democrática, que é uma fase longa, que dura pelo menos uns quinze anos, todas as forças democráticas (ou boa parte delas) estimularam o crescimento da sociedade civil e, portanto, também, em certa medida estimularam o fortalecimento de um sentimento de corporação onde este existia. É o caso da corporação universitária, de uma determinada categoria profissional, de trabalhadores, das corporações religiosas, culturais, etc. O fortalecimento democrático da sociedade civil significou, numa certa medida, o fortalecimento de um espírito corporativista como uma espécie de ponto de partida para um reagrupamento das pessoas. É preciso lembrar que, durante a ditadura, havia uma atomização e individualização da sociedade, extremamente deletérias do ponto de vista da resistência democrática. Era preciso reagrupar as pessoas e isso significava, de imediato, reagrupar as corporações. O corporativismo é, pois, um fenômeno complexo que tem que ser visto do ponto de vista legal, do ponto de vista cultural e do ponto de vista social. Mas, temos que admitir que o corporativismo trabalha, em geral, contra os partidos, em especial na concepção mais fascistóide do corporativismo, que é aquela que está num certo ramo da legislação brasileira. Na medida em que certas funções de representação de interesses, dentro da sociedade, são definidos, normatizados e estritamente regulamentados dentro do âmbito do Estado, o papel dos partidos desaparece ou tende a ser expulso desta área de representação.

Mas há um outro sentido no qual o corporativismo trabalha contra os partidos, um sentido mais ambivalente, mais difícil de caracterizar. É o que nasce de uma certa exaltação dos movimentos sociais. Estes, evidentemente, ao mesmo tempo, trabalham no sentido da construção democrática. Mas não necessariamente trabalham no sentido do fortalecimento dos partidos e, muito freqüentemente, trabalham contra. Por quê? Porque os movimentos sociais acabam instituindo mecanismos de associação e representação de interesses que tendem à exclusão dos partidos.

Mais ainda: como esse espírito corporativista é cultural, os partidos políticos sempre foram vistos como algo estranho, algo vindo de fora. Tanto assim que a Maria do Carmo Campello de Souza, em seu livro, menciona que partidos concebidos no sentido clássico na cultura brasileira eram apenas o Partido Comunista e a Aliança Integralista. E esta imagem era, certamente, compartilhada pelos liberais e os conservadores que o faziam, porque, assim, tinham mais facilmente o argumento para justificar o caráter exótico dos partidos, excrescências que vinham de uma famosa ideologia alienígena. Então, a própria forma-partido, na cultura política brasileira, é vista como alguma coisa de estranho.

Por isso, o debate sobre a questão dos partidos políticos tem que ser colocado com muita clareza. E quando se observa o comportamento dos partidos existentes, acontece outro tipo de coisa interessante. Já se disse que todos os partidos da América Latina se comportam como se fossem únicos. Não sei se isso é verdade para toda a América Latina. Mas, certamente, é verdade para o Brasil, para este período de transição no qual nos encontramos. Há uma situação no jogo partidário brasileiro, de 1964 para cá, em que esta propensão ao esquema de partido único é óbvia. Em mais de um momento, somos levados a discutir a possibilidade de uma "mexicanização" da política brasileira. Ora é porque a Arena ganhou as eleições, ora foi porque o PDS ganhou. E agora foi porque o PMDB ganhou. Isso sem esquecer o PCB, herdeiro que é de uma tradição de partido único, embora no momento ele não se veja como tal. O PT não tem tradição semelhante, mas no impulso que recebe diretamente dos movimentos sociais vem embutida uma sensibilidade política afim à tradição de partido único. Sem esquecer alguns segmentos ideológicos situados dentro do PT, e que tendem, por razões ideológicas, a ter uma posição semelhante. Então, embora seja um partido pequeno e, como o PCB, proclame o pluralismo partidário, algo de um impulso para partido único se acha também dentro do PT.

Como sair de uma situação como esta? Eu acentuo as dificuldades. Mas creio que há, no quadro político, circunstâncias que permitem que se façam propostas, na Constituinte, visando criar e consolidar um novo sistema partidário. Que tipo de propostas? Em primeiro lugar, uma nova lei eleitoral. Com a lei eleitoral que temos, não há partido que agüente. Seja no caso dos partidos ideológicos (como é o caso do PCB, do PC do B e, mais ou menos, do PT), seja no caso dos partidos de signo frentista (como o PMDB) ou dos partidos conservadores (como o PDS), pouco importa. Nos termos da atual lei, o momento de eleição é um momento de implosão partidária. Uma vez definida a lista de candidatos, cada um está em disputa com o seu companheiro mais próximo no campo das idéias, no campo dos apoios ou no campo dos interesses. Se a disputa é de interesses, eles estão disputando as mesmas fontes de financiamento. Se a disputa é de idéias, eles estão disputando no mesmo campo de propostas. Se a disputa é de público, eles estão disputando os mesmos apoios. Daí o fenômeno eleitoral, corrente entre nós, do atropelamento do processo eleitoral pelas macrocandidaturas, o que, aliás, nestas últimas eleições, ocorreu em quase todos os partidos. F o caso do Afif, do Lula, do Ulysses, etc... O mesmo fenômeno ocorre nos partidos conservadores: caso do Maluf, em 1982.

Por que uma grande candidatura, uma grande liderança, que poderia ser o signo de fortalecimento dos partidos, acaba tendo um sinal contrário? É que as grandes lideranças apenas exemplificam uma espécie de exacerbação da competição individual interna ao partido, competição que se estende, na lei, como um padrão normal de conduta. O Maluf passou a ser execrado, depois das eleições de 1982, entre alguns de seus companheiros, quando, na verdade, ele teve uma quantidade brutal de votos e contribuiu para eleger outros companheiros, o que de fato elegeu. Mas se ajudou a eleger alguns atropelou outros tantos. Este raciocínio, que vale para o Maluf, vale também para o Lula, para o Afif, para o Ulysses, etc. Vale para todos os partidos.

Nós perguntamos: por que na Europa os partidos têm perfil programático e ideológico definido? Certamente, por várias razões. Uma delas é que as leis eleitorais européias tendem tradicionalmente a favorecer as agrupações partidárias. Há quem diga, por exemplo, que não são os partidos que fazem as leis eleitorais, mas as leis eleitorais que fazem os partidos. Pois bem, que tipo de lei eleitoral? Há uma proposta feita por Bolívar Lamounier, na Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, que no conjunto me parece boa. O novo sistema eleitoral seria distrital, ao qual se agregaria um mecanismo de representação.proporcional. Isto é, o conjunto de um Estado seria subdividido em distritos. Os eleitores votariam nos candidatos apresentados nos distritos, em eleição majoritária.

Qual é a vantagem do ponto de vista do partido? É que cada partido terá um candidato num determinado distrito. Ou seja, o partido se identifica com uma candidatura. No momento da eleição, disputará, de modo unificado, com os outros partidos. O partido tende a sobressair no processo eleitoral. Não há mais disputa de um companheiro com outro durante o processo eleitoral.

Segundo esta proposta na redação que se acha na Comissão de Estudos Constitucionais, o voto do eleitor valeria, para essa eleição distrital, como se fosse uma eleição majoritária. Ou seja, você elege um deputado como se elegesse um governador. Quem tiver maior número de votos, ganhou. Mas, ao mesmo tempo, o voto estará sendo contado para o sistema de representação proporcional por lista. Ou seja, cada partido apresentará uma lista de candidatos, segundo uma ordem que cada partido define de acordo com seu próprio critério. E este voto contará num cálculo proporcional de representação para toda a região, em nosso caso, para todo o estado. Tanto o voto majoritário no distrito favorece o partido quanto o voto por lista favorece o partido.

Este é o mecanismo que se tinha na Alemanha até 1953. Mas penso que o sistema alemão atual é melhor. E, basicamente, o mesmo sistema. Só que hoje, na mesma cédula, o eleitor tem direito a dois votos. Vota no candidato do partido num distrito e vota na legenda, segundo a sua escolha, para a representação por lista. Isso significa que se oferece ao eleitor uma chance de crítica aos partidos. Oferece-se, por exemplo, uma chance de votar num candidato do PMDB, num distrito, e de votar na legenda do PT, na representação proporcional. Ou o contrário. O eleitor tem uma chance de dizer: "não gostei da lista" ou "não gostei do candidato designado para o meu distrito". Ou seja, você oferece uma chance maior às minorias.

O grande problema do voto distrital, em geral, é que ele favorece os grandes partidos. Ou, o que dá na mesma, ele tende a favorecer as agrupações centristas, como no caso típico dos Estados Unidos, tende a favorecer grandes partidos, quase indiferenciados um do outro, os quais passam a ser favorecidos como os grandes conglomerados para a agregação de interesses ideológicos, de classe e econômicos os mais diversos. O voto proporcional, pelo contrário, tende, em geral, a favorecer as minorias. Exemplo nítido é o das agrupações ideológicas que não serão capazes de eleger nenhum candidato em nenhum distrito, mas certamente terão uma pequena parcela de votos em todos os distritos. Isso as qualificaria para eleger pelo menos um ou dois representantes no estado "x" ou no estado "y". É o caso, talvez, do PC do B na Bahia, que elegeu dois. É o caso do PT, em vários estados.

Então, eu seria favorável à lei eleitoral proposta pela Comissão Provisória com este acréscimo. Garante-se ao eleitor dois votos e não um só. Deste modo se favorece mais a representação das minorias, sem prejudicar as vantagens da lei para o fortalecimento dos partidos.

Um segundo ponto que eu gostaria de mencionar é sobre o acesso à comunicação de massas. Só definir a liberdade partidária na Constituição, não basta. Nós estamos, hoje, diante de uma liberdade de organização partidária no Brasil, onde quem quiser organiza partido. Não há praticamente nenhuma restrição, quem quiser se organizar, se organiza. Como já disse alguém, só num edifício você já consegue o número necessário de assinaturas para registrar um partido no Brasil. É por isso que existem, hoje, trinta e dois partidos.

O que se vê, porém, é que a liberdade de organização é ainda muito formal. A liberdade de uma organização política existe na medida em que esta organização pode comunicar ao público as suas propostas. Fora disso, dizer que tal partido é livre ou não, é dizer não uma inverdade, mas uma irrelevância.

Quero dizer que, no fim das contas, o que decide a liberdade de organização partidária são os meios de comunicação de massas, em particular a TV. O PH pode se constituir num partido, mas se ele não chega à televisão, de fato ele não existe.

Isso tudo leva à seguinte questão: o que é um partido político? Se concordarmos em que, na Constituição brasileira., conste o princípio da liberdade de organização partidária mais ou menos nos termos em que é definido pela lei atual, nós vamos ter a liberdade de organização partidária apenas no papel. Não vamos ter a liberdade efetiva. Por isso, precisamos definir a liberdade de organização partidária, atendendo a duas condições: 1) qualquer tendência de opinião pública, ideológica ou não, pode se organizar em partido político; 2) aos meios de comunicação de massas e a recursos públicos do Estado, terão acesso os partidos políticos que alcancem um quórum mínimo de representação.

Eu sei que isso é polêmico, mas penso que tem que ser discutido. Temos que definir um mínimo (2%, 3% ou 5%) para dizer que um partido político tem os privilégios que a lei concede aos partidos como instituições públicas. Se for assim, penso que teremos alguma liberdade de organização partidária. Aqueles que atingirem este mínimo, deverão ter acesso igual aos meios de comunicação e deverão ter recursos públicos na proporção dos votos que venham a receber nas eleições.

Na hora em que se discute, no Congresso Nacional, como distribuir o tempo na televisão, é inteiramente evidente que, nas condições atuais, os grandes partidos não irão aceitar que o PCB tenha o mesmo tempo que o PMDB, ou que o PH tenha o mesmo tempo que o PDS. E a verdade é que nós também não aceitaríamos se pertencêssemos aos grandes partidos. Isso, porém, não impede que, no processo de elaboração constitucional, se definam regras para a existência dos dos partidos que atendam, independentemente de saber se são grandes ou pequenos, ao que a lei define como privilégio dessas instituições públicas. E creio que esses privilégios são: tempo igual de acesso à opinião pública nas épocas eleitorais e recursos públicos na proporção dos votos obtidos nas eleições. Estes seriam os pontos que eu mencionaria visando o debate da Constituição.

É evidente que o debate sobre os partidos políticos não pode se esgotar na questão institucional-legal. Tanto para os partidos quanto para os sindicatos não basta ter um ou dois artigos definidos na Constituição. Há todo um substrato de cultura política que conta. Mas se nós tivermos uma lei eleitoral que prestigie os partidos e se nós tivermos uma definição dos partidos, na Constituição, que lhes garanta condições de financiamento e de acesso à opinião pública, teremos um mínimo de condições para que os vários corporativismos que existem no país encontrem uma certa barreira institucional. Teremos um mínimo de condições institucionais para que verdadeiros partidos venham a existir.

Trocando idéias

MARIA HERMÍNIA — Outro tema que vai junto, seja na discussão do Weffort, seja na discussão do Eliezer, é a questão do Legislativo. É difícil pensarmos num sistema partidário que possa se fortalecer se o Legislativo continua sendo o que é, tendo o seu poder restringido e, sobretudo, sendo uma instituição falha até do ponto de vista de sua organização interna. Tenho a impressão que a discussão sobre a eleição da presidência da Câmara e da Assembléia Constituinte ajudou a colocar essa dimensão que, durante certo tempo, ficou um pouco escondida.

Creio que esta é uma dimensão importante para a nossa discussão, mas ela não é uma discussão de livre curso nos partidos. Não tem sido. Os plenários dos partidos não têm sido os melhores lugares para pensar maduramente o que fazer com o Legislativo, da mesma forma que com os militares, e que propostas alternativas existiriam. Os militares detêm um poder imenso e acho difícil, na verdade, que se possa fazer recuar as Forças Armadas às funções que lhes seriam normalmente atinentes. Outra coisa que o Stepan mostra bastante bem é como, nesse processo de abertura, um dos mecanismos que facilitaram, inclusive, o recuo dos militares é o fato deles terem uma forte retaguarda produtiva. De alguma maneira, podem garantir um reduto. Esta provavelmente não foi a única condição, mas o fato de você ter um setor da indústria bélica controlado pelos militares deu uma certa margem de desafogo para que eles pudessem se retirar para alguma parte. A outra coisa é que eles detêm uma capacidade de veto sobre as políticas e a exerceram sem parar.

WEFFORT — Pois bem, a maneira mais clássica, na democracia, de você controlar o poder é criar outro poder. Então, se os militares ainda tomam decisões de partido, uma das razões é o fato de não existirem partidos no país. Sabe-se que, na história das Constituições brasileiras, algumas foram construídas contra experiências negativas do período anterior. Então, eu me pergunto se não seria necessário que houvesse uma ótica não de apenas prevenir os erros já cometidos, como de prevenir erros que ainda não foram cometidos. Isto é, se há um "partido militar", o que. é mais eficaz fazer? Introduzir na Constituição algum mecanismo pelo qual os militares não possam funcionar como partido, ou criar condições pelas quais se possam criar realmente partidos? Agora, isso pressupõe mudar o regime de governo. Não apenas o fortalecimento do Legislativo, mas, de certa maneira, criar uma ordem institucional democrática no Brasil. Nós temos que pensar em mudar o sistema presidencialista para um sistema parlamentarista modificado. Assim, indiretamente, você condiciona o poder dos militares, não porque o limite mais ainda, mas porque se reforça o poder do parlamento e, através de um parlamento mais atuante, se reforça o poder dos partidos. Por isso, eu pergunto: a presença dos militares na política é um dado permanente da estrutura do poder, uma coisa herdada, residual e superável, ou uma coisa que continuará? Não haveria maneira, não digo de controlar, mas de criar espaços de poder que funcionassem como contrapeso disso?

MARIA HERMÍNIA — Gostaria de colocar o problema dos orçamentos militares: o que se faz com eles hoje em dia?

ELDEZER — Quanto ao orçamento militar, sempre vai haver a "caixa dois". Nenhum país tem todas as contas militares públicas. Há muito segredo e os Estados se espionam para ficar sabendo. Em relação à pergunta do Weffort, acho que existe um quadro de relações sociais que possibilitam o autoritarismo do Estado, porque a sociedade é muito autoritária. Em recente trabalho, procuro buscar na sociedade alguns traços que possibilitem o exercício deste tipo de poder. Um é a cidadania tutelada. Além do que o Weffort falou sobre os partidos, houve, historicamente, condições para que os militares ocupassem este espaço político. Há uma tendência de, no mínimo, eles manterem o espaço político ocupado. Agora, tem que ser criada uma estrutura relacionai distinta. Isto é, que eles se relacionem com poderes mais organizados: seja o Congresso, seja uma nova estrutura de Presidência no país, seja o Judiciário, seja cortando as asas da Justiça Militar. É preciso se criar uma estrutura democrática para que, inseridos nesta estrutura, se modifique o papel que os militares exercem. Não se resolverá a questão militar no país, nem a questão de sua inserção autônoma no poder político se não se resolver a questão da democracia no país. E, em nome da democracia, temos de entrar em um diálogo sério com eles: temos de saber de estrutura, de armas, de armamento, de treinamento, de promoção, etc. Nós temos que ter esta competência, pois enquanto não for assim não teremos sequer a idéia de que mecanismos temos em mãos, através do Congresso e da Presidência, para que as coisas possam acontecer de uma maneira mais favorável à democracia. O fundamental são os planos. Alguém, aqui, sabe quais são os planos estratégicos das Forças Armadas? Nem o Congresso sabe. É fundamental que se criem mecanismos de prática política de poderes que se relacionam num quadro democrático, e que a sociedade civil crie competência.

MOISÉS — Gostaria de colocar uma questão sobre as premissas do nosso debate. Vivemos numa sociedade autoritária, de onde se segue que temos uma série de práticas políticas autoritárias e de instituições que nem sempre são capazes de assumir o seu conteúdo democrático. No caso das Forças Armadas, isso é patente, mas elas refletem a sociedade, e a capacidade maior ou menor da sociedade controlá-las depende da existência de mecanismos para isso. Isto é evidente no caso dos partidos, como disse o Weffort. São eles que criam leis democráticas no país, ou é a legislação eleitoral que, quanto mais se democratiza, mais amplia as condições para que os partidos se fortaleçam e, portanto, possam realizar o fortalecimento da sociedade civil? O problema do controle das Forças Armadas está"em se criarem competências no campo da sociedade", para se discutir "o orçamento", "a utilização de recursos" ou, finalmente, em se criar uma legislação que, ao definir a função das Forças Armadas, defina também os mecanismos que, em última análise, são de controle, como aquilo que o Weffort chamava de "a estrutura democrática dos partidos". Talvez Eliezer tenha razão em dizer: "os partidos não têm propostas". Agora, se você tiver propostas do tipo "o orçamento das Forcas Armadas tem que ser discutido pelo Congresso" ou "a nomeação dos comandantes, em tais ou quais circunstâncias, não estão restritas, exclusivamente, ao poder do presidente da República", aí acho que as coisas mudam. Por isso, a pergunta que eu faria seria a seguinte: onde é que você localiza, na tradição dos partidos, as propostas que, num certo sentido, fazem este jogo simultâneo, de fortalecer o Congresso, os partidos, etc, e, ao mesmo tempo, controlar as Forças Armadas? Como vocês vêem isso?

WEFFORT—Eu tenho a impressão que é mais fácil introduzir leis que consolidem os partidos, do que introduzir leis que mudem a estrutura sindical ou, num grau muito mais distante, introduzir leis que mudem a relação das Forças Armadas com a sociedade. As estruturas de rigidez estão numa escala de zero a dez: digamos, é sete ou oito para a questão militar, cinco ou quatro para a questão sindical, e dois ou três para a questão partidária. Então, vamos admitir um certo relativismo nestas questões.

ELIEZER — Quero insistir em que as coisas têm que ser feitas ao mesmo tempo. Temos que criar partidos políticos fortes, ligados aos movimentos sociais, que dêem conta das questões nacionais e, ao mesmo tempo, toquem o barco para a frente. Eu acho que seria bom para a democracia se o Serviço Nacional de Informações fosse extinto ou profundamente modificado. Mas, sobretudo, se ele fosse desmilitarizado. Porque eu não sou ingênuo. Não vai haver Estado sem Serviço de Informações. E, se qualquer um dos nossos partidos chegar ao poder, clara e simplesmente vai montar um servicinho de informações, porque ninguém é bobo. Então, esta questão do Serviço Nacional de Informações é o nó da questão. Esta estrutura tem que ser desmontada. E aí o grau de resistência não deve ser tão forte. O processo de preponderância das Forças Armadas só se dá num sistema tendencialmente autoritário, ou já autoritário de fato. Então, a única possibilidade é a democratização da sociedade e do Estado. Mas não esperar que isso chegue ao seu final. E ir fazendo as coisas ao mesmo tempo. Na política, temos que ser competentes no plano da vontade e ser competentes no plano da ação, senão estaremos completamente perdidos. Eu não tenho outra resposta!

É uma pena que os partidos estejam tão por fora disso.

O fundamental é que o poder do aparelho militar tem que ser integrado e, possivelmente, subordinado ao poder político, legítimo e democratizado. Do contrário não temos saída.

MOISÉS — Em relação ao sistema partidário, Weffort mencionou a proposta da Comissão Arinos e, ao mesmo tempo, o que chamou de procedimentos para a utilização, pelos partidos, de recursos públicos, para acesso aos meios de comunicação de massas. O problema está em saber como se faz isso, porque se não houver requisitos bem definidos, o que pode acontecer é que os partidos que estão aí apenas auto-reproduzam a sua participação, em termos que nem sempre são os mais democráticos.

WEFFORT — Com dois critérios simultâneos funciona. Porque são dois tipos de recursos. Um é o acesso aos meios de comunicação, digamos, rádio e televisão. O outro é recurso em dinheiro. Em certos países, isso depende de uma proporção de votos que cada partido é capaz de obter. O fundo partidário já existe no Brasil; acho que ele deve ser utilizado, reconhecido e ampliado para dar efetiva sustentação aos partidos. A justificativa é de que essa é a única maneira de você controlar, ou tentar equilibrar u.n pouco, o poder econômico. É uma bobagem você pensar que controla o poder econômico introduzindo leis restritivas. Só se estabelece uma certa igualdade na disputa se se admitir que os que tenham menores possibilidades de acesso a recursos tenham ainda assim um mínimo de recursos em dinheiro, na proporção de sua representatividade. Mas nós vamos ter uma Constituinte e ela poderá fixar, para a próxima eleição geral, o momento inicial, o ponto de partida dessa história. Isto significaria que, para a próxima eleição geral, todos os partidos teriam o acesso aos meios de comunicação. Acesso igual. Todos os partidos que venham a concorrer. Alguém vai dizer: "Se você já tem trinta e dois partidos, agora vai ter setenta e cinco". Eu diria: "Não necessariamente". Eu acho que não. Porque se você trabalhar com recursos em dinheiro e dizer o seguinte: os partidos que alcancem 5% dos votos nas eleições terão recursos na proporção dos votos obtidos; os partidos que não alcancem 5% nas eleições não terão recursos públicos; aí eu não tenho dúvida que o Eymael, por exemplo, vai pensar duas vezes antes de sair candidato. Esses vários partidinhos, que surgem não como partidos com propostas reais, mas como partidos um tanto artificiais, certamente vão pensar duas vezes porque será um investimento extremamente arriscado. É como nas eleições dos Estados Unidos, por exemplo, onde existe uma lei deste tipo: se você, num determinado momento, rompe com o seu partido, Republicano ou Democrata, e quer lançar uma candidatura independente, você pode por lei. Só que se você investe e não alcança o percentual mínimo, aquele seu investimento está totalmente perdido. Enquanto que, se você tiver um mínimo de condição real como partido político, você concorre porque estará apostando em que vai chegar aos 3%. Mesmo que tenha prejuízo, vale perder, porque se estará investindo no futuro, para criar um partido político mais a longo prazo; não se alcança o percentual agora, mas pode-se alcançar na próxima eleição. Não há dúvida. Você não fica com trinta e tantos partidos. Você fica com uns quatro ou cinco, ou seja, os grupos dispostos a correr riscos para fazer política.

MOISÉS — Está é uma idéia bem interessante. Agora, considerando a política brasileira, em que não apenas grupos de interesse investem para ganhar, mas também para dividir seus adversários, digamos assim, para enfraquecer o PMDB em determinado lugar, ou para enfraquecer a base do PDT no Rio de Janeiro, ou para enfraquecer o PT em algum lugar, o que fazer?

WEFFORT — A questão das disposições transitórias de uma Constituição é sempre um problema. Agora, a minha impressão é a de que ou se define o acesso aos meios de comunicação de massa em igualdade de condições para os partidos, ou não há liberdade de organização partidária. Ou se definem e se legitimam os partidos, até o ponto em que eles tenham recursos públicos para a sua sustentação, ou, de novo, o grau de liberdade de organização partidária será muito pequeno.

MOISÉS — Gostaria de colocar, também, uma questão para a Maria Hermínia, no terreno das questões sindicais. Você levantou cinco condições extremamente interessantes para a verificação do quadro sindical. Das cinco, quatro, pelo menos, eu vejo com grande consenso, que são as questões relativas à liberdade de organização, inclusive para os servidores públicos, as questões relativas à liberdade de organização na empresa (regras para coibir práticas anti-sindicais, etc.), até o direito de greve. Onde eu não vejo muita clareza é nas forças que seriam capazes de dar sustentação à idéia de negociação. Você tem, certamente, no movimento sindical algumas forças que a defendem claramente. Mas eu não sei se, numa estratégia de fortalecimento do movimento sindical, todos os segmentos estariam de acordo com isso. Então, a minha questão é a seguinte: como é que você veria na Constituinte o papel dos que seriam capazes de dar sustentação a isso? É claro que se nós tivermos reconhecido o direito de greve, a probabilidade de que a negociação se faça é maior. Mas ainda assim, a minha dúvida é quanto às forças que apóiam isso.

MARIA HERMÍNIA — Com relação ao direito de greve, têm-se posições muito divididas. Primeiro, é provável até que seja possível passar na Constituição o princípio geral do direito de greve. Mas ao se tratar de regulamentar, aí dá uma briga muito grande e também a opinião pública está dividida. Se você for olhar as pesquisas de opinião feitas sobre direito de greve, 40 ou 45% dos respondentes é a favor de alguma forma de limitação. Então, ao contrário de outras posições, em que existe um consenso muito grande, acho que, aí, até a opinião pública menos informada está inteiramente dividida quanto a esta questão. Participei de muita discussão pelo lado das empresas com relação ao direito de greve e acho que o movimento sindical vai ter que pensar muito bem a sua proposta e ter alternativas muito maduras com relação a certas coisas, pelo menos com relação a alguns serviços essenciais que atingem diretamente a população (hospitais, transportes, energia elétrica, etc).

Com relação à negociação, eu tampouco tenho claro. Talvez seja possível pensar num conjunto mínimo de direitos, que estão assegurados, e abrir as portas para a negociação a partir deste patamar.

MOISÉS — Como é que você pensaria a hipótese com a qual muita gente tem trabalhado, de se fixar a lei em patamares mínimos? Por exemplo: salário mínimo, determinadas condições mínimas de trabalho, digamos, e a partir daí abrir ao jogo da negociação pelas forças. Como é que você vê isso?

MARIA HERMÍNIA — Acho que é por aí: você garante alguns direitos básicos e depois negocia. O estatuto italiano das relações capital-trabalho, por exemplo, remete uma série de coisas para a negociação coletiva. Garante alguns direitos e diz: o resto pode ser avançado e especificado pela negociação.

Salário mínimo, jornada de trabalho, todo esse tipo de coisa está nos anteprojetos da Constituição, tanto no projeto de Fábio Comparato como da Comissão Provisória. A Comissão Provisória tem um artigo com doze direitos, a do Comparato tem dez, onde entram férias, proibição de diferenças de salários, salário mínimo, enfim, o que o Fábio Comparato chama de direitos fundamentais do trabalho: salário mínimo, proibição de diferenças salariais, salário para trabalho noturno maior do que o diurno, jornada de trabalho de quarenta horas semanais, repouso semanal, férias remuneradas, proibição de trabalho em indústrias insalubres para mulheres e crianças, descanso da gestante, aposentadoria integral por danos ocasionados por justa causa, etc.

MOISÉS — Isto suscita uma questão extremamente interessante, que se refere a saber se vamos para a Constituinte com um texto enxuto ou com um texto detalhista de Constituição. Acho que a dúvida ainda é grande. Tome-se o caso do salário mínimo, sobre o qual estávamos falando. Se isto funciona como patamar a partir do qual vale a negociação, devemos nos perguntar se vai funcionar. Isto já foi assim nos anos 40 e, depois, entrou na Constituição de 1946. No entanto, como tem dito o DIEESE, isto não garantiu que o salário mínimo preenchesse as suas funções. Eu acho que este exemplo vale para outras questões que estamos levantando, coloca de maneira dramática o problema da polêmica sobre se deve-se ter um texto enxuto ou detalhista. Como é que vocês vêem isso?

WEFFORT — A questão é a seguinte: como mudar na Constituição algo que na história política não mudou? Em outras palavras: você toma, por exemplo, a polêmica sobre a questão militar, a função é de defesa interna ou externa? Será que o processo de transição do país foi uma vitória militar? Foi certamente uma vitória política em vários sentidos. Se foi uma vitória militar, como imaginar que a Constituinte mude este item, que é tão fundamental, do ponto de vista do partido que venceu? Veja bem, você levanta este problema: vamos colocar na Constituição alguns detalhes, alguns acréscimos que sejam capazes de assegurar direitos contra a cultura autoritária, que prevalece no conjunto do país; mas se esta prevalece no conjunto do país, se espelha numa Constituinte que não vai lhe permitir colocar aqueles mecanismos no texto.

MOISÉS — Isso é uma questão de disputa política...

WEFFORT — É uma questão de disputa, certamente, mas é uma questão de avaliação prévia. Qual a melhor tática? A melhor tática será lutar pela introdução de detalhes fundamentais ou será avaliar o campo de luta, de tal modo que nós não damos a briga neste assunto e vamos dar briga num outro...

MOISÉS — Veja, Weffort, você pode inverter o argumento. Eu sei que não é isso que você está propondo, mas se você for às últimas conseqüências, poderia dizer: bem, é de tal ordem a natureza autoritária desta sociedade, não apenas ao nível das instituições, mas na família, na relação professor-aluno, na relação do operário com seus iguais, que não há como falar em democracia.

WEFFORT — A nossa discussão é em torno de saber qual democracia; não é de saber se é democracia ou ditadura. É democracia, mas será uma democracia mais progressista, mais liberal ou mais conservadora?

MOISÉS — Bem, então, você de alguma maneira volta à questão da legislação...

MARIA HERMÍNIA — Se você não tem na sociedade, como foi o caso de 1945 e 1964, nenhum assunto importante sendo demandado, não adianta colocar na Constituição, que não acontece. O problema é o seguinte: que tipo de coisa você coloca na Constituição para que, se houver forças dispostas a assegurar uma outra forma de organização sindical, elas possam te apoiar para fazer isto? Esta é a questão.

ELIEZER — Gostaria de dizer mais algumas coisas sobre as Forças Armadas. Eu acho que cabe a instituições como o CEDEC, a universidade, um papel importante que talvez os partidos não sejam capazes de fazer, dada a natureza pouco organizada para a pesquisa. É o seguinte: conhecer as experiências de outros países. Na área sindical é até mais fácil, inclusive porque há estudos comparados. Mas na área das Forças Armadas não há. Um colega nosso, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, escreveu um livrinho que se chama Os Militares e a Constituinte. Ele considera dez ou quinze Constituições de países tão diferentes como a União Soviética, os Estados Unidos, França, Itália, Brasil e algumas repúblicas socialistas como Cuba, Guiné, etc. É interessante, porque a ordem pela qual os militares seriam responsáveis, em um primeiro momento, seria a ordem jurídica. Num segundo momento, eles podem intervir na ordem social. E, neste sentido, os militares brasileiros vieram à frente, na história, com relação aos países socialistas, que colocam na Constituição que os militares são responsáveis pelo Estado socialista, pelo socialismo, pela aliança do povo com as Forças Armadas, etc. Há também a solução italiana. Não diz nada. As Forças Armadas não merecem um capítulo! O ministro Moreira, da Aeronáutica, defendeu essa idéia e, depois, recuou. Hoje ele aceita o papel constitucional das Forças Armadas, mas levantou um ponto interessante. A Constituição pode ser omissa. Não precisa definir. Eu acho que não é uma saída, em termos de composição de forças. Mas será que não é uma coisa para se pensar?

WEFFORT — Só teria um comentário a respeito do que o Eliezer colocou sobre as definições constitucionais sobre os militares nos países socialistas, atribuindo-lhes responsabilidades sobre a ordem política, etc. Isso, contudo, não significa que os militares nos países socialistas não estejam submetidos ao império da política civil. Tomemos a União Soviética. Na União Soviética, certamente, os militares estão submetidos à política civil. Assim como na maior parte dos países da Europa Oriental... O que significa, ao meu ver, que o peso específico de certas regras e definições depende do peso que têm as outras forcas. Não importa discutir como é a estrutura política lá. O fato é que ela se organiza de uma maneira que, não obstante esteja na Constituição a responsabilidade dos militares pela ordem social, certamente não são eles os primeiros responsáveis pela ordem social. Isso me leva ao seguinte raciocínio: primordialmente, a questão militar é a questão da democracia nas condições de um país como o Brasil; isto é, discutir o lugar dos militares na Constituição escrita, ou na ordem política, mais do que discutir as características específicas da questão militar, é essencialmente discutir o conjunto das instituições, de tal modo que você tenha contrapesos, este velho princípio liberal que tem que ser resgatado... Eu tenho muito receio na hora em que as polêmicas se fixam num ponto. E nenhuma das partes é capaz de perceber que aquele ponto polêmico talvez seja apenas um ponto entre muitos. Então, de repente, surge uma verdadeira guerra ideológica em torno do artigo tal da Constituição.

Isto pode acontecer. Mas essa coisa seria ruim, porque seria a divisão das forças políticas, as de lá e as de cá.

ELIEZER — Eu só gostaria de acrescentar uma coisa. Como decorrência do fato de que, muito provavelmente, a questão da democracia e a questão das Forças Armadas estão intrinsecamente ligadas, eu acho que é uma tarefa democrática importante pensar-se, na Constituinte e na prática política, numa integração correta da farda e da cidadania. Enfim, os direitos de um cidadão fardado. Esse funcionário público, que é preparado para tal atividade, e é um técnico da violência e da guerra, tem uma inserção estatal e social e, como tal, ele é portador de tais e tais direitos. Nós não podemos excluir a cidadania da farda e nem privilegiá-la. Isso implica uma coisa sobre a qual eu não sei se as forças democráticas estão preparadas: ajudar a criar, senão a recuperar, uma dignidade da farda. Isto é, em países democráticos, a profissão militar tem a sua honorabilidade, assim como a têm o médico e as outras profissões. Eu acredito que quando um profissional, enquanto coletividade, é estigmatizado, a tendência é um fechamento corporativo e uma ação também corporativa e autárquica. Eu acho que essas coisas se amarram bastante e é uma das tarefas importantes de que temos que cuidar.

MARIA HERMÍNIA — Tirando certos segmentos da opinião pública, da esquerda, que no passado tiveram uma experiência mais dura em sua relação com os militares, não me parece que este estigma seja muito generalizado.

ELIEZER — Sim. Mas também nesses casos os militares estão andando na nossa frente. Porque eles sabem que isto é importante e há um discurso específico para explicar este envolvimento. É um discurso que diz que o autoritarismo é o resultado de militares que eram políticos, mas não militares, e que eles usaram os demais. Mas eu acho que isso é muito importante, ao ponto de exigir a criação de um discurso militar para explicar isso. Hoje é menos claro, mas há dois anos atrás isso era mais forte. Acho que não é o tempo que vai limpar isso. Nem é o caso de limpar, mas sim o de construir a democracia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1987
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