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A cara nova do movimento popular

A cara nova do movimento popular

Edison NunesI; Pedro JacobiII

ISociólogo, professor da PUC-SP e pesquisador do CEDE

IISociólogo, economista, professor da GV-SP, da PUC-SP e pesquisador do CEDEC

Quando as massas populares irrompem através de formas de protesto ilegais e, às vezes, violentas — como os saques ao comércio, quebra-quebras de meios de transporte e invasões de terras —, levanta-se uma onda de indignação de diferentes posicionamentos ideológicos e de dignos representantes da sociedade civil. Tanto os que empunham as bandeiras do direito de propriedade e da ordem como os que temem pela precária estabilidade do processo de redemocratização lamentam a desobediência dos pobres e, no limite, clamam juntos pelo mesmo remédio: a repressão. Por fim, argumentam que por trás de tais atitudes só podem estar elementos que não querem a democracia: para alguns são esquerdistas interessados em implantar um regime totalitário; para outros são saudosistas agentes de direita, à moda do Rio-Centro.

Prevalece um ponto de vista que exime as instituições — como partidos, sindicatos, aparelhos do Estado e da sociedade civil — de qual quer responsabilidade. Porém, essas formas de protesto só aparecem porque as massas populares, cuidadosamente marginalizadas por uma sociedade elitista e pelo autoritarismo do Estado, não encontram nas instituições existentes canais válidos de expressão de seus anseios e reivindicação do atendimento de suas necessidades. Se o trem atrasa e o patrão desconta no salário ou demite; se a recessão desemprega e a fome aperta; se o baixo salário não garante sequer o aluguel de um barraco de favela, a quem pode recorrer o trabalhador pobre se não a ele mesmo? E de que meios efetivos de participação dispõe a não ser das formas de atuação direta, da desobediência e da violência?

Quebra-quebras

Quebra-quebras e outras formas semelhantes de protesto popular são movimentos espontâneos e violentos, através dos quais setores populares reagem imediatamente à humilhação e desgaste físico causados pela precariedade de serviços, como de transportes, ou pela omissão das autoridades em ouvir e responder aos seus reclamos.

Os quebras mais freqüentes se dão nos trens e ônibus que servem os bairros periféricos das metrópoles brasileiras. Contamos nada menos de 71 quebra-quebras nos trens suburbanos de São Paulo e Rio, nos últimos dez anos, muitas vezes atingindo várias composições e estações, que são totalmente destruídas e incendiadas. Assim, a onda de quebras, iniciada em 1974, não se interrompeu. Porém, podemos caracterizá-la em dois momentos distintos: 1) com um predomínio de ações no Rio, o primeiro momento se estende até 1976, quando o governo federal responde às depredações com um plano de emergência e verbas consideráveis para a melhoria dos trens. Nos dois anos seguintes se registram apenas duas ocorrências; 2) em 1979 os quebras são retomados com mais intensidade em São Paulo. Ao que tudo indica, este quadro tende a se agravar, já que apenas nos quatro primeiros meses de 1984 já se atingiu a mesma quantidade do ano anterior; sete depredações.

Durante os anos de 1977 e 1978, período em que arrefeceu a onda de quebras em trens, assistimos, em São Paulo e Belo Horizonte, a uma série de depredações em ônibus urbanos. Os motivos são sempre os mesmos: a superlotação, os constantes atrasos e os aumentos de tarifas.

A partir de 1978, começam a acontecer quebra-quebras que se diferenciam dos anteriores por surgirem no bojo ou na seqüência de movimentos organizados. Entre 1981 e 1983 ocorreu uma onda de depredações em Salvador (onde 400 veículos foram atingidos), em São Luís, João Pessoa, Rio de Janeiro, São Paulo e Sumaré (SP). Essa onda de protesto se seguiu a manifestações organizadas pelo Movimento Contra a Carestia.

Apesar da diversificação dos alvos das depredações, a maioria dos quebra-quebras está associada, direta ou indiretamente, à questão do trabalho. Os que ocorreram em trens e ônibus envolvem o trabalhador que está se dirigindo para o trabalho ou que volta para casa. Neste caso, os freqüentes atrasos representam horas de repouso roubadas ou horas de trabalho perdidas, o que significa perda de salário e, talvez, do próprio emprego.

Embora sejam espontâneos, os quebra-quebras raramente são o primeiro recurso utilizado pelas classes populares, só aparecendo quando outros procedimentos revelam-se ineficazes ou quando não se vê outra alternativa além da passividade. Isto fica mais claro se observarmos os quebras que se seguiram à recusa das autoridades mineiras em prosseguir com o diálogo durante a greve dos trabalhadores da construção civil em Belo Horizonte. Melhor ainda é o exemplo dos nove quebras ocorridos em canteiros de obras do Metrô carioca, que só eclodiram após tentativas frustradas dos operários no sentido de resolver suas demandas através dos órgãos responsáveis do Ministério do Trabalho e do próprio sindicato, e que resultaram na demissão sumária dos reivindicantes. Assim, tais ações substituem temporária e ocasionalmente a falta de canais institucionais eficazes para a população expressar suas necessidades.

Invasões

Nos últimos anos, algumas das metrópoles brasileiras tornaram-se palco de invasões organizadas de terrenos urbanos e conjuntos habitacionais desocupados. Nos últimos três anos, 9358 famílias participaram de 65 invasões de terras públicas e particulares no município de São Paulo totalizando mais de 60 mil pessoas. Somente no primeiro trimestre de 1984 já se verificavam nove ocupações, algumas delas envolvendo até 1 500 famílias. No mesmo período foram também ocupados alguns conjuntos habitacionais na Grande São Paulo e no interior do Estado.

O quadro não mudou muito no Rio de Janeiro. No primeiro semestre de 1983 ocorreram 12 invasões, cinco das quais poucas semanas após a posse do novo governador. Não se trata de um fenômeno exclusivo destas duas cidades. Em João Pessoa, Vitória, Fortaleza, Salvador, Recife, Porto Alegre e Manaus também ocorreram invasões. Somente nesta última capital, houve vinte focos, envolvendo 5 000 pessoas, apenas em março daquele ano.

É possível, no entanto, se verificar a concentração deste fenômeno em São Paulo e no Rio. Sem dúvida, representaram as primeiras ações diretas dos setores mais afetados pela recessão. Os invasores são hoje, em sua grande maioria, desempregados e, portanto, sem recursos para conseguir a moradia no mercado. Estão excluídos até da possibilidade de adquirir um lote clandestino onde construir sua casa. Segundo a Secretaria da Família e do Bem-Estar, de São Paulo, em algumas das invasões recentes aproximadamente 4/5 das pessoas que delas tomaram parte saíram de casas e cômodos alugados — cortiços — que não conseguiam pagar. Os aluguéis chegavam, nesses casos, a representar freqüentemente mais de 80% da renda familiar.

Os que são expulsos de suas moradias não encontram formas institucionais de resolver o problema habitacional, restando-lhes a alternativa da favela. Aliás, cálculos realizados mesmo antes de a crise ter assumido as proporções monstruosas de hoje indicavam que apenas 5% das pessoas à procura de moradia ganhavam o suficiente para poder usufruir de habitações financiadas pelo BNH.

Porém, diferentemente do que ocorre normalmente na constituição de favelas, em que a ocupação da terra urbana se dá de forma silenciada e lenta, os invasores optam por uma ação coletiva e organizada como forma de pressionar o poder público na conquista do direito à moradia.

A invasão se apresenta como um ato público pelo qual se afirma o caráter legítimo da luta pela posse da terra. Ela assume a contradição entre a falta de alternativas institucionais e a ilegalidade das soluções possíveis, com a necessária conivência das autoridades. O conflito se evidencia, colocando em discussão os limites do direito de propriedade quando contrastados com as necessidades básicas dos cidadãos. Com esse caráter político e de forte conteúdo social, freqüentemente recebe o apoio da Igreja e seus agentes pastorais, de associações de moradores e setores de partidos políticos.

Saques

No segundo semestre de 1983, Rio de Janeiro e São Paulo foram tomados por uma onda de saques a estabelecimentos comerciais nas suas áreas periféricas. Estas ações foram mais intensas a partir do mês de setembro, quando chegou a haver 13 saques em apenas um dia, em São Paulo, e onde se somaram mais de 140 no período de três meses. No mesmo mês, no Rio, nos primeiros doze dias após o início das ações foram saqueados 92 estabelecimentos comerciais.

A grande maioria dos saques se registrou nas áreas mais pobres, onde foram atingidos não só estabelecimentos comerciais, como também escolas e creches foram invadidas em busca dos alimentos destinados à merenda escolar.

Os saques foram realizados por grupos de 20 a 30 pessoas, o que torna difícil traçar o perfil social dos saqueadores. A imprensa caracteriza-os como favelados e desempregados, na sua maioria mulheres e crianças. Os produtos de que se apropriam são alimentos que compõem a cesta básica.

Como nas invasões, essas ações se revestem de um profundo conteúdo simbólico que associa o saque à legitimidade universal da luta pela sobrevivência. Uma parte considerável deles foi realizada na presença dos proprietários dos estabelecimentos invadidos, à luz do dia, como que a afirmar o direito ao alimento sobre o direito da propriedade, conteúdo reforçado pela presença de mulheres com seus filhos.

A reação dos proprietários logo se fez sentir através de uma crescente pressão sobre as autoridades, exigindo o pronto restabelecimento da ordem. Ao mesmo tempo, armaram-se para a eventualidade de um possível enfrentamento com saqueadores. Cada vez mais outros setores reforçaram a reivindicação dos proprietários, obrigando a polícia a implantar uma vasta operação anti-saque.

* * *

Os dados que apresentamos são suficientes para demonstrar que, especialmente a partir de 1983, vivemos uma intensa agitação social como resposta popular à crise. E é precisamente onde a crise é mais aguda — nas metrópoles mais industrializadas — que os movimentos populares se desenvolvem com maior intensidade.

Na medida em que aumenta a participação nesses movimentos, é preciso não esquecer, também ficam mais fortes as contradições entre os próprios setores populares. Moradores de bairros periféricos de São Paulo, por exemplo, se organizam para impedir a invasão de terrenos próximos. Encontramos também bairros se organizando para linchamentos ou contratando pistoleiros para fazer justiça.

De qualquer forma, todas essas mobilizações denunciam a total ineficácia das instituições existentes para garantir as necessidades e a segurança da população, a qual, por isso, muitas vezes volta as costas para o Estado na busca de soluções próprias. Num país em que sempre se buscou soluções no Estado, isso aparece como novidade. Mais que isso, aponta para o contraste entre a necessidade de transformações institucionais que contemplam os anseios populares e a extrema lentidão com que elas são empreendidas pelos órgãos ditos competentes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1984
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