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A transição e a constituinte

E AGORA, BRASIL?

A transição e a constituinte

Marco Aurélio Garcia

Professor do Departamento de História da UNICAMP

Com a eleição do novo presidente da República, cumpriu-se mais uma etapa do processo por muitos chamado de "transição democrática" e, se não se produziu a desejada ruptura com o regime implantado em 1964, como pareceu possível durante a campanha das diretas-já, será incorreto, no entanto, assimilar a atual sucessão às trocas de guarda anteriores.

A despeito da hipoteca conservadora que crescentemente vem onerando a candidatura da Aliança Democrática, é de se esperar que o país passe a viver uma nova etapa de sua história política. Não podem ser, de forma alguma, minimizadas a crise da base de sustentação política do regime militar e as expectativas de mudança surgidas durante a campanha pelas diretas e que a candidatura do doutor Tancredo foi capaz de canalizar em grande medida.

Ao lado da necessidade inadiável de mudanças econômicas e sociais profundas, especialmente do enfrentamento de questões imediatas como a inflação, o desemprego e a degradação das condições de vida da imensa maioria da população brasileira, esteve no centro dessa exigência de mudança o problema de uma nova institucionalidade que eliminasse os instrumentos de arbítrio construídos nesses últimos anos e que, ao mesmo tempo, lançasse as bases de uma democracia sólida e profunda no país. Para crescentes setores da sociedade brasileira, essa democracia não se confunde com uma simples volta ao Estado de direito, tendo antes a significação de um espaço que permite aos sujeitos sociais criarem ininterruptamente novos direitos.

É no bojo deste debate que surge a questão da Constituinte. O tema apareceu com certa freqüência no debate sucessório. Mesmo Maluf se viu obrigado a invocar a necessidade de uma "reforma constitucional", de contornos, é verdade, pouco definidos. Já no discurso de Tancredo Neves, a Constituinte ocupou um lugar mais explícito, ainda que cercada de inúmeras ambigüidades, como se verá adiante.

A questão da convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte foi colocada com certa freqüência, nestes últimos anos, particularmente após o retrocesso institucional representado pela edição do "pacote de abril". Ela apareceu nas proposições da OAB, nos debates da SBPC e nas resoluções da convenção nacional do MDB, de 1977, ainda que aí em forma tímida, tendo em vista a necessidade de evitar que se transformasse em "foco de subversão ou de intranqüilidade", como sublinhou um documento da época.

No campo das forças de esquerda, a tese da Constituinte tem encontrado uma receptividade bastante diferenciada. Entre os que são favoráveis a ela, encontram-se desde os que se associam ao pacto social, que crêem necessário para a atual etapa democrática, até os que atribuem à Constituinte uma função desestabilizadora do regime e da própria ordem capitalista.

Ainda neste campo, cabe mencionar as inúmeras posições opostas à convocação de uma Constituinte, a partir do argumento de que ela servirá apenas para cristalizar um projeto conservador e antipopular que é hegemônico nos dias que ocorrem, como resultado de uma relação de forças desfavorável para os trabalhadores. O argumento tem, evidentemente, o seu peso. As experiências constitucionais brasileiras consagraram, invariavelmente, interesses antipopulares (como aparece claramente no episódio de 1946), o que somente agravou o ceticismo das classes subalternas para com a lei.

Três razões para a Constituinte

O problema é que este tipo de raciocínio leva, inexoravelmente, ao reforçamento de uma visão da legalidade como exclusivo instrumento de manipulação dos explorados pelos donos do poder e não como um campo de luta política. A dimensão institucional da democracia passa a ser um território de aparências, resultado de ardilosos projetos manipulados pelas classes dominantes.

Com isso, a atividade política se estreita enormemente, e só restam os caminhos da acumulação ("estratégica") de forças, a partir de uma "volta às bases", ao "social", ou da excitação das massas pela propaganda de valores revolucionários abstratos.

No entanto, a questão de uma nova institucionalidade, e de urna Constituinte, em particular, está objetivamente posta e, pelo menos, três razões lhe dão atualidade: a desordem institucional, resultante da institucionalização do arbítrio, nesses últimos vinte anos; a emergência de movimentos sociais que irrompem como novos sujeitos políticos e recolocam de forma substantivamente nova o problema da democracia no país; e a própria sucessão, em particular o que foi colocado pela campanha pelas diretas-já, que tocou na questão essencial do restabelecimento do princípio da soberania popular.

Democracia exige nova Constituição

Um projeto democrático para o Brasil é incompatível com os dispositivos constitucionais atuais, que consagram uma hipertrofia do poder Executivo e a tutela das Forças Armadas sobre ele, que representam a ruptura com a ordem federativa, que não asseguram direitos e garantias individuais e sociais, etc. É importante sublinhar que muitas dessas questões não são somente o resultado dos vinte últimos anos de autoritarismo, mas estão ancorados nas profundezas da visão de mundo das elites brasileiras.

Um projeto democrático para o Brasil tem de levar em conta que o esvaziamento dos mecanismos de representação — impossibilitados ou incapacitados de expressar institucionalmente demandas que surgiam na sociedade — está a exigir uma nova institucionalidade que articule representação com participação.

Um projeto democrático para o Brasil não pode, finalmente, se fazer desconsiderando o que foi a extraordinária mobilização pelas diretas, que ocupou quase todo o primeiro semestre de 1984, sem a qual é bem provável que o governo tivesse podido implementar seus planos de auto-reprodução.

A frustração definitiva do continuismo do grupo palaciano e das forças situadas mais à direita do regime e que se agruparam na candidatura Maluf se deu, no entanto, a partir de uma ampla recomposição conservadora de setores da oposição oriundos do extinto Partido Popular com sucessivas dissidências do PDS, reduzindo consideravelmente o espaço de manobra reservado ao PMDB histórico.

Ainda é cedo para estabelecer as conseqüências desse conservadorismo no campo do enfrentamento das questões econômicas e sociais, mesmo se os indicadores sejam de uma postura extremamente moderada.

No campo institucional, o outro grande terreno deste período de transição, a situação não é mais animadora. Até novembro de 84, pelo menos, Tancredo insistia em sua tese de dar poderes constituintes ao Congresso a ser eleito em 1986 (e empossado em 1987). Há, portanto, uma primeira diferença entre a Assembléia Nacional Constituinte, livre e soberana, defendida há anos por importantes segmentos da oposição, e a fórmula tancrediana. Aliás é o próprio candidato da Aliança Democrática quem se encarregou de insistir que a situação atual, diferentemente da de 1946, não configura um vazio de poder, não justificando, em sua opinião, a manutenção da fórmula Assembléia Nacional Constituinte livre e soberana.

Os problemas se complicam mais se se atentar para a questão dos prazos. A eleição de um Congresso com poderes constituintes em 86 significa que sua atividade se dará no curso de 1987, a partir de 15 de março desse ano, e, face à acumulação das funções constituintes com as legislativas, é de se prever que o novo texto constitucional só venha a ser promulgado em 1988.

Não é necessário fazer muitas contas para estabelecer que o Brasil atravessará mais três anos — e é de se supor que não dos mais tranqüilos de sua história — dentro do quadro constitucional atual que articula todo um elenco de leis arbitrárias como a de Segurança Nacional, de Greve, a CLT, a dos partidos, para só citar as mais importantes.

Um debate constitucional em 1987 pode coincidir, por outro lado, com um quadro de recomposição da direita e da extrema-direita, atualmente isoladas, sobretudo se elas puderem dispor daqui até lá de espaços institucionais. Não será difícil invocar a necessidade de pôr fim a "discussões estéreis", como as de uma Constituição, no momento em que o país necessita de "trabalho" e "ordem" para vencer uma crise que os mais otimistas apontam como de longa duração e que, pessimisticamente, pode-se imaginar será agravada pela dificuldade de compatibilizar os distintos e conflituosos projetos que hoje convivem na Aliança Democrática.

Uma tal hipótese, que configura mais do que uma simples possibilidade, não faria mais do que dar razão àqueles que vêem na Constituinte um mero instrumento de que se valem as classes dominantes para frustrar aspirações populares claramente expressas no terreno social, sobretudo quando a satisfação dessas aspirações significa alterar as relações de força na sociedade.

Esta questão deve ser enfrentada já

Não é difícil inferir das inquietações até aqui expostas a tese de que o enfrentamento da questão da Constituinte não pode ser relegado para um brumoso 1987 e deve receber respostas imediatas. Continua de pé o argumento de esquerda de que a relação de forças é, hoje, desfavorável aos trabalhadores, o que se expressa na frustração da campanha pelas diretas e na formação da Aliança Democrática, com o conseqüente controle de setores conservadores sobre o processo sucessório. Trata-se, então, de levá-lo em conta para definir uma postura frente a um problema colocado pelo próprio desdobramento previsível da transição.

A convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte tem de ser o resultado de um ato que somente a pressão popular poderá provocar, que contenha em si garantias quanto a um desdobramento favorável para os trabalhadores. Aqui intervém a necessidade de definir pré-requisitos para a eleição de uma Assembléia Nacional Constituinte, que vão da revogação da LSN e da Lei de Greve, de imediata liberdade de organização partidária, liberdade de acesso aos meios de comunicação, financiamento público dos partidos, voto para os analfabetos, soldados e marinheiros até o restabelecimento de uma autêntica representação federativa no Legislativo, atualmente falseada por uma interminável série de casuísmos destinada a assegurar o predomínio das oligarquias.

É evidente que a disposição de enfrentamento imediato de uma profunda reformulação institucional, que passa necessariamente por uma Constituinte, apresenta, além de desafios políticos, uma série de complicadores jurídicos que deverão ser estudados e analisados dentro da perspectiva mais geral de que as reformas institucionais se fazem urgentes para assegurar as conquistas dos trabalhadores.

A instabilidade social dentro de um quadro institucional marcado pelas sobrevivências legais do autoritarismo é o cenário ideal para uma volta a um autoritarismo mais forte, pois fundado no fracasso de uma suposta experiência democrática. Este pode ser, perfeitamente, a leitura que muitos fazem hoje da famosa "volta aos quartéis".

Reivindicar direitos, definir os espaços de sua criação são questões fundamentais para os trabalhadores que descobriram, nestes últimos anos, o campo das instituições também como um terreno de suas lutas. Um movimento de trabalhadores capaz de aceitar este desafio, ainda que sabendo as dificuldades que ele implica, estará demonstrando uma irresistível vocação hegemônica.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1985
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