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PRAGMATISMO E DISCRIÇÃO: AS RELAÇÕES ENTRE EUA E VENEZUELA NOS GOVERNOS BIDEN E MADURO

PRAGMATISM AND DISCRETION: THE RELATIONS BETWEEN THE US AND VENEZUELA IN THE BIDEN AND MADURO ADMINISTRATIONS

Resumo:

Este artigo busca analisar o reestabelecimento das relações comerciais e a distensão política entre a Venezuela e os Estados Unidos da América durante o governo Biden, especialmente a partir de 2022, caracterizando essa reaproximação como um movimento pragmático de ambas as partes. Do lado estadunidense, entende-se tal pragmatismo como fruto da necessidade de realinhamento das posições e relações em níveis regional e global por conta da disputa por hegemonia com a China. Para a Venezuela, o pragmatismo retoma uma antiga tradição da política externa dos governos de Caracas, independente de orientação ideológica, de habilidosamente se relacionar simultaneamente com grandes potências em disputa, a fim de otimizar a obtenção de benefícios, nesse caso, a redução das sanções, a ampliação do comércio e a entrada de investimentos.

Palavras-chave:
Venezuela; Estados Unidos; Relações Bilaterais; Pragmatismo

Abstract:

This article aims to analyze the reestablishment of commercial relations and political détente between Venezuela and the United States under the Biden government, especially from 2022 onwards, characterizing this rapprochement as a pragmatic movements on both parts. On the American side, this pragmatism is understood as the result of the need to realign positions and relationships at regional and global levels due to the dispute for hegemony with China. On the Venezuelan side, the pragmatism recovers an old foreign policy tradition of Caracas governments, regardless of ideological orientation, of skillfully relating simultaneously with great powers in dispute, to optimize and obtain benefits, in this case, the reduction of sanctions, the expansion of trade, and the entry of investments.

Keywords:
Venezuela ; United States ; Bilateral Relations ; Pragmatism

Introdução

Desde 1999, quando Hugo Chávez tornou-se o primeiro presidente de fora da histórica aliança de centro-direita a assumir o Palácio Miraflores, em quatro décadas as relações entre Venezuela e Estados Unidos (EUA) deixaram para trás um histórico de estabilidade e mergulharam em turbulências marcadas por inúmeras fases e crises, que vão desde o pragmatismo tenso, porém efetivo, a uma política de confrontamento marcada pela forte retórica de ambas as partes e por episódios que quase resultaram em crises militares.

Com a morte de Chávez e a chegada de Nicolas Maduro ao poder, em 2012 como interino e em 2013 em mandato eletivo, as relações bilaterais enfrentaram momentos ainda mais complicados. Em 2014, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a lei Venezuela Defense of Human Rights and Civil Society , que autorizava a Casa Branca a impor sanções a todos que teriam participado de atos de violência e violação de direitos humanos no país. A medida, além de ter atingido altos funcionários do governo venezuelano, foi a primeira de uma série de 38 sanções, a maior parte econômicas, aplicadas pelos EUA desde então 1 1 Não estão nesta conta as sanções impostas contra o governo Hugo Chávez, a mais importante delas a proibição de exportação de equipamentos e componentes militares e da indústria de aviação para a Venezuela. As sanções econômicas mais graves, contudo, foram implementadas durante o governo Maduro. . Em 2017, a tensão aumentou ainda mais, quando o governo do presidente Donald Trump lançou outro grande pacote de sanções econômicas contra indivíduos, instituições e entidades financeiras ligadas ao governo Maduro, e iniciou uma ampla e notória pressão política para a desestabilização e queda do governo venezuelano.

Foi o ano de 2019, contudo, que pode ser apontado como o período de maior tensão na História do relacionamento entre os dois países. Oito meses após a eleição de Maduro para um novo mandato, questionada por Washington que alegava fraude, o reconhecimento do presidente da Assembleia Nacional Juan Guaidó, por parte dos EUA, como chefe interino do Poder Executivo da Venezuela resultou no até então inédito rompimento das relações diplomáticas entre os dois países. No mesmo ano, como forma de pressionar pela queda de Maduro, o governo Trump ampliou as sanções econômicas para todo o setor petrolífero venezuelano, em uma política que ficou conhecida como “máxima pressão”. Apesar de as importações dos EUA, que na primeira década do século XXI chegaram a patamares de US$ 50 bilhões anuais, terem sido reduzidos para menos de US$ 500 milhões em 2020 2 2 Dados disponíveis em: https://tinyurl.com/4h8rv9dj . Acesso em: 24 abr. 2024. ; o robusto impacto econômico não foi o suficiente para a queda de Maduro, que enfrentou uma série de dificuldades e restrições iniciais diante das medidas, que incluía até a impossibilidade de pagamentos em dólar no exterior, mas recuperou parte importante dos prejuízos, e da popularidade interna, com rápidas e vultuosas ajudas e acordos de exportação com China e Rússia, além de auxílios em projetos educacionais, de saúde, em meio à pandemia de covid-19, e assistência social.

A chegada de Biden à presidência dos EUA, em 2021, no entanto, trouxe à tona desafios geopolíticos globais de grande envergadura e que o forçaram a mudar de forma rápida e substancialmente não apenas a política de pressão máxima, como também o relacionamento com o governo venezuelano. A guerra entre Rússia e Ucrânia, e os decorrentes desafios energéticos e estratégicos dela, a cada vez maior presença econômica e política da China na América Latina, e a recente aproximação entre Arábia Saudita e Irã, com mediação do governo de Pequim, impuseram aos EUA reavaliações sobre relacionamentos estratégicos em todo mundo, o que provocou mais um movimento pendular em suas relações com o que considera sua área de influência direta, o continente americano, tendo a Venezuela como caso prioritário de um novo acercamento.

Os resultados dessa mudança já começam a ser sentidos. Mesmo com as relações diplomáticas ainda formalmente rompidas, nos dois primeiros meses de 2023, as exportações dos EUA para a Venezuela alcançaram US$ 510 milhões, contra US$ 264 milhões no mesmo período em 2022 (aumento de 93%), e as importações saltaram de US$ 38 milhões nos dois primeiros meses de 2022 para US$ 247 milhões no mesmo período em 2023 (aumento de 550%). Em 2021, as importações de produtos venezuelanos pelos EUA chegaram a US$ 295 milhões, quase o mesmo valor dos produtos importados apenas nos dois primeiros meses de 2023. Números ainda pouco expressivos se comparados ao período Chávez, mas substanciais quando confrontados com os registrados a partir de política de pressão máxima, em 2019. Além disso, após mais de dois anos proibida de operar na Venezuela, a gigante do petróleo Chevron foi autorizada pelo Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros dos Estados Unidos a voltar a extrair e comercializar petróleo venezuelano, por meio de uma licença emitida em clima de discrição, em novembro de 2022, e que poderá ser renovada a cada seis meses. Na prática, a decisão significou a suspensão de algumas sanções que impediam a participação da Chevron em quatro empresas mistas, nas quais ela é sócia minoritária da estatal venezuelana Petróleos de Venezuela S.A (PDVSA).

A volta do comércio entre os dois países, especialmente a importação de petróleo pelos EUA, foi organizada em 2022 durante encontros discretos de funcionários venezuelanos e norte-americanos do alto escalão; o primeiro ocorrido em março no Palácio Miraflores; já o segundo, conforme a imprensa norte-americana, meses depois em Trinidad e Tobago (Luján, 2022 LUJÁN, Raylí. 27 abr. 2022. Nueva reunión entre autoridades de Maduro y Biden: Los ejes del posible encuentro. Bloomberg Línea, [s. l.]. Disponível em: https://tinyurl.com/mpn9dzpt . Acesso em: 24 abr. 2024.
https://tinyurl.com/mpn9dzpt...
). Encontros que também resultaram em uma evidente redução da confrontação retórica entre os dois países e em sinalizações políticas de distensão. Sinalizações que passaram a ser dadas pelo próprio Maduro. Em uma entrevista à imprensa francesa e à Telesur em janeiro de 2023, ele afirmou que “a Venezuela está preparada, totalmente preparada, para dar um passo ao processo de normalização de relações diplomáticas, consulares, políticas, com este governo dos EUA e com os governos que possam vir”.

Nem mesmo as acusações recentes de perseguição e prisão de opositores, entre eles, a líder nas pesquisas eleitorais contra Maduro, Maria Corina Machado, repercutiram em sanções relevantes, em propaganda da Casa Branca ou em grandes atenções, em dimensões de anos passados, por parte da mídia norte-americana. Maduro também se proclamou candidato à reeleição sob o silêncio discreto de autoridades internacionais. A última nota do departamento de Estado dos EUA, de 22 de março de 2024, critica as ações do Palácio Miraflores, mas além do tom ameno e de não sinalizar com punições, solicita que governo cumpra o que prometeu nos encontros de Barbados, no ano passado, sobre as eleições e afirmou que “continuará dando apoio às iniciativas de Caracas para o fortalecimento da democracia e a estabilidade política da Venezuela”. 3 3 Disponível em: https://www.state.gov/unjustified-arrests-of-venezuelan-democratic-opposition/ . Acesso em: 26 abr. 2024.

Exemplo mais notório, contudo, de que não há qualquer disposição de Washington em mudar o atual status quo das relações bilaterais entre os dois países, são as ameaças pelo governo Maduro de invasão da vizinha Guiana para a tomada da região de Essequibo, historicamente reivindicada pelos venezuelanos, mas cujas negociações encontravam-se paradas há décadas. No início da crise, em 2023, os EUA chegaram a sinalizar com exercícios militares com a Guiana, e com sanções, apontadas como leves contra Caracas e que, na prática, não chegaram a ser aplicadas e, mesmo que fosse, não provocariam mudanças de envergadura. Mais uma vez, a questão estrutural do petróleo e o novo contexto sistêmico internacional mostraram que a política externa norte-americana sabe trocar a propaganda soft e as ameaças desestabilizadores por um pragmatismo focado em interesses mais amplos. Trata-se, aqui, como demonstra outra nota do departamento de Estado, da manutenção dos acordos mais caros aos estadunidenses, preocupados com o acertado em Trinidad e Tobago, a despeito do que foi determinado em Barbados. 4 4 Disponível em: https://www.state.gov/secretary-blinkens-call-with-guyanese-president-ali/ . Acesso em: 26 abr. 2024.

Diante do exposto, este artigo pretende analisar o reestabelecimento das relações comerciais e a distensão política entre Venezuela e EUA no governo Biden, especialmente a partir de 2022, caracterizando essa reaproximação como movimentos pragmáticos de ambos os lados. Pragmatismo este, no lado estadunidense, fruto da necessidade de realinhamento das posições e das relações em níveis regional e global por conta da disputa por hegemonia com a China. No lado venezuelano, pragmatismo que retoma uma antiga tradição da política externa dos governos de Caracas, independentemente de orientação ideológica, de habilidosamente se relacionar ao mesmo tempo com grandes potências em disputa, a fim de otimizar e obtenção de benefícios. Nesse caso, a redução das sanções, a ampliação do comércio e a entrada de investimentos.

Por conta de as maiores reservas de petróleo estarem em território venezuelano, as relações entre Washington e Caracas nunca se restringiram ao interesse da política hemisférica e seus impactos na geopolítica global sempre foram importantes. Em tempos de profundas mudanças no xadrez das grandes potências, e de viradas importantes nas políticas de outros grandes produtores, os desdobramentos desse relacionamento serão decisivos para o entendimento sobre a conjuntura internacional de nossos tempos.

O pragmatismo em números

Durante todo o governo Chávez, a forte confrontação retórica entre EUA e Venezuela e os inúmeros momentos políticos marcados pela tensão e por ameaças de sanções, ao contrário do que se pregava, não resultaram em revezes significativos nas relações comerciais entre os dois países. Pelo contrário, enquanto as importações de petróleo pelos EUA, que representavam mais de 80% do comércio bilateral, apresentaram apenas oscilações por conta do mercado internacional, entre os anos de 2004 e 2009, auge das disputas políticas, acusações e ameaças de ambos os lados, as importações de produtos norte-americanos pela Venezuela bateram recordes históricos, como mostra o quadro abaixo ( Figura 1 ). Para se ter uma ideia da dimensão dessas relações, apenas entre 2008 e 2009, também segundo dados do US Census Bureau, a Venezuela aumentou em 23% a compra de produtos dos EUA, enquanto no mesmo período aumentou bem menos as importações de produtos de parceiros apontados como estratégicos: 13% a mais de compras do Irã e 8% de Cuba. Nesse período, os EUA figuravam em primeiro lugar nas importações venezuelanas, com 27% de todas as compras feitas pelo país, enquanto o Brasil, por exemplo, aparecia em terceiro lugar com 9%, e a China, já apontada como aliada estratégica por Chávez, em quarto com 7,2%, de acordo com dados do Fundo Monetário Internacional (FMI).

Já as exportações de petróleo para os EUA ( Figura 2 ) mantiveram-se praticamente estáveis durante a maior parte do governo Chávez, no relevante patamar entre 500 mil e 600 mil barris por ano, apresentando queda a partir de 2008 muito mais pela crise econômica que atingiu em cheio os EUA e retraiu o mercado consumidor, do que por medida retaliatória.

Com a chegada de Maduro ao poder, contudo, esse panorama mudou. Ainda em 2012, período conturbado na política interna venezuelana com o afastamento de Chávez e a chegada do vice-presidente para cumprir o restante do mandato, as importações de petróleo pelos EUA haviam caído para o patamar de 350 mil barris por ano. Em 2014, início das sanções impostas pelo governo Obama, eram comprados 288 mil barris, e a partir da política de pressão máxima implementada pelo governo de Donald Trump, as importações despencaram até chegarem ao patamar de 33 mil barris por ano, em 2019, volume sem qualquer relevância comercial, o que se repetiu em 2020. 5 5 Dados disponíveis em: https://tinyurl.com/27k7a5uh . Acesso em: 4 maio 2023. As importações de produtos norte-americanos pela Venezuela, que chegaram ao patamar de US$ 17 bilhões em 2012, também caíram consideravelmente nos primeiros anos do governo Maduro e despencaram após as sanções norte-americanas, chegando a US$ 1,3 bilhões em 2019 e a US$ 1,1 bilhão em 2020. 6 6 Dados disponíveis em: https://tinyurl.com/bdhthsxk . Acesso em: 4 maio 2023.

Figura 1
EUA: exportações para Venezuela

Figura 2
Importações de Petróleo Venezuelano

Apesar de ainda estarem longe de patamares atingidos durante o governo Chávez, o que se observa, contudo, a partir de 2022 é uma clara e rápida reversão da tendência de queda, indicando uma retomada acelerada nas atividades comerciais. Neste ano, as importações venezuelanas de produtos norte-americanos atingiram US$ 2,2 bilhões, o dobro do registrado em 2020, e as importações de produtos venezuelanos pelos EUA, mesmo ainda marcadas por restrições e pelas exportações venezuelanas voltadas para a China, aumentaram de US$ 167 milhões em 2020 para US$ 413 milhões em 2022. A comparação desses dados com os 2023 confirmam a tendência de retomada. Apenas de janeiro a março, as importações venezuelanas atingiram US$ 673 milhões, mais do que todo o acumulado do ano de 2022, e as importações norte-americanas de produtos venezuelanos chegaram a US$ 526 milhões, quase quatro vezes mais que as importações registradas em todo o ano de 2020. 8 8 Dados disponíveis em: https://tinyurl.com/bdhthsxk . Acesso em: 4 maio 2023. No montante total do período, foram mais de US$ 2 bilhões em exportações pelos EUA, e US$ 3,5 bilhões em importações.

Figura 3 Relações comerciais entre EUA e Venezuela (2023)

Month Exports Imports Balance
January 2023 283.9 115.3 168.6
February 2023 226.2 132.4 93.8
March 2023 163.1 278.5 -115.4
April 2023 202.1 264.0 -61.9
May 2023 175.3 352.7 -177.4
June 2023 163.1 253.5 -90.4
July 2023 139.8 330.0 -190.1
August 2023 206.0 348.7 -142.7
September 2023 185.3 366.0 -180.6
October 2023 195.8 396.8 -201.0
November 2023 250.8 387.2 -136.3
December 2023 309.9 368.7 -58.8
TOTAL 2023 2,501.3 3,593.6 -1,092.3

O período de 2023 dá a dimensão dessa nova fase relacional entre os dois países. Outro indicador importante é a retomada das importações de produtos norte-americanos pela Venezuela tem como maior parcela a compra de máquinas, especialmente para a indústria petroleira, e de produtos agrícolas, carnes e grãos em maioria, produtos estes com alternativas de compras em outros mercados, como Brasil e China. A retomada, portanto, é resultado de clara orientação política de Maduro, gesto de contrapartida em relação à flexibilização informal das sanções pelo governo Biden e a retomada das importações norte-americanas, ainda que mais lentas.

O aumento das importações norte-americanas acontece, nesse primeiro momento, especialmente por conta do retorno das operações da petroleira Chevron no país. Autorizada, pelo Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros, a voltar da extração e da comercialização do petróleo venezuelano por meio de uma licença emitida em novembro de 2022, gradativamente a empresa – que é sócia minoritária da estatal venezuelana PDVSA, recupera posição na atividade de extração e na exportação para os EUA, a despeito das sanções formais teoricamente ainda em vigor.

Importante ressaltar de tais movimentos, contudo, não devem ser interpretados como mudança de opinião da Casa Branca e do Deep State estadunidense a respeito do governo Maduro, mas resultado de um balance de custos e de oportunidades diante de um cenário global complexo que exige reavaliações constantes de rota, além de uma política realista. A discrição da Casa Branca em relação ao tema Venezuela torna notória a dicotomia enfrentada pelo governo entre a defesa dos valores morais em relação ao país, principalmente a defesa da democracia e dos direitos humanos, e a necessidade de articulações pragmáticas, sem que estas provoquem danos de opinião pública no governo. Mas também é conhecido o fato de que em situações de disputa por hegemonia tão duras como a atual, a defesa de valores morais costuma ser eclipsada pela política, como já apontou Morgenthau ( 2003MORGENTHAU, Hans J. Politics Among Nations. New York: Alfred A. Knopf, 1948. ):

A deterioração da moralidade internacional que ocorreu em anos recentes, no tocante à proteção da vida, nada mais é do que um outro exemplo de uma dissolução geral – para os propósitos dessa discussão – de muito maior alcance de um sistema ético que impunha no passado as suas restrições sobre as operações cotidianas de política externa, mas já não é mais capaz de fazê-lo. Foram dois os fatores que geraram essa dissolução: a substituição de responsabilidade em matéria de negócios externos, que de aristocrática passou a ser democrática, e a substituição de paradigmas universais por padrões nacionalistas. (2003, p. 450)

Essa multiplicidade dos processos que ocorrem no sistema internacional e que provocam uma acelerada erosão da ordem mundial estabelecida a partir da Segunda Guerra Mundial (Lima; Moura, 2018LIMA, Maria Regina Soares de; MOURA, Gerson. 2018. A trajetória do pragmatismo: uma análise da política externa brasileira. In: LIMA, Sérgio Eduardo Moreira (org.). O pragmatismo responsável na visão da diplomacia e da academia. Brasília, DF: Funac. pp. 317-342. ) remete diretamente a movimentos de natureza geopolítica e que precisam de atenção mais detalhada para que a dimensão regional do que ocorre no relacionamento entre Washington e Caracas seja melhor compreendida vis-à-vis tanto em relação à dinâmica global quanto às relações pendulares de ambos e, consequentemente, entendida em sua totalidade.

Foi na Venezuela sob o governo de Hugo Chávez, e depois com Maduro, que se pôs em prática a primeira política externa revisionista da América do Sul nos anos 2000. Política esta, segundo Cesar Guimarães ( 2008GUIMARÃES, Cesar. 2008. Integração hemisférica ou integração autônoma. In: LIMA, Maria Regina Soares de (org.). Desempenho de governos progressistas no Cone Sul: agendas alternativas ao neoliberalismo. Rio de Janeiro: Edições Iuperj. pp. 239-247. , p. 234), a partir de uma “proposta simétrica e inversa” à aquiescência pragmática dos anos 1990. Trata-se, em sua visão, do realismo periférico às avessas, convertido no que denominou como “revisionismo periférico”, uma revisão de política de um país de periferia em relação à potência, calcada na clara condição assimétrica de relações, e obviamente repleta de limitações, mas com o propósito de reverter antigos alinhamentos cujos benefícios, ao contrário do que se supunha anteriormente, não foram grandes o suficiente para compensar as grandes crises econômicas e sociais decorrentes.

O revisionismo consiste aqui em tomar a unipolaridade como ‘status quo’ insustentável e/ou insuportável, e que supõe certo tipo, algo aguerrido, de unidade sul-americana, composta com alianças externas pertinentes.

(Guimarães, 2008GUIMARÃES, Cesar. 2008. Integração hemisférica ou integração autônoma. In: LIMA, Maria Regina Soares de (org.). Desempenho de governos progressistas no Cone Sul: agendas alternativas ao neoliberalismo. Rio de Janeiro: Edições Iuperj. pp. 239-247. , p. 244).

Não se pode afirmar que os últimos anos marcam um retorno ao pragmatismo dos anos 1990, temperado com contornos de submissão, mas sim, com um pragmatismo que se combina a um revisionismo periférico em certa medida, e que busca extrair dele não apenas a salvação da economia, mas a sobrevivência política.

As razões geopolíticas dos EUA para a distensão

Mudanças substanciais em curso na estratificação de poder no plano internacional (Lima; Moura, 2018LIMA, Maria Regina Soares de; MOURA, Gerson. 2018. A trajetória do pragmatismo: uma análise da política externa brasileira. In: LIMA, Sérgio Eduardo Moreira (org.). O pragmatismo responsável na visão da diplomacia e da academia. Brasília, DF: Funac. pp. 317-342. ) ao mesmo tempo em que são resultado, provocam a perda de coerência do sistema de alianças e a redefinição de hegemonias em antigas áreas de influência. No epicentro dessas mudanças está a disputa global entre EUA e China pela liderança, e que envolve não apenas as duas potências, mas coloca a Europa e o Japão ao lado dos EUA, a Rússia como aliada da China, e, ainda que em espelhamento apenas análogo em relação à Guerra Fria, todo o resto do mundo em disputa. A guerra na Ucrânia, com seu risco latente de confronto direto entre Moscou e a Otan, o que na prática pode lançar a rivalidade entre as duas potências para o campo de batalha sem procuradores, as tensões e provocações envolvendo Taiwan, a inesperada distensão entre Arábia Saudita e o Irã mediada pela China e o surpreendente acordo entre as marinhas dos dois países para a proteção do Golfo Pérsico, o anúncio feito por Riad de que pode descartar o dólar nas operações de venda de petróleo, e o fortalecimento da extrema-direita em Israel, distante e revisionista de relações em relação a governos do Partido Democrata resultaram em perdas recentes e muito significativas de posições e de influência pelos EUA em áreas cruciais de disputa. Acontecimentos que também representam riscos futuros para a hegemonia de sua moeda, acenam para a diminuição do controle de fontes de petróleo, ainda fundamentais em qualquer esforço de guerra, e que podem levar a Casa Branca a se envolver em conflitos de grande envergadura, bem menos assimétricos e potencialmente mais perigosos que as guerras das quais participou nas últimas décadas.

Perdas e isolamentos que ocorreram em sua maior parte em uma região considerada crucial para a manutenção da hegemonia mundial dos EUA: a grande massa terrestre euroasiática. O controle dessa área pivô, denominada pelo inglês Halford Mackinder ( 2020MACKINDER, Halford. 2020. The geographical pivot of history. Nova York: Cosimo Classics. ) no clássico da geopolítica The Geographical Pivot of History , de 1904, garantiria a vantagem do poder terrestre, a “Ilha Mundial”, sobre qualquer outra potência marítima e seguiria a premissa de que quem controla essa área, também conhecida como Heartland , domina a Ásia, e consequentemente quem domina a Ásia, domina o mundo. E diante de uma dificuldade em se controlar totalmente essa gigantesca porção de terra, é imperativo evitar seu domínio por potências rivais, tornando-a uma região de balanço e disputas constantes. Ideia que é seriamente partilhada por geopolíticos e atores políticos nos EUA. Segundo Zbigniew Brzezinski, ex-Conselheiro de Segurança Nacional dos EUA, a importância da geopolítica da Eurásia para o grande jogo de poderes nas relações internacionais faz com que a presença ativa de Washington na região seja um dos principais objetivos da política externa dos EUA. Para ele, é prioridade prevenir uma parceria rival contra hegemônica eurasiática, assim como quebrar a possibilidade de alianças entre as potências regionais contra Washington.

A identificação dos principais pivôs geopolíticos da Eurásia pós-Guerra Fria, e protegê-los, é, portanto, também um aspecto crucial da geoestratégia global da América. […] Nas atuais circunstâncias globais, pelo menos cinco atores geoestratégicos importantes e cinco eixos geopolíticos […] podem ser identificados no novo mapa geopolítico da Eurásia. França, Alemanha, Rússia, China e Índia são atores importantes e ativos. […] Potencialmente, o cenário mais perigoso seria uma grande coalizão de China, Rússia, e talvez Irã, uma coalizão “anti-hegemônica” unida não por ideologia, mas por reclamações complementares.

(Brzezinski, 1998BRZEZINSKI, Zbigniew. 1998. El gran tablero mundial. La supremacía estadounidense y sus imperativos geoestratégicos. Barcelona, España: Paidós. , p. 41-55)

No continente americano, seu próprio hemisfério, região apontada pela clássica geopolítica estadunidense como sua área de influência direta e irrevogável, a situação também é delicada. Pela primeira vez desde a ascensão dos EUA como grande potência, o maior parceiro comercial e de investimentos em praticamente todos os países da América Latina não é mais Washington, mas Pequim, condição que nem nos momentos mais disputados da Guerra Fria a União Soviética sonhou alcançar. A chegada ou a volta ao poder de forças progressistas em países de grande importância regional, como Brasil, Argentina, Chile e Colômbia, em um fenômeno também parecido com a Onda Rosa do início do século XXI, balança ainda o pêndulo das relações externas da região muito mais para o pragmatismo que para o alinhamento, em um momento em que alinhamentos são mais do que bem-vindos e que qualquer perda de posição e de influência passa a ser agregada ao conjunto global em disputa e, portanto, mais sentida.

Para Nicholas Spykman (1893-1943), geopolítico que até hoje reflete o núcleo duro do pensamento estratégico dos EUA, o continente americano é a primeira e a última linha de contenção para a manutenção da hegemonia dos EUA no mundo. Por isso, manter o controle sobre o hemisfério não é apenas fundamental, mas o primeiro pilar de sustentação da liderança mundial estadunidense. E, em caso de ameaça a essa liderança regional, na visão dele só possível de surgir na América do Sul, a reação precisaria ser vigorosa e com todos os recursos possíveis.

…os países situados fora da nossa zona imediata de supremacia, ou seja, os grandes estados da América do Sul (Argentina, Brasil e Chile) podem tentar contrabalançar nosso poder […]. Nesse caso: uma ameaça à hegemonia norte-americana nessa região do hemisfério terá que ser respondida por meio da guerra.

(Spykman, 1942SPYKMAN, Nicholas. 1942. America’s strategy in world politics: the United States and the balance of power. Nova York: Harcourt, Brace and Company. , p. 62)

Neste contexto de acelerada e relevante perda de posição comercial e política na América Latina, de derrotas estratégicas na manutenção do controle da Eurásia, de uma guerra por procuração em curso contra a Rússia na Ucrânia – o que envolve muitos gastos e recursos, e de uma Venezuela muito relevante do ponto de vista geopolítico e cujo governo resistiu de forma impressionante às pressões e sanções com apoios fundamentais de China e Rússia, as ofensivas estadunidenses malsucedidas no campo econômico e os planos de intervenção militar, várias vezes cogitados, precisaram ceder lugar à tentativa de distensão pragmática que levasse a um diálogo ainda que mínimo e conferisse novamente aos Estado Unidos acesso às maiores reservas de petróleo no mundo. Uma virada de posição relevante, ainda que por ora discreta, resultado das mudanças no tabuleiro de poder global e com dois objetivos muito claros: garantir o acesso a fontes de energia seguras para as guerras e conter a presença da China e da Rússia em sua área de influência direta.

O petróleo venezuelano como moeda de troca

Apesar de todas as mudanças tecnológicas nas matrizes energéticas nas últimas décadas, e da necessidade de reavaliações dessas mesmas matrizes por conta das evidentes questões climáticas, além da extração do petróleo continuar sendo uma das mais importantes atividades econômicas mundiais 9 9 UBS RELATÓRIO, “As mudanças no cenário do petróleo com a guerra na Ucrânia”. Segundo estudos do banco suíço, a guerra na Ucrânia fará com que em 2023 os gastos com petróleo cheguem a 5% do PIB mundial, cerca de US$ 4,6 trilhões. No Brasil, segundo dados do Ministério da Economia, o petróleo é o terceiro produto na pauta das exportações brasileiras, atrás apenas da soja e do minério de ferro, totalizando em 2022 US$ 30,6 bilhões em vendas. Também disponível em https://exame.com/invest/onde-investir/como-preparar-o-portfolio-para-uma-guerra-na-ucrania-segundo-o-ubs/ , dois aspectos geopolíticos do petróleo permanecem como fatores de impacto crucial (Banco Mundial, 2023 BANCO MUNDIAL. abr. 2023. Forecasting industrial commodity prices. Commodity Markets Outlook, pp. 37-45. Disponível em: https://tinyurl.com/46xz9wmn . Acesso em: 24 abr. 2024.
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) e sem perspectivas de mudança em médio prazo. O primeiro é que o petróleo é a principal fonte de energia da guerra. Não há guerra sem petróleo, nem previsão de desenvolvimento de navios, aviões, tanques e outros equipamentos com matrizes alternativas de combustível. Ou seja, o conceito de segurança energética, muito usado para se referir quase que intuitivamente ao fornecimento estável de bens energéticos para uma sociedade (Nina, 2020NINA, Alexandre Mendes. 2020. A diplomacia brasileira e a segurança energética nacional. Brasília, DF: Funag. ), é também aplicado às necessidades militares, pois sem fornecimento estável de energia, especificamente de petróleo, qualquer máquina de guerra contemporânea se torna inviável. O segundo é que, quando se trata de energia para a guerra, tão importante quanto ter acesso irrestrito a essas fontes, é impedir ou dificultar ao máximo, o que também pode significar encarecer o acesso dos rivais.

Com mais de 300 bilhões de barris, a Venezuela tem as maiores reservas de petróleo do mundo. Apesar de os EUA não dependerem do petróleo venezuelano para consumo de seu mercado interno, e de prescindir dele durante as sanções que se intensificaram durante o governo Trump, o desenrolar recente da disputa mundial com a China trouxe novos aspectos que reacenderam a importância estratégica dos poços venezuelanos e forçaram uma reavaliação.

O primeiro deles é o amplo acesso que a China passou a ter às maiores reservas da Ásia: Irã e Arábia Saudita, respectivamente quarta e segunda maiores reservas do mundo. O acordo para restabelecimento de relações entre iranianos e sauditas sob mediação de Pequim, formalizado em 2023, após sete anos de rompimento entre os dois países, além da virada histórica nas relações entre os países árabes, tirou dos estadunidenses, na prática, o controle sobre o petróleo saudita, ou pelo menos a garantia de que ele seria direcionado com prioridade para os EUA quando necessário. As relações entre os dois países, que já haviam se afastado desde as acusações feitas pela Casa Branca de que o príncipe Muhammad bin Salman seria o mandante do assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi na Turquia, em 2018, foram esfriadas ainda mais pelo governo de Riad, que notoriamente vem optando desde 2021 pela aliança estratégica com os chineses. Segundo dados do Banco Mundial 10 10 Disponível em: https://tinyurl.com/ybat4pr6 . Acesso em: 4 maio 2023. , mais de um quarto do petróleo saudita é exportado para a China, que se tornou o principal comprador em 2022, enquanto os EUA estão na quarta posição, atrás também de Egito e Índia. Acordos comerciais entre Pequim e Riad, assinados em 2023 e que somam US$ 30 bilhões, além de cooperação em diversas áreas, fortalecem ainda a participação dos sauditas na Belt and Road Initiative, conhecida também como nova rota da seda, e que prevê entre várias outras medidas, o aumento das exportações de petróleo para a China até 2030. Há ainda o projeto, considerado pelos EUA como o mais preocupante, de retirada do dólar do comércio bilateral entre chineses e sauditas, que pode provocar movimentos semelhantes em outros países e problemas da alta envergadura na manutenção do dólar como principal moeda global. Sem influência sobre o Irã desde a Revolução de 1979, e com o afastamento em relação aos Sauditas, o terreno perdido pelos estadunidenses na Ásia não só é um complicador importante na obtenção de mais petróleo em caso de necessidade, especialmente em caso de grandes guerras, como permite à China amplo acesso às fontes de energia.

Junte-se a isso o fato de que, por conta das sanções feitas por Washington, desde 2018 a China se tornou o principal comprador de petróleo venezuelano, cerca de 150 milhões de barris por ano, também segundo dados da empresa de inteligência de mercado Kpler (Hayley, 2023 HAYLEY, Andrew. 12 set. 2023. China’s oil trade and investment in Venezuela. Reuters, Londres. Disponível em: https://tinyurl.com/3mf7d7af . Acesso em: 24 abr. 2024.
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).Com isso, o governo chinês passou a ter acesso privilegiado a três das quatro maiores reservas mundiais, com os EUA com o acesso seguro a apenas uma, a do Canadá.

O segundo aspecto importante é que as reservas da Venezuela, além de fartas, encontram-se em posição geográfica estratégica. Em caso de um conflito de maior envergadura, seja com a Rússia ou com a China, o transporte do petróleo pelo Mar do Caribe é mais rápido e bem mais seguro que em outros continentes. Vantagem demonstrada durante a Segunda Guerra Mundial, melhor detalhada mais à frente, quando os alemães impuseram uma série de dificuldades para o comércio marítimo no Atlântico Sul, forçando Washington e Londres a negociarem e fazerem concessões ao governo venezuelano. Em tempos de crise, o petróleo venezuelano é uma fonte muito mais segura para os EUA que o petróleo de outras regiões, e em um momento tão desafiador para a hegemonia global estadunidense, garantir essas reservas é mais importante do que qualquer questão política ou defesa de questões morais que envolvam o Palácio Miraflores. A troca do petróleo pelo fim das acusações e das campanhas de desestabilização, portanto, tornou-se um negócio necessário.

A obsolescência do conceito de Hemisfério Ocidental, conjugada à prioridade geopolítica da Ásia na formulação da mais recente estratégia militar dos Estados Unidos, poderia implicar maior irrelevância da América Latina para esse país, não fossem dois fatores que tornam mais complexo esse quadro. Um deles é a crescente presença econômica da China na região… O segundo diz respeito à política norte-americana de diversificação dos tradicionais supridores de petróleo do Oriente Médio. Conjugada à ideia de se reforçar a vertente sul do Atlântico Norte, em uma perspectiva atlanticista renovada […].

(Lima, 2013 LIMA, Maria Regina Soares de. 2013. Relações interamericanas: a nova agenda sul-americana e o Brasil. Lua Nova, v. 90, pp. 167-201. DOI: https://doi.org/10.1590/S0102-64452013000300007
https://doi.org/10.1590/S0102-6445201300...
, p. 170).

A América para os EUA? A contenção frustrada de China e Rússia

Desde a consolidação dos EUA como grande potência global, no fim da Segunda Guerra Mundial, 2018 foi o primeiro ano em que a América Latina deixou de ter os estadunidenses como seus principais parceiros comerciais e de investimentos. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) (Silva, 2022SILVA, João Vitor Borges da. 2022. Nota técnica. Dinâmica da economia agrícola da China e de suas províncias e regiões. Brasília, DF: Ipea. ), a China alcançou a partir de então a condição de principal parceiro da grande maioria dos países da região, com 10% das exportações totais e 18% das importações. Desde 2005, os chineses apresentam crescente participação em projetos de financiamento em países latino-americanos, especialmente nas áreas de infraestrutura, extração e distribuição de energia, e partir de 2019 também superaram os EUA neste quesito, o que aumentou de forma considerável a importância do governo de Pequim na região evocada como de influência geopolítica direta dos EUA.

Durante a Guerra Fria, a influência da União Soviética em Cuba e o medo de que essas relações se espalhassem pela América Latina gerou uma forte reação estadunidense e resultou no estímulo para que uma onda de golpes militares de direita atingisse a região. Mesmo o governo de Washington envolvido em crises e guerras cruciais para o xadrez da Guerra Fria, a vigilância sobre a América Latina manteve-se severa e as políticas de contenção foram rigidamente aplicadas.

A escalada da Guerra do Vietnã não impediu que os Estados Unidos tratassem de reafirmar seu predomínio na América Latina como sua área de influência. Quatro meses após assumir a Presidência dos Estados Unidos, Johnson dera sinal verde para a intervenção militar no Brasil (Operação Brother Sam), em apoio ao golpe militar, articulado pela CIA, contra o governo trabalhista de João Goulart. O embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Lincoln Gordon, além de recomendar ‘ a clandestine delivery of arms ’ para ser usada por forças-tarefa e operações encobertas, bem como suprimentos de gás e petróleo, instara o governo de Johnson que se preparasse sem demora para a contingência de uma ‘ overt intervention at a second stage ’. Johnson, em conferência com o subsecretário de Estado, Georgel Ball, e o secretário de Estado assistente para a América Latina, ordenou, então ‘ to take every step that we can, be prepared to do everything that we need to do ’. Mas Goulart não teve condições de resistir. E Lincoln Gordon, posteriormente, pode dizer que estava ‘muito feliz’ com a vitória da sublevação deflagrada em Minas Gerais, ‘porque evitou uma coisa muito desagradável, que seria a necessidade de intervenção militar americana no Brasil’.

(Bandeira, 2005BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. 2005. Formação do império americano: da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. , p. 269)

Além do Brasil, são documentados e já considerados fatos históricos com amplo embasamento às ações intervencionistas dos EUA em golpes militares e a repressão a movimentos comunistas no Chile, na Argentina e no Uruguai, além de outros países da América Central e do Caribe. Relatórios da CIA desclassificados recentemente também comprovam essas ações 11 11 De acordo com Moniz ( 2016 ), em um dos relatórios, de 500 páginas, sobre a situação política argentina, o documento revela que os Estados Unidos sabiam e apoiavam o golpe militar que aconteceria dias depois “um golpe militar contra a presidenta argentina (María Estela Martínez de Perón) pode ocorrer a qualquer momento. Somente as dúvidas de alguns oficiais-chave paralisam a decisão final. Os preparativos para o golpe estão prontos. Os navios e membros da Marinha já foram deslocados para pontos estratégicos por todo o país para controlar possíveis distúrbios após a tomada de poder.” e mostram o quanto a América da Latina se tornou palco importante da disputa bipolar, e o quanto sofreu com intervenções diretas e indiretas.

Décadas depois do fim da Guerra Fria, a chegada dos investimentos chineses e da Rússia, este último ainda que em menor escala, mas com acordos de infraestrutura e venda de armas, também acendeu o alerta dos EUA. A reação, contudo, foi diferente da dos embates com a União Soviética e os resultados também. Mesmo antes do aumento exponencial das relações comerciais entre a China e a América Latina, ainda durante o governo Obama, houve a percepção da Casa Branca de que os governos de orientação progressista da região, resultado do que ficou conhecido como onda rosa, e claramente mais pragmáticos nas relações externas, eram uma ameaça para a liderança estadunidense. Em resposta, promoveram uma série de ações desestabilizadoras em vários países, ainda que sem as intenções militares dos anos 1960, mas que por meio do lawfare e de outras práticas que ficaram conhecidas como guerra híbrida resultaram em uma onda de golpes de Estado, golpes parlamentares e crises que demoveram do poder quase todos os governos de esquerda e de centro-esquerda, permitindo a ascensão de governos liberais e de extrema-direita. (Coelho; Mendes, 2020 COELHO, André Luiz; MENDES, Mateus. 2020. A sofisticação do neogolpismo: dos protestos de 2013 à destituição de Dilma Roussef. Sul Global, v. 1, n. 1, pp. 212-232. Disponível em: https://tinyurl.com/3f8h54h8 . Acesso em: 24 abr. 2024.
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). A guinada, no entanto, não surtiu os resultados esperados. Enquanto as ditaduras militares que chegaram ao poder nos anos 1960 e 1970, via de regra, promoveram combates internos efetivos contra a influência de grupos apoiados pelos soviéticos, nos governos de direita de extrema-direita que chegaram ao poder na segunda década do século XXI aumentaram ainda mais a participação dos chineses e seus comércios internacionais, e fecharam acordos de infraestrutura e cooperação, o que consolidou a liderança econômica e a grande influência política chinesa em toda a região. Segundo dados da Cepal ( 2015COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE. 2015. Primer foro de la comunidad de estados latinoamericanos y caribeños (CELAC) y China: explorando espacios de cooperación en comercio e inversión. Santiago: Cepal. ), apenas em 2020, ano em que a maior parte dos governos sul-americanos eram de tendência de direita ou extrema-direita, os investimentos chineses no setor automotivo da região apresentaram aumento de 44% em relação ao período anterior, o de energia renovável 17%, e o de serviços financeiros 11%, além de vários outros setores em que a liderança chinesa passou a se consolidar sem fortes concorrências, como agricultura, pesca e logística de transporte.

A ausência de uma resposta efetiva dos EUA à presença, principalmente da China, na América Latina e sua notória e acentuada perda de influência econômica e política na região, mostra não apenas que as estratégias do passado para lidar regionalmente com disputas globais não mais funcionam, como também indicam a necessidade de reavaliações e mudanças de rota em sua política externa hemisférica. E, ao menos até este momento, a mudança de postura nas relações com a Venezuela apresentam-se como o que se tem de mais substancial nesse sentido.

Os interesses venezuelanos na distensão: longo histórico de vantagens em tempos de crises

No lado venezuelano, o claro e rápido aceno de Maduro para Washington ao perceber a possibilidade de algum diálogo – apesar do suporte fundamental de China e Rússia que por anos garantem a viabilidade econômica e a estabilidade política a seu governo, mais uma vez alçou o pragmatismo venezuelano a um lugar acima do notório sentimento antagonista de Caracas em relação aos EUA em meio a tantas pressões, acusações e claras tentativas de sabotagem. Tal comportamento, contudo, não é uma excepcionalidade, mas uma característica da política venezuelana que, em diferentes momentos e sob governos de distintas orientações ideológicas, optou pelo pragmatismo nas relações com Washington e com a Europa, com o claro objetivo de maximizar vantagens, algumas delas de importância histórica para o país.

O caso mais emblemático, e que rendeu mais frutos, aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial. A exemplo de outros países latino-americanos, a Venezuela procurou inicialmente se manter neutra no conflito a partir 1939. O governo militar do general Isaías Medina Angarita, notoriamente inclinado ao fascismo e ao governo italiano de Mussolini, na impossibilidade de apoiar formalmente o Eixo, sobretudo por conta dos EUA, optou em um primeiro momento por não ter qualquer participação, ainda que indireta, no conflito. Contudo, seu papel àquela altura já crucial como exportador de petróleo fez com que Washington iniciasse uma pressão política de difícil contenção a partir de 1941, ano em que entrou na guerra. A razão principal centrava-se no fato de que as reservas venezuelanas representavam um abastecimento mais seguro para as bases militares em território americano e no Caribe, sem as ameaças que a Marinha alemã oferecia no transporte de petróleo vindo de outros continentes. Eram, portanto, fundamentais para a máquina de guerra contra os nazistas.

Ao perceber o custo político de resistir à Casa Branca, e ao calcular as vantagens que poderia obter em se posicionar claramente a favor dos Aliados, Angarita decidiu entrar no esforço colaborativo e elevou ao máximo a produção de petróleo que a estrutura venezuelana permitia na época. Utilizou, contudo, a pressão que sofreu para a implementação de medidas que não agradaram a Washington, mas que acabaram não tendo grandes reações, como a mudança na Lei de Hidrocarbonetos, e estratégias protecionistas em importações. Caracas conseguiu ainda em plena Segunda Guerra um acordo que obrigava os EUA a comprarem uma quota fixa de seu café, pouco competitivo no mercado internacional, e um convênio, também com os EUA, de colaboração bélica, em que os americanos forneciam investimentos e recursos humanos na produção de armamentos em território venezuelano.

Os trabalhadores do petróleo expressaram a opinião de que apenas à luz do interesse nacional seria possível entender a conduta do Departamento de Estado (EUA) em apoiar a Lei Venezuelana de Hidrocarbonetos de 1943, que impôs impostos adicionais sobre a produção de petróleo pelos americanos e empresas britânicas .

(Rivas, 1995 RIVAS, Ramón. 1995. Venezuela, petróleo y la Segunda Guerra Mundial (1939-1945): un ejemplo histórico para nuevas generaciones. Economía, n. 10, pp. 163-179. Disponível em: https://tinyurl.com/su8bc68j . Acesso em: 24 abr. 2024.
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, p. 173, tradução nossa)

Segundo Rivas ( 1995 RIVAS, Ramón. 1995. Venezuela, petróleo y la Segunda Guerra Mundial (1939-1945): un ejemplo histórico para nuevas generaciones. Economía, n. 10, pp. 163-179. Disponível em: https://tinyurl.com/su8bc68j . Acesso em: 24 abr. 2024.
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), sem o aumento da produção venezuelana, a superioridade militar americana estaria comprometida. Mas o governo venezuelano de acordo com ele, teve a habilidade necessária para mandar a conta e ficar com muitos dividendos desse esforço.

A Venezuela exportou mais de 80% do petróleo e derivados, para Aruba, Curaçao, Bonaire; que, posteriormente, foram reexportados para (unidades aliadas) na África, Ásia e Europa. Esta circunstância foi favoravelmente utilizada pelo nosso país para alcançar um conjunto de vantagens nos aspectos políticos, económicos e históricos.

(Rivas, 1995 RIVAS, Ramón. 1995. Venezuela, petróleo y la Segunda Guerra Mundial (1939-1945): un ejemplo histórico para nuevas generaciones. Economía, n. 10, pp. 163-179. Disponível em: https://tinyurl.com/su8bc68j . Acesso em: 24 abr. 2024.
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, p. 172, tradução nossa)

Já os benefícios territoriais foram obtidos em sua maioria do Reino Unido, igualmente necessitado do petróleo venezuelano e, por isso, interessado em manter boas relações com Angarita. Para Boersner ( 1978BOERSNER, Demetrio. 1978. Venezuela y el Caribe: presencia cambiante. Caracas: Monte Ávila Editores. ) algumas das maiores conquistas diplomáticas da História venezuelana foram obtidas durante a Segunda Guerra Mundial por meio dessa política pragmática de obtenção de benefícios.

Em troca, exigiam das grandes potências democráticas algumas concessões tendentes a fortalecer a posição vulnerável da Grã-Bretanha, abrindo para a Venezuela a possibilidade de exigir com sucesso certas retificações territoriais. Como parte de sua expansão para o oeste, o Império Britânico não só ocupou a Guiana Essequiba, mas também a Ilha de Patos. Os governos de Caracas em várias ocasiões exigiram a devolução da Ilha de Patos, bem como uma delimitação do Golfo de Paria que resguardasse os direitos da República. Repetidamente, a Inglaterra havia recusado, constituindo motivo de atrito entre os dois países. A partir de 1940, a Grã-Bretanha foi assediada pela ofensiva nazista e ansiosa por consolidar e melhorar suas relações com a Venezuela, cujo petróleo adquirira extraordinária importância estratégica. Portanto, a Coroa Britânica concordou em assinar dois tratados com a Venezuela. A primeira delas afirma que o governo de Sua Majestade “renúncia em favor da Venezuela ao título e a todos os direitos de soberania sobre dita ilha”. O outro instrumento estabelecia que as áreas submarinas do Golfo entre Trinidad e Venezuela, com base em três linhas que seriam traçadas por uma omissão mista anglo-venezuelana.

(Boersner, 1978BOERSNER, Demetrio. 1978. Venezuela y el Caribe: presencia cambiante. Caracas: Monte Ávila Editores. , p. 85)

Durante a década de 1970, sob o governo do presidente Carlos Andrés Perez e em meio a Guerra Fria, a Venezuela também deixou de lado o alinhamento incondicional aos EUA e o não estabelecimento de relações com regimes ditatoriais, o que a havia isolado na América do Sul, para estabelecer uma política de distensão tanto com os regimes militares de direita latino-americanos, como com os países comunistas do Leste Europeu e a União Soviética. Foi neste período que o governo venezuelano trabalhou intensamente para obter protagonismo no Movimento dos Não-Alinhados, fez empréstimos e acordos com países do Leste Europeu e organizou a viagem histórica de Perez a Moscou.

Mesmo durante o governo Hugo Chávez, período de fortes confrontações políticas com os EUA, a política pragmática em relação aos EUA se manteve, não apenas nas exportações de petróleo, como nas importações de produtos estadunidenses, especialmente agrícolas e maquinário. Durante o período mais tenso nas relações entre os dois países, entre 2002 e 2012, os EUA se mantiveram como principal parceiro comercial da Venezuela, e a reversão desses dados só ocorreram durante o governo Maduro, não por deliberação do Palácio Miraflores, mas por conta das sanções impostas por Washington. Nas relações com os EUA, portanto, apesar de variações significativas no plano político, diferentes governos venezuelanos centraram-se no pragmatismo, especialmente nas relações comerciais.

O pragmatismo adotado pelos governos de Caracas em alguns períodos importantes mostra que as relações da Venezuela com os EUA não se apresentam no decorrer da História de forma polarizada, ora alinhada, ora oposicionista, todavia possuem diferentes nuances e gradações. Diante dessa diversidade de relações com os EUA no decorrer da história, o que também é observado em outros países sul-americanos, Guimarães ( 2008GUIMARÃES, Cesar. 2008. Integração hemisférica ou integração autônoma. In: LIMA, Maria Regina Soares de (org.). Desempenho de governos progressistas no Cone Sul: agendas alternativas ao neoliberalismo. Rio de Janeiro: Edições Iuperj. pp. 239-247. ) ressaltou para a necessidade de uma maior reflexão conceitual sobre as formas de relações mantidas por países latino-americanos com potências centrais, e suas consequências.

Antes que os movimentos dos anos 2000 se caracterizassem como uma tendência, Helio Jaguaribe (1986) já havia tido a sensibilidade de captar a diferença entre comportamentos revisionistas de periferia, especialmente na América do Sul. De maneira geral, ele dividiu esse tipo de comportamento político em dois grupos: as políticas de “confrontação autônoma” e as políticas de “confrontação antagônica”. O autonomismo, em sua visão, se aproveita das benesses do tempo, é firme em seus propósitos sem se esquecer da política da prudência, não deseja mudanças calcadas apenas pelo imediatismo e exerce a independência nas ações de forma clara, porém discreta sempre que possível. Já o antagonismo tem um caráter imediatista, baseia-se em grande parte na confrontação, especialmente, mas não exclusivamente retórica, tem como estratégia a oposição clara em todos os níveis e tenta convertê-la em política internacional de prestígio.

(p. 180)GUIMARÃES, Cesar. 2008. Integração hemisférica ou integração autônoma. In: LIMA, Maria Regina Soares de (org.). Desempenho de governos progressistas no Cone Sul: agendas alternativas ao neoliberalismo. Rio de Janeiro: Edições Iuperj. pp. 239-247.

A postura pragmática venezuelana, tanto na Segunda Guerra, quanto na Guerra Fria, no período Chávez e agora diante da disputa global entre EUA e China, pode ser vista como um exercício do autonomismo, substituído em alguns momentos pelo antagonismo de confrontação, muito mais por condicionantes e pressões externas do que por deliberação interna. E a discrição atual na retomada de contato e nas relações oficiosas entre os dois governos demonstram claramente, também no lado venezuelano, que as condicionantes atuais do sistema internacional empurraram para o segundo plano a retórica de oposição e sua decorrente política de prestígio, e trouxeram de volta à tona os lucros e benefícios de longo prazo que podem ser obtidos numa reaproximação. Contudo, torna-se necessário ressaltar que essa reaproximação, apesar de não se apresentar como excepcionalidade, tem elementos particulares em relação a outros momentos históricos.

Um deles é que esta é a primeira vez que uma aproximação pragmática, com o reestabelecimento de relações comerciais, é feita sob a ruptura total de relações entre os dois países (as embaixadas ainda estão desativadas) e o não reconhecimento, por parte da Casa Branca, de Maduro como governante legítimo da Venezuela. Trata-se de um afastamento formal de grande impacto, perpetrado durante do governo de Donald Trump, e que quase resultou em uma crise militar. Reestabelecimento das relações comerciais este, que não teve como exigência por parte do governo de Caracas, pelo menos em seus primeiros momentos, mudanças no status das relações políticas e diplomáticas formais, nem a disposição de Washington de rever formalmente sua posição, apesar do notório silenciamento das autoridades estadunidenses sobre a Venezuela, antes afeitas às denúncias e aos anúncios de sanções e restrições (Trinidad, 2022 TRINIDAD Y Tobago sigue de cerca el acercamiento entre EEUU y Venezuela. 11 mar. 2022. Swissinfo, [s. l.]. Disponível em: https://tinyurl.com/4vmuf8my . Acesso em: 24 abr. 2024.
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).

Outro elemento é que, apesar do não reestabelecimento formal de relações, a tensão entre os dois países, especialmente no plano retórico, foi reduzida de forma considerável, pelo menos desde 2022. Feito importante para a manutenção da estabilidade interna do governo Maduro, e também para os EUA, envolvidos em outras crises internacionais de grande espectro e com a necessidade parecer ter o controle estável sobre sua região.

Mesmo os números ainda sendo modestos, a retomada sinaliza que a venda de petróleo venezuelano para os EUA será restituída a patamares importantes, ainda que não iguais aos de períodos passados, e isso pode se converter em uma fonte de tensão com a China, a maior compradora do petróleo venezuelano no momento, mas também em fonte de barganha por parte do governo Maduro, para obtenção de vantagens econômicas e em projetos de infraestrutura e de defesa. Desenha-se um cenário de ação diplomática semelhante ao da Segunda Guerra Mundial, quando a Venezuela conseguiu com EUA e Reino Unido concessões que jamais seriam feitas em outros períodos, como o aval para estatização da produção petrolífera e a transferência da soberania de territórios.

Outro elemento também começa a se destacar. Com os principais esforços da política externa venezuelana voltados para os EUA e para a China, reduz-se as atenções de Caracas para os vizinhos sul-americanos e caribenhos, o que pode ter impactos nos projetos de integração regional, abalados desde a ascensão dos governos de direita e extrema-direita na região, e nas relações regionais. A ausência de Maduro na Cúpula da Amazônia realizada em agosto de 2023, e que pegou de surpresa dos chefes de Estado presentes, pode ser vista como um exemplo da não priorização da política externa venezuelana, neste momento, para questões regionais.

Considerações finais

As relações pendulares entre a principal potência do planeta e o país detentor das maiores reservas de petróleo no mundo sempre extravasaram os limites da política regional ou hemisférica, ao mesmo tempo em que suas ambiguidades e ambivalências, não raro, influenciaram o núcleo da agenda sul-americana. Em tempos de disputas acirradas pelo poder no âmbito global, além de impactarem diretamente a movimentação de grandes potências, a dinâmica dessas relações bilaterais anula em certa medida a tradicional disjuntiva entre o que é do plano regional ou hemisférico e o que é do plano global, e lança não somente a Venezuela, mas a América do Sul no centro das atenções e dos objetivos de cooptação.

Joga luz também sobre a problemática relação dos EUA com os países latino-americanos, anacrônica pelo menos desde a questão cubana, e incapaz de oferecer instrumentos e mecanismos adequados para reformular o debilitado sistema interamericano. A obsolescência dessas relações abriu espaço para a maior presença da China e, não se pode desconsiderar, alça a região à condição de área de grande conflito em potencial.

Como apontado por Lima e Moura ( 2018LIMA, Maria Regina Soares de; MOURA, Gerson. 2018. A trajetória do pragmatismo: uma análise da política externa brasileira. In: LIMA, Sérgio Eduardo Moreira (org.). O pragmatismo responsável na visão da diplomacia e da academia. Brasília, DF: Funac. pp. 317-342. ), citado anteriormente, mudanças substanciais em curso na estratificação de poder no plano internacional ao mesmo tempo em que são resultado, provocam a perda de coerência do sistema de alianças e a redefinição de hegemonias em antigas áreas de influência. No epicentro dessas mudanças está a disputa global entre EUA e China pela liderança, e que envolve não apenas as duas potências, contudo coloca a Europa e o Japão ao lado dos EUA, a Rússia como aliada da China, e, ainda que em espelhamento apenas análogo em relação à Guerra Fria, todo o resto do mundo em disputa. Isso tem efeitos diretos nas relações com a Venezuela, principalmente por conta do petróleo, estratégico em tempo de ameaças constante, mas também diante da necessidade de se manter, ainda que apenas de fechada, a coesão das alianças regionais, evitando assim a adesão declarada de países vizinhos aos interesses rivais. Desde os acordos entre EUA e Venezuela, Maduro tem evitado encontros e acordos com chineses, pelo menos no plano midiático, uma vez que com frequência eram anunciados com toda a pompa e circunstância.

Apesar de países como Brasil, Argentina e Chile serem de extrema importância nos números que apontam a presença chinesa na região, e do cenário atual ser de heterogeneidade ainda mais profunda entre os países do hemisfério, a dinâmica das relações entre EUA e Venezuela, hoje mais do que nunca conjugadas à prioridade geopolítica da Ásia na estratégia militar estadunidense, terá centralidade na definição do papel pelos próximos anos da América do Sul nesse mundo em disputa.

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  • 1
    Não estão nesta conta as sanções impostas contra o governo Hugo Chávez, a mais importante delas a proibição de exportação de equipamentos e componentes militares e da indústria de aviação para a Venezuela. As sanções econômicas mais graves, contudo, foram implementadas durante o governo Maduro.
  • 2
    Dados disponíveis em: https://tinyurl.com/4h8rv9dj . Acesso em: 24 abr. 2024.
  • 3
  • 4
  • 5
    Dados disponíveis em: https://tinyurl.com/27k7a5uh . Acesso em: 4 maio 2023.
  • 6
    Dados disponíveis em: https://tinyurl.com/bdhthsxk . Acesso em: 4 maio 2023.
  • 7
    Disponível em: www.census.org . Acesso em: 4 maio 2023.
  • 8
    Dados disponíveis em: https://tinyurl.com/bdhthsxk . Acesso em: 4 maio 2023.
  • 9
    UBS RELATÓRIO, “As mudanças no cenário do petróleo com a guerra na Ucrânia”. Segundo estudos do banco suíço, a guerra na Ucrânia fará com que em 2023 os gastos com petróleo cheguem a 5% do PIB mundial, cerca de US$ 4,6 trilhões. No Brasil, segundo dados do Ministério da Economia, o petróleo é o terceiro produto na pauta das exportações brasileiras, atrás apenas da soja e do minério de ferro, totalizando em 2022 US$ 30,6 bilhões em vendas. Também disponível em https://exame.com/invest/onde-investir/como-preparar-o-portfolio-para-uma-guerra-na-ucrania-segundo-o-ubs/
  • 10
    Disponível em: https://tinyurl.com/ybat4pr6 . Acesso em: 4 maio 2023.
  • 11
    De acordo com Moniz ( 2016BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. 2016. A desordem mundial: o espectro da total dominação. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. ), em um dos relatórios, de 500 páginas, sobre a situação política argentina, o documento revela que os Estados Unidos sabiam e apoiavam o golpe militar que aconteceria dias depois “um golpe militar contra a presidenta argentina (María Estela Martínez de Perón) pode ocorrer a qualquer momento. Somente as dúvidas de alguns oficiais-chave paralisam a decisão final. Os preparativos para o golpe estão prontos. Os navios e membros da Marinha já foram deslocados para pontos estratégicos por todo o país para controlar possíveis distúrbios após a tomada de poder.”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Ago 2023
  • Aceito
    21 Fev 2024
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