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O crime pelo rádio

O crime pelo rádio

José Wilson

Jornalista

Diariamente, milhões de pessoas sintonizam seus rádios para ouvir os programas de crimes dramatizados.

A primeira pergunta que surge é: que estranha disposição move as pessoas a se interessarem tanto pela narração minuciosa de crimes? A pergunta principal, entretanto, fica no ar: por que esses programas chamam a atenção apenas para os pequenos crimes, frutos da miséria e da marginalização, e escondem os crimes, cada vez mais ousados, dos figurões corruptos?

Se você ligasse o rádio, numa manhã de abril deste ano, na Rádio Globo de São Paulo, a segunda emissora mais potente do Estado, capaz de atingir até o interior da Amazônia, iria ouvir, às 9 horas, o Gil Gomes descrevendo como o sangue corria de um buraco de bala na cabeça de um homem que andava cambaleando pelas ruas, após ser assaltado por um assassino frio. O homem ia desesperado e só, até ser socorrido por dois indivíduos, que o levaram a um pronto-socorro. E Gil Gomes completava a história dizendo que o carro dos dois era roubado. Eram assaltantes e tinham acabado de cometer um crime quando socorreram o homem ferido por um colega desconhecido.

O rádio é ouvido, principalmente, por mulheres, as donas-de-casa. O horário de maior audiência é entre 7 e 11 horas, quando estão mais presas aos serviços de arrumação da casa. E é justamente nesse período, de quatro horas, que as emissoras vêm sendo invadidas por uma nova onda: os programas policiais. Em todo o Brasil esses programas existem, variando o nome e o jeito de apresentação, mas com uma característica comum a todos: falar de uma forma sensacional e assustadora dos crimes mais terríveis do dia-a-dia, deixando claro que são coisas que podem acontecer a qualquer um.

Embora o Rio de Janeiro também tenha narrações de crimes em programas de grande audiência, como o de Cidinha Campos, na Super Rádio Tupi, a grande força desses "contadores de casos terríveis" está mesmo em São Paulo. Os paulistas contam com narradores especializados, que se transformam em astros, de salários milionários como os grandes nomes da TV e do futebol. Uma emissora chega a pagar cerca de 20 milhões de cruzeiros por mês para um Afanásio Jazadji ou um Gil Gomes. Estes dois são os grandes astros que, juntos, falam todas as manhãs com mais de 2 milhões de ouvintes, só em São Paulo.

Assim, na mesma hora do programa descrito no começo, virando um pouco o botão do rádio, eis Wagner Montes, na Rádio Record, ganhando fama no mesmo estilo. Policiais contam como um tarado, morador em um barraco da zona Leste, raptou uma mocinha de 15 anos e a manteve presa em casa por quase um ano. Os policiais até descrevem os atos sexuais que o homem praticava com a menina. Aí vem a mãe da moça e também fala no programa e, com todo esse clima de emoção, Wagner Montes aproveita para pedir aos policiais que espanquem o doente mental. E sugere que o melhor remédio é matar gente assim.

E às mesmas 9 horas, da mesma manhã de abril, a Rádio Capital de São Paulo apresenta a sua grande conquista: tomado da Rádio Globo depois de uma disputa na Justiça por causa do contrato, ali está Afanásio Jazadji, contando principalmente pequenos crimes que ocorrem nas favelas, assaltos de bandidos "pés-de-chinelo", contra os quais exige torturas e morte. O ponto alto é quando Afanásio aproveita a gravação de uma entrevista feita por um repórter com o criminoso ou suspeito e finge conversar com ele, chamando-o de patife, canalha, ameaçando-o. Em sua volta ao rádio, depois de menos de um mês de ausência, foi saudado por numerosos policiais que conversaram ao vivo com ele.

Juntando Gil Gomes, Wagner Montes e Afanásio Jazadji, a Globo (1º lugar), a Record (2º lugar) e a Capital (chegando ao 3º) ficam com mais da metade dos ouvintes de rádio da Grande São Paulo, no principal horário, das 7 às 10 e meia. E é bom notar que a Record é a emissora paulista que mais longe alcança, cobrindo todo o Brasil e sendo ouvida até em outros países, sendo seguida de perto pela Globo, a segunda mais forte. As manhãs do rádio paulista são banhadas de sangue, terror e ódio.

O pavor da população é explorado

Cidade Ademar, Vila Missionária e Jardim Miriam, onde favelas, cortiços e casinhas miúdas e mal construídas dominam a paisagem de morros e barrancos, são bairros de São Paulo onde o desemprego e a marginalização cultivam o crime. Pelo menos uma pessoa morre assassinada por dia na área. As ruelas escuras viram cenários de tiroteios todas as noites. Barracos e casas são invadidos ostensivamente, diante de pessoas caladas e amedrontadas que mal se atrevem a sair de casa ou deixar uma porta ou janela aberta depois das oito da noite.

É lógico que numa situação dessas, que se repete em outros bairros da periferia, programas como os mencionados servem para duas coisas: deixar as mulheres apavoradas e incentivar a população a participar de operações de assassinato a criminosos que agem na vizinhança ou pelo menos se calar diante dos grupos que vêm se formando para caçar os bandidos. Acontece que os grupos de jagunços matam bandidos perigosos, trombadinhas, autores de pequenos furtos e até simples bêbados arruaceiros ou pessoas que ficam marcadas por um dia terem ido parar na cadeia, não importa por qual razão. O mais grave é que desses grupos organizados fazem parte conhecidos assassinos, às vezes ao lado de policiais.

Os programas de rádio feitos por Afanásio e companhia incentivam, claramente, a ação desses grupos, promovendo a atos de heroísmo os linchamentos e fuzilamentos que esses "juizes por conta própria" executam. Eles são favoráveis a essa pena de morte ampla, aplicada a qualquer um que não esteja completamente dentro da lei e da ordem que os jagunços obrigam a cumprir.

Afanásio, Gil Gomes e Wagner Montes são três pequenos milionários e não é à toa que os criminosos que eles perseguem são os bandidos pobres. Vivem em casarões com piscinas e tratam todos os dias de casos que se passam na periferia. Nos seus programas não se investigam os piores crimes do Brasil, como o derramamento de toneladas de veneno no rio São Francisco por uma empresa, não falam dos assassinatos diários de lavradores e índios que acontecem nas terras do Grupo Sílvio Santos, BAMERINDUS, LIQUIGÁS e outros. Eles não dizem nada sobre assaltos fabulosos como o da Coroa-Brastel, Delfín e CAPEMI, ou assassinatos como o do "Caso Baumgarten", que envolvem ministros da República, parentes e amigos.

Esses "narradores de crimes" que trabalham no rádio têm uma missão que é a seguinte: chamar a atenção para os pequenos crimes que são fruto da miséria e marginalização e esconder os crimes cada vez mais bárbaros cometidos pelos exploradores do povo e corruptos. É para fazer de conta que o perigo é aquele rapaz que rouba fruta na quitanda e não o bandidão engravatado que passa a mão em bilhões e, em nome de sua honra, mata ou manda espancar. Programas como o de Afanásio Jazadji e Gil Gomes tentam dar a impressão de que o crime que existe no Brasil é aquele da arraia-miúda que, no final das contas, é apenas conseqüência do grande crime de uma poderosa quadrilha "legalizada" que se apossou do país e que já matou, direta ou indiretamente, milhões de brasileiros. Pergunte ao Afanásio, ao Gil Gomes ou ao Wagner Montes o que eles acham dos "Esquadrões da Morte" que assassinaram quase duas mil pessoas, entre criminosos, suspeitos e inocentes. Aliás, nem precisa perguntar, pois em seus programas eles fazem questão de declarar que são a favor dessa prática e devem, mesmo, sentir muitas saudades dos tempos de glória do delegado Fleury.

A seleção de notícias

Quando, no dia 2 de abril, uma assembléia de mais de cem moradores do Jardim Guanhambu, na zona Sul, decidiu liquidar um ex-detento que quebrava bares do bairro há três dias, logo após sua saída da prisão, foi uma excelente notícia para esses programas. Era a população acabando com um criminoso.

Mas quando, dias depois, se ficou sabendo que o assassinado era um capanga contratado pelos comerciantes locais — que foi parar na cadeia por causa de uma das mortes que tinha executado a mando dos comerciantes e que, depois de ser solto, estava começando a cumprir uma promessa de vingança contra os patrões que o tinham deixado na cadeia — o caso já não merecia a emoção do apresentador de nenhum programa. Principalmente quando se soube que, apesar de mais de cem moradores terem apoiado o linchamento do ex-detento, tudo foi feito pelos mesmos comerciantes que tinham traído e abandonado seu ex-jagunço na prisão.

Por ser questão de problemas internos de uma dessas quadrilhas que os comerciantes da periferia vêm organizando, o crime deixou de ser assunto bom para divulgação. Muito pelo contrário.

Um outro exemplo bem sério aconteceu em 1979, quando o operário Santo Dias da Silva foi baleado durante um piquete na porta de uma fábrica de Santo Amaro, na greve dos metalúrgicos, em fins de outubro. Gil Gomes, dias seguidos, berrou contra os grevistas e deu uma versão incrível: o criminoso era um espanhol, amigo pessoal de Santo Dias! Isso, quando todos os presentes tinham visto que quem atirava era a polícia, cuja violência naqueles dias chegava a invadir uma igreja, espancar padres que davam abrigo aos grevistas e perseguir operários a tiros e bombas de gás.

O interessante nessa história é que a versão dada por Gil Gomes terminou sendo usada pelo respeitável escritor de peças Gianfrancesco Guarnieri, em seu filmes Eles Não Usam Black-tie, e pela Justiça Militar no processo que escandalosamente absolveu o policial que foi visto disparando contra Santo Dias. Isso é que é serviço.

O principal problema é que Gil Gomes, Afanásio e Wagner Montes, ao louvar os autores de linchamentos e fuzilamentos contra bandidos e se dirigir a policiais, pedindo que arranquem unhas de suspeitos para que confessem crimes, que apliquem choques, afogamentos e pau-de-arara neles, estão fazendo propaganda da violência.

E a polícia? E a justiça?

O jurista Hélio Bicudo, que durante anos lutou para levar os integrantes do Esquadrão da Morte ao banco dos réus, diz que eles estão cometendo "apologia pública ao crime e incitamento a violência", infração prevista no Código Civil Brasileiro. Hélio Bicudo lembra que, diante do crescimento dessa propaganda criminosa através do rádio, está na hora de exigirmos que as autoridades cumpram seu papel de fazer obedecer a lei. Ele informa que basta a Procuradoria Geral de Justiça do Estado acionar a lei para tirar do ar esse crime diário, que enche a cabeça principalmente das donas-de-casa dos bairros da periferia, seu principal público.

Também seria de se esperar que a atual administração de São Paulo, democraticamente eleita, tomasse alguma providência. Mas a Procuradoria de Justiça do Estado não fala sobre isso e muito menos a Secretaria de Segurança. O que a gente vê é que aumentam as mortes provocadas pelas armas da polícia. Em 1982, a polícia matou 286 pessoas (era o tempo da administração de Maluf); em 83, o primeiro ano de Montoro, a polícia fez 328 mortos. Nos primeiros três meses deste ano, matou 103 e, se continuar trabalhando assim, vai fechar 1984, outra vez, com mais de 300 mortes em sua conta.

Como os programas de Gil Gomes e companhia são os maiores defensores de toda e qualquer morte executada pela polícia, com toda a audiência que eles possuem, fica difícil imaginar qualquer autoridade do Estado tomando alguma providência contra esses famosos apresentadores que são aliados no combate mais violento ao crime.

O certo é que os apresentadores de rádio que comentam e narram crimes têm uma audiência cada vez maior e sabidamente se dirigem aos moradores da periferia, onde de fato são tidos como heróis. Você pode ver filas enormes na porta de uma emissora, gente pobre e sem esperança, levando seus pequenos problemas, as brigas com parentes ou vizinhos, para contar a eles e pedir que resolvam, como se fossem autoridades. Um dia, na porta da Globo, um homem de roupa esfarrapada carregava um papelão onde tinha escrito: "Afanásio, eu não vou sair daqui enquanto não falar com você". E não saiu mesmo.

Tudo isso acontece porque a terrível situação econômica em que o povo brasileiro foi jogado, somada à falta de informação e organização, à falta de um sistema educacional e policial corretos, permitem que a população viva sob a violência e o medo. Esses programas exploram essa situação para ganhar audiência e muito dinheiro que os patrocinadores pagam satisfeitos. São fábricas de remédios que usam a voz do "herói" apresentador para cometer outro crime: vender os remédios sem receita. Doentes de fígado, intestinos, nervos e cansaço, é coisa que não falta entre seus mal-nutridos ouvintes. Como esses ouvintes não têm tratamento médico, os remédios vagabundos e baratos que Afanásio e companhia anunciam também são uma esperança. Uma mão lava a outra.

Enfim, os programas não são informativos, porque pegam um assunto sem mostrá-lo por inteiro, usando só a parte sensacionalista; brincam com a emoção dos ouvintes; são um crime. Mas dão muito dinheiro, contam com amigos importantes. Vão crescer e se multiplicar, até que o Brasil comece a mudar de verdade. Aí acaba essa brincadeira de mau gosto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1984
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