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Disciplinar os poros e as paixões

AIDS

Disciplinar os poros e as paixões

Nestor Perlongher

Professor de Antropologia na UNICAMP

Bombardeio de imagens, de discursos que convocam o pânico, a ameaça da AIDS já transcendeu o sofrimento privado das suas vítimas (mais ou menos 300 no Estado de São Paulo, a metade já falecida), para se converter num dispositivo de moralização que busca reordenar os corpos e suas paixões. De um lado, se trataria de restabelecer a ordem: é curioso constatar como a onda de hornofobia que a campanha de difusão da AIDS vem desencadeando — e que cresce conforme o aumento geométrico do número dos casos — sucede às parafernálias do "desbunde" (de cujos excessos a já quase esquecida consagração do travesti Roberta Close como "modelo de mulher nacional" é só um apagado estertor), e coincide, sintomaticamente, com a retirada da homossexualidade da lista de doenças mentais, feita em fevereiro deste ano pelo Conselho Federal de Medicina, com um atraso de mais de dez anos com relação aos psicólogos americanos. Com a desculpa do combate à AIDS, se tentaria estabelecer uma nova ordem sexual, na qual a homossexualidade pudesse ser tolerada ao preço da sua disciplina e autocontrole.

A doença é 100% letal e pavorosa. Suas manifestações — sucessivas infecções que invadem o corpo desprovido das suas defesas imunológicas, como o sarcoma de Kaposi (uma espécie de câncer de pele) e outras doenças — são particularmente impressionantes. Essa impressão extravasa a assepsia da cena médica, para se estender às mídias como um espetáculo de horror. Nas telas, imagens da vaporosa frivolidade do agora enfraquecido gueto gay se alternam com martírios de hospital. Mais sutilmente, algum especial da TV contrapunha as arrepiantes informações a ternos instantâneos de casais com filhos — como se a paz familiar fosse ameaçada pelo novo demônio.

Esta metáfora infernal é literal: o cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, dom Eugênio Sales, atribui a propagação da doença à natureza, que, "violentada, se vinga e, quando o faz, é terrível". A homossexualidade é um lugar apropriado para as encarnações do mal: não é surpreendente, então, que a vítima vire rapidamente culpável e deva carregar sua doença como uma espécie de castigo divino. Mais materialista, o vírus que pressumivelmente seria o causante da doença (distintamente denominado LAV pelos franceses e HTLV-3 pelos americanos, que disputam a paternidade da descoberta) se transmite por via sexual ou sanguínea, sem diferenciar segundo opções sexuais. Sua preferência pelos homossexuais (principal "grupo de risco", com 78% das vítimas, seguidos pelos hemofílicos — que se contagiam através das transfusões — e os viciados em drogas injetáveis) poder-se-ia explicar pelo fato de que os adeptos das práticas homossexuais, em geral, se relacionam dentro de um círculo restrito e formam (sobretudo nos Estados Unidos) um grupo mais ou menos fechado.

Brasil e EUA: a diferença se acentua

Os rumos futuros da doença no Brasil são incertos: o grau de homogeneização do setor gay é aqui parcial e restrito às classes médias e altas. Numa medida considerável, os relacionamentos sexuais intermasculinos "populares" parecem conservar normas mais "clássicas": o travesti com o burocrata casado, a "bicha pintosa" com o garoto de periferia. Fenômeno que a terminologia da identidade sexual traduziria por "bissexualidade" — mas que pouco tem a ver com a artificiosa androginia das danceterias dos Jardins.

Essa diferenciação entre o pluralismo multiforme dos homossexualismos brasileiros e a uniformidade pasteurizada do gay americano tende a se acentuar. Sobretudo quando, na ausência de uma teoria clínica consistente e até de alternativas reais de tratamento hospitalar (os pacientes perambulam sem leito), as estratégias para o combate da AIDS deslocam-se para alguma forma de "prevenção", que aponta os cuidados a serem tomados por (ou contra) os sujeitos dos "grupos de risco".

Uma destas estratégias é explicitamente proibicionista e repressiva: chega-se a propor o confinamento e a "caça aos veados", o fechamento das saunas de orgias, a generalização de um teste caro e pouco confiável (que indica "contato com o vírus" e não necessariamente contaminação), e que poderia facilmente ser utilizado para aumentar a discriminação contra os "efeminados". Essa discriminação já é grave: a expulsão de 60 homossexuais do garimpo de Serra Pelada é o episódio mais gritante.

Uma outra estratégia, mais respeitosa dos direitos adquiridos pelos gays (que, através dos Grupos de Apoio e Prevenção, colaboram com ela), passa por intensificar os cuidados no próprio plano das relações sexuais. Assim, intimidades antes impensáveis (como o intercurso anal com ejaculação) ganham o espaço público. A política do sexo sadio propõe reduzir o número de parceiros, evitar a penetração e a troca de fluxos seminais, incentivar a masturbação mútua, que, duramente estigmatizada pela medicina e pela religião como fonte de estranhas doenças, é agora candidamente recomendada.

Surgem barreiras concretas

De eficácia duvidosa, esta vasta mudança dos hábitos sexuais choca-se com obstáculos concretos. A promiscuidade, o sexo anônimo, a transa com um desconhecido praticada às pressas no mato, no mictório de um cinema ou na sala de orgias de uma sauna, parecem constituir (não há pesquisas estatísticas locais) as formas mais corriqueiras de contato homossexual. Se o novo modelo aparece como menos irreal no seio da "cultura gay", ele se apresenta como quase inatingível para as "bichas" mais pobres, que curtem ainda seus "bofes" na sombra.

Nessas condições, as estratégias desencadeadas a partir de um problema real — a emergência da AIDS — passam por policiar e organizar as sexualidades perversas, no sentido de diminuir a freqüência, a diversidade e a intensidade dos encontros.

Aqueles que estavam "fora" da sociedade são hoje instruídos pelo aparelho médico e paramédico no sentido de disciplinar os poros e as paixões. O tão declamado direito a dispor do próprio corpo vai-se transformando, no final das contas, no dever de regrá-lo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1985
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