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Alguns dias na Nicarágua: impressões de viagem

Alguns dias na Nicarágua: impressões de viagem

Laís Abramo

Socióloga, pesquisadora do CEDEC e integrante da diretoria da Associação Latino-Americana de Sociologia (ALAS)

Em Manágua, a guerra não se sente. Apenas quando se abre o jornal ou se liga a televisão e sucedem-se notícias de mortes de camponeses perto da fronteira de Honduras, ou soldados e milicianos com menos de 18 anos. Diariamente há combates, queima de casas e plantações. Os camponeses lavram a terra com os fuzis ao ombro, por absoluta necessidade de defesa.

"Todas las armas al pueblo", é a consigna do 4? aniversário da revolução. Dirigentes e populares afirmam com insistência que a organização popular é a sua garantia fundamental, e somente graças a ela os somozistas, apoiados pelos governos norte-americano e hondurenho, não conseguiram tomar sequer um centímetro do território nicaragüense.

"Vivos ou mortos mas jamais de joelhos". A frase de Sandino, uma entre as várias escritas nos muros da cidade, ou gritadas ritmadamente, expressa o que talvez seja o mais fundamental: o envolvimento popular com o processo, a busca coletiva da soberania e da dignidade, expressas em termos de Nação, e a' disposição de defendê-las até o fim.

1983 foi definido pelo governo sandinista como o "ano de luta pela paz e pela soberania". Seus chanceleres e embaixadores percorreram a América Latina, a Europa, a ONU, em incansável atividade diplomática, tentando evitar a invasão da Nicarágua pelo exército norte-americano.

O cerco econômico, político e militar ameaça a originalidade da Revolução Sandinista e a sua insistência em buscar um caminho próprio na construção de uma nova sociedade. "Não alinhamento, pluralismo político e economia mista" é o 10.º item do documento oficial do governo nicaragüense denominado "Os Onze Pontos da Dignidade". Dirigentes da Frente Sandinista, soldados, populares, todos falam da necessidade de manter o pluralismo partidário, as liberdades e os direitos individuais.

Em Manágua a guerra não se sente. Mas a participação e a organização da população são quase tão densas e concretas quanto o calor constante da cidade. Seria, obviamente, ilusório pensar que essa adesão seja consensual ou homogênea. Os Comitês de Defesa Sandinista (CDS), principal forma de organização de massas, são mais fortes e enraizados nos bairros populares que nos de classe média. Há partidos e organizações de trabalhadores que se opõem à Revolução. Apesar de terem direito de participar do Conselho de Estado, nenhum representante do setor privado da economia comparece às suas sessões, enfraquecendo a legitimidade do poder Legislativo e estreitando suas bases de sustentação.

Mas a vitalidade da adesão popular é inegável: uma manifestação de protesto à política intervencionista dos EUA, no dia da chegada de Kissinger a Manágua, reuniu 250 mil pessoas, 30% da população da cidade, o que equivaleria, em São Paulo, a 3 milhões de pessoas.

O nível de informação da população ê muito grande. Soldados do Exército Popular Sandinista, enquanto patrulham as ruas da cidade, ou guardam locais importantes, de quando em vez e de fuzil ao ombro, param para ler o jornal que trazem no bolso.

Todos comentavam o bombardeio às reservas de petróleo do Porto de Corinto, na costa do Pacífico. Dizia-se que fatores dessa gravidade fazem crescer a participação popular. A evacuação em 24 horas de mais de 6 000 pessoas que corriam perigo de vida em Corinto, e os milhares de fogueiras que se espalharam pelas ruas de Manágua nas noites que se seguiram evidenciam o grau de mobilização e a tragédia que significaria uma invasão americana no país. As fogueiras costumam ser acendidas nos bairros pelos "vigilantes revolucionários" nas situações de emergência. Como um símbolo do perigo e do estado de alerta, em noites como essas se espalham pela cidade, sinalizando e multiplicando o sentimento de comunidade.

"A Revolução é longa como uma gravidez e dolorosa como um parto" — estava escrito nas paredes da escola de treinamento do Exército Popular Sandinista. Na entrada, destacava-se a figura de uma moça grávida, jovem e muito bonita. Uma soldada grávida. A única diferença entre seu uniforme verde-oliva e o dos demais era que, em vez da camisa de manga curta que todos usavam, ela vestia uma bata. Como qualquer outra mulher grávida. Uma bata verde-oliva que, como a camisa de manga comprida usada nos dias de menos calor, era apenas uma variante do uniforme militar.

Aquela moça provocava uma estranha e inesperada emoção, fazendo com que a frase escrita nos muros do quartel ganhasse vida.

Na entrada, fomos recebidos por um oficial que nos explicava que aquela tinha sido a sede de treinamento de uma corporação comandada por "Tachito" Somoza e conhecida pela sua crueldade no tratamento dos presos políticos. Lugar de torturas e assassinatos. Esse oficial, no discurso improvisado com que nos saudou, dizia: "A presença de vocês é um grande reforço moral, que nos conforta contra toda tentativa de isolar-nos". Dizia também que a nossa presença, como nos antigos rituais, ajudava a lavar, a limpar aquele lugar de tão triste memória.

Em Manágua a guerra não se sente. Manágua é uma cidade muito tranqüila. Parece uma cidade do interior. Com 750 mil habitantes, um terremoto e uma guerra civil no seu passado recente, é uma cidade que não tem centro. Isso desorienta muito. Os únicos edifícios grandes são o Hotel Intercontinental, o Banco das Américas, e a fachada da Catedral, destruída durante o terremoto. Não há um centro. Em seu lugar e por toda parte, grandes descampados verdes.

Os habitantes de Manágua dormem cedo e, após as 10 horas da noite, é difícil ver mais que casais de namorados que se aproveitam da escuridão da cidade e de suas muitas áreas livres, e que não costumam ser importunados pelos vigilantes que fazem sua ronda. Fala-se na construção, dentro em breve, pelo governo revolucionário, de "motéis para pedestres". A Nicarágua é um país que, em meio à dificuldade, trabalha. E, meio à luta, vive, canta, ama, faz congressos, constrói hospitais.

A precariedade material da cidade é imensa. Os ônibus e os carros são velhos, caindo aos pedaços. Pensava em São Paulo, com seus complexos e diversificados recursos urbanos, e me impressionava que Manágua — que nem parecia uma cidade, que era muito mais rural que a periferia de São Paulo — pudesse ser a capital de um país em tamanho processo de transformação.

O processo de transformação é profundo: no campo econômico, cultural, político, moral. Apesar da guerra, da quase inviabilidade econômica do país, de todas as dificuldades e impasses presentes na tentativa de construção de uma nova sociedade, há projeto, há perspectiva.

A soldada grávida e o soldado lendo jornal. Passar uma semana em Manágua e ver apenas dois mendigos nas ruas. Apesar da imensa precariedade material do país. Em quatro anos de Revolução, graças às "Jornadas Populares de Saúde" e à "Cruzada Nacional de Alfabetização", a poliomielite, que era um flagelo nacional, foi erradicada. O índice de analfabetismo baixou de 60 para 12%. Dizem que isso teria sido impossível sem a participação popular.

A taxa de delinqüência de Manágua baixou enormemente nesses últimos anos. Nos bairros populares, durante os dias ainda ocorrem pequenos furtos: peças de roupa no varal, rádios deixados atrás de portas destrancadas. À noite, praticamente não ocorrem. Eficiência da Vigilância Revolucionária? Melhoria das condições de vida cortando pela raiz a causa mais profunda e fundamental da violência urbana? Força de um projeto coletivo que confere uma entidade, que delineia um horizonte, que abre perspectivas na vida individual das pessoas?

O soldado lendo jornal e a soldada grávida. Um membro da direção nacional da FSLN, de camiseta, um entre milhares de outros na manifestação contra Kissinger, sem qualquer aparato especial de segurança. A Revolução ainda é jovem e demonstra uma grande vitalidade. As instituições por ela criadas possuem ainda grande transparência.

Em Manágua a guerra não se sente. Mas a vontade de paz do povo nicaragüense não substitui a necessidade de se preparar para a guerra.

A Junta do Governo enviou um projeto de lei ao Conselho de Estado instituindo o serviço militar masculino obrigatório. Nova fonte de atrito com a Igreja, para a qual ninguém deve ser obrigado a pegar em armas para defender uma ideologia que pode não ser a sua.

Por outro lado, a "Associação de Mulheres da Nicarágua Luiza Amanda Espinoza" lutou, enfrentando a discordância da Junta, para que a possibilidade de ingressar ao Serviço Militar fosse estendida, em caráter voluntário, também para as mulheres.

A soldada grávida na escola do Exército, mais que impressão de sacrifício, transmitia uma imagem de integração e de um direito conquistado. Na Nicarágua a luta pela igualdade das mulheres exige profunda transformação das relações sociais e da moral. A participação das mulheres na luta de libertação foi muito importante, e nesses quatro anos elas têm assumido papel de destaque em quase todos os setores da vida nacional. E hoje, quando o processo social básico é o da defesa — inclusive armada — da Revolução e da soberania nacional, a possibilidade de nele participar parece ser fundamental para a construção da nova identidade feminina.

Essa foi a explicação que consegui encontrar para o fato de ver tantas mulheres, inclusive grávidas, alistando-se no Exército. E isso em uma situação em que alistar-se pode significar ser chamada a combater no dia seguinte.

Villa Venezuela é um bairro pobre de Manágua, igual a muitos outros. Passamos uma noite conversando com moradores, procurando entender o que eram os CDS, a Vigilância Revolucionária, as Milícias Populares, o que estava sendo construído em termos de organização de base e de estruturas de participação popular.

A Vigilância Revolucionária é uma atividade voluntária, organizada em cada bairro pelos CDS. Consiste em patrulhar a cidade à noite, para "defender a Revolução". Vigiar as possíveis ações dos "contra", atos de agressão e sabotagem. Os vigilantes não andam armados ("nossas armas são nossos olhos e ouvidos"). Circulam pelas ruas do bairro e, se encontram alguém em "atitude suspeita" chamam a polícia. Disseram que a simples existência da Vigilância previne muita coisa. Perguntei o que era considerado "atitude suspeita" (a indeterminação, a infinidade de possibilidades presentes no termo me pareceram muito perigosas). Carros rondando uma rua, alguém descarregando pacotes em alguma casa, uma concentração de gente estranha ao bairro. Isso não poderia limitar a liberdade individual? Disseram que não, que as pessoas podem andar, conversar, reunir-se, fazer festas, não havia qualquer restrição desse tipo. Perguntei então se não havia quem se sentisse limitado em sua liberdade e pela atuação da Vigilância. Disseram que sim, mas que estes "deveriam ter algo a temer" (aí senti um frio na espinha — lembrei do "alguma ele fez" tão típico dos tempos mais negros da nossa ditadura). Disseram também que, muitas vezes, os que se sentiam atingidos discutiam a questão no próprio CDS e assim se resolvia o problema.

Evidentemente as respostas dadas, e uma certa impaciência que crescia à medida que as perguntas eram feitas, não satisfizeram. A inquietação permaneceu e o problema é grave: as grandes contradições que podem surgir entre a necessidade de defesa da Revolução e a manutenção das liberdades políticas, coletivas e individuais. Ainda que se trate de uma Revolução que as tenha erigido como valores fundamentais e que em nenhum momento tenha institucionalizado o paredão.

Villa Venezuela é um bairro pobre. À primeira vista poder-se-ia confundi-la com uma entre tantas favelas brasileiras. Seus moradores não se distinguiriam dos milhares de deserdados existentes nas nossas cidades, trabalhadores, migrantes, empregadas domésticas, desempregados.

Mas apenas à primeira vista. As casas são de madeira e as roupas, humildes. Mas a expressão do rosto é diferente, assim como a sua fala. A altivez, a dignidade, a capacidade de expressão, o grau de informação sobre a situação do país. Porém, o que mais impressiona é a aparência das ruas de terra. Os espaços vazios entre as casas, a largura das ruas, a jardinagem, a cuidadosa "urbanização" em meio è precariedade — obra dos próprios moradores organizados.

A aparência física de Villa Venezuela era, muito mais que somente isso, uma evidência de que na Nicarágua o povo está tomando nas mãos o próprio destino. Em uma situação de grande escassez material, está conseguindo garantir os seus direitos, evidenciar sua diferença em relação às coisas e aos animais e, ao lado da participação nas grandes questões nacionais, ter uma aparência saudável, viver em lugar decente, não andar no meio do lixo.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1984
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