Open-access A PALAVRA E A COISA: BOLSONARISMO COMO CONVERGÊNCIA, HORIZONTE, INFRAESTRUTURA, ECOLOGIA E MÁQUINA

THE WORD AND THE THING: BOLSONARISM AS CONVERGENCE, HORIZON, INFRASTRUCTURE, ECOLOGY, AND THE MACHINE

Resumo:

Existe um conceito de bolsonarismo? Se sim, a que ele se refere? Neste artigo, defendo que é possível dar contornos definidos a esse conceito se o compreendemos como se referindo não a qualquer inovação ideológica em particular, ou especificidade da extrema direita brasileira diante de seus pares no resto do mundo, ou mesmo qualquer traço particular do líder que lhe empresta o nome; mas antes às condições de formação e consolidação de uma força política constituída originalmente no contexto da eleição presidencial de 2018. Assim entendido, o bolsonarismo pode ser interpretado como designando ao mesmo tempo uma convergência de diferentes tendências sociais; um horizonte político; uma ecologia organizacional; uma infraestrutura afetiva e uma máquina que funciona mediante o estímulo e a contenção do excesso de sua base social.

Palavras-chave:  Bolsonarismo; Extrema Direita; Ecologia Organizacional; Infraestrutura Afetiva

Abstract:

Is there such a thing as a concept of Bolsonarism? If so, what does it refer to? This study argues that it is possible to give defined contours to this concept if we understand it as referring not to any particular ideological innovation or to any specificity of the Brazilian far right toward its peers around the world or even to any particular trait of the leader who lends it its name; but rather to the conditions of formation and consolidation of a political force originally constituted in the 2018 presidential election in Brazil. Thus understood, Bolsonarism can be interpreted as designating at the same time a convergence of different social tendencies; a political horizon; an organizational ecology; an affective infrastructure; and a machine that works by stimulating and containing the excess of its social base.

Keywords:   Bolsonarismo ; Extreme Right ; Organzsational Ecology ; Affective Infrastructure

Ainda que muito se tenha dito e escrito sobre o bolsonarismo nos últimos anos, não está claro que haja algum consenso sobre o conteúdo desse conceito, ou mesmo se efetivamente se trata de um conceito, e não apenas de um nome. De que estamos falando quando usamos essa palavra? Parece claro que não se trata de uma doutrina política, nem mesmo uma implicitamente elaborada. Ao contrário, por exemplo, do nacionalismo hindu em que se sustenta o regime de Narendra Modi na Índia, não há qualquer especificidade ou inovação ideológica importante que faça do bolsonarismo um caso especial entre as outras forças de extrema direita hoje existentes. Pelo contrário, uma forma de compreendê-lo seria justamente vê-lo como a importação e incorporação definitiva ao repertório político brasileiro de temas (aborto, posse de armas) e práticas (a luta contra o “politicamente correto”, as “guerras culturais”) que serviram muito bem à direita americana como ferramentas de mobilização desde os anos 1980. Mas o que seria o bolsonarismo, então? Estaríamos lidando unicamente com uma lista de traços escolhidos ao acaso, com pouco mais em comum que sua inerência a um indivíduo ou a um momento histórico?

Gostaria de defender aqui que é possível atribuir ao termo um sentido mais rigoroso se o compreendemos não como nomeando qualquer particularidade da extrema direita brasileira, ou mesmo do líder político cujo nome ele toma emprestado, mas antes as condições de formação e consolidação de uma força social e política assim designada. Abordá-lo dessa maneira nos permite ver o bolsonarismo ao mesmo tempo como uma convergência , um horizonte , uma infraestrutura , uma ecologia e uma máquina com contornos bem definidos, conforme pretendo desenvolver a seguir.

Bolsonarismo como Convergência

Falar no bolsonarismo como convergência implica entendê-lo como o encontro de um conjunto de elementos pré-existentes, que já eram amplamente disseminados em diferentes setores da sociedade brasileira, e que ganharam uma identidade coletiva e uma direção política pela primeira vez durante a campanha presidencial de 2018. Isso quer dizer que devemos entender o papel de Jair Bolsonaro como o de um catalisador, não um demiurgo; como contingente em vez de necessário. Em outras palavras, como o de alguém que pôde assumir o comando dessa convergência pelo simples fato de encontrar-se no lugar certo e na hora certa, e que não foi nem o mero representante que sobreveio a um povo já existente e independentemente formado (dado que sua presença foi essencial para que essa força em constituição ganhasse uma sutura política), nem o do líder cujo exemplo criou seu povo ex nihilo (visto que ele chega relativamente tarde à posição mais alta de um processo que já estava em andamento, no mínimo, desde 2015).

Em Do Transe à Vertigem: Ensaios sobre Bolsonarismo e um Mundo em Transição , propus listarmos os seguintes elementos como constituintes desse encontro: o militarismo, que se expressa no desejo de militarização dos conflitos sociais e da ordem pública, bem como numa certa nostalgia da ditadura militar; o anti-intelectualismo, que pode ou não ter uma origem religiosa, e que também se manifesta na associação da universidade e das artes com o esquerdismo e a degeneração moral, bem como na rejeição do conhecimento sem utilidade econômica imediata, no ethos do your own research das comunidades da internet e no culto a figuras que teriam sido marginalizadas por uma hegemonia cultural da esquerda nas instituições acadêmicas; a identificação com a figura do empreendedor e o ethos do “empreendedor de si mesmo”, presente simultaneamente entre os chamados “ self-made men ” da elite (na maioria das vezes não realmente “self -made ”, mas herdeiros de vários privilégios), nas aspirações das classes médias, e no “neoliberalismo desde baixo” (para usar a expressão da socióloga argentina Verónica Gago) das classes trabalhadoras, cujas vidas foram radicalmente reconfiguradas pelas reformas trazidas pelo “neoliberalismo desde cima” a partir dos anos 1990; o conservadorismo social e a defesa de costumes e valores tradicionais; a rejeição da corrupção, entendida de forma despolitizada como uma questão moral e não política; e, por fim, um liberalismo econômico e um anticomunismo ressurgentes e radicalizados (Nunes, 2022 ).

Estes dois últimos elementos, que foram objeto de financiamento direcionado e esforços organizacionais desde o início do primeiro governo Lula através da criação de estruturas como o Instituto Millenium, desempenharam um papel particularmente importante na construção da costura narrativa que liga todos os outros. Eles foram ajudados nessa tarefa pela explosão concomitante, em 2014, de uma das maiores crises econômicas da história do Brasil e de um de seus maiores escândalos de corrupção. Isso proporcionou a oportunidade para uma narrativa que combinava uma desconfiança hayekiana contra a justiça social com a ideia de que o modus operandi universal da esquerda seria usar recursos públicos para comprar o apoio de grupos de interesse (pobres, minorias, artistas) a fim de instalar regimes totalitários corruptos e economicamente ineficientes que promovem uma agenda de ataque aos valores tradicionais (o chamado “marxismo cultural”). A escala da malversação revelada por um caso que envolveu quase todos os partidos políticos serviu, assim, como prova não da integração definitiva do Partido dos Trabalhadores (PT) à elite governante do país, mas antes do quão avançado já se encontrava seu plano de “transformar o Brasil em uma Venezuela” —- e, simultaneamente, de integrá-lo à estratégia internacional do chamado “globalismo”.

Se essa armação discursiva e a figura de Bolsonaro serviram de costura política “desde cima”, isso não faz com que o conjunto que descrevemos aqui deixe de ser sustentado, na base, pelas afinidades eletivas que existem entre esses diferentes elementos. Como essas afinidades são generalizadas em toda a sociedade, elas reúnem setores muito díspares, desde as classes trabalhadoras até o 1% mais rico. Também nesse sentido o bolsonarismo pode ser descrito como um encontro: um que se dá entre setores que desistiram de esperar pelas promessas não cumpridas da modernização (das relações sociais, trabalhistas, institucionais e políticas) e outros que já não pretendem sequer fingir que essas promessas ainda estão em oferta.

De um lado, estão alguns daqueles que se veem cada vez mais sujeitos a um horizonte de expectativas cada vez menor, a uma competição crescente por retornos decrescentes, às realidades da estagnação econômica, do subemprego, do colapso ecológico e das vicissitudes da “viração” —- palavra com a qual os trabalhadores precários de São Paulo designam um conjunto de estratégias de sobrevivência que envolvem um movimento constante do trabalho formal para o informal, das atividades legais para as ilegais, da exploração de redes familiares e pessoais ao recurso a atividades que muitas vezes sequer são reconhecidas como trabalho (Abílio, 2021 ). 1 Do outro lado, uma elite para quem as miragens do estado de bem-estar social, da participação democrática e do desenvolvimento sustentável deixaram de ser economicamente viáveis e politicamente necessárias, e para quem o governo Bolsonaro representou a perspectiva de pelo menos quatro anos de capitalismo predatório sem controle. O que esses dois grupos têm em comum é a sensação de que, em um mundo onde a economia está estagnada, o subemprego cresce, os recursos estão diminuindo, os riscos estão aumentando e os mecanismos competitivos são onipresentes, as regulamentações e proteções se tornam um obstáculo em potencial à capacidade individual de competir, ao passo que o objetivo final da competição é cada vez mais atingir a posição ideal daqueles para quem as regras que se aplicam aos outros se tornaram facultativas. 2

Bolsonarismo como Horizonte

É nesse sentido que o bolsonarismo também pode ser entendido como um horizonte —- um horizonte que se pode descrever como o de um estado de natureza diferencialmente distribuído , ou seja, uma abdicação radical por parte do Estado de toda a responsabilidade pela mediação de conflitos econômicos e sociais, combinando o direito do grupo no governo de impor sua vontade em áreas como costumes sociais e liberdade de expressão com uma atitude de extremo laissez faire em relação ao exercício do poder, incluindo a força bruta, onde quer que diferenciais de poder existam. É o sonho paradoxal de uma liberação de forças presidida por uma figura paterna que é ao mesmo tempo rigorosa (com aqueles que não são “cidadãos de bem”) e permissiva (com aqueles que são); em que a autoridade é exercida de forma decisiva de cima para baixo e devolvida a poderes locais livres para agir dentro de sua própria esfera de influência (o pastor, o proprietário de terras, o policial, o pater familias , o líder criminoso ou miliciano); em que os conflitos de jurisdição seriam, apesar de tudo, improváveis, porque “todo mundo sabe o seu lugar”.

Assim como no caso de Trump, essa confusão entre disciplina e permissividade foi fundamental para o apelo de Bolsonaro. Ele era tanto aquele que seria duro com o aborto quanto aquele que trataria o abuso de menores por parentes como um assunto de foro privado; aquele que acabaria com a corrupção e aquele que entendia ser o excesso de regulamentação o que forçava os cidadãos de bem a burlar as leis. A condição para que isso tivesse o poder de interpelação que acabou tendo foi que cada um de seus seguidores se imaginasse sempre como estando entre as fileiras dos que seriam protegidos em vez daquela dos que seriam reprimidos.

Esse ponto me oferece a oportunidade de responder a uma pergunta que me foi posta algumas vezes: por que não incluir o racismo entre as várias matrizes discursivas e comportamentais que proponho como componentes do bolsonarismo? Minha resposta é que, no caso brasileiro, o racismo parece-me funcionar de maneira diferente daquela como ele opera na extrema direita de países como a Índia, os Estados Unidos e a Alemanha. Para Modi e o Sangh Parivar, conjunto de organizações da qual faz parte o partido governante Bharatyia Janata, o nacionalismo hindu e a exclusão dos muçulmanos em particular têm um papel central na construção de coesão política; em torno de Trump, por sua vez, há uma constelação de grupos que abertamente abraçam o supremacismo branco e toda uma história de dog whistles codificados de forma bastante transparente; enquanto para a Alternativ für Deutschland, as conotações raciais da luta contra a imigração são tão evidentes que mesmo uma suposta luta contra o antissemitismo pode ser posta a serviço da perseguição de estrangeiros e alemães de origem africana e asiática (Daub, 2024 ). De maneira mais geral, as conexões entre o fascismo histórico, o colonialismo e o dispositivo racial já foram há muito apontadas por autores como Aimé Césaire e W. E. B. Du Bois; apoiando-se no trabalho de Ruth Wilson Gilmore, Alberto Toscano observou recentemente que o medo racial costuma ser um mediador essencial à conquista de adesão popular por parte de um projeto político de redução de todas as capacidades estatais exceto as repressivas. 3 No Brasil, é claro, o racismo é bastante difundido entre apoiadores de Bolsonaro, especialmente no Sul e Sudeste e ao longo da fronteira extrativista do Centro-Oeste; para não mencionar as frequentes lamentações contra os chamados “excessos” do “politicamente correto” e do antirracismo, muitas vezes externadas por tokens raciais cuidadosamente selecionados. Acredito, contudo, que, conforme demonstra a comparação com exemplos como o indiano, o norte-americano e o alemão, o papel que o racismo ocupa no bolsonarismo é menos o de um elemento central, mais ou menos disfarçado, do que o de uma força estrutural implícita que determina concretamente o conteúdo da maioria das outras matrizes discursivas explícitas mencionadas anteriormente. Em nenhum lugar isso fica mais claro do que na defesa do armamento dos “cidadãos de bem” para que possam defender suas propriedades e famílias contra os “criminosos”: conhecendo a composição social das classes proprietárias e pobres no Brasil, não é difícil ver como essas duas categorias são racializadas. É assim que é possível a essas matrizes discursivas desempenharem um papel objetivamente racista sem que isso exija necessariamente uma adesão subjetiva ao racismo. Isso torna mais fácil para pessoas negras no Brasil se projetarem na posição de população protegida pela extrema direita do que, por exemplo, nos Estados Unidos, o que por sua vez nos ajuda a entender porque o voto negro projetado para Trump na próxima eleição presidencial —- que, de acordo com uma pesquisa recente, pode chegar a 18% (acima dos 12% em 2020, o mais alto de todos os tempos para um candidato republicano) —- ainda é apenas metade do que se estimava que Bolsonaro obteria em 2022. 4

Bolsonarismo como Infraestrutura

Se falar do bolsonarismo como convergência e horizonte é tomá-lo desde o ponto de vista de seu conteúdo, considerá-lo como infraestrutura, ecologia e máquina é pensá-lo sob o aspecto de sua organização. É para este que nos voltamos agora.

Quando falo em infraestrutura, tenho em mente o conceito de infraestrutura afetiva , que tem ganho alguma circulação nos últimos anos. 5 Tal como o compreendo, esse conceito implica, primeiramente, uma infraestrutura comunicacional, o que no caso brasileiro inclui grupos de WhatsApp e Telegram, influenciadores e perfis variados em redes sociais, vozes aliadas na, e veículos inteiros da, mídia corporativa (rádios, jornais e canais de TV) e assim por diante. Grande parte dessa estrutura começou a se constituir de baixo para cima, e em todo caso de maneira descentralizada, já antes dos protestos pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2015; mas foi a partir da campanha de 2018 que ela foi deliberadamente ampliada e integrada a algo mais organizado e piramidal. 6 Isso resultou, no seu auge, em um sistema de difusão e feedback organizado de cima para baixo, no qual as linhas gerais do discurso a ser adotado percolavam, em última instância, de um grupo extraoficial diretamente ligado ao presidente (o chamado “Gabinete do Ódio”); enquanto as respostas, os temas e o material produzidos na base eram filtrados até o topo, onde podiam ser amplificados, reciclados ou incorporados como adaptações nas mensagens originais. Essa estrutura também inclui espaços não digitais tanto no sentido físico quanto no social, como igrejas e grupos de igrejas, clubes, redes de amigos e familiares que estão conectados de uma forma ou de outra ao tronco principal do sistema-rede de comunicação. Tanto os espaços digitais quanto os não digitais possibilitam práticas e encontros regulares que criam e reproduzem determinados hábitos afetivos.

O que nos permite caracterizar esse suporte material como uma infraestrutura afetiva é o fato de que o que circula nele não são apenas informações ou bens, mas afetos. Por meio da repetição (de enquadramentos, mensagens, práticas, encontros) e da recursão (ajustando esses enquadramentos, mensagens, práticas e encontros às mudanças no grupo ou em seu ambiente), uma infraestrutura afetiva fixa os participantes em determinados padrões de afecções e sentimentos, sustenta a intensidade com que esses padrões são sentidos e, assim, reproduz uma determinada relação do grupo consigo mesmo e com seus vários grupos externos (que podem ser condensados em uma figura única e compacta do “outro” ou do “inimigo”). É mediante isso, e não por meios meramente retóricos, que uma infraestrutura afetiva é capaz de produzir as cadeias de equivalência 7 que dividem o campo social em dois campos, “nós” e “eles”; padrões afetivos e discursivos interagem de modo a definir objetos de amor e ódio, admiração e repulsa, medo e esperança, emulação e aversão, bem como as relações entre estes e determinadas disposições e ações possíveis. Por fim, as infraestruturas afetivas também funcionam como meios para efeitos de feedback positivo que aumentam a intensidade com que certos afetos são experimentados, resultando em fenômenos de sincronização afetiva 8 (em que um grande número de pessoas experimenta simultaneamente o mesmo sentimento forte) que podem ou não levar a descargas individuais e coletivas (na forma de violência estocástica e protestos de rua, por exemplo).

Bolsonarismo enquanto Ecologia e Máquina

Essa dinâmica de acúmulo e descarga também nos oferece a chave para compreender o bolsonarismo enquanto máquina — especificamente, uma máquina que funciona por meio do estímulo e da contenção do excesso. Esse modo de funcionamento está intimamente ligado à forma organizacional característica da agitação de extrema direita na maior parte do mundo hoje. Exceção feita ao já citado Sangh Parivar e alguns poucos outros casos, o que se observa na maioria das vezes atualmente é que, em vez dos movimentos de base com organização paramilitar característicos do fascismo histórico, a direita tende a se organizar em torno de ecossistemas daquilo que poderíamos descrever como “empreendedores políticos”. 9 Refiro-me aqui a agentes que exploram as possibilidades de uso oferecidas pelas plataformas digitais a fim de cultivar um capital midiático (alcance e poder de influência) que é a condição para a construção de um capital político constantemente convertido em capital econômico mediante a monetização de canais e perfis, a venda de produtos e serviços como palestras, ou mesmo a conquista de posições governamentais ou de carreiras na política eleitoral. O fato de que esses empreendedores sejam a célula fundamental dessas ecologias organizacionais confere a essas uma estrutura semelhante à dos sistemas de marketing multinível ou esquemas de pirâmide: um edifício de várias camadas em que cada camada descendente preside sobre um público menor, que pode ser, em última análise, o de uma única igreja, um grupo de amigos ou uma família; e onde o relacionamento entre os líderes ou influenciadores das diferentes camadas é de natureza essencialmente simbiótica, com os que estão mais acima dependendo da difusão capilar que os níveis mais baixos proporcionam e oferecendo-lhes, em troca, orientação, estruturas discursivas, oportunidades de crescimento, um modelo geral ou até mesmo um mero ponto focal para a ação.

Mas se o gerenciamento do capital social, político e econômico privado está, para os empreendedores políticos, indissoluvelmente ligado a seus objetivos políticos e vice-versa, segue-se que suas ações e intenções inevitavelmente tenderão a confundir uma coisa com a outra. Isso significa que os avanços e recuos dos movimentos em que esse tipo de agente é o principal componente organizacional não podem ser interpretados exclusivamente do ponto de vista ideológico, mas também precisam ser analisados, ainda mais do que nos movimentos políticos “normais”, segundo os interesses e objetivos pessoais de seus líderes. E dado que o maior interesse do parasita tende a ser não matar seu hospedeiro, isso implica que, se podemos identificar no bolsonarismo um horizonte político que se assemelha a algo que poderíamos definir como a aceleração da desintegração social , devemos, sem embargo, enfatizar que se trata também da gestão privatizada desta. Isto é, de um processo cujos principais agentes não desejam efetivamente ver chegar a seu termo, visto que isso acabaria por eliminar os benefícios que estes podem extrair dele. De onde que essa máquina, ainda que trabalhe suscitando respostas excessivas por parte de seus adeptos, não tem por objetivo último a destruição total, a máxima entropia ou um estado suicida, como querem algumas interpretações tributárias de um conceito excessivamente filosófico de fascismo 10 ; mas antes alterne o incentivo ao excesso com a sua contenção.

Essa lógica de cozimento “‘em fogo baixo’ por dinâmicas cismogênicas de baixa intensidade” (Cesarino, 2022 , p. 184), tal como o descreveu a antropóloga Letícia Cesarino, é bastante visível mesmo no momento de maior excesso do bolsonarismo: as ações de destruição realizadas em Brasília em 8 de janeiro de 2023. Um ponto que me parece essencial para compreender o ocorrido nessa ocasião é justamente a estrutura multinível que acabamos de discutir. Conforme tem ficado cada vez mais documentado, é fato que o topo da pirâmide bolsonarista tentou construir apoio para algum tipo de virada de mesa antes do segundo turno das eleições presidenciais ou, na pior das hipóteses, antes da posse de Lula. A mobilização dos bloqueios de estradas e dos acampamentos em frente aos quartéis após o segundo turno era um elemento central dessa estratégia. No entanto, a formação de um consenso na comunidade internacional e na classe política doméstica a respeito da lisura da vitória do candidato petista, a pressão exercida pelo governo norte-americano em particular, e a pouca clareza quanto às chances de sucesso da empreitada fizeram com que os aliados naturais do ex-presidente avaliassem ter mais a perder do que a ganhar embarcando na intentona. Diante da impossibilidade de angariar apoio, Jair Bolsonaro e seus filhos fizeram o mesmo cálculo e abdicaram temporariamente de liderar sua base publicamente, chegando mesmo a refugiar-se brevemente nos Estados Unidos. Quando o topo da pirâmide recuou, foram as camadas intermediárias da máquina bolsonarista que tomaram a iniciativa, entendendo que o refluxo das esperanças golpistas deixaria abandonado o segmento de sua base que mais confiara nas narrativas que a sustentavam —- aqueles para quem a vitória de Lula representava uma ameaça existencial iminente, tornando qualquer rendição ao princípio da realidade política uma traição pura e simples. Manter esse setor ativo, apesar das chances cada vez menores de sucesso, era, para essas camadas intermediárias, uma forma de preservar seu próprio público diante do risco de que todo o edifício desmoronasse, e de estabelecer, ao mesmo tempo, suas credenciais como potenciais futuros líderes. Era como se, tendo elevado a temperatura a um certo grau, os agitadores fossem obrigados a oferecer alguma válvula de escape à pressão acumulada, sob pena de perder prestígio junto a sua base. 11

Isso fez de bloqueios, acampamentos e eventos de 8 de janeiro uma reunião de dois tipos de pessoas com pouco a perder: os empreendedores políticos de nível médio, que desejavam espremer os últimos ganhos dos tempos de vacas gordas que talvez estivessem acabando, por um lado; e os fiéis verdadeiros para quem o fim da fantasia de um golpe parecia o fim do mundo, por outro. Atrás deles, e divididos entre essas duas categorias, estavam os financiadores, oriundos não do grande capital, que havia se conformado com a vitória de Lula —- e, de qualquer forma, também tinha muito a perder —-, mas dos escalões inferiores das classes mais altas, nas quais estão os apoiadores mais fervorosos de Bolsonaro. Encontram-se aí o pequeno capital familiar e os setores mais atrasados do agronegócio e do extrativismo (madeireiros ilegais, garimpeiros, produtores menos integrados aos mercados financeiros e internacionais), para os quais os anos de capitalismo de faroeste oficialmente tolerado durante o governo do presidente afastado haviam sido uma inigualável era de ouro.

Quando a dinâmica cismogênica que vinha esquentando continuamente desde o dia seguinte à eleição entrou em ebulição, o que fez o primeiro escalão do ecossistema bolsonarista? É claro que eles apoiaram as ações . Muitos deles as auxiliaram direta ou indiretamente, ou se manifestaram a favor delas em maior ou menor grau, e, mesmo depois das reações negativas que se seguiram, recusaram-se a condená-las. Quanto às forças militares e policiais, elas não só falharam deliberadamente em controlar as multidões, como frequentemente também as guiaram e ajudaram a entrar nos palácios, dando-lhes suporte e incentivo. Mas, no fim, nenhum desses atores efetivamente apoiou, naquele dia, um golpe de Estado . Os eventos que transcorreram eram o mais longe que eles estavam dispostos a ir: uma demonstração de força que não tinha a intenção de passar para o próximo estágio, porque isso os teria forçado a se expor e a correr riscos que não estavam preparados para assumir. E como, sem a mediação deles, as bases mobilizadas careciam dos meios institucionais para atingir seus objetivos, o maior momento de excesso do bolsonarismo foi também um exercício de contenção, uma demonstração de força social que era, ao mesmo tempo, admissão de fraqueza política.

Futuro(s) do Bolsonarismo

É em relação à operação dessa máquina e à integridade e continuidade da ecologia e da infraestrutura afetiva que a sustentam que pairam, hoje, as principais perguntas sobre o futuro do bolsonarismo. Se, tal como proposto aqui, aceitamos entender este último como a convergência de um conjunto de elementos distintos que adquiriram uma identidade coletiva e uma direção política próprias a partir da campanha presidencial de 2018, parece evidente que tais elementos permanecem ativos e amplamente disseminados na sociedade brasileira; que esta identidade, ainda que talvez menos coesa, continua produzindo efeitos; e que é sobretudo a direção —- o destino criminal e eleitoral da família Bolsonaro, o papel que esta ainda pode vir a ter, o maior ou menor sucesso de outras lideranças em assumir seu lugar —- que está hoje em dúvida. É por isso que, há algum tempo, tem se dito que é possível imaginar o bolsonarismo sem Bolsonaro.

Ao mesmo tempo, é bastante claro que o problema de quem irá suceder o ex-presidente não é redutível à simples substituição de um líder por outro. Dada a maneira como a ecologia e a infraestrutura afetiva da extrema direita acabaram se constituindo, com o capitão reformado e seus filhos à frente, tudo indica que a reconfiguração destas se tornará inevitável uma vez que o tema da sucessão finalmente se imponha. Diversos resultados são imagináveis a partir daí, desde o surgimento de uma outra liderança igualmente hegemônica até o desmembramento parcial da ecologia sob a égide de lideranças de menor envergadura, passando pela perda de entusiasmo por parte da base causada pela falta de herdeiros à altura ou por uma disputa encarniçada entre os candidatos a sê-lo. Esses diferentes cenários certamente terão, por fim, implicações para a capacidade da máquina bolsonarista de continuar funcionando. Se o grande trunfo desta em seus primeiros anos foi o poder de combinar uma base altamente mobilizada —- mas desprovida de meios próprios de organização e altamente dependente do trabalho de agitação feito por empreendedores políticos —- com a participação de mediadores institucionais na política, no Poder Judiciário e nas Forças Armadas, uma possibilidade para o futuro seria um aprofundamento da separação observada no 8 de janeiro. Isto é, uma situação na qual os mediadores renunciam a sua função de mediação, deixando a base à mercê ou do desânimo e da desmobilização ou, pelo contrário, da radicalização comandada por empreendedores políticos de menor monta. A menor influência direta sobre a política, nesse caso, poderia se traduzir em menor moderação por parte de líderes e seguidores, abrindo o caminho para outros momentos de excesso como aqueles observados entre novembro de 2022 e 8 de janeiro de 2023. Atualmente, contudo, o resultado que aparenta ser mais provável é outro: o crescimento de líderes que dialogam mais com a política institucional do que com o extremismo das bases, e, portanto, uma tendência à relativa “normalização” política da extrema direita.

Também o horizonte político em torno do qual o bolsonarismo logrou reunir setores sociais bastante díspares se mantém intacto, e tenderá a se manter assim enquanto não desaparecerem as condições que o sustentam: a reprimarização da economia; o crescente peso político do setor primário; o avanço da fronteira extrativista, um quadro global de estagnação econômica e a perspectiva de intensificação da crise ecológica; a queda da produtividade; o aumento da exploração; a diminuição das margens de compromisso entre capital e trabalho. Embora haja muito a ser feito para enfraquecer e dificultar o trabalho da ecologia e da infraestrutura afetiva do bolsonarismo, é sobre essas condições que será preciso agir se quisermos efetivamente parar o avanço da extrema direita, não só no Brasil, mas em todo mundo.

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  • 1
    Ver também o capítulo 2 da obra Incêndio: Trabalho e Revolta no Fim de Linha Brasileiro , publicada pelo coletivo Um Grupo de Militantes na Neblina, em 2023.
  • 2
    Naturalmente, falar em “setores” aqui não implica falar de classes inteiras: conforme revelam todas as pesquisas, e mesmo o resultado das últimas eleições em todos os níveis, não é verdade que toda a elite, e menos ainda que toda a classe trabalhadora, sejam lulistas ou bolsonaristas —- e, portanto, tanto em um caso quanto em outro só podemos estar nos referindo a frações de ambas as classes. O que interessa apontar aqui é, primeiro, que há uma fração da classe trabalhadora, e inclusive um certo sentimento de revolta existente nesse setor, que encontra um espaço de acolhida e identificação na extrema direita, no Brasil e no resto do mundo; segundo, que esse fato promove uma paradoxal convergência de interesses entre quem está entre os mais explorados e quem está entre os mais ricos numa mesma sociedade; e, terceiro, que essa convergência se dá precisamente em torno do horizonte de um estado de natureza diferencialmente distribuído.
  • 3
    Ver: Césaire ( 1950 ); Du Bois ( 1965 ); Toscano ( 2023 ); Gilmore ( 2022 ). Conforme resume Toscano, numa análise cuja alta qualidade só é prejudicada por um viés exageradamente centrado nos Estados Unidos: “Salários psicológicos e dividendos raciais, assentados na longue durée de uma democracia liberal exclusiva ao Herrenvolk , dão sustentação a um regime de acumulação brutalmente desigual alistando corpos e psiques em guerras culturais intermináveis que simultaneamente prolongam e obscurecem a guerra social do lado de cá e as guerras infinitas do lado de lá das fronteiras” (Toscano, 2023 , p. 44).
  • 4
    Ver Cox ( 2024 ) e Pestana ( 2022 ). Quanto à pergunta, que também já me foi feita, sobre por que não incluir a religião, e particularmente o pentecostalismo/neopentecostalismo, entre as tendências que compõem o bolsonarismo, a resposta é outra. Parece-me que falar em religiosidade ou, pior ainda, em uma ou mais religiões em particular, seria uma maneira imprecisa de recortar a realidade; por outro lado, “anti-intelectualismo” e “conservadorismo social” cobrem, acredito, os principais elementos que se costuma associar ao bolsonarismo religioso, com a vantagem de não sugerir nem que eles seriam exclusividades daqueles que são crentes, nem que pertenceriam unicamente a esta ou aquela religião. Não se trata, que fique claro, de negar a importância que têm as igrejas, especialmente as evangélicas, na constituição da base bolsonarista; mas de sugerir que essa importância é mais organizacional e contingente, resultado da formação de lideranças ultraconservadoras nesse meio, que consequência necessária do conteúdo doutrinário dessas religiões. Com isso, evita-se o risco duplo de tratar os evangélicos como bloco monolítico e de fazer só deles problemas que na verdade são mais amplos. Por outro lado, um ingrediente religioso que talvez mereça, de fato, ser elencado como um componente independente, ainda que relativamente minoritário, do bolsonarismo é o messianismo-milenarismo. Sobre este último, ver Bonfim (2020).
  • 5
    Ver, por exemplo, Dean ( 2022 ); Bosworth ( 2023 ); Nunes ( 2023a ).
  • 6
    Ver Nemer ( 2021 ).
  • 7
    Ver: Laclau e Mouffe ( 2015 ).
  • 8
    Ver Nunes ( 2014 ).
  • 9
    Sobre a organização pensada à luz da ecologia, permito-me remeter o leitor a Nunes ( 2023b ).
  • 10
    Ver por exemplo: Virilio ( 1976 ); Massumi ( 1992 ); Deleuze e Guattari ( 1996 ); Esposito ( 2017 ); Safatle ( 2020 ).
  • 11
    Um sinal da força continuada de Bolsonaro, mas também de como a estrutura descentralizada da rede de empreendedores políticos pode servir para absorver e distribuir o choque de momentos de perda de prestígio, é a maneira como o fracasso do golpe longamente prometido ou insinuado, e das ações do 8 de janeiro em particular, parece ter respingado muito menos no seu principal personagem que numa série de atores secundários, principalmente os militares.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2024
  • Aceito
    21 Jun 2024
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