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Os computadores invadem a escola

Os computadores invadem a escola

Beatriz Bitelman

Pedagoga e membro do Núcleo de Informática Aplicada á Educação da UNICAMP

Você poria seu filho numa escola porque ela oferece computadores?

Você deixaria de pôr seu filho numa escola porque ela deixa de ter computadores?

Minha primeira reação às inúmeras faixas e cartazes anunciando cursos de computação em escolas é geralmente negativa, de aversão mesmo.

Qual será o papel que essas máquinas desconhecidas desempenham na escola? O que lhes cabe do ponto de vista educacional? Será que é vantajoso o uso de computadores para a aquisição de conhecimentos, sejam eles conceitos mais genéricos ou até mesmo simples informações?

Essas são algumas das questões que temos nos colocado e que temos ouvido da maioria das pessoas que já se interessaram pelo assunto. Outra dúvida que considero muito importante e que deve ser discutiva, é se vale a pena, no Brasil da grande dívida, da grande miséria, investir nessa área tão sofisticada.

Em geral, as escolas que dispõem de computadores estão dando preferência ao ensino da linguagem BASIC, considerada pelos especialistas em computação como o bê-a-bá, ou seja, os primeiros e mais fáceis passos na aprendizagem da programação.

Pode ser que dentre as linguagens de computação (COBOL, FORTRAN, PASCAL, ASSEMBLER etc.), BASIC seja a mais fácil. Isso não garante que ela seja fácil em geral.

BASIC apresenta uma série de comandos em inglês, uma sintaxe própria, adequada à língua inglesa, e uma estrutura bastante rígida. Os professores de BASIC em geral ensinam os comandos e logo a seguir passam aos alunos, muitas vezes perdidos e aturdidos, alguns programas-padrão, como por exemplo construir um sorteio de loteria, uma tabuada ou calcular um número fatorial.

Depois de os alunos quebrarem a cabeça por algum tempo, é dada a resposta, ou a fórmula mágica para a resolução do problema.

Eu mesma já passei pela experiência de ter que fazer, num curso, um programa que usasse a fórmula da "seqüência de Fibonacci" (!!!) sem que eu nem soubesse para que servia, muito menos qual o processo de raciocínio gerador da dita fórmula.

Em geral, os professores desses cursos são pessoas que conhecem muito bem programação mas cuja didática chega a ser, às vezes, lamentável. Eles, na sua maioria, não percebem, não compreendem as dificuldades de seus alunos. Quando procuram esclarecer dúvidas, repetem o que disseram antes, da mesma maneira, às vezes com as mesmas palavras. É o mesmo que explicar algo repetidas vezes num bom português a um alemão que não conhece nossa língua. O meio de transmitir-lhe informações certamente não é o português, mesmo que este seja castiço e falado pausamente, alto e em bom som.

Linguagem LOGO, paixão à primeira vista

Toda a sabedoria, a ciência nesse caso, está com o professor. Ele é o dono da verdade, das respostas certas. Ele, em geral, propõe um exercício, com resultado, que passa a ser a meta a ser alcançada: chegar lá, onde o professor espera. O aluno só tem de ir se encaixando, se amoldando.

Gostaria agora de opor, ou comparar ao BASIC, a linguagem LOGO, pela qual me apaixonei à primeira vista.

O principal criador de LOGO, Seymour Papert, é um matemático, ligado ao MIT (Massachusetts Institute of Technology), uma das universidades americanas mais famosas por seu alto nível educacional, tecnológico e, é claro, seus recursos (dinheiro para pesquisa, equipamentos excelentes e arrojados professores etc.).

Papert, inquieto matemático, sempre se interessou pelos problemas da aprendizagem da matemática e a partir daí da aprendizagem em geral. Algumas de suas questões eram: por que tantas pessoas não aprendem bem matemática? O gostar e o aprender têm relação? O que facilita o aprendizado de uma disciplina e dificulta o de outras?

Papert passou alguns anos trabalhando com Piaget, talvez o primeiro educador a tratar com tanta profundidade os problemas de ensino-aprendizagem através de tantas obras que hoje nos norteiam por sua ousadia, modernidade e profundidade.

Piaget afirmava que um dos aspectos mais importante da Educação é o aprender a aprender, isto é, uma reflexão sobre o aprender, sobre o processo de aprendizagem. Quando simplesmente dizemos a um aluno que a soma dos ângulos de um quadrado é igual a 360º, e até demonstramos isso no quadro-negro, estamos passando à criança um conceito que temos e nos é claro, sem, no entanto, que ela "vivencie" ou chegue a essa conclusão através de sua própria experiência.

Essa vivência vai ao encontro de um outro ponto fundamental da educação piagetiana, a aprendizagem pela descoberta. Não se trata aqui de levar o aluno a descobrir aquilo que programamos para ser descoberto, mas permitir-lhe pesquisar, abrir-lhe espaço para que ele vá na direção que quiser, que achar mais interessante.

Essa postura diante da aprendizagem é geralmente aceita como ideal pelos professores, que não vêem, no entanto, uma forma efetiva de conciliá-la com o trabalho escolar dentro da classe. É necessário encontrar uma outra forma de atuação, algo que favoreça esse trabalho individual, independente do controle do professor, para que o aluno possa avançar e ousar em direção a novas propostas.

Uma tartaruga recebe as ordens

LOGO pode ser uma resposta a essa necessidade. Uma de suas características mais interessantes é a possibilidade de usar recursos gráficos. Aparece na tela do computador um triângulo que representa uma tartaruga e que receberá comandos para executar ordens. Pode-se dizer a ela que ande 20 passos para a frente através do comando PARAFRENTE 20. Da mesma forma, ela aceita PARATRÁS, PARADIREITA e PARAESQUERDA. Esses dois últimos se referem ao giro da tartaruga e são seguidos de um número que indica quantos graus deve virar a tartaruga. Exemplo: PARADIREITA 90, PARAESQUERDA 40 etc.

Os comandos são em português; a instrução é clara e tem a ver com o nosso dia-a-dia, ou seja, tem um significado claro para todos. O aluno vai solicitando a ajuda do professor à medida que seu projeto avança. Os comandos vão sendo introduzidos pouco a pouco. As dúvidas são discutidas em conjunto. Na hora de fazer um círculo, o professor pode sugerir ao aluno que ande em círculo e observe o que se passa: anda um pouco, vira um pouco, anda um pouco, vira um pouco. O princípio do círculo aí está, bastará agora definir, através de várias tentativas, quanto é esse pouco.

Bem se vê que o papel do professor deixa de ser o de quem entrega tudo pronto e mastigado aos alunos. Ele é um orientador, alguém que já deve conhecer vários comandos LOGO. Mas sua aprendizagem foi semelhante à da criança, através de descobertas. É possível caminhar sozinho e é o que geralmente ocorre. É a criança quem elabora seu próprio projeto e cada uma propõe sua maneira de caminhar. Não há uma única forma correta. Os erros que aparecem sempre são facilmente corrigíveis e perdem seu peso negativo: uma solução pode ficar evidente ao nos defrontarmos com um erro.

Um exemplo clássico em LOGO é a construção de uma casa. Esquematicamente, um triângulo (o telhado) sobre um quadrado.

Define-se o quadrado, depois o triângulo, e o próximo passo é colocar um sobre o outro.

Esse pequeno exercício envolve várias atividades mentais que talvez não pudessem estar reunidas em outra situação educacional, como o uso de algumas noções de direção, posição, seqüência etc. O aluno vai elaborando sua trajetória, fazendo suas tentativas, suas experiências até às vezes construir todo um sistema próprio, e isso sempre revendo, reavaliando e aperfeiçoando o que já foi feito. É uma forma de pensar sobre o pensar, de usar seu referencial corporal para resolver suas dificuldades. O que ele aprende faz sentido, ou melhor, tem sentido. É possível então criar um certo vínculo afetivo com seu trabalho, que facilita e reforça a aprendizagem.

Usar computadores na escola sob essa perspectiva tem, então, a meu ver, muito sentido. Fica viável propiciar ás crianças oportunidades especiais de aprendizagem. É claro que o computador não substitui a experiência de ver crescer um pé de feijão, de uma visita ao planetário ou o prazer de uma boa leitura. A questão não é essa. Mas sim que podemos dispor de mais uma ferramenta, de mais uma alternativa, talvez mais adequada que outras em determinada situação.

Além disso, não creio que a presença de computadores nas escolas seja um modismo passageiro nem mais uma daquelas curiosidades, mas algo que pode revolucionar o ensino, de forma profunda. Só o fato de o professor ter de se posicionar de uma nova maneira, não mais como o ditador, mas como o orientador da aprendizagem, pode provocar significativas mudanças na sua relação com o aluno e o ensino.

A tentativa que o professor faz para utilizar LOGO na didática de sua disciplina já o leva a reexaminar seu conteúdo, a repensar em sua forma. Para colocá-lo na linguagem do computador através de programas, sua formulação e sua proposta devem ser claras, simples e objetivas.

Presenciei há uns meses uma professora de matemática tentando ensinar ao computador algo aparentemente banal: elevar um número a uma potência, por exemplo, 72. Ela teve de "dissecar" o problema até chegar a seu ponto mais elementar, ao conceito fundamental da operação, e expressá-lo primeiro para si mesma, de forma clara.

Avanços na relação ensino-aprendizagem

Houve neste caso a chance e a necessidade de esta professora examinar o problema detalhadamente, pensar em seus pontos críticos, como a multiplicação de um número por si mesmo repetidas vezes, e elaborar uma forma de colocar todas essas informações na sintaxe LOGO. Talvez esse exercício permita ao professor ver que a aprendizagem pode ser significativa, tanto para o aluno como para si mesmo. Isso já permitiria algum avanço na relação ensino-aprendizagem.

Se tomarmos outros problemas como exemplo, veremos que a oportunidade de examiná-los sob essa perspectiva é algo muito rico e valioso.

Vejamos então o problema à luz da conjuntura econômica do país. É viável pensar no uso de computadores na escola brasileira hoje? Neste momento refiro-me à escola pública, uma vez que as escolas particulares já ultrapassaram a fase da dúvida e quem ainda não tem computadores está tentando ter.

Uma crítica muito comum é a seguinte: se ainda não conseguimos resolver o problema da merenda escolar, do salário dos professores e muitas vezes nem há telhas nas escolas, como pensar em tal investimento?

Ninguém duvida da penúria da escola brasileira. Esses problemas são básicos e é importante que eles sejam examinados, pensados e solucionados, com a maior urgência, por toda a comunidade educacional.

Será, entretanto, necessário que todos os outros projetos de melhoria do ensino fiquem postos de lado? A pesquisa educacional deve ser suspensa ou retardada?

A escola não pode ficar para trás

A educação brasileira padece atualmente de vários males; a falta de verba é sem dúvida um dos maiores. Entretanto, dispor de verba é condição necessária mas não suficiente. Se não houver um verdadeiro esforço de transformação da estrutura escolar, dos métodos de ensino e até da filosofia educacional, não adianta injetar mais recursos no sistema. É preciso mantê-lo aberto às iniciativas que possam de alguma forma aperfeiçoá-lo em qualquer dos níveis. O ideal seria que todos os problemas fossem atacados de uma só vez: mais verbas para as escolas, professores com melhor formação tendo à disposição métodos e técnicas de ensino eficientes. Não se deve poupar esforços para atingir esse ideal, desenvolver cada força. Como, na realidade, isso não ocorre, acho imprescindível continuar e até aumentar os projetos de pesquisa que visem à melhoria do ensino, sob qualquer ângulo. Parece-me ingênuo interromper o que está sendo feito, ou fechar os olhos às novas possibilidades até que todas as escolas estejam em ótimas condições ou que todos os professores recebam salários satisfatórios.

Se os educadores deixarem passar mais uma vez a oportunidade de trazerem para dentro da escola pública um instrumento que pode significar uma melhoria no nível de ensino, estarão reforçando a idéia de que a escola nunca é revolucionária, mas está sempre a reboque de todas as evoluções e transformações sociais, em geral com alguns anos de atraso.

O papel que a escola desempenha junto à população de menor poder aquisitivo é muito mais importante do que para a clientela de renda mais alta. Talvez a escola seja a única oportunidade (e ainda assim precária) de algum acesso a esse tipo de informação. Talvez seja de competência da escola evitar que o fosso entre o ensino privado e o público não aumente ainda mais, para que a defasagem não seja ainda mais acentuada.

Não me parece que a questão seja maniqueísta a ponto de opor computador a merenda escolar ou a salários mais justos. O problema é mais sutil. Cabe ao menos alguma abertura para examinar o assunto, permitindo que as pesquisas sejam realizadas com a menor parcela possível de preconceitos. Talvez estejamos diante de uma alternativa brilhante e poderosa, e não temos o direito de desperdiçar essa chance.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1985
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