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O suspeito n.º 1 é o comandante

DOSSIÊ

O suspeito n.º 1 é o comandante

MARÍLIA: Como e por que nasceu a Associação das Mulheres de PM?

LEDA: Nossa associação foi criada quando vários policiais acusados de envolvimento na morte dos rapazes da Zona Sul começaram a desaparecer. Inicialmente, não sabíamos a razão nem a acusação, mas diariamente desaparecia um policial. As esposas de PM já estavam começando a enlouquecer. O último desaparecido, porém, deixou uma pista: da última vez que foi visto, estava num posto de gasolina onde fazia "bico" e foi visitado por uma viatura policial que o levou. O dono do posto anotou o número da viatura, que depois identificamos. Então, conseguimos saber que ele fora levado até um determinado batalhão, de onde saiu escoltado por um civil. Daí para a frente, ninguém mais sabia informar, ou tinha medo de falar. Nem o próprio comandante dava informações.

A partir daí começamos a convocar as esposas dos desaparecidos em busca de uma solução. Durante uma de nossas reuniões apareceu um soldado, ferido, que estivera preso com os outros, e vieram me procurar para que eu desse notícias às outras esposas, com quem sempre me relacionei bem. Nós já havíamos denunciado, em vão, às autoridades da Igreja, da Assembléia e da Segurança. E os nossos homens continuavam incomunicáveis, sendo torturados física e psicologicamente, presos e longe de suas casas contra a própria vontade. Então resolvemos denunciar à imprensa. Sem envolver os homens, nós mulheres convocamos uma entrevista coletiva, sem adiantar nada do que diríamos. Então, denunciamos a 2.ª Companhia do 1º Batalhão de Interlagos. Saiu em todos os jornais, com fotos, inclusive, do soldado ferido. Foi uma correria de coronéis e juizes da Justiça Militar tentando pôr panos quentes...

A partir daí soubemos de todos os policiais que estavam presos. Eles passaram por exame de corpo de delito e os que não tinham qualquer acusação contra eles foram libertados. Mas aí também a coisa não funcionou de uma forma justa: primeiro, porque descobrimos que a maioria dos que ficaram presos não eram culpados de nada, mas sofriam perseguição pura e simples. Suspeitava-se porque o indivíduo era novo no batalhão, ou então porque ele era velho, queriam que soubesse de tudo. Por outro lado, o exame de corpo de delito a que se submeteram foi na própria corporação, que jamais vai dizer que o indivíduo não está em boas condições físicas e psicológicas. Por fim, ficamos sabendo que a morte dos rapazes da Zona Sul era coisa de "Domingão" e outros envolvidos com o cabo Bruno... Nenhum dos PM desaparecidos.

SARGENTO PAZ: Essas prisões ou desaparecimentos ocorreram porque a imprensa estava denunciando permanentemente os assassinatos de jovens. Não que o comando quisesse esclarecer os crimes, mas porque precisava dar uma satisfação à imprensa. Nestas situações o serviço reservado trabalha com muita "eficiência": prende todo mundo, tortura e, através da violência e sem respeitar a integridade física e os direitos humanos do policial, procura intimidar a todos. Ele não parte do crime para o suspeito, mas do suspeito para o crime...

Sem direito a defesa

LEDA: E na PM, se o policial militar é suspeito ele já é considerado um criminoso, torna-se, em princípio, um culpado. E é ele próprio quem tem de provar que é inocente, porque ninguém o defende. É interessante esta inversão de valores na PM...

MARÍLIA: Mas não há, dentro da corporação, o equivalente a um advogado?

LEDA: Quando cai no serviço reservado não pode receber a família, nem falar com qualquer pessoa. É proibido de falar com um advogado, mesmo que este queira defendê-lo...

SARGENTO PAZ: Aliás, nem um coronel pode fazer isso...

MARÍLIA: E aí, como caminhou a associação?

LEDA: Bem, quando vimos que conseguimos fazer tudo aquilo, nós mulheres conseguimos defender os direitos dos nossos maridos, então resolvemos criar a Associação. Resolvemos no "tapa", porque jamais imaginávamos que a mulher teria as condições que ela tem hoje; uma condição que ela já tinha há muito tempo, mas que não havíamos percebido, não é? Então, partimos para uma associação em defesa dos direitos de todos os policiais, todos os que estavam sendo injustiçados seja por razões disciplinares ou suspeita de alguma coisa. Queríamos que ele tivesse o nosso amparo, que somos as suas mulheres... Se um marginal, ao ser julgado, lota um júri com a família, por que tem de ser diferente com um policial? Por que ele deve ser discriminado e simplesmente acabar num fundo de cadeia sem que ninguém prove que ele é culpado?

Então, começamos a alertar as esposas de PM: se o seu marido não veio do serviço e demorou mais de cinco horas, vamos procurá-lo no serviço reservado, porque é lá que ele está. E é onde, na maioria das vezes, encontramos os nossos homens. O serviço reservado se tornou o dono absoluto do policial, da sua família e da sua casa. Se neste minuto ele passar por aqui e suspeitar que há policiais na casa e que eles estão fazendo algo de errado, levam-nos embora e daqui a cinco minutos os policiais estarão presos...

MARÍLIA: Existe um risco altíssimo na atividade da associação...

LEDA: O risco existe a todo momento e situação. Desde o momento que fizemos a primeira manifestação até a hora da morte. Eu costumo dizer que a Polícia Militar é um Estado dentro de um Estado. E, dois meses após o registro da nossa associação, no dia dois de janeiro, tivemos de ir ao Comando da Polícia Militar, ao Estado da Polícia Militar, para falar com o comandante geral do policiamento da capital.

Somos todos inimigos potenciais

Lá você sempre é inquirido de diversas formas. Quer dizer, até numa conversa amigável, tomando um cafezinho que eles te dão, estão sempre querendo ver em você um inimigo em potencial — como gente, como esposa de PM e eu, acima de tudo, naquela oportunidade, como presidente da Associação das Esposas de PM, o que é, para eles, algo absurdo, algo que vai contra tudo o que viram em cento e tantos anos de Polícia Militar. Mas eu estava lá com duas diretoras da Associação, desde a uma hora da tarde e ficamos até as sete, sem sermos recebidas pelo comandante. O oficial que nos atendeu, porém, fez várias perguntas sobre o nosso destino e trajeto depois que dali saíssemos e fez alertas também sobre o risco de sermos assaltadas, essas coisas todas. Eu jamais poderia imaginar que isso pudesse ter relação com o que ocorreu depois: saímos de lá às 7 horas da noite e, por volta de 8hl5, chegávamos ao nosso ponto em Santo Amaro. Ao descer do ônibus, vi dois indivíduos em atitude suspeita encostados na parede. Não sei se pela conversa com o oficial ou por intuição, desconfiei. Disse a uma das garotas que fosse na frente, outra no meio e eu atrás. Quando nos aproximamos, um deles levantou a mão ao pescoço da moça e pegou a correntinha. Como eu estava preparada, dei um chute no outro e corri atrás do primeiro. Quando eu estava perto dele e ia pegá-lo pela camisa, recebi uma pancada nas costas que me jogou quase debaixo de um ônibus. Soube depois que era uma motocicleta, que veio na contra-mão, e eu não pude perceber porque estava atenta ao outro. Esses dois fugiram, e o que eu derrubei, nós prendemos, mas já sem a correntinha. Nós fizemos boletins de ocorrência, mas até o delegado nos alertou que aquilo era "coisa mandada". Denunciamos na Assembléia, Parlamento, onde deu, mas não adianta muito, porque até hoje eles continuam fazendo ameaças e outros tipos de perseguições, contra a família, o marido...

HAMILTON: Com todas estas dificuldades e perseguições, quantas associadas vocês têm atualmente?

LEDA: Ainda falando sobre perseguições há uma coisa muito importante. Os maridos de cinco diretoras da nossa associação foram transferidos para outras cidades ou locais longe da Zona Sul. Eles dizem que isso é decorrência da própria condição de policial militar, mas é muita coincidência que os únicos transferidos fossem maridos de nossas diretoras. Eles pensam que, assim, dispersam o pessoal. Mas não. Afinal, o PM está em todo lugar e ele é policial em qualquer cidade, bairro ou região, enfrentando os mesmos problemas. Então, quando um policial é transferido, com ele vai a nossa voz. E nós ficamos aqui.

Contra tudo, o movimento cresce

Lá, juntam-se outros, na mesma situação, que puxam outros mais ainda. Com isso, hoje somos já 7000 associadas. Quer dizer: ao nos perseguir, acabam nos beneficiando...

MARÍLIA: Uma última pergunta: de onde vocês tiram tanta coragem para enfrentar uma estrutura tão cruel?

LEDA: A coragem a gente não tira; eu acho que ela já está dentro da gente. Medo eu não tenho mais porque há muita coisa muito interessante: outro dia vi um ministro dizendo, na televisão, que se ele aparecesse boiando ele acusava tudo o que acaba com "bras": Petrobrás, Eletrobras e tudo mais. Pois bem: eu digo diferente. Que eles cuidem bem de mim. Mas que cuidem bem mesmo, porque se acontecer alguma coisa, já está aí o meu testamento prontinho: ainda que eu morra de gripe, não foi gripe o que me matou. Pode procurar que há algo por trás da minha morte. E eu acuso desde já todos aqueles que acabam com "ante": sendo comandante ele é o suspeito número um...

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1985
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