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Quem ganha e quem perde com a nova ordem?

E AGORA, BRASIL?

Quem ganha e quem perde com a nova ordem?

Clóvis Rossi

Jornalista

Quem ganha e quem perde com o novo quadro brasileiro? Com Tancredo, a resposta parece fácil: ganhamos todos. De fato, raras vezes na história do país juntaram-se, em torno de uma candidatura, forças tão amplas e heterogêneas como as que apóiam a candidatura do ex-governador mineiro. Basta fazer um breve resumo: estão com Tancredo os três partidos comunistas ainda ilegalizados e, por isso mesmo, embutidos na legenda do PMDB. Tanto o Partido Comunista Brasileiro (PCB) como o Partido Comunista do Brasil e o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) alinham-se com Tancredo — e não apenas nas declarações públicas de seus líderes.

A convenção do PMDB que sacramentou a candidatura Tancredo foi, acima de tudo, uma grande festa da esquerda clandestina, que desfilou suas bandeiras, slogans, botões, posters e adesivos em honra da aliança com os dissidentes do PDS para a conquista da cadeira presidencial. Uma cena me impressionou particularmente. Aliás, duas. Primeiro, a entrada da comissão de frente da Frente Liberal (Sarney, Aureliano e cia.) no saguão da Câmara dos Deputados, ocupado por barraquinhas onde os partidos clandestinos vendiam ou distribuíam sua propaganda: os militantes abandonaram, momentaneamente, os seus afazeres para aplaudir delirantemente o até há pouco adversário, supostamente liberal, aos gritos de "hei, hei, hei, Tancredo e Sarney". Por pouco, algum desavisado militante e esquerdista não imitou o auditório de Sílvio Santos e gritou "hei, hei, hei, Sarney é o nosso rei". A outra coisa: o pessoal do MR-8 distribuía posters com a imagem de Che Guevara e uma de suas frases famosas. Só que a frase completa ("Há que endurecer, sem perder a ternura jamais") fora cortada pela metade e só aparecia o "sem perder a ternura jamais".

Mesmo a contragosto, alinham-se, também, com Tancredo os esquerdistas independentes do PMDB, grupo capitaneado pelo deputado federal baiano Francisco Pinto e pelo ex-governador pernambucano Miguel Arraes. É claro que estão com Tancredo os moderados do PMDB e os governadores estaduais eleitos pela legenda — os primeiros, aliás, a lançarem a público o nome do então governador de Minas, quando ainda não estava esgotada a luta pelas diretas-já.

A direita, digamos, civilizada, fecha igualmente com o candidato da coligação Frente-PMDB. Aí, entra um leque numeroso de personalidades e organizações, que vão do tradicional O Estado de S. Paulo até o ex-governador baiano Antônio Carlos Magalhães, que só um esforço de tolerância permite colocar na lista de "direita civilizada". Banqueiros (Olavo Setubal, por exemplo) e empresários (inúmeros) fecham o circuito.

Quem vai governar com Tancredo?

Na verdade, das figuras notáveis da política nacional, rara é aquela que não apóie a candidatura Tancredo Neves. Mesmo o governador Leonel Brizola, com todas as reticências e a promessa de cair na oposição no dia seguinte, admite votar em Tancredo. Correndo por fora, mesmo, só o PT.

A listagem dos apoios a Tancredo é, portanto, extremamente fácil. Difícil é tentar adivinhar quem vai governar com ele — e, por extensão, quem realmente ganha com a sua eleição. Há, de qualquer forma, uma convicção mais ou menos generalizada nos meios políticos, inclusive os de esquerda, no sentido de que Tancredo fará a abertura democrática ampla que foi prometida pelo general João Baptista de Figueiredo, mas ficou na metade do caminho.

Se for, realmente, assim, de fato todos ganharemos com a vitória de Tancredo. O país necessita hoje, acima de tudo, de uma democracia que realmente funcione plenamente, mesmo que seja a velha e nem sempre bem-amada democracia liberal burguesa.

Para começar, há o comprometimento explícito (no programa divulgado quando da formalização da aliança Frente Liberal-PMDB) de se convocar uma Assembléia Nacional Constituinte, para elaborar uma nova Constituição. A promessa, portanto, é de começar tudo de novo e não apenas de remendar a carta vigente. Convém, entretanto, observar que, no discurso de aceitação da candidatura, no encerramento da convenção peemedebista, Tancredo não repetiu a promessa; limitou-se a falar em um poder constituinte. A diferença não é apenas semântica: uma Assembléia Nacional Constituinte, convocada especificamente para esse fim, teria a mais ampla legitimidade para mudar o ordenamento jurídico-institucional do país, o que não ocorrerá com a simples atribuição ao Congresso ordinário de poderes constituintes.

É importante saber que, na fase de negociação para a confecção do documento conjunto Frente-PMDB, os frentistas insistiram muito na expressão por um poder constituinte. Só a insistência do líder peemedebista, Freitas Nobre, com respaldo do presidente Ulysses Guimarães, venceu as resistências dos liberais.

Será preciso ver, agora, uma vez constituído o novo governo, se os liberais não voltarão à sua própria tese, ganhando os ouvidos e o coração de Tancredo. Se isso acontecer, vamos ter apenas uma meia sola insuficiente.

Ainda que prevaleça a tese mais generosa (a de convocação de urna Constituinte), ainda assim ninguém deve se iludir: ela será essencialmente conservadora, na medida em que a eleição se dará sob a égide do conservadorismo que fatalmente marcará o governo Tancredo Neves. Basta saber, para poder afirmar-se tal coisa, que o próprio candidato já confessou a sua preferência, por um nome saído do empresariado, para a vital área econômica. Há, aliás, poucas dúvidas de que Olavo Setubal, grande banqueiro, terá funções destacadas na administração Tancredo Neves.

O único obstáculo no caminho de Setubal não é de natureza política ou ideológica, mas de personalidade: Setubal é um homem de forte personalidade e Tancredo não admite primeiros-ministros.

De qualquer forma, a naturalidade com que os tancredistas aceitam a hipótese Olavo Setubal na área econômica já indica a inclinação natural do futuro governo. E a isso deve-se acrescentar o peso da Frente Liberal nos rumos do novo governo — sejam quais forem os postos administrativos a ela reservados — para se completar um quadro de fortes tintas conservadoras.

Tudo isso leva a crer que os principais ganhadores com a eleição de Tancredo serão os conservadores esclarecidos, cansados da tutela militar, de um lado, e receosos dos métodos de Paulo Salim Maluf, de outro. Para a massa de trabalhadores e marginalizados, as esperanças não são das maiores. É sintomático que o dirigente sindical Devanir Ribeiro, presidente regional do PT em São Paulo, afirme que "os liberais só são liberais até chegarem ao governo. Depois, ferram o trabalhador da mesma forma".

Para os assalariados e marginalizados, resta um duplo prêmio-consolo: se seus problemas dificilmente serão atacados a fundo no governo Tancredo, pelo menos deverão ter uma democracia plena, regime que sempre facilita as lutas das categorias não privilegiadas. E estarão livres de Paulo Salim Maluf.

Com Maluf, só a "lumpen-burguesia"

Aí é que chegamos à sinistra hipótese de que o vencedor tivesse sido o ex-governador de São Paulo. E é muito difícil apontar quem ganharia com Maluf, porque seus apoios sociais são escassos, virtualmente inexistentes, a ponto de o candidato pedessista não poder correr o risco de enfrentar os palanques, com medo dos ovos e das vaias. Talvez a melhor definição para o tipo de gente que cerca e apóia Maluf tenha sido cunhada pelo senador peemedebista Fernando Henrique Cardoso, criando uma nova categoria sociológica: "lumpen-burguesia".

De fato, os políticos que apóiam Maluf, com raras exceções, são inexpressivos, quase desconhecidos mesmo do público informado. O que é natural; Maluf teve que garimpar apoios, para vencer a convenção do PDS, entre a arraia miúda, na medida em que os grandes eleitores (os governadores pedessistas) estavam, em sua maioria, comprometidos com o ministro Mário Andreazza. Uma minoria apoiava o vice-presidente Aureliano Chaves ou o senador Marco Antônio Maciel (Roberto Magalhães e Luiz Gonzaga Mota) ou fechava unicamente com as diretas-já (Esperidião Amin). Impedido, portanto, de cortejar os caciques, Maluf trabalhou mesmo com os índios — que formam a sua clientela eleitoral.

Na área empresarial, o ex-governador cuidou de preservar os mesmos amigos de sempre: o pequeno empresariado e os empreiteiros, com os quais sempre se deu bem, desde os tempos em que era prefeito de São Paulo. Ideologicamente, o candidato do PDS é fácil de rotular: um perigoso populista de direita. Prova-o o fato de que os viúvos do general Sílvio Frota (o empedernido ex-ministro do Exército, que via comunista até no governo de que fazia parte) fecham com Maluf, bem como parlamentares notoriamente de extrema-direita, como Eduardo Galil, Jorge Arbage e Amaral Neto.

Quem ganharia, portanto, com a vitória de Maluf seria um pequeno grupo de radicais da política e de desorientados do empresariado. E, quem perderia, seria obviamente a democracia. Com Maluf no Palácio do Planalto, são remotas, para dizer o mínimo, as possibilidades de que as instituições se consolidem e se abram, como é indispensável. Há intelectuais, como o prof. Hélio Jaguaribe, que enxergam no malufismo o germe de um fascismo caboclo, opinião aceita sem muita discussão pela maioria dos políticos oposicionistas. Talvez seja um exagero, mas não é bom correr o risco de pagar para ver: o governo Maluf em São Paulo (com o episódio Freguesia do Ó incluído) é recente demais para ser esquecido.

Os deserdados estão disponíveis

O perigo é tanto maior quando se considera as condições de crise generalizada que cercaram a ascensão do novo presidente. O país está visivelmente desencantado, frustrado, irritado, sem perspectivas. Há uma massa de deserdados disponíveis para servir de campo de manobra para qualquer aventureiro ousado, como Maluf inegavelmente o é. Sabe-se, inclusive, que seu staff político havia preparado, desde já, algumas medidas de impacto para serem tomadas de saída, de modo a tentar reverter a notória impopularidade do candidato pedessista.

Há, na oposição, quem suspeite até que uma dessas medidas poderia ser, por exemplo, o rompimento com o Fundo Monetário Internacional, em um esquema previamente acertado com os grandes credores. Afinal, o Fundo nada mais é que o gerente dos países industrializados — e nada impediria que Maluf dispensasse o gerente para entender-se diretamente com os proprietários. De quebra, conseguiria um impacto popular inegável.

Parte dessas intenções populistas estava, de resto, presente no seu genérico programa de governo, anunciado ao final da convenção do PDS. Nele, Maluf prometia que ninguém empregaria mais que 20 por cento de seu salário para pagar as prestações da casa própria. Como seria operado o milagre, ele não disse, mas é fácil imaginar a euforia de uma boa camada da classe média se tivesse reduzidas as prestações do sonho que o governo militar vendeu a milhares de pessoas.

A vitória de Maluf, ademais, equivaleria à desmoralização da maior parte da classe política, cujos notáveis, com uma ou outra exceção, se engajaram na campanha Tancredo Neves. E a desmoralização da classe política — por mais críticas que se possam fazer a ela — só abre caminho para o autoritarismo. Por aí se vê que a escolha entre os dois candidatos foi bastante fácil, mas não necessariamente agradável. Com um ou outro, serão mais uma vez os conservadores que governarão o país.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Mar 1985
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