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A loucura condenada

A loucura condenada

Lia Junqueira

Advogada e presidente do Movimento de Defesa do Menor

"Sou um jovem de apenas 22 anos. A minha certeza é a morte.

Para vocês nada tenho a oferecer. Também, vocês nem sabem que eu existo!"

H.R. (paciente)

Em junho de 1983, após vários debates sobre o manicômio, propus ao secretário da Justiça realizar em caráter voluntário, porém com autonomia, um trabalho com o objetivo de dar assistência jurídica aos interessados, visando à humanização do sistema. Cinqüenta anos após sua fundação, o manicômio judiciário de São Paulo não apresentava um resultado que justificasse a sua existência.

Ao entrar pela primeira vez no casarão, construído no início do século, senti um "arrepio" frente à própria construção, feita com base em modelos norte-americanos e europeus, cuja segurança máxima havia sido a maior preocupação dos arquitetos. Suas paredes são de tal maneira espessas que o calor do sol jamais atingirá seu interior. É um ambiente tumular, programado para congelar a alma de todos que lá habitam.

Como primeira advogada de defesa dos internos a entrar na instituição, fui por todos recebida como se me esperassem há muito tempo e, sem nenhuma dificuldade, consegui semear esperanças àqueles que só tinham como expectativa a morte. Naquele primeiro dia, a população era de 680 pacientes e o diretor ansiosamente esperava que fosse reduzida para 520, calculada então a população ideal. Ao sair, em dezembro de 1983, deixei uma população de 418 pacientes e, considerando as internações havidas, 380 pacientes foram retirados daquele presídio-hospital.

Já no primeiro mês de trabalho foi fácil concluir que não existe método aplicável que possibilite a humanização de uma instituição total. Por si só, para se manter fechada, ela é anti-humana. Toda alternativa imaginável é a busca de manter a cadeia calma, evitando que os pacientes fujam. Com isso, todos que trabalham nesse tipo de instituição, desde o atendente até o médico e diretor, são antes de mais nada carcereiros. Todos trabalham em prol da instituição, e quanto mais perfeita ela se nos apresenta, mais opressora será.

Manicômios, FEBENS, presídios, sanatórios, leprosários — são todos iguais na sua essência, são todos desumanos e repressores, não podendo ser diferente, pois a sua filosofia é manter seres humanos fechados, sem liberdade de agir, pensar e participar do seu programa de vida, pois inexiste expectativa de vida. O que conta é a obediência às normas estabelecidas, sem sequer haver uma preocupação em questioná-las, pois o menor questionamento é considerado insubordinação, tendo sempre como resposta o castigo.

Na companhia do Diabo Loiro

Quem tem como proposta a defesa dos direitos humanos não pode compactuar com a existência dessas instituições. Chegando pela primeira vez no manicômio, fui logo observada pelo "Diabo Loiro", que me sabendo advogada de defesa se ofereceu para me mostrar todos os pátios e pacientes, se dizendo "dono da cadeia e respeitado", razão pela qual eu poderia ficar tranqüila, na sua companhia teria a mais absoluta segurança. Assim conheci os cantos do presídio-hospital, cantos estes que alguns funcionários jamais pensaram conhecer.

Naquele dia, ao passar no corredor de celas, encontrei 30 pacientes. Dois deles, o Adil e o Miguel, estavam lá há mais de 15 anos. Ao terminar a longa visita fui alertada por alguns funcionários de que o "Diabo Loiro" era o paciente mais perigoso do manicômio, que tinha matado a própria mãe e jamais fora perdoado pelo pai, que não o visitava.

Ao examinar o prontuário do Hairton ("Diabo Loiro"), constatei que as informações dos funcionários não eram verdadeiras. Na verdade, ele havia matado um rapaz numa briga entre duas turmas de rua quanto tinha 18 anos, mas o mito criado em torno de sua figura tinha uma base real. Quatro anos antes do crime, seu pai fora intimado a comparecer à delegacia porque Hairton estava andando com "más companhias". Nessa ocasião, sua mãe, que tinha um problema cardiológico bastante grave, faleceu. A partir desse episódio, Hairton sofreu um trauma que resultou num problema psicológico e, aos 18 anos, ao cometer o homicídio, foi considerado não-responsável, recebendo não uma condenação mas uma medida de segurança com a devida internação no manicômio judiciário.

Esta estória reflete uma realidade bastante comum no manicômio judiciário. Os pacientes não são conhecidos pelos próprios nomes e sim pelo crime que cometeram, sendo que quanto mais grave o delito mais perigosos são considerados e, assim, mais respeitados.

A essa altura, percebi claramente a visão equivocada do médico brasileiro Franco da Rocha, que, no final do século passado, foi o primeiro a preocupar-se em separar os doentes mentais criminosos dos não-criminosos. Não faz sentido separar o doente mental que cometeu algum delito dos outros doentes mentais, pois, ou se é criminoso e, então, obrigado a cumprir a pena imposta, ou se é doente mental com direito a ser tratado como tal. Nesse momento, comecei a tomar providência para formar um grupo de estudos com o objetivo de montar um projeto com a proposta de acabar com o manicômio judiciário.

Foi assim que chegou ao manicômio um grupo formado de psicólogos, cientistas políticos, uma antropóloga, uma socióloga, uma diretora de teatro e estagiários de várias áreas, que, antes, nunca haviam participado de trabalhos nesse tipo de instituição. Essa "invasão" de intelectuais no manicômio judiciário teve o apoio de todos os pacientes e, nesse momento, a instituição começou a ser vista e analisada pelas mais variadas referências.

Suzana Delmanto, psicóloga, fazia grupos com os pacientes do "fundão", aqueles que dificilmente conseguiriam fazer com que seus recados chegassem ao conhecimento da direção da casa. Esta mesma psicóloga atendeu várias vezes o pai do Hairton. Ele deixou de se sentir responsável pela morte da mãe e passou a fazer projetos para voltar a viver na companhia do pai que, ansiosamente, esperava por esse dia. Hoje, após um recurso ao Tribunal de Justiça, Hairton espera seu alvará de soltura, que chegará a qualquer momento.

Rutinéa de Moraes, atriz e diretora de teatro, conseguiu que os pacientes escrevessem uma peça teatral que, após vários ensaios, já se encontrava em condições de ser encenada, com apresentação programada para o dia 15 de dezembro de 83.

O (cientista político) Edson Passetti, a (socióloga) Vera, a (antropóloga) Beatriz, a (psicóloga) Rosa, a Marta e a Ângela Cristina faziam grupos e entrevistas com os pacientes na tentativa de montar o projeto. Eu revirei todos os prontuários, ouvi todos os pacientes e também os atendentes. Conseguimos móveis para mobiliar uma sala onde trabalhávamos, doados pelo Banco Itaú. Este espaço funcionava como uma "zona franca", cujas chaves ficavam sob os cuidados dos pacientes. A janela da nossa sala foi apelidada de "janela do papa", tal o número de pacientes que permanecia na sua frente.

O fim do castigo e das celas

O compromisso assumido com os pacientes nos fazia trabalhar de 10 a 12 horas por dia, de segunda a sexta-feira. Na despedida de sexta-feira sempre deixávamos os pacientes grudados nas janelas com um aspecto triste mas com esperança de um novo encontro na segunda-feira.

Durante os seis meses que lá permanecemos não houve nenhum homicídio nem fuga e as celas foram desativadas. Num dia do início do mês de agosto, um visitante levou alguns vasilhames para servir água aos pacientes nas celas, pois estes tomavam água na latrina. Nessa ocasião, juntamente com o dr. Aloísio, o diretor, resolvemos tirar os pacientes das celas. Foi feita uma portaria proibindo o castigo e o uso de celas, pois sentimos que elas, por mais sofisticadas que sejam, não devem existir para uso do ser humano.

Tivemos o apoio total de dois grandes humanistas, o dr. JoséGaspar Gonzaga Francischini, juiz corregedor, e o dr. Paulo Salvador Frontini, procurador geral da Justiça. Os juizes auxiliares da Vara das Execuções e os membros do Ministério Público sempre estiveram presentes quando por nós solicitados. Sempre que houve alguma tentativa de uso de cela por parte dos opressores ou qualquer desrespeito aos direitos dos pacientes, e não conseguíamos controlar a situação, com um simples telefonema tínhamos a presença dessas autoridades garantindo o nosso trabalho.

O manicômio passava por um momento onde a esperança residia em cada canto. Todos os dias recebíamos pelo menos um alvará de soltura. Porém, nem sempre era com alegria que nos despedíamos daquele que saía em liberdade. Como se sentir feliz frente ao Lourenço, o "Funfa", que dera entrada naquela casa aos 18 anos? Sua fotografia no prontuário nos mostrava um jovem bonito como são os jovens dessa idade, mas o homem que nós estávamos libertando era um velho desdentado, enrugado, de cabelos brancos, que viveu naquele casarão 30 dos seus 48 anos! Para quem e para que estamos libertando o "Funfa"? Falar em família, depois de manicomiado 30 anos?

Só nos restou uma questão naquele momento. O Estado tem direito de manter o ser humano preso, em cumprimento de pena ou medida de segurança, e abandoná-lo ao envelhecimento, deteriorando-o a ponto de não mais se reconhecer? Os visitantes de cadeia jamais conseguem enxergar a sutileza com que os direitos são traídos.

Essa situação dos presos de hoje não diz respeito somente aos 20 anos de arbítrio que vivemos. Essa situação diz respeito à história da humanidade, em que sempre um pequeno grupo criou leis com o objetivo de subjugar a grande maioria, para através de um controle rígido proteger sua própria integridade.

Já estávamos no início de dezembro, o projeto praticamente concluído, quando fiz denúncias a respeito de tráfico de drogas existente no manicômio e do uso constante de remédios impregnantes e de eletrochoques. Nossas denúncias tinham o apoio dos juizes da Vara das Execuções e dos pacientes e atendentes do manicômio.

Mas nem todos estavam conosco. Uma farmacêutica que produzia e comercializava creme de beleza dentro da instituição, apoiada por alguns funcionários, reagiu contra a desativação das celas e nos queria fora de lá.

Os interesses do arbítrio

Aproveitando a denúncia, juntamente com um médico, foram à presença do secretário da Saúde e solicitaram a nossa saída. O secretário nem percebeu que aquela comissão era composta por um número insignificante de pessoas, sem nenhuma representatividade. Não percebeu que eles tinham o maior interesses em que o manicômio continuasse existindo com todas suas mazelas, para que o arbítrio e a corrupção pudessem prosperar, para garantia do bem-estar de alguns poucos funcionários. E deu uma ordem proibindo nossa entrada no manicômio.

A identidade arquivada num pacote

Não pudemos retirar os nossos pertences pessoais e não conseguimos recuperar toda a pesquisa, juntamente com o projeto elaborado. Nos restou somente solicitar ao procurador geral da Justiça a designação de um promotor de Justiça para garantir os direitos dos pacientes que naquele momento, compulsoriamente, estávamos abandonando. Foi asism que o dr. Herman Benjamin chegou ao manicômio. Hoje ele é a grande esperança daqueles que ainda permanecem presos e abandonados, vistos por uns como loucos e por outros como bandidos, mas por ninguém como seres humanos com direitos e obrigações.

Quando tiramos a esperança do ser humano nada podemos acrescentar para revivê-lo. A instituição total lhe tira tudo, não só a esperança. Ao ser internado, ele é despojado de suas roupas e vestido com as imensas vestimentas da instituição. A impressão que se tem é de que sua identidade fica arquivada naquele pacote; seus poucos pertences pessoais são guardados num departamento, para só lhe serem devolvidos um dia, se de lá sair.

As largas roupas o impedem de perceber as condições do próprio corpo, se engordam ou emagrecem não podem notar. O espaço ocupado é sempre o mesmo, do pátio para o dormitório e vice-versa, sendo que no pátio caminha sempre em círculo. Não tem destino o seu eterno caminhar. Os muros altos não permitem que se aviste a linha do horizonte e o pedaço do céu é sempre o mesmo. A inexistência de espelhos impede o acompanhar do próprio envelhecer.

Não somos responsáveis pelos caos

Nós, que somos contra a pena de morte, não temos consciência de que esses homens são condenados por nós à pena de morte lenta.

Os 380 pacientes que deixaram o manicômio durante o segundo semestre de 1983 não modificaram a sociedade que os manteve presos por tantos anos, para a sua própria salvaguarda. Como eles sempre nos colocavam: "Se o Brasil está desorganizado nós não somos responsáveis, pois não participamos dos grandes projetos brasileiros".

Se fosse possível contar a história de vida de cada paciente talvez percebêssemos como somos cruéis e injustos. Criamos seres malditos e amaldiçoados e os escondemos, unicamente para não convivermos com as nossas testemunhas de acusação. Jamais saberemos qual é a essência da alma daqueles pacientes. Azar nosso!

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    31 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 1984
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