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Constituição: o caso de Portugal

PESQUISA

Constituição: o caso de Portugal

Thomas Charles Burneau

Professor da Universidade de Macgill (Canadá), PhD pela Universidade de Berkeley, em Ciência Política

Thomas Bruneau descreve aqui uma experiência de debate e implementação de uma Constituinte, em Portugal. Sua elaboração em situação, que acaba se mostrando diferente daquela em que se dá sua vigência, acaba implicando a necessidade de substanciais mudanças.

No decorrer de 1986 e 1987, o foco dos debates políticos no Brasil estará cada vez mais centralizado na Assembléia Constituinte e na futura Constituição em si, com os partidos políticos e uma incrível variedade de organizações e grupos definindo suas posições sobre o conteúdo deste documento fundamental. Talvez haja algo a se aprender com a experiência de Portugal no processo político de realização da Constituição, durante a transição da ditadura para a democracia. Existem, é claro, diferenças básicas nas transições dos dois países: em Portugal, ela foi abrupta e resultou num processo revolucionário, enquanto que, no Brasil, ela se iniciou no interior do regime militar e tem si do gradual. Neste artigo, darei ênfase às lições particulares da experiência portuguesa referentes ao conteúdo programático da Constituição de 1976, à importância de diferentes contextos para sua implementação e, ainda, às referentes à natureza altamente política de sua formulação em 1975 e 1976 e sua revisão em 1982.

As eleições para a Assembléia Constituinte realizadas em 25 de abril de 1975 representam um divisor de águas no processo político português. Realizaram-se para escolher os deputados que formulariam uma nova Constituição que substituísse a Constituição do Estado Novo, a qual havia sido formulada por Antonio de Oliveira Salazar em 1933, tendo fornecido o suporte legal para esse regime corporativista e antidemocrático, ao longo de mais de quarenta anos. Não se cogitava de simplesmente alterar a Constituição de 1933; ela tinha que ser inteiramente substituída por um novo documento que refletisse as mudanças com a revolução e o equilíbrio das forças políticas após o 25 de abril de 1974. Com a queda do antigo regime, após o golpe do Movimento das Forças Armadas (MFA), a Constituição tornou-se anacrônica e irrelevante.

As eleições tornavam-se também extremamente importantes pelo simples fato de estarem sendo realizadas e por seus resultados. No período entre 25 de abril de 1974 e a data das eleições, exatamente um ano depois, Portugal viveu um processo de radicalização e mobilização, onde o Partido Comunista Português emergiu como um agente crucial com grande influência sobre os membros do MFA que detinham então o poder, principalmente o primeiro-ministro Vasco Gonçalves. No início de 1975, não havia certeza de que as eleições fossem se realizar e, caso elas não ocorressem, havia a probabilidade de uma crescente polarização entre a esquerda e a direita, até mesmo de uma guerra civil. Portugal, como parte da Europa e membro fundador da OTAN, não poderia ter uma ditadura esquerdista liderada pelo PCP. O resultado da polarização seria uma ditadura militar de direita. Os resultados das eleições apoiaram uma evolução no sentido democrático, com um elevado comparecimento às urnas de 92% e com o PCP recebendo apenas 13% dos votos (contra os 38% para o Partido Socialista de Mário Soares, por exemplo). Assim sendo, as eleições para a Assembléia Constituinte representaram um fator crucial no processo de transição, em Portugal, de uma ditadura conservadora para um regime militar progressista e para uma democracia do tipo ocidental.

Os deputados foram eleitos somente com a finalidade de formular uma nova Constituição e o governo, durante o período de trabalho desses deputados, foi exercido por uma série de gabinetes provisórios forma dos por membros do MFA e dos partidos políticos. Todavia, os candidatos foram lançados por partidos políticos e, conquanto cerca de duas dúzias estivessem ativos nesse período, quatro emergiram com a vasta maioria dos votos, recebendo assim cadeiras na Assembléia. Esses quatro partidos — o PS, o PSD, o PCP e o CDS — conservaram a predominância até 1985 e receberam, nas eleições de 1983, cerca de 94% dos votos. Quando a Assembléia completou seus trabalhos em início de 1976, a Constituição foi promulgada pelo presidente Costa Gomes, em 25 de abril de 1976. Ela não foi submetida a um referendo popular, conforme fez a Espanha em 6 de dezembro de 1978, com a Constituição elaborada nas Cortes. Com a promulgação da Constituição portuguesa em 1976, teve início uma nova fase, realizando-se as eleições para a Assembléia Republicana em abril e as presidenciais em junho de 1976.

A Constituição portuguesa foi redigida num contexto de mobilização e expectativas revolucionárias, quando o espectro político definiu-se para a esquerda, em contraste com o moribundo Estado Novo, e raras pessoas expressariam publicamente uma opinião a favor de posições conservadoras. O documento resultante é bem um produto deste particular contexto revolucionário. Em certas épocas, durante os trabalhos da Assembléia, não se tinha certeza nem mesmo da promulgação do documento, com a ocorrência de greves, indisciplina militar e com a malsucedida tentativa de golpe da esquerda militar em 25 de novembro de 1975. Deve-se ter esse contexto em mente para entender o conteúdo da Constituição.

Devemos ainda observar que ela foi redigida por deputados de principalmente quatro partidos, os quais, por sua vez, eram de certa forma supervisionados pelo MFA, devido aos termos de um pacto entre estes quatro partidos e o MFA em abril de 1975 (subseqüentemente revisto em fevereiro de 1976).

A Constituição é extremamente longa, com 312 itens, e muito programática, na medida em que trata detalhadamente de todos os aspectos imagináveis da sociedade, da política e da economia. Sua orientação no contexto da época foi, compreensivelmente, progressista, conforme sugerem os seguintes elementos: "a República portuguesa é um Estado democrático de Direito... cujo objetivo é garantir a transição para o socialismo". Entre as "tarefas básicas do Estado" inclui-se "a promoção da qualidade de vida e do bem-estar do povo, uma real igualdade entre os portugueses e a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais, através da transformação da estrutura econômico-social, a saber, através da socialização dos principais meios de produção, bem como a abolição da exploração do homem pelo homem". A orientação progressista é encontrada ao longo de todo o documento, não somente nas definições retóricas, como também nas tarefas e deveres do Estado. O papel do MFA na fundação do novo regime é reconhecido pela introdução do Conselho da Revolução (CR), com as funções de assessorar o presidente, julgar a constitucionalidade das leis e com jurisdição exclusiva nas Forças Armadas. O CR deverá então supervisionar o governo, o qual é dividido entre um presidente eleito pelo povo e um governo formado de acordo com a distribuição das cadeiras na Assembléia da República. A forma, então, é semiparlamentar ou semi-presidencialista, com o CR como guardião. A Constituição estipula em seu Artigo 290 que certos dispositivos não podem ser mudados, nem mesmo por revisão, e esses dispositivos incluem o sistema eleitoral de representação proporcional.

O contexto político-econômico em Portugal alterou-se após 1976. A economia, que já era débil, enfraqueceu-se ainda mais com a perda das colônias. Os dois choques do petróleo, de 1973 e de 1979, trouxeram sérias implicações, pois o país importa a totalidade do petróleo consumido e a maior parte de sua energia elétrica. O crescimento da economia nos últimos dez anos foi pequeno e sua dívida externa aumentou até o ponto de Portugal precisar recorrer ao FMI em 1978 e, novamente, em 1983. Os salários, após um rápido aumento em 1975, caíram a níveis aproximadamente iguais aos da época da revolução. Politicamente, o país tem sido instável, com cinco governos entre 1976 e 1979, e outros cinco entre 1979 e 1986. Muitos passaram a culpar a Constituição em 1976 pelos problemas econômicos e políticos e já em fins de 1979 havia propostas de mudanças da Constituição. Com as eleições de dezembro de 1979, a Aliança Democrática (AD) liderada por Sá Carneiro assumiu o poder e entrou imediatamente em conflito com o presidente Eanes e com o CR. Não somente a AD desejava mais poderes para o governo, como também culpava o presidente e o CR pelos problemas econômicos de Portugal. Assim, por exemplo, o CR vetou por quatro vezes leis do governo da AD que abririam os setores bancários e de seguros aos investimentos privados, tendo esses setores sido nacionalizados em 1975. Assim sendo, a Constituição de 1976 tornara-se, já em 1979, foco de polêmicas e os principais agentes políticos culpavam-se pelos muitos problemas de Portugal.

A estratégia da AD para superar o problema foi aumentar sua votação nas eleições regulares para a Assembléia em outubro de 1980 e lançar seu próprio candidato para a Presidência, nas eleições de dezembro de 1980. Embora ganhasse com 47% dos votos e recebesse a maioria das cadeiras na Assembléia, a estratégia falhou, pois o presidente Eanes foi reeleito e Sá Carneiro faleceu num acidente aéreo. Outra solução seria a revisão da Constituição, legal e politicamente possível após a 1.ª legislatura. A revisão exige 2/3 dos votos na Assembléia e, sendo assim, a AD teria de depender do apoio de outro partido. O PCP estava contra qualquer revisão séria, pois considerava a Constituição de 1976 como garantia das conquistas da revolução, na qual ele havia representado um papel de tanta importância. A única outra opção era o PS de Mário Soares, que desempenhara uma função primordial na formulação da Constituição. Estabeleceu-se um acordo entre Soares e a AD, resultando na revisão de 1982, que não correspondeu nem às expectativas da AD, que era a seu favor, nem aos temores do PCP, que a ela se opunha. A revisão foi conduzida exclusivamente pela Assembléia; o presidente não possuía nenhum poder de veto e não havia nenhum dispositivo que previsse um referendo.

Na revisão de fins de 1982, os artigos da Constituição sobre economia, o foco de tantas críticas da AD, foram deixados virtualmente intatos. Ocorreu uma ligeira "desideologização" da retórica, mas houve poucas mudanças reais. As principais mudanças foram nos artigos políticos. O CR foi abolido e suas funções assumidas por três órgãos (o Conselho de Estado, o Conselho Superior das Forças Armadas e o Tribunal Constitucional), todos eles dominados pelo governo e, portanto, pelos partidos políticos. Os poderes do presidente foram também diminuídos, no que diz respeito aos poderes executivos, controle das Forças Armadas e composição e dissolução de governos. Conforme assinalou o presidente Eanes numa entrevista de comemoração dos dez anos da revolução, em 25 de abril de 1984, um presidente independente — um que não esteja afiliado a um partido político — tem bem poucos poderes.

A revisão da Constituição em 1982 não resolveu nem os problemas econômicos nem os políticos de Portugal. A economia permanece enfraquecida, com problemas estruturais importantes, que ficam ainda para ser encarados com sua entrada no Mercado Comum Europeu a partir de janeiro de 1986. Portugal não diminuiu a distância entre seu subdesenvolvimento econômico e o da Comunidade Econômica Européia e devemos observar que a renda per capita em Portugal representa somente 60% do valor encontrado na Grécia e 40% da Espanha. A instabilidade política também continua. Desde a revisão de 1982, caíram dois governos e realizaram-se duas eleições para a Assembléia. Desde 1976, sucederam-se dez governos, nenhum atingindo o fim de seu mandato, e com uma duração média de cerca de um ano. Tornou-se claro que a retirada dos poderes do presidente e a devolução desses poderes à Assembléia e ao governo, onde predominam os partidos, não resolveu o problema da instabilidade. De certa forma, com a diminuição dos poderes presidenciais, o regime tornou-se ainda mais confuso. Dois anos após a revisão, duas das principais figuras nela envolvidas — Francisco Pinto Balsemão, do PSD, e Freitas do Amaral, do CDS — passaram a sugerir em público que os poderes presidenciais deveriam ser aumentados. Uma política eficaz, que pudesse lidar com o enfraquecimento da economia e com os problemas estruturais, não poderia existir enquanto houvesse mudanças de governo tão rápidas. Apesar de tudo tornou-se finalmente claro que o problema estava menos na distribuição de poderes entre o presidente e o governo do que na composição da Assembléia da República.

Em nenhuma das cinco eleições para a Assembléia, realizadas entre 1976 e 1985, houve um único partido que recebesse uma maioria de votos, muito menos uma maioria de cadeiras. Nesse processo ou se forma um governo de minoria, o qual fica à mercê da oposição, ou se faz um governo de coalizão (isto deixando-se de lado os três governos de"inspiração presidencial", entre 1978 e 1979, os quais também provaram ser instáveis). Tentou-se toda coalizão possível entre 1978 e 1985, envolvendo três dos quatro principais partidos. A única coalizão que não foi tentada foi com o PCP. Os governos de coalizão duraram um pouco mais que os governos de minoria, mas, cedo ou tarde, um dos partidos abandonou a coalizão. O problema real reside no sistema eleitoral de representação proporcional, o qual permite a continuação do sistema pluripartidário, o que parece ser um aspecto permanente do regime português. Este sistema eleitoral foi incluído na Constituição em 1976, para garantir um sistema partidário como base para a democracia; ele não pode ser mudado, conforme o artigo 290. Mesmo que pudesse ser mudado, isso provavelmente exigiria o apoio de todos os partidos na Assembléia, e torna-se difícil imaginar um partido apoiando tal mudança, que poderia resultar na eliminação da representação do próprio partido. Assim sendo, Portugal parece condenado a viver com governos instáveis. Isto assume um interesse particular no momento atual, onde há um governo minoritário do PSD, de centro-direita, e um presidente de centro-esquerda — Mário Soares. É também interessante o fato de Soares ser o primeiro presidente civil em sessenta anos. Aliás, nenhum dos outros candidatos possuía formação militar. Os candidatos do segundo turno — Soares e Freitas do Amaral — haviam ambos diminuído os poderes presidenciais na revisão de 1982. É provável que Soares previsse sua ascensão à Presidência e que seu partido teria o controle do governo. Até agora isso não ocorreu; passaram-se dez anos no decorrer dos quais o presidente eleito pelo povo sofre a oposição de um governo eleito pelo povo com orientações ideológicas diversas.

Quais são, finalmente, as lições a serem tiradas da experiência portuguesa na realização e revisão de sua Constituição? Deveriam ser evitadas as Constituições longas e muito detalhadas. Os detalhes da Constituição portuguesa são tão elaborados e intrincados que muitos não foram implementados (tais como os planos quadrienais) e provavelmente nem podem sê-lo. As contradições ou a irrelevância tornam-se particularmente óbvias conforme mudam os contextos. Se a Constituição não for por demais detalhada, ela pode ser interpretada à luz da variação dos tempos e das novas exigências; se for muito específica, ela terá então de ser simplesmente ignorada, como no caso de Portugal, o que diminui a legitimidade do documento fundamental. Isso tornou-se especialmente óbvio em Portugal, onde algumas das principais figuras políticas construíram sua popularidade através dos ataques à Constituição. A Constituição, ao definir as relações dos órgãos de poder, tornou-se também objeto de contestação na luta pelo poder. A revisão de 1982 não resolveu esse problema. Isso sugere uma outra lição: a natureza altamente política das Constituições. Embora o texto e a justificativa sejam redigidos por juristas, não podemos esquecer que as Constituições representam a relação de forças políticas num determinado momento e podem ser revistas quando essa relação se altera. Em Portugal, a revisão foi solicitada pela AD, ao pensar que seus poderes aumentariam com a diminuição dos do presidente. Mário Soares concordou, imaginando que seu partido lhe forneceria apoio na Assembléia. A última lição constitui um paradoxo. Os quatro principais partidos incluíram a representação proporcional na Constituição para garantir sua própria continuidade. Eles continuaram, mas o governo tem sido muito instável. Nem política, nem legalmente esse item pode ser alterado, de forma que a instabilidade se perpetua. Assim, mesmo o que aparenta ser um fator relativamente simples — o sistema eleitoral —, pode estar no âmago de outros problemas políticos e mesmo econômicos. Os interesses de partidos específicos podem não corresponder, a longo prazo, aos interesses da sociedade como um todo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1986
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