Resumo
O autor aborda tanto a oposição conservadora aos direitos humanos quanto a sua defesa liberal, demonstrando que uma remissão à lógica formal-histórica da constituição desses direitos ressignifica completamente o seu papel como núcleo de projetos políticos. A crítica derivacionista do Estado, que enfoca as estruturas políticas e jurídicas como formas sociais da existência da sociedade capitalista, é mobilizada para identificar a especificidade histórica e epistemológica do léxico e das práticas dos direitos humanos. Daí ressalta que para realizar o conteúdo neles prescrito, a sua forma de existência jurídica teria de ser destruída.
Palavras-chave: Direitos Humanos; Cidadania; Marxismo
Abstract
The author addresses both the conservative opposition to human rights as its liberal defense, showing that a reference to the formal-historical logic of the constitution of these rights completely reframes its role as the core of political projects. Derivationist critique of the State, which focuses on the political and legal structures as social forms of the existence of capitalist society, is mobilized to identify the historical and epistemological specificity of the lexicon and practices of human rights. Then, he points out that, to realize the content prescribed in them, their legal form of existence would have to be destroyed.
Keywords: Human Rights; Citizenship; Marxism
Sobre o tema dos direitos humanos continuam a recair, no presente, muitas oposições por parte de seus inimigos e incompreensões por parte de seus amigos. Espremida entre a fúria de seus antagonistas e a impotência de seus defensores, está sua história.
Da parte de seus inimigos, de pronto ressaltam aqueles que ainda persistem na marcha da insensatez regressiva: odeiam a igualdade formal, o respeito ao outro e a liberdade de diferenças, opções e horizontes de cultura. Em termos de dinâmica social, os grupos que resistem contra a isonomia capitalista buscam perpetuar uma espécie de naturalização da diferença contra a igualdade que a vida mercantilizada enseja. Muitos movimentos religiosos, num papel de resguardar o absoluto de sua cultura e de seus crentes como superiores em face dos ímpios, incentivam a negativa dos direitos humanos aos que se chocam com seus princípios: o direito ao divórcio e o direito ao casamento dos homossexuais, por exemplo, são odiados por muitos.
Mas a recusa em face dos direitos humanos não é apenas um instrumental regressivo, daqueles que resistem à marcha da pasteurização das individualidades, grupos e comunidades sob o capitalismo. No fundamental, os direitos humanos são negados exatamente por aqueles que operam nos seus termos e louvores. Sua institucionalização e sua reprodução são lastreadas por vários níveis de formas sociais e relações necessárias. Numa sociedade atomizada, concorrencial, atravessada por antagonismos e conflitos de muitos níveis, na qual a forma política estatal e a forma jurídica também se ligam por meio de autonomias relativas, os direitos humanos se manifestam, inexoravelmente, de modo contraditório.
Pode-se dizer que há nuclearidades de direitos humanos que refletem, diretamente, as próprias formas da sociabilidade capitalista. Mas, para além desse espaço basilar, todo o grande campo que os séculos contemporâneos identificam como de direitos humanos é assentado em dinâmicas variáveis, conflitivas e contraditórias de seus termos. A estrutura política do capitalismo só se erige, nos dois últimos séculos, em um processo variável de afirmação, negação, garantia, seletividade e limitação dos padrões de direitos humanos. A reprodução capitalista demanda estabilizações políticas e jurídicas lastreadas em formas sociais necessárias e em quantidades razoáveis. Com isso, justamente o movimento que garante o capital e seus detentores também é o que garante ou nega a liberdade de expressão, os direitos sociais, as liberdades associativas e políticas. No capitalismo, os núcleos da forma jurídica e da forma política estatal constrangem, ainda que de modo variável e incidental, a vasta quantidade dos direitos humanos.
Afirmação e negação dos direitos humanos se dão numa mesma sociabilidade. É defendendo os direitos do indivíduo que os proprietários do capital do mundo dormem tranquilos, sem medo do saque ou da divisão compulsória do que é seu com os pobres. Os Estados, ao operarem a partir de constrições como as da legalidade, ensejam apenas um movimento de distribuição dentro dos termos do suum cuique tribuere capitalista. As tensões e lutas sociais fazem avançar garantias políticas e jurídicas, mas, quando Estados e direito ameaçam arranhar determinadas distribuições da riqueza ou do poder, direitos humanos são varridos do cenário da própria sociabilidade burguesa. Não é necessário se limitar a casos exemplares da história contemporânea, como o Brasil, a partir de um golpe militar cuja normativa jurídica máxima e simbólica foi o Ato Institucional nº 5, o Chile do horror de Pinochet ou, no extremo, o nazismo e o fascismo. A reprodução capitalista normal, quotidiana e reiterada é a que opera os direitos humanos como mecanismo de sociabilidade, de combate político aos que não o respeitam ou, ainda, de sua negação constante em face de seus incômodos. A política dos Estados Unidos, campeões dos direitos humanos, é exatamente, e não apenas em casos extremos ou isolados, uma política de seletividade. Para dar alento à máquina econômica do petróleo e da guerra, Bush investia os Estados Unidos contra o direito internacional e, ao mesmo tempo, a bandeira dos direitos humanos servia como arma de combate político contra países de um dito “eixo do mal”. Não se trata de separar o momento da legalidade daquele da exceção mas, sim, de fazer entender a legalidade e a exceção num necessário e único movimento de marcha econômica, política, jurídica e cultural da mercadoria (Miéville, 2005). A defesa dos direitos humanos na sociabilidade contraditória capitalista é, exatamente e ao mesmo tempo, de algum modo sua negação.
Justamente porque são instituições advindas de condições estruturais específicas e necessárias, com usos conjunturais muito variáveis, os direitos humanos não podem ser tomados acriticamente, como escudo de resistência total à barbárie ou como atributo imediato, imparcial e neutro da dignidade humana. Os amigos dos direitos humanos necessitam compreender, mais profundamente, sua lógica e sua anunciação nas sociedades contemporâneas. É por gostar da dignidade humana e por ela lutar que não se pode deitar confortavelmente na ilusão normativista causada pelos direitos humanos como mera ferramenta jurídica de garantias. É preciso entender sua estrutura íntima, peculiar e necessária para, a partir dela, divisar os horizontes mais largos - e as lutas também então mais difíceis - para garantir a dignidade à humanidade.
Direitos humanos e pensamento jurídico
A leitura do pensamento jurídico sobre os direitos humanos se espraia em três caminhos. Tais horizontes também correspondem a leituras teóricas sobre a própria política, sua manifestação, suas estruturas e seus proveitos. Um primeiro caminho do pensamento jurídico, de juspositivismos, inscreve na norma jurídica e nas instituições correspondentes o fundamento do direito. Um segundo caminho, de não juspositivismos, quase sempre avança por encontrar o poder por detrás do direito. Já uma terceira leitura, crítica marxista, busca alcançar, no direito, as determinações sociais estruturais do capitalismo (cf. Mascaro, 2014, cap. 12).
Pelas variadas visões juspositivistas, vislumbra-se uma história pendular, que vai, de um lado, à redução dos direitos humanos a meros direitos fundamentais normatizados até, de outro, à afirmação dos direitos humanos como compreensão superior, distinta e de principiologia inexorável para o manejo das normas. O processo de mero reducionismo às normas corresponde, de alguma sorte, ao tipo de juspositivismo que denomino “juspositivismo estrito”, bastante arraigado no século XX. Já a afirmação dos direitos humanos em grau de superioridade corresponde ao pensamento que denomino “juspositivismo ético”, típico das décadas recentes.
As posições do juspositivismo podem ser exemplificadas em pensadores como Hans Kelsen, pelo ângulo do juspositivismo estrito, e Ronald Dworkin, por um juspositivismo ético. Já Norberto Bobbio, vindo da tradição do juspositivismo estrito, de alguma maneira discípulo de Kelsen, encarnou por vastos campos da comunidade jurídica internacional, na segunda metade do século XX, a liderança de uma leitura em favor dos direitos humanos por caminhos juspositivistas, apostando em sua consecução a partir de variados graus de articulação de seus termos normativos. Assim declara:
Afirmei, no início, que o importante não é fundamentar os direitos do homem, mas protegê-los. Não preciso aduzir aqui que, para protegê-los, não basta proclamá-los. Falei até agora somente das várias enunciações mais ou menos articuladas. O problema real que temos de enfrentar, contudo, é o das medidas imaginadas e imagináveis para a efetiva proteção desses direitos. […] Parece-me, antes de mais nada, que é preciso distinguir duas ordens de dificuldades: uma de natureza mais propriamente jurídico-política, outra substancial, ou seja, inerente ao conteúdo dos direitos em pauta (Bobbio, 2004, p. 56).
Creio que uma discussão sobre os direitos humanos deve hoje levar em conta, para não correr o risco de se tornar acadêmica, todas as dificuldades procedimentais e substantivas, às quais me referi brevemente. A efetivação de uma maior proteção dos direitos do homem está ligada ao desenvolvimento global da civilização humana (Bobbio, 2004, p. 64).
De outro lado, horizontes de pensamento jurídico não juspositivistas não se agrupam por identidades internas fundantes, mas exatamente pela negativa em reconhecer no direito positivo a verdade do direito. Tais variadas leituras tanto se baseiam em perspectivas existenciais - Hans-Georg Gadamer, por exemplo, apontando para a pré-compreensão como negação do silogismo normativista da aplicação do direito - ou em denúncias da fragilidade das normas jurídicas em face do poder - num arco tão amplo que se estende de Carl Schmitt (2006), pelo decisionismo e pela exceção, até, num outro extremo, Michel Foucault (1993), pela microfísica do poder como rompimento da centralidade das instituições jurídicas e de suas declaradas intenções.
Numa leitura que remonta ao conservadorismo católico, mas que avança para uma vigorosa reconstrução de toda a história do fenômeno jurídico, Michel Villey, na França, figurou, na segunda metade do século XX, como um vigoroso crítico não juspositivista dos direitos humanos. Em sua obra, assim aponta:
Ferramenta de mil usos. Usaram-na em proveito das classes operárias ou da burguesia - dos malfeitores contra os juízes - das vítimas contra os malfeitores. Mas atenção! Cumpre escolher: ou bem de uns, ou bem dos outros. Nunca se viu na história que os direitos humanos fossem exercidos em proveito de todos. O problema com os direitos humanos é que ninguém poderia tirar partido deles senão em detrimento de alguns homens. A que se deverá o enorme sucesso desse lugar-comum dos direitos humanos na retórica contemporânea? Ao fato de que ele consegue esconder o reverso: militando por esses direitos contra o xá do Irã, teremos ajudado a instauração do regime de Khomeini.
O aparecimento dos direitos humanos atesta a decomposição do conceito do direito. Seu advento foi o correlato do eclipse ou da perversão, na filosofia moderna individualista, da ideia de justiça e de seu instrumento, a jurisprudência. Ela tinha por finalidade a mensuração de justas relações. Essa arte autônoma cumpria uma função própria, insubstituível. As filosofias da Europa moderna deixaram-na de lado. O cuidado de uma justa repartição desapareceu de suas obras. Esses não juristas, que foram os inventores dos direitos humanos, sacrificaram-lhe a justiça, sacrificaram o direito.
Duvido que esse fosse um progresso. Vejo nele apenas uma perda, devido à ignorância (Villey, 2007, p. 162).
Uma terceira leitura dos direitos humanos é a do marxismo, que tanto põe em causa a normatividade jurídica, seus princípios e intenções, como também o poder. Para além disso, desvenda a especificidade da forma do direito com o capitalismo. Uma aplicação das descobertas do marxismo jurídico é fundamental e necessária à questão dos direitos humanos. Aqui se revela um impasse: quase sempre, uma crítica marxista aos direitos humanos não esteve fundada em categorias marxistas, mas sim em torções à esquerda de um não juspositivismo. Somente a retomada das categorias do marxismo jurídico fará que os potenciais estruturais de crítica à sociedade possam ser levados, então, ao crucial tema dos direitos humanos.
Os três caminhos do pensamento jurídico contemporâneo não necessariamente representam, per se, posições de apoio ou combate aos direitos humanos. Pelo juspositivismo, é possível dizer que o respeito é devido porque está normatizado ou, via reversa, que não é extensível a determinados grupos ou classes porque justamente há carência de fundamentos normativos. As posições de não juspositivismo, por sua vez, agrupadas pelo negativo da normatividade, representam um vasto arco que vai da negação do mérito dos direitos humanos até sua afirmação pelo poder contra o direito.
Na esteira do marxismo, o pensamento de Evgeny Pachukanis é índice do mais alto entendimento acerca da relação entre direito e capitalismo, partindo daí, necessariamente, a perquirição acerca dos direitos humanos. Ao perceber o direito não como instituição, conjunto normativo ou referencial de conteúdos para a ação, nem como ação ou poder arraigados, mas, em especial, como forma social específica do capitalismo, o alcance de tal leitura chega ao ápice da compreensão dos direitos humanos e de sua crítica: não adstrita apenas às injunções no nível dos conteúdos, chega-se à própria forma da sociabilidade. Daí, nesse nível de crítica dos direitos humanos, não se trata de se posicionar a favor ou contra, mas, sim, de avançar para a superação das formas sociais nas quais as mazelas da exploração e da opressão humanas têm nos direitos humanos um espelho, ainda que pelo negativo e ainda que heroicamente batalhado por muitos.
Direitos humanos e direitos subjetivos
Os direitos humanos se configuram, estruturalmente, como uma espécie dos direitos subjetivos. Suas lógicas e seu processo de formação são iguais, ainda que ressalvadas ambiguidades e contradições nessa dinâmica.
Para que haja direitos humanos, é preciso que socialmente se forje a categoria do sujeito de direito. A partir do momento em que cada individualidade deixa de ser considerada um dado imediato ou da natureza, ela é investida de uma condição jurídica: porta direitos e submete-se a deveres. O escravo e o servo, assim, não o são; não adquiriram, historicamente, essa condição estrutural. A forma de sujeito de direito é a diferença, em termos de relações sociais, entre o indivíduo moderno, capitalista, e as variadas condições das figuras humanas pré-capitalistas.
A forma de subjetividade jurídica é derivada da forma da mercadoria: advém diretamente das relações sociais entre seus portadores, num processo que se condensa quando a mercadoria atinge o âmago da produção. A venda do trabalho dá então a forma de subjetividade jurídica ao indivíduo. “Por essa razão, portanto, o princípio da subjetividade jurídica e os esquemas nele contidos […] derivam necessariamente e de modo absoluto das condições da economia mercantil e monetária” (Pachukanis, 1988, p. 11). Mas, na totalidade social capitalista, esse movimento somente se completa com a interferência de uma forma política específica, estatal. Em uma entidade politicamente terceira, o Estado, está situado o poder de garantir o capital e os vínculos contratuais, como os do próprio trabalho assalariado. As relações econômicas entre portadores de mercadorias se estruturam numa imbricação entre forma de subjetividade jurídica e forma de controle social e político estatal. Com essa relação entre as formas - uma conformação -, a subjetividade jurídica se institucionaliza na figura técnica do sujeito de direito.
No campo técnico resultante da conformação entre forma jurídica e forma política estatal, o sujeito de direito, por sua vez, é aquele que possui direitos subjetivos, que se configuram como faculdades, liberdades, imunidades e garantias, em variadas modulações. Se o dado qualitativo é a passagem de uma mera individualidade natural para um sujeito de direito - possuidor de direitos subjetivos -, o dado quantitativo daí advindo é a especificação do rol desses direitos subjetivos. No qualitativo, as sociedades capitalistas, estruturando-se exatamente quando os burgueses e os trabalhadores se tornam sujeitos de direito, ensejam a posse de algo como propriedade respaldada pelo Estado e a exploração de um pelo outro como vínculo contratual, portanto como ato de vontade de ambas as partes, uma “relação entre sujeitos que, formalmente, possuem os mesmos direitos” (Pachukanis, 1988, p. 11). No quantitativo, a história do capitalismo é a de uma complexa e contraditória marcha da distribuição de direitos subjetivos, deveres e responsabilidades, atravessada por lutas de classes, grupos e indivíduos.
Assim, os direitos humanos são um quantum de direitos subjetivos específicos que venha a ser dado a partir da forma geral do sujeito de direito. Para que haja direitos humanos, é preciso que, antes, os indivíduos naturais sejam considerados sujeitos de direito. Então, após essa qualidade formadora, os chamados direitos humanos são certo grupo de garantias políticas e jurídicas específicas respaldadas às mesmas individualidades.
Há uma diferença histórica entre os momentos da consolidação do sujeito de direito e de seus primeiros e derivados direitos subjetivos e o momento de afirmação dos direitos humanos. Do estabelecimento da sociedade capitalista resulta que os indivíduos sejam compulsoriamente tratados e reconhecidos como possuidores de vontade livre, presumidamente igual, para o contrato de exploração do trabalho assalariado. Assim, o primeiro núcleo dos direitos subjetivos, que acompanhou a formação do próprio conceito de sujeito de direito, é a igualdade formal entre os indivíduos e a possibilidade de dispor de si sob contrato, mediante a autonomia da vontade.
Tais direitos, que já funcionavam para a reprodução do capital, passam depois, politicamente, a ser considerados núcleos sagrados da dignidade humana, e é apenas num segundo momento que a eles vem se acrescer um rol maior e variável de outros direitos. Direito à liberdade de expressão, ao voto, a não ser torturado e à informação dos dados sobre si, por exemplo, são variantes que surgem em momentos posteriores ao da consolidação do ponto central dos direitos subjetivos. Historicamente, é só de maneira retrospectiva, e não prospectiva, que os direitos humanos foram compreendidos: já havia o sujeito de direito, já havia o direito subjetivo de ser igual e livre para se vender ao capital mediante salário, começavam já a surgir quantidades de direitos subjetivos variáveis tratando de questões de dignidade humana quando, posteriormente, a teoria geral do direito e da política passou a considerar todo esse bloco de direitos subjetivos como “direitos humanos” e as lutas políticas começaram então a se orientar sob esse dístico.
Para a própria técnica jurídica, muito tempo ainda haveria de se passar para distinguir, em termos normativos e hierárquicos, os institutos que tratam desse núcleo de direitos humanos dos demais direitos subjetivos. Somente quando a ideia de sistema jurídico se estabiliza - e daí ressaltando a noção de hierarquia normativa - é que se começa a considerar um bloco de direitos subjetivos em nível mais alto que os demais direitos: direitos constitucionais acima da legislação infraconstitucional, cláusulas pétreas de direitos humanos acima das demais normas constitucionais, além de normativas determinando responsabilidades, impotências e deveres públicos. A noção privilegiada que se constrói a respeito dos direitos humanos é, de certo modo, uma valoração que se fez a partir da decantação da própria estrutura sistemática do direito.
O avanço da lógica do direito positivo delimita e especifica os direitos humanos. Embora sejam reflexo de estruturas sociais insignes e atravessados por lutas concretas, os direitos humanos são especificados e modulados pelo avanço da lógica do direito positivo. Mas, para o jurista, seu fim é seu começo. E, se ainda hoje o jurista toma os direitos humanos apenas pelo campo da técnica juspositiva, é porque, na atualidade, os direitos humanos continuam sendo miseravelmente sustentados pela política do direito, circunscritos ao campo da técnica jurídica, mesmo que sendo considerados num campo hierarquicamente superior dos direitos subjetivos. Ainda que situacionado e alimentado por lutas concretas, o tratamento da questão tem se esgotado nas formalidades jurídicas. Por direitos humanos se acaba dizendo sobre normas jurídicas que orientem ou garantam tais conteúdos de direito subjetivo. Sua operacionalização se faz por meio dos regimes jurídicos tradicionais: obrigação dos agentes estatais ao orientar suas políticas públicas, pleito jurisdicional do desrespeitado, garantias normativas superiores que se configuram ou em cláusula pétrea ou em maioria qualificada para sua reforma legislativa, relação com um sistema normativo internacional.
Do solo da subjetividade jurídica geral brotou o específico do que se chama política e juridicamente por direitos humanos: fazer dos indivíduos portadores de direitos. Neste solo do mínimo da forma jurídica parece ter residido também, confortável ou desgraçadamente, o horizonte do máximo do que se espera e do que se luta por tal.
Direitos humanos e reprodução capitalista
Se os direitos humanos são um tipo que exsurge da generalidade da forma jurídica do sujeito de direito, é preciso então que justamente nessa estrutura geral do próprio direito se possa entender a especificidade de sua manifestação social e histórica. O capitalismo é o sistema de organização social que levanta a forma de subjetividade jurídica como cerne de sua reprodução. No capitalismo está a chave do fenômeno histórico do sujeito de direito, dos direitos subjetivos e dos direitos humanos.
Nas sociedades pré-capitalistas, as relações de produção não se fundam em categorias jurídicas. O escravismo e o feudalismo são modos de produção de exploração direta. Neles, até as normatividades existentes - e que muitas vezes podem ser chamadas, de modo inespecífico, por “direito” - não funcionam segundo a forma que vai se estabelecendo na modernidade. O mando é direto, como se vê nas figuras típicas do senhor de escravo e do senhor feudal. Mesmo nas sociedades pré-capitalistas mais complexas, como as gregas e a romana, acordos normativos que em certos períodos sustentaram suas organizações políticas não representaram a ereção da instância jurídica como forma de sua reprodução social. As normas, nessas sociedades, são um modo de arranjo dos que detêm o poder bruto e direto. Não se separam a instância política e os dominantes da sociedade. Nem a política nem a normatividade têm especificidade em face das contingências dos senhores (Naves, 2014).
Somente na Idade Moderna, com o surgimento de relações de tipo capitalista, vai-se instaurando uma instância estatal como conhecida até a atualidade, isolada e insigne. Mais do que o mando imediato de um senhor, começa a ser construído um aparato político a princípio estranho a cada senhor específico. Tal esfera política paulatinamente se aparta da vontade direta dos exploradores e dominadores. Com as revoluções burguesas, inclusive, essa organização estatal se separa até mesmo do monarca de poderes absolutos. O Estado passa a se regular em relação com a forma jurídica, apresentando-se como necessário para a reprodução da sociedade da mercadoria (Mascaro, 2013).
Numa sociedade de produtores que se funda na atomização de suas relações e na separação do trabalhador dos seus meios de produção, é o próprio trabalhador que vai ao capitalista para ser explorado, oferecendo seu trabalho em troca de salário. Ambos serão considerados sujeitos de direito. Ambos terão direitos subjetivos. Ambos serão tidos por formalmente iguais, para poder transacionar seus direitos em condições consideradas intercambiáveis. Ambos terão como corolário de sua condição de sujeitos de direito a liberdade negocial, isto é, a autonomia da vontade. Além disso, a propriedade privada resultante tanto da acumulação primitiva quanto da exploração do trabalho e do comércio de mercadorias será garantida não apenas pelo sujeito que é seu proprietário, mas por uma entidade política maior que ele, o próprio Estado.
No complexo jogo de tais chancelas fundamentais para permitir a funcionalidade da reprodução da exploração capitalista, Estado e direito exercem um papel decisivo. Sem o ente estatal e sua força não é possível garantir a propriedade privada como acumulação infinita e indistinta de capitais. Sem a constituição jurídica dos sujeitos, suas transações atomizadas e infinitas ficariam à sorte do acaso. A dinâmica do capitalismo institucionaliza a forma jurídica e uma organização política correspondente, estatal.
Embora haja entre as duas instâncias uma relação próxima, não são o Estado e suas normas os núcleos genéticos do fenômeno jurídico moderno. A forma jurídica, mais do que qualquer normatividade genérica, surge do eixo estrutural do sujeito de direito, do direito subjetivo e da garantia estatal da propriedade privada. Os direitos humanos, como um tipo de direito subjetivo, estão perpassados pelo núcleo da estrutura da própria reprodução do capitalismo. Estado e norma jurídica secundam1 e conformam a condição de sujeitos de direito aos indivíduos constituídos a partir das relações entre as classes exploradoras e exploradas do capitalismo.
Na sociedade produtora de mercadorias está o fundamento da forma jurídica. Como todas as coisas são mercadorias e, dentre elas, a mais importante é o trabalhador, que para ser explorado precisa vender seu trabalho como genérico no mercado, entende-se então que a forma jurídica é espelho da forma mercantil. Se os indivíduos têm direitos - se são considerados sujeitos de direito -, isso se deve ao fato de que a exploração capitalista se faz por meio de contratos, o que exige a investidura dos indivíduos em certa qualidade jurídica. A forma jurídica corresponde, então, à mercantilização de tudo e de todos. Para que as coisas e as pessoas sejam intercambiáveis no mercado, é preciso empreender as trocas mediante atributos jurídicos e disponibilizações de seus específicos direitos subjetivos. “O objetivo prático da mediação jurídica é o de dar garantias à marcha, mais ou menos livre, da produção e da reprodução social que, na sociedade de produção mercantil, se operam formalmente através de uma série de contratos jurídicos privados” (Pachukanis, 1988, p. 13).
Os direitos humanos, sendo um núcleo específico dos direitos subjetivos, são considerados, louvados e reputados como aqueles que promovem determinado padrão político e social de dignidade; essencialmente, porém, garantem as estruturas político-jurídicas necessárias à dinâmica de reprodução do próprio modo de produção capitalista. Assim, por mais variáveis que tenham sido suas origens em termos de luta, interesses, bandeiras e dísticos, os direitos humanos são, no campo jurídico, a forma da reprodução da exploração de um mundo cada vez mais pleno de mercadorias, dentre as quais a mais importante - e mais simbólica pelo seu grau de contradição e indignidade - é o trabalho.
Se é verdade que variados conteúdos de direitos subjetivos vão se construindo e se afirmando na história moderna e contemporânea, muitos deles contra a vontade imediata da burguesia, é também verdade que a forma político-jurídica pela qual se briga e na qual essas conquistas são concretizadas é uma forma necessariamente correlata do capitalismo.
O conteúdo dos direitos humanos
Das defesas que historicamente foram se aglutinando no conjunto das normas de garantia dos direitos humanos, é preciso identificar seus diferentes motores. De início, há uma forma comum a todos os direitos humanos, a forma-sujeito, que é espelho da própria reprodução capitalista e da sua forma mercantil subjacente. Mas os conteúdos defendidos sob tal forma são variados. O seu núcleo é a armação necessária à própria existência do capitalismo: para que o trabalho possa ser explorado de modo assalariado, levantam-se, ao mesmo tempo, a igualdade formal entre capitalista e proletário e a autonomia da vontade como base do vínculo contratual de exploração2. Além disso, acresce-se o direito à propriedade privada e sua garantia por meio das forças estatais.
Claro está que os direitos humanos não se resumem a tal núcleo. Historicamente, vêm-se expandindo a ponto de abarcar direitos sociais, coletivos, instituindo uma gama de defesas que podem ser consideradas mesmo, em variados níveis, antagônicas entre si. É por conta desse núcleo expandido e imediatamente contraditório que alguns discursos sobre os direitos humanos se pretendem ultrapassantes das necessidades capitalistas: os direitos do trabalhador e do meio ambiente não são do proveito imediato do burguês. Por conta da contradição de defesas, interesses e princípios, a afirmação dos direitos humanos parece aberta, universal, apta tanto ao capital quanto ao seu desfavor. É preciso, no entanto, entender o mecanismo formal de operacionalização de suas contradições e a estrutura constituinte de seus interesses contrapostos.
No campo das técnicas jurídicas, conteúdos distintos e contraditórios não representam meios distintos de operacionalização dos direitos humanos. A técnica advinda da forma jurídica moderna é a mesma, revelando-se por meio de ferramentas como sujeito de direito, direito subjetivo, dever, responsabilidade. Se há sujeitos de direito cujas garantias, quando cotejadas, são contraditórias e limitadas, isto não nega o fato de que há sempre distribuição ou mensuração dos direitos das individualidades. A noção de indivíduo operante no mercado, comprando e vendendo a tudo e a si próprio, está resguardada ainda que determinados direitos subjetivos seus sejam limitados em face de direitos subjetivos alheios. O fato de que o burguês não pode mais contratar trabalho por menos que um salário-mínimo não quer dizer que o direito que agora fixa o patamar remuneratório ao trabalhador se insurja contra a possibilidade da exploração do trabalho por meio de contrato. Os direitos subjetivos contrapostos não negam o mecanismo geral da reprodução do capitalismo, antes o reafirmam constantemente, conforme arranjos conjunturais da dinâmica das lutas políticas e sociais.
No campo do mérito dos conteúdos, é preciso entender que a marcha progressista de inclusão dentro da lógica capitalista tem representado, historicamente, a própria salvação do sistema de exploração. Os direitos do trabalhador se notabilizam não pela superação, mas pela estabilização do capitalismo sob bases mínimas de garantias ao explorado. As fases de desregulamentação, como a do neoliberalismo em recentes décadas, representam um ganho imediato extremado à burguesia, mas com decorrências posteriores de desarranjos, na medida em que a derrocada de quantidades de garantias sociais quebra cadeias da dinâmica da produção e da circulação e enseja ainda maiores crises econômicas, políticas e sociais. Em contraste com o neoliberalismo, fases de incremento de direitos humanos sociais, via de regra, representaram o ingresso de amplas parcelas dos excluídos no mercado de consumo. As expansões e as contrações de direitos humanos, nos variados regimes de acumulação e modos de regulação dentro do capitalismo, são distintas dinâmicas da exploração de um mundo sempre medido por mercadorias.
Mas, historicamente, a contraditória marcha dos conteúdos dos direitos humanos não se apresenta segundo uma inteligibilidade de que uma distribuição de direitos sociais e uma relativa perda imediata do burguês sejam boas para o reforço estrutural da reprodução capitalista. Ao contrário, pela visão e pela ação de exploradores e opressores, levantam-se resistências e contenções. Se o ponto central do conteúdo dos direitos humanos - propriedade privada, autonomia da vontade e igualdade formal para a circulação mercantil e exploração do trabalho assalariado - é originário da própria dinâmica do capital, sendo que às classes capitalistas há uma necessidade estrutural de tal constituição jurídica, os demais direitos políticos individuais inclusivos e os direitos sociais, por sua vez, só advêm de lutas das classes e grupos explorados ou, então, são garantidos por meio de respaldos, intervenções e planejamento meramente estatais. O acoplamento destes direitos humanos inclusivos ou sociais à lógica de reprodução capitalista é mais incidental que o daqueles que permitem a exploração imediata. Por isso, direito à propriedade privada, direito à liberdade e direito à igualdade formal não sofrem contestações sociais. No entanto, direitos do trabalhador, direitos sociais - saúde, educação, habitação -, direito de minorias, direitos políticos ampliados e direitos ambientais vivem em constante perseguição. A institucionalização dos direitos humanos advém de fontes distintas. Seu núcleo central é o reflexo da própria dinâmica da reprodução do capital, e é por tal razão que determinados direitos humanos são estruturais. Sua periferia, os direitos políticos, sociais e coletivos, é incidental.
Em momentos de crise, são apenas os movimentos dos grupos explorados - e, eventualmente, algum espaço jurídico estatal - que garantem os direitos humanos incidentais; por sua vez, os direitos humanos estruturais são garantidos pela própria dinâmica do capitalismo. Em caso de diplomas constitucionais que preveem direitos sociais, como o do Brasil, imediatamente se espera que pelo Estado se garanta tal injunção jurídica. Mas, porque as classes capitalistas lhes são opositoras e o Estado é fundamentalmente um motor da reprodução do capital, por isso, nos embates profundos, também a política descarta os direitos humanos ampliados políticos e sociais em favor do interesse do capital. Em momentos de crise, os conteúdos da propriedade privada e da exploração do trabalho assalariado falam mais alto que as demais proteções políticas, individuais, sociais e das minorias.
Os direitos humanos se estruturam por uma forma que lhes é universal, mas com conteúdos que se originam e são instituídos a partir de dinâmicas sociais distintas. A defesa de todo esse bloco é a defesa da própria forma da reprodução geral do capital, agravada pelo fato de que os ganhos sociais são incidentais em face do núcleo estrutural dos direitos humanos, que gravitam apenas em torno do capital e de sua reprodução. Ao defender os direitos do trabalhador, pensando com isso garantir o mínimo de dignidade, defende-se o capital que, em circunstâncias de crise, destrói as próprias garantias mínimas, já que estas orbitam apenas sustentadas pela política, pelo direito e pelo Estado, mas não pela própria dinâmica capitalista.
O processo histórico dos direitos humanos
A partir da segunda metade do século XX, a reflexão produzida a respeito dos direitos humanos começou a falar, a partir de Vasak (1984), de fases específicas de sua afirmação, tratando seu processo histórico, inclusive, como uma linearidade evolutiva: “os direitos fundamentais passaram na ordem institucional a manifestar-se em três gerações sucessivas, que traduzem sem dúvida um processo cumulativo e quantitativo” (Bonavides, 2006, p. 563). Nessa narrativa de suas conquistas, num primeiro momento, com as revoluções liberais, afirmam-se os direitos individuais. Posteriormente, constroem-se os direitos sociais, como os ligados à questão do trabalho. Num terceiro momento, surgem os direitos coletivos, como os ligados ao meio ambiente, havendo classificações que subdividem ainda outras fases mais novas, como os da paz e os do biodireito, de tal sorte que se vislumbram, a depender dos autores, até quatro ou cinco gerações de direitos humanos (Bonavides, 2008).
Removendo a narrativa glorificante do progresso da civilização humana, a razão do desdobrar histórico dos direitos humanos diz respeito tanto à necessidade de sua manifestação estrutural quanto às suas variações incidentais no contexto da reprodução da sociedade capitalista. Se somente é possível a exploração capitalista por meio contratual, então o núcleo primeiro dos direitos humanos é, de fato, o que torna explorador e explorado sujeitos de direito. Liberdade negocial e igualdade formal aí residem. Também a propriedade privada é considerada um princípio estrutural dos direitos humanos, porque é nela que se assenta a garantia estatal do capital do burguês.
Mesmo essa alvorada dos direitos humanos individuais se realiza por força de luta, neste caso da burguesia contra o feudalismo e os setores do Antigo Regime. Mas, a partir daí, as demais ampliações dos direitos humanos se fazem contra a vontade imediata da burguesia, ainda que tal processo permaneça adstrito às formas sociais do capitalismo e, no limite, seja aproveitado para a reprodução da própria classe burguesa. O direito do trabalho, sofrendo contestações reiteradas dos capitalistas e seus áulicos, é burguês pela forma e pelo resultado de estabilização das próprias condições do trabalho assalariado. No entanto, no quotidiano das lutas, a burguesia não opera com tal prisma nem tampouco os trabalhadores se sentem, nos embates com o capital, corroborando com um conservadorismo estrutural. Isto porque as lutas sociais se fazem pulverizadas, condicionadas no solo de sociedades concorrenciais, sem que haja a capacidade de pensamento e estratégia que tome por base a totalidade do sistema social. Daí, o engalfinhar das lutas no constrangimento das formas contraditórias do capitalismo se deve tanto pela ausência de um comitê gestor geral do capitalismo quanto pela inexistência de uma ciência geral das classes e grupos explorados sobre a plena superação do capitalismo e das práticas opressoras.
A relação entre as formas sociais do capitalismo e os direitos humanos, assim, não é de derivação lógica e, sim, factual. Se o processo histórico de afirmação dos direitos humanos está albergado na sociabilidade burguesa, isto não se deve a um ideário de princípios capitalistas que engendre a mudança social. De modo contraditório, a luta de classes, grupos e indivíduos constitui necessariamente a reprodução capitalista, atravessa sua história e dá sua dinâmica. Nela está o motor de afirmação de variadas fases de direitos.
Como os direitos humanos se consolidam ideológica e discursivamente pelos espaços de cultura, inteligência, valoração e institucionalização jurídica e política, também de alguma sorte sua afirmação, ainda que derivada das formas sociais capitalistas e das lutas de classes e grupos variados, não é necessariamente uma conquista da vontade direta das mesmas classes e grupos a que salvaguardam. O burguês se sente burguês e não burguesia; a luta pelos direitos burgueses não foi e nem é uma bandeira ideologicamente fincada por todos os burgueses, nem representou uma conquista quantitativa da consciência dos burgueses. O mesmo quanto aos direitos do trabalhador, da mulher, do negro, do homossexual, do estrangeiro. É verdade que, da movimentação geral das lutas de classes e grupos, decorrem horizontes de conflitos e superações que dão condição ao surgimento das conquistas institucionais. Tais instituições políticas e jurídicas têm uma materialidade direta que está adstrita a essa dinâmica social concreta. Mas, a partir daí, as normativas, declarações e a cultura dos direitos humanos acabam sendo cultivadas e gestadas em especial por agentes das classes médias, afeitos inclusive às profissões que de tais direitos se ocupam. Decorre então que é possível encontrar, por todas as sociedades contemporâneas, bifurcações na apropriação dos direitos humanos. Uma ideologia imediata de burgueses e trabalhadores se põe contra os direitos humanos, sejam individuais ou sociais, quando se miram casos como os de criminosos ou quando se narram os custos dos direitos sociais para a manutenção do emprego. Já a sustentação dos direitos humanos enquanto cultura, valor e afirmação jurídica acaba sendo própria de setores progressistas de todas as classes e grupos e, em especial, das classes médias.
Por mais combatidos pelas classes exploradoras, os direitos humanos é que dão sustento a modos mais estabilizados de reprodução da própria exploração capitalista. A inteligência imediata das classes burguesas ou dominantes não permite ver que as perdas representadas pelos direitos humanos são, na verdade, ganhos em médio e longo prazo. O mesmo, pela via reversa, pode-se dizer a partir do ângulo dos trabalhadores e dos explorados: o imediato ganho de direitos sociais e políticos, possibilitando alguma melhora e estabilidade no seio da sua vida quotidiana, é a manutenção da própria exploração estrutural. Um caráter peculiar das lutas pelos direitos humanos é o fato de que elas se originam de demandas e condições exasperantes dos explorados e dos oprimidos, mas deságuam nalguma sorte de distribuição de proteções, garantias, faculdades, deveres e responsabilidades que são típicas das formas do capitalismo e que não atentam contra o fundamental de sua sociabilidade.
A tese da evolução dos direitos humanos é outra quando lida pelo ângulo de sua materialidade. Sua história não é gratuita nem voluntarista e nem dependente de um grau de consciência humana. Há uma íntima conexão entre direitos humanos e estruturação das relações sociais capitalistas. A afirmação dos direitos humanos nunca se deu por bondade do poder, sendo objeto de cruentas lutas históricas. O ensejo de tais lutas se dá exatamente conforme dinâmicas das relações de produção capitalistas. As batalhas pela libertação da servidão na Europa a partir do século XVIII e da escravidão nas Américas do século XIX estão no mesmo movimento da marcha da burguesia e do capital ao tempo da Revolução Industrial. A proeminência dos direitos humanos que tratam do núcleo da subjetividade jurídica se deve, por um lado, às lutas revolucionárias e, por outro, apresenta-se como concreção estrutural necessária de instrumentais e garantias para possibilitar a própria exploração assalariada.
Uma etapa posterior no seio dessa primeira geração de direitos humanos, a dos direitos humanos políticos - como os de liberdade de expressão, voto ou igualdade da mulher -, representa, também, um desdobrar de lutas que estão, necessariamente, no contexto da expansão da vida urbana, do aumento do consumo de mercadorias por parte dos trabalhadores, do surgimento de setores de classe média e da incorporação da mulher ao mercado de trabalho. Alguns desses direitos, como os político-eleitorais, típicos de uma classe média que simboliza a circulação de mercadorias e de vontades, são historicamente mais fragilizados que os direitos da circulação mercantil, em razão da própria relativa debilidade econômica de tais setores.
Do mesmo modo, os direitos humanos sociais, considerados como sua segunda geração, só aparecem quando as relações de produção capitalistas já estão assentadas num contínuo sistemático que une trabalho e consumo. No seu alvorecer, o trabalho industrial apenas produziu, política e juridicamente, o horror advindo da contenção de lutas dos explorados. Mas, num momento posterior, a própria incorporação das massas trabalhadoras ao consumo e a legalização de suas ações políticas e direitos sociais revelaram-se instrumentos de estabilização geral da reprodução social capitalista. As lutas dos trabalhadores vencem quando seus ganhos pleiteados são contabilizados como ganhos para a própria exploração do trabalho e para o circuito geral da circulação das mercadorias.
Também novas levas de direitos envolvendo ambiente, consumo, bioética e genética são correspondentes a ampliações da penetração da mercadoria nas relações sociais do capitalismo contemporâneo. Somente quando a acumulação adentra novas fronteiras ecológicas, o consumo se expande como massificado e plenamente indistinto e os recônditos do corpo são trabalhados é que, então, surgem lutas que levam a novas extensões dos direitos humanos. Essas dimensões, já não localizáveis em indivíduos, grupos ou classes, atravessam uma subjetividade geral e pousam em objetos de direitos humanos como a natureza ou o patrimônio histórico e cultural, tal qual a marcha presente de expansão da mercadoria vai pelo consumo de massas, pelos serviços, pelo turismo, pela tecnologia ou pela bioengenharia (Edelman, 2009, cap. 1).
A determinação dos conteúdos dos direitos humanos reflete contradições necessárias da sociabilidade capitalista. As explorações e opressões, os antagonismos e os conflitos ocorridos desde os primórdios da sociabilidade capitalista não são chagas que possam vir a ser curadas pelos direitos humanos. As lutas sociais, políticas, de classes, grupos e indivíduos são constrangidas pela forma política estatal e pela forma da subjetividade jurídica, não para que suas mazelas se resolvam, mas, sim, como condição de sua existência e permanência.
O caso do direito do trabalho e dos demais direitos sociais é bastante significativo da manutenção da exploração econômica mediante as formas política, estatal e jurídica. Os direitos humanos do trabalhador não o emancipam nem o libertam do capital (cf. Marx, 2013, cap. 7); antes, dão-lhe trato de estabilização das suas próprias condições no salariado. Já a partir das primeiras levas de conquistas de direitos individuais - mas, em especial, no decorrer dos séculos XIX e XX - a extensão do direito ao voto às mulheres e a proibição da discriminação de gênero ou raça não representaram a plena igualdade social da mulher ou do negro, mas, sim, instrumentos melhores para a reprodução do patriarcalismo e do racismo em condições mais estáveis e menos conflituosas (Wallerstein, 1991, p. 34). No campo do trabalho e da seguridade social e nas questões de gênero e raça, as conquistas de direitos humanos não superam as próprias bases da exploração e da opressão, porque estas são fundadas nas mesmas formas sociais que também levam à proteção. É na sociedade da mercadoria que a forma jurídica e a forma política estatal se levantam, sendo-lhe constituintes. Graus distintos no arranjo dos conteúdos de tais formas não alteram aquilo que elas próprias ensejam. Trabalho assalariado, patriarcalismo e racismo são estruturais ao capitalismo. Suas proteções jurídicas não podem ser sua superação, por natureza da forma.
Revolução e direitos humanos
No mesmo compasso de uma afirmação processual e variável dos diferentes conteúdos de direitos humanos também está sua relação com as revoluções. Historicamente, há disputas ideológicas sobre o sentido dos processos de ruptura acontecidos nos séculos das Idades Moderna e Contemporânea. Revoluções que carreiam lutas por direitos individuais são diretamente coordenadas por classes ou grupos burgueses, de tal sorte que, desde a Independência dos EUA até a Revolução Francesa, há um louvor da revolução (embora, aqui, claramente, em disputa: as classes burguesas abominam as fases de excesso dos franceses, que são justamente as fases progressistas dos trabalhadores ou dos extratos mais radicais da pequena burguesia). O acoplamento das revoluções à bandeira de direitos individuais serve como clamor histórico das classes exploradoras para rupturas com os absolutismos ou, até mesmo, com a legalidade, no caso do século XX, quando esta foi contrária a suas demandas. Na bandeira dos direitos humanos individuais está a base mínima para a reprodução social capitalista.
Tratamento distinto sofrem todos os processos de lutas e revoltas contrários ao núcleo dos direitos humanos que seja afeto à reprodução do capital. Revoluções socialistas, movimentos de insurgência anticapitalistas ou antiditatoriais e, até mesmo, as batalhas pelos direitos sociais, são tomados como oposições aos direitos humanos, se se considera, por isso, o núcleo da liberdade negocial e do direito subjetivo ilimitado ao capital. Os múltiplos e variados objetivos das lutas revolucionárias explicam alinhamentos políticos que, ao se porem sob a bandeira dos direitos humanos, resultam em usos os mais seletivos possíveis: na mesma América Latina, Cuba de Fidel e Chile de Pinochet sofrem distintas apreciações. Nas revoltas árabes que se iniciaram em 2011, as ditaduras inimigas são apeadas do poder com o apoio dos governos dos Estados Unidos e de países europeus segundo a justificativa de que atentam contra os direitos humanos. Contudo na mesma região, outras ditaduras sangrentas, mas amigas, são sustentadas. No plano menor, das manifestações de rua, é suficiente ver o tratamento distinto dado pelas polícias brasileiras a grupos de direita e de esquerda.
É preciso atrelar o movimento político à estrutura íntima da reprodução do capital para entender as posições práticas e teóricas quanto ao tema da relação das revoluções com os direitos humanos. A base mínima necessária à reprodução do capital é defendida como revolução ansiada, “legítima”. As lutas por expansão do conteúdo dos direitos humanos ou pela superação da exploração capitalista são consideradas revoluções indesejadas, “ilegítimas”. Mais que a legitimidade, como atributo meramente ideológico, há um dado estrutural: a luta revolucionária pela conformação à reprodução do capital é um caminho que se impõe com a força da dinâmica das suas próprias formas sociais estruturantes. Nesse sentido, a defesa constante da revolução por direitos humanos individuais e por democracia eleitoral formal é uma manifestação da ideologia.
A naturalização das ações de ruptura que refluam à ordem de reprodução do capital faz que o discurso dos direitos humanos se concentre no seu núcleo individual, esquecendo ou mesmo declarando abominável o campo dos direitos humanos sociais e das revoluções superadoras das formas capitalistas. O teto ideológico dos direitos humanos não permite que estes acompanhem o processo de transformação social quando para além do próprio capitalismo. Assim, por mais que se projete uma bandeira de socialismo como sucessor melhorado dos direitos humanos, são estes que, na estrutura formal de sua reprodução em sustento do direito ao capital, não permitem se fazer sucedidos por aquela.
Direitos humanos e dignidade humana
Se a forma dos direitos humanos é uma própria forma social da exploração capitalista - distintas combinações de conteúdos a partir do sujeito de direito, dos direitos subjetivos, da propriedade privada -, a luta pelos direitos humanos, sendo em favor de alguma dignidade, é feita no seio de uma indignidade estrutural. A separação dos trabalhadores dos seus meios de produção é o primeiro dos fatos sustentados pelos direitos subjetivos. A dignidade tornada remédio é o seu segundo corolário. Em se dando uma indignidade estrutural, os direitos humanos, como o caso exemplar dos direitos sociais, são tentativas de solucionar efeitos sem alterar as causas.
Nas sociedades contemporâneas, a forma da constituição dos sujeitos, de sua consciência e seus valores práticos se faz por meio de mensurações, sendo a distribuição dos direitos subjetivos umas das mais centrais. Por isso, acaba por ser incompreensível, à maioria dos explorados do mundo, uma luta que não resulte, ao final, em ganhos jurídicos. Se se buscam melhores condições no trabalho, o resultado positivo da luta será o incremento normativo assegurado pelo direito do trabalho. Se se busca o fim da tortura, a ação em vista no horizonte teórico-prático da maioria é o seu ganho em termos de normas jurídicas estatais que garantam a dignidade humana. Num mundo onde tudo se mede como mercadoria, os sujeitos são os portadores das mercadorias por excelência e, então, sua inteligibilidade se faz por meio da forma necessária que os permite portar mais ou melhor - o direito. Daí que, para muitos, é inconcebível que haja um horizonte das lutas e das revoluções maior que a própria luta por direitos humanos.
No entanto, o passo histórico da dignidade humana é muito maior que a manutenção da forma jurídica que corresponde à exploração capitalista. Não se pode considerar que a divisão do mundo entre os detentores do capital e os trabalhadores assalariados se resolva, em termos de plena dignidade, apenas com a concessão de aumentos salariais. É preciso que os horizontes teórico-práticos da luta revolucionária se expandam. É porque a dignidade humana não se perfaz em termos da reprodução da forma-jurídica e da forma-mercadoria que se luta pela ruptura com os padrões estabelecidos no capitalismo. A plena revolução, assim, mais do que aumentar os direitos humanos, opera a sua superação.
A dificuldade de desejar uma esfera de dignidade humana está justamente na materialidade e nas práticas da vida sob a forma da mercadoria. O arranque de uma sociabilidade distinta envolve a negação dos horizontes que constituem a própria subjetividade contemporânea. As lutas de superação do capitalismo partem do chão da própria vida capitalista. Seu desenvolvimento se faz em tal solo, constrangido pelas suas formas sociais e, tendencialmente, tragado por elas. Mas, ao mesmo tempo, apenas a luta nesse mesmo solo, atravessada pelas suas contradições, é que permite a eventualidade de sua superação.
O discurso e a luta por dignidade encerrados em tipos jurídicos revelam a manutenção da exploração capitalista. Ainda que os direitos humanos sejam uma batalha árdua contra a barbárie reacionária, é preciso reconhecer o capitalismo como uma barbárie estrutural, mesmo que, eventualmente, melhorada juridicamente. Tal como há uma distância enorme entre o odiar o outro, o respeitar formalmente o outro e o amar o outro, há uma distância enorme e similar entre o ódio aos direitos humanos, o respeito formal aos direitos humanos e o amor à dignidade estrutural de todos os seres humanos. É neste ponto mais alto que revolução e horizonte de humanidade devem estar ligados, para buscar a superação das indignidades capitalistas em favor de uma dignidade tomada em outro nível: numa sociabilidade socialista.
Bibliografia
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1
“Conclui-se então que, para analisar as definições fundamentais do direito, não seja preciso partir do conceito de lei e utilizá-lo como fio condutor já que o próprio conceito de lei, enquanto decreto do poder político, pertence a um estágio de desenvolvimento onde a divisão da sociedade em esferas civil e política já está concluída e consolidada e onde, por conseguinte, já estão realizados os momentos fundamentais da forma jurídica” (Pachukanis, 1988, p. 12).
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2
“A relação de exploração […] em nenhum caso vê-se ligada à relação de troca sendo igualmente concebível numa economia natural. Porém, é apenas na sociedade burguesa capitalista, em que o proletariado surge como sujeito que dispõe da sua força de trabalho como mercadoria, que a relação econômica da exploração é juridicamente mediatizada sob a forma de um contrato” (Pachukanis, 1988, p. 14).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
May-Aug 2017
Histórico
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Recebido
17 Set 2015 -
Aceito
07 Out 2016