ARTIGOS
O STF e a agenda pública nacional: de outro desconhecido a supremo protagonista?
Joaquim FalcãoI; Fabiana Luci de OliveiraII
IProfessor e diretor da Escola de Direito do Rio de Janeiro da FGV
IIProfessora do departamento de sociologia da Universidade Federal de São Carlos
As relações entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e a sociedade têm se intensificado à medida que o tribunal passa a decidir cada vez mais sobre questões relevantes ao dia a dia dos cidadãos. Com a criação da TV Justiça e a expansão das redes sociais, a garantia das liberdades de expressão e de informação e a criação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), intensificaram-se o interesse e o conhecimento de segmentos da população acerca do STF, assim como a presença deste na mídia.
A presença do STF na mídia vem crescendo consideravelmente nos últimos anos, como podemos observar pelos dados no Gráfico 1. Analisando as páginas eletrônicas de notícias1 1 Foram consultadas as páginas eletrônicas da Folha ( www.folha.uol.com.br/), da Veja (veja.abril.com.br/) e de O Globo (oglobo.globo.com/). , assim como o jornal impresso Folha de S. Paulo, constatamos que, do período de 2004-2007 para 2008-2011, o número total de notícias sobre o tribunal quase dobrou, aumentando em 89%. E se considerarmos apenas o ano de 2012, o volume de notícias é ainda maior, sendo 1.603 na página eletrônica da Folha e 3.338 em O Globo2 2 Utilizamos o termo de busca "STF" dentro do intervalo temporal de 01/01/2012 a 17/10/2012. , volume que se deve em grande parte ao julgamento da Ação Penal 470 (conhecida como o caso "mensalão").
Estamos cada vez mais distantes do final da década de 1960, quando o então ministro do STF, Aliomar Baleeiro (1967) chamava a atenção para o estado de ignorância e desconhecimento da sociedade e da opinião pública brasileira em relação ao Tribunal.
Um dos loci nos quais mais se têm encontrado a sociedade e o STF é na interpretação constitucional, isto é, na disputa e produção do sentido exigível da Constituição, convertida agora, mais do que nunca, em espaço público (Habermas, 1997) e arena decisória (Falcão, 2006). Um dos resultados desta intensificação é a ampliação do conceito de intérprete da Constituição, indo mais além do próprio STF e dos demais intérpretes formais, isto é, daqueles que, por deterem um saber técnico, são elencados por lei como partícipes habilitados no processo decisório jurisdicional como o juiz, o advogado e o procurador, por exemplo.
O STF tem o monopólio da interpretação exigível, mas os intérpretes não seriam mais apenas aqueles que detêm uma habilitação profissional para fazer valer essa exigibilidade, mas todos os envolvidos na tarefa de dar vida à Constituição, o que inclui os cidadãos (Häberle, 2002). Numa democracia, todos são potencialmente cada vez mais intérpretes da Constituição, sendo variáveis a qualidade, o grau de conscientização e os diferentes modos e finalidades de participação na interpretação.
A multiplicação dos intérpretes decorre da necessidade de expansão quantitativa e aprofundamento qualitativo da democracia. A participação dos cidadãos na interpretação da Constituição é tão importante quanto nas eleições, nos plebiscitos, ou nos processos de formulação e implementação de políticas públicas3 3 Sobre a participação dos cidadãos na interpretação da Constituição no processo de formulação e implementação de políticas públicas, ver Chaves (2012). . Os cidadãos, os agentes políticos, a mídia, as entidades da sociedade civil, atuariam, assim, como forças produtivas da interpretação, como pré-intépretes da Constituição (Mendes, 2002, p. 9).
Esses pré-intérpretes são de múltiplas naturezas, com múltiplas competências e diferenciada participação na disputa do sentido constitucional. Não nos interessa aqui fazer uma tipologia dos procedimentos e dos intérpretes constitucionais. Basta assentar que, de uma maneira ou de outra, conscientemente ou não, nas democracias contemporâneas deliberativas, os cidadãos participam cada vez mais da interpretação constitucional. Eles não detêm poder coercitivo, mas detêm dois outros poderes: (a) de infl uenciar, provocar, informar e criticar a produção da interpretação coercitiva pelo STF, isto é, o poder da influência difusa e (b) de aplicar sua própria interpretação constitucional em seu dia a dia até ser essa interpretação confirmada ou revertida pelo STF, isto é, o poder da interpretação rotineira.
A evidência da participação dos cidadãos como pré-intérpretes da Constituição fica mais palpável quando admitimos que o STF e os cidadãos brasileiros estão inseridos numa relação, além de jurídica e política, também comunicativa. Assim, entendemos STF, cidadãos e a sociedade em geral como sujeitos que emitem mensagens, agem e reagem a mútuos estímulos comunicativos (Ferraz Júnior, 1990). A interpretação constitucional, à medida que sentidos antagônicos da Constituição estão em disputa, é quase sempre uma arena comunicativa.
Partindo do argumento da intensificação das relações comunicativas entre STF e cidadãos, entre STF e opinião pública, buscamos explorar fatores potencialmente explicativos desse fenômeno e mensurar em que medida a sociedade conhece o STF, acompanha e legitima a atuação do tribunal. Para isso, o artigo se divide em duas partes distintas.
Na primeira, com um viés histórico qualitativo, identificamos os fatores que poderiam ajudar a explicar a recente intensificação das relações entre STF e sociedade; trata-se de fatores de estratégias comunicativas, que se alocam na interseção entre a dogmática e sociologia jurídicas, da ciência política e da comunicação. Na segunda, com um viés quantitativo, indagamos como a população brasileira percebe e reage à presença do STF no cenário público nacional. Para discutir essa questão nos valemos de dois levantamentos quantitativos de opinião pública (surveys). O primeiro, de âmbito nacional, entrevistou 1.400 brasileiros que têm a partir de 18 anos de idade, com foco no conhecimento do STF4 4 Os dados foram coletados em pesquisa realizada pelo CJUS (Centro de Justiça e Sociedade) da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro, entre os dias 04 e 20 de fevereiro de 2011. Foram entrevistadas 1.400 pessoas com idade acima de 18 anos nas áreas urbanas de todas as regiões do país. A amostra seguiu o perfil da população brasileira, de acordo com gênero, idade, classe socioeconômica, e situação de trabalho (população economicamente ativa ou não), conforme os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD 2009). Disponível em: http://direitorio.fgv.br/cjus/projetosandamento/stf-op. . Buscamos mensurar o quanto a população conhece o STF e o que sabe sobre o tribunal em termos de suas funções.
O segundo levantamento consistiu em 1.200 entrevistas com usuários da internet e leitores de jornais e de portais de notícia (aos quais nos referiremos tão somente como internautas), nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, com foco na percepção desse público acerca do Poder Judiciário e das decisões do STF sobre a liberdade concedida a Cesare Battisti, o reconhecimento da união homoafetiva e a autorização para a realização da "marcha da maconha"5 5 Os dados foram coletados em pesquisa realizada pelo CJUS em parceria com a Hello Research. A pesquisa foi realizada entre os dias 14 e 20 de julho de 2011. Foram entrevistados 1.200 cariocas e paulistas, acima de 18 anos, seguindo o perfil de distribuição por gênero e classe socioeconômica nas duas cidades, de acordo com dados do IBGE (Censo 2000 e PNAD 2009). Metade deste contingente de entrevistas foi realizada face a face, em pontos de fluxo das duas cidades. A outra metade foi feita com pesquisa digital, via internet. .
Nosso interesse em relação a esse segundo survey está em entender a legitimidade que o público que acompanha o noticiário político6 6 A opção por focar no público que procura se informar e acompanha o noticiário político semanalmente se deu à medida que nosso interesse não era mensurar conhecimento, mas sim entender a reação do público à participação do STF na esfera política. Assim, o público alvo é aquele que acompanha minimamente os acontecimentos políticos do país. E o critério adotado para determinar tal público foi o tempo de navegação na internet (ao menos 2 horas semanais) e de leitura do noticiário político, de blogues ou de páginas eletrônicas sobre política (ao menos uma vez por semana). Embora limitada a duas capitais do país, a pesquisa fornece indícios relevantes sobre o posicionamento do brasileiro acerca da participação do STF na esfera política. atribui à participação do STF no processo político ao decidir acerca de questões polêmicas.
Como argumentam diversos autores, entre os quais Murphy e Tanenhaus (1968), a posse de legitimidade pública é central para a manutenção do poder dos tribunais. Aplicando os pressupostos da teoria da legitimidade aos tribunais, esses autores argumentam que o Judiciário é excepcionalmente dependente de legitimidade pública, porque tem poucos meios institucionais para assegurar o cumprimento de suas decisões7 7 Como afirma Hamilton et al. (2003, p.470) "o Judiciário não tem infl uência nem sobre a espada nem sobre a bolsa". . E, uma vez que goze de legitimidade, há a presunção de que suas decisões, mesmo as impopulares, serão aceitas e respeitadas. Os tribunais também dependem de legitimidade pública para não serem tomados como mais um entre outros poderes políticos; tal legitimidade permite aos cidadãos distinguir entre as decisões dos ministros da Suprema Corte e as decisões dos outros poderes políticos (Easton, 1975; Gibson e Caldeira, 1992).
Uma relação comunicativa
A relação comunicativa do STF com os cidadãos é um processo contínuo. Para fins analíticos, pode iniciar, por exemplo, quando o STF, como sujeito-emissor, envia mensagens aos cidadãos que, como sujeitos-receptores, as captam. Em seguida, os cidadãos reagem, enviam mensagens e passam a ser sujeitos emissores. O STF capta tais mensagens como sujeito receptor. Não se trata, pois, de relação de mão única, nem estática. A relação comunicativa é um processo interativo e temporal, isto é, histórico, de múltiplas ações e reações, sequenciais ou concomitantes. Um diálogo de perguntas e respostas, como preferiria Ferraz Júnior (2010).
A mensagem-ação do STF e a mensagem-reação dos cidadãos podem ser de diversas naturezas. A mais importante mensagem-ação do STF, embora não única, é a decisão jurisdicional. A mais importante mensagem-reação dos cidadãos, embora não única, é a legitimação da decisão.
Como temos observado, por exemplo, no recente julgamento acerca das cotas raciais ou da lei de ficha limpa, as múltiplas reações dos cidadãos podem vir a infl uenciar o próprio STF em suas futuras decisões jurisdicionais. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 342/2009 de autoria do deputado Flávio Dino (PCdoB/MA), a qual propõe novos critérios de escolha de futuros ministros e nova duração para seus mandatos, e a PEC 3/201 de autoria do deputado Nazareno Fonteneles (PT/PI), a qual propõe a limitação dos efeitos da própria interpretação constitucional isto é, da própria competência do STF , são alguns exemplos de como as múltiplas reações dos cidadãos podem vir também a influenciar outros intérpretes da Constituição e a estimular os legisladores a mudá-la. De ambas as maneiras, as mensagem-reação dos cidadãos afetam a legitimação pública do STF8 8 Página eletrônica da Câmara Federal. .
As mensagens originadas do STF decorrem dos múltiplos papéis que ele pode exercer na relação comunicativa. Enumeramos quatro principais para nosso argumento.
Primeiro, o sujeito emissor é o ministro do STF enquanto agente político que produz decisões jurisdicionais. Essas decisões são produzidas e comunicadas dentro dos autos, no exercício e dentro dos limites legais, e podem ser escritas ou orais: liminares, votos, despachos etc.
Segundo, o sujeito emissor é o STF enquanto instituição (em geral o plenário), que também toma decisões e envia mensagens diferentes daquelas dos votos individuais dos ministros, normalmente, como resultado de uma votação no exercício de seu dever constitucional como instituição e também dentro dos autos.
Em ambos os casos, as mensagens emitidas são de conteúdo técnico-jurídico e estritamente reguladas, inclusive quanto à forma, periodicidade, linguagem, publicidade e mesmo suporte comunicativo, a saber, o Diário Oficial da União.
Terceiro, o sujeito emissor é o ministro, que atua profissionalmente, mas fora dos autos, ao enviar múltiplas mensagens técnico-interpretativas, doutrinárias e argumentativas por meio de livros, revistas, artigos, opiniões, palestras e conferências.
Por fim, o sujeito emissor é o ministro que atua como indivíduo ao expressar opiniões jurídicas ou não , mas agora fora dos autos. Lembremos que a Constituição exige, além do notável saber jurídico, reputação ilibada. E essa reputação que deve ser entendida como um dever a ser cumprido antes, durante e depois de ele tomar posse do mandato de ministro do STF , se consubstancia em atos, fatos e imagens, captadas principalmente pela cobertura da mídia do dia a dia da Corte e se expressa no interesse por seus ministros. Diz respeito, por exemplo, à personalidade individual, sua formação, sua estética, sua vida privada que se torna pública, suas relações sociais, suas preferências intelectuais e políticas sendo que a atividade política propriamente dita é proibida pela própria Constituição (Falcão, 1998).
As mensagens fora dos autos atuam mais no terreno das emoções e percepções do que da técnica e do entendimento. As manifestações emocionais são inevitáveis e cada vez mais frequentes9 9 São exemplos disso casos como a discussão entre os ministros Marco Aurélio Mello e Joaquim Barbosa, no julgamento de um habeas corpus decorrente da chamada "operação Anaconda" (Consultor Jurídico, 2008); entre os ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa ao discordarem dos argumentos utilizados ao julgar dois embargos de declaração sobre a modulação de efeitos de ADINs decididas pelo tribunal (Consultor Jurídico, 2009) e entre os ministros Joaquim Barbosa e Cezar Peluso que trocaram críticas em entrevistas concedidas a veículos de comunicação de massa (Consultor Jurídico, 2012). . Muitas vezes, sequer depende da intenção e vontade do ministro emissor se seu comportamento produz reações, interfere na resposta, nas percepções e atitudes de confiança-desconfiança por parte dos cidadãos e, assim, incide no processo de legitimação dos ministros e da própria instituição.
Por sua vez, os cidadãos, como receptores das mensagens do STF, também enviam múltiplas e diferenciadas mensagens de acordo com os papéis que exercem (estes nem sempre separáveis a não ser para fins analíticos) e podem ser basicamente: (a) as partes do processo jurisdicional, elencados pela lei; (b) os profissionais jurídicos; (c) os beneficiados indiretamente pela decisão jurisdicional, os cidadãos difusos que se enquadrariam nas hipóteses decisórias mesmo sem ter participado da lide; (d) os eleitores capazes de pressionar o Congresso em matérias constitucionais; (e) o conjunto da opinião pública.
Este é nosso arcabouço analítico, a partir daí tratamos apenas dos fatores potencialmente explicativos da recente intensificação comunicativa entre STF e sociedade. São múltiplos esses fatores que produziram um novo comportamento do STF, enquanto sujeito emissor. Além dos já mencionados pronunciamentos e comportamento dos ministros fora dos autos, temos a criação da TV Justiça, a implantação da agenda temática e a criação do CNJ.
Esses fatores alteraram a estratégia comunicativa do próprio STF com os meios de comunicação de massa. A nova estratégia não chega a se constituir num ativismo comunicativo ou midiático, mas pelo menos se distancia do argumento que o ministro Carlos Thompson Flores, presidente do STF entre 1977 e 1979, utilizava para justificar "este desconhecido", ou seja, "a aversão dos ministros a qualquer tipo de publicidade". Afirmava, então, o ministro que tal desconhecimento
[...] não deve ser debitado, apenas, a um possível desinteresse ou descaso dos juristas e historiadores pátrios, tendo como consequência a escassa literatura sobre o órgão máximo da Justiça brasileira; grande parcela cabe, também, à própria Corte, em razão das características que pautaram, sempre, a atividade de seus ministros, avessos a qualquer tipo de publicidade (Flores apud Lens, 2011, p. 22).
Um movimento contrário a essa aversão à publicidade, que era então dada como natural e até necessária à liturgia do cargo, tentava estimular em um dos pré-intérpretes a mídia uma maior difusão das decisões judiciais votadas no plenário e nas turmas do STF, movimento este que se intensificou na década de 1980. O ministro Xavier de Albuquerque, durante sua presidência no tribunal, na década de 1980, chegou a convocar um encontro com proprietários de jornais e jornalistas, a fim de estabelecer um acordo que visava aproximar o STF da opinião pública (Oliveira, 2012). O ministro dizia, nessa convocação, que a nação não poderia mais suportar o distanciamento existente entre a opinião pública e o Poder Judiciário e propunha resgatar o STF "das páginas mais modestas da imprensa para as mais destacadas e condizentes com a sua importância institucional". (Albuquerque apud Oliveira, 2012, p. 128).
Um representante dos jornalistas se referiu ao encontro como um "marco histórico e necessário: a aproximação do STF com a Nação e com o povo brasileiro" (Oliveira, 2012, p. 128). O ministro Xavier de Albuquerque estaria convidando a imprensa a preencher o espaço vazio provocado pelo distanciamento entre o STF e o cidadão, distanciamento em parte dado pela ausência de um vínculo direto de representatividade entre estes e aqueles.
O Estado de S. Paulo publicou em 14 de abril de 1982 notícia que elogiava essa iniciativa:
A pretensão do ministro Xavier de Albuquerque não consiste em transformar a atividade do Tribunal em manchete jornalística; o que lhe parece oportuno é prestar contas do funcionamento da Corte [...] a fim de que o povo se aperceba da importância de que se revestem as decisões votadas no plenário e nas turmas do STF importância que cresce de significação quando se busca reconstruir a ordem jurídica demolida em dez anos de governos autoritários, que se autoconferiram o poder de baixar atos de exceção cuja apreciação foi vedada ao Judiciário, derrogadas as garantias constitucionais que distinguem em toda parte o exercício da magistratura (apud Oliveira 2012, p.128).
A TV Justiça
Um momento decisivo desse movimento de aproximação entre STF e mídia foi a criação da TV Justiça (Lei 10.461, de 17 de maio de 2002), por iniciativa do próprio tribunal. O canal, que iniciou suas atividades em agosto daquele mesmo ano, por decisão pessoal do então presidente ministro Marco Aurélio Mello, transmite ao vivo as sessões do plenário do STF e revolucionou as relações do STF não somente com a mídia, mas, por meio dela, com a própria opinião pública.
Além de noticiar as ações que dão entrada no STF, de ter uma programação voltada à explicação de questões tra-tadas nos principais processos, de divulgar o currículo e as atividades dos ministros, a TV Justiça transmite também programas de interesse jurídico-social e aulas de Direito. O canal é administrado pela secretaria de comunicação social do STF, com o auxílio de um conselho consultivo, e tem como objetivo principal, de acordo com texto veiculado em sua página eletrônica, "ser um espaço de comunicação e aproximação entre os cidadãos e o Poder Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Advocacia".
Sobre a necessidade de dar maior publicidade às atividades do STF, o ministro Marco Aurélio de Mello assim se posicionou:
Pedagogicamente, a Carta preceitua, no inciso IX do artigo 93, que "todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes", norma da qual se extrai ser regra a publicidade desses procedimentos, correndo à conta da exceção a reserva do conhecimento e existência dos atos processuais. Essa publicidade, porém, não é apenas aquela oficial, relacionada com a circunstância de os julgamentos serem públicos e acessíveis a todos, nem aquela ligada à publicação dos atos no Diário da Justiça; abrange também a divulgação, de maneira geral, de notícias sobre atos e julgamentos não cobertos pelo segredo de justiça, sobressaindo, assim, o relevante papel das estações de rádio, da televisão e dos jornais. Sim, o acesso de toda a população brasileira aos trabalhos do Judiciário, Poder ao qual cumpre precipuamente preservar a paz social e a segurança jurídica, pressupõe a atuação da mídia. Contudo, diante de eventuais dificuldades ocasionadas pelo inevitável jargão que acompanha todas as profissões, é imprescindível, para que esse objetivo seja atingido, que os operadores do Direito magistrados, membros do Ministério Público, defensores públicos e advogados coloquem-se como interlocutores privilegiados, já que dominam as matérias, muitas vezes extremamente técnicas e por isso áridas ao leigo, com a finalidade de explicitar, em verdadeira e impositiva prestação de contas, os acontecimentos forenses, a valia dos atos que compõem a rotina da Justiça nacional. É tempo de aproximar-se não o povo do Judiciário, mas este, daquele, o que só se concretizará, efetivamente, com a total transparência do que vem sendo realizado neste Poder (Mello, 2001, p. 4).
Lemos (2005) nota que essa estratégia é bem diferente daquela adotada pela Suprema Corte norte-americana, uma vez que esta busca manter um maior distanciamento da mídia. As sessões em que os justices deliberam não são abertas ao público, por exemplo. Mas esse distanciamento não é absoluto, pois, como a maior parte das questões com as quais lidam as supremas cortes são complexas e muito técnicas, o público depende em grande parte da mídia para compreender essas decisões, que traduz o jargão jurídico para a linguagem comum. Assim, o sucesso da comunicação das cortes com o público, passa primeiro pela relação destas com a mídia (Staton, 2010). Staton (2004) constata que, no ano de 2004, mais de 70% dos tribunais constitucionais na Europa e nas Américas produziam comunicados de imprensa em que anunciavam resoluções-chave jurisprudenciais10 10 Segundo Staton (2004), dos países analisados, os que produzem comunicados de imprensa são: Albânia, Áustria, Azerbaijão, Bielorrússia, Bolívia, Bósnia-Herzegovina, Brasil, Canadá, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, França, Alemanha, Honduras, Hungria, México, Paraguai, Peru, República Dominicana, Romênia, Eslovênia, África do Sul, e Estados Unidos. Além desses países, a Corte Europeia de Direitos Humanos, Corte Interamericana de Direitos Humanos e Corte Internacional de Justiça também produzem comunicados. Os que não produzem são: Argentina, Chile, Croácia, República Checa, Espanha, Irlanda, Itália, Panamá, Portugal e Eslováquia. Com relação a Bulgária, Dinamarca, Estônia, Islândia, Israel, Polônia, Rússia e Turquia, o autor não conseguiu levantar informações suficientes para classificar em um dos grupos. .
A produção de informação para a mídia favorece a circulação e recepção, pelo público em geral, das decisões das supremas cortes.
O STF, além de produzir comunicados de imprensa, disponibiliza, na página eletrônica do tribunal, notícias e informações voltadas para o grande público, além de possuir perfis em redes sociais como twitter e veicular decisões via TV Justiça e Rádio Justiça.
A agenda temática
Outro ponto que intensificou recentemente a comunicação entre STF e sociedade foi a organização da agenda temática. Com a Constituição de l988 e o término da função do Ministério Público como gatekeeper do STF, foi ampliado, por meio de ações diretas de inconstitucionalidade, o acesso a esse tribunal. Com isso, a sociedade civil organizada passou a ter voz no STF. Logo no início da década de 1990, o ministro Sepúlveda Pertence já afirmava a mudança da situação do tribunal em comparação aos anos da década de 1960. "Estamos cada vez mais longe da imagem de bons velhinhos do Supremo" (Pertence apud Oliveira, 2012, p. 143). Nessa direção, afirmava-se em matéria veiculada em O Estado de S. Paulo, em 1990:
O fato de estar julgando ações de inconstitucionalidade movidas por diferentes setores da sociedade faz com que os ministros, segundo Pertence, sintam-se mais por dentro do cotidiano do país. O STF já declarou inconstitucional, depois da posse de Collor: a MP 190, que suspendia os aumentos salariais em dissídios coletivos, o decreto 99.300, que reduzia os salários dos funcionários públicos em disponibilidade e suspendeu, na última quarta-feira, o recesso dos parlamentares, impedindo a decisão do senador Nelson Carneiro, de devolver a LDO ao governo, sem aprovação do Legislativo (apud Oliveira, 2012, p. 143-4).
O STF foi progressivamente ganhando relevância no cenário político nacional, o que justificou até mesmo a utilização do termo "supremocracia", por Oscar Vilhena Vieira, para referir-se à autoridade do tribunal em relação às demais instâncias do Judiciário e em detrimento dos demais poderes da República.
É difícil pensar um tema relevante da vida política contemporânea que não tenha reclamado ou venha a exigir a intervenção do Supremo Tribunal Federal. Já foram decididas, ou encontram-se na agenda do Tribunal, questões como: pesquisa com células-tronco, quotas nas universidades, desarmamento, aborto (anencéfalos), demarcação de terras indígenas, reforma agrária, distribuição de medicamentos, lei de imprensa, lei de crimes hediondos, poder da polícia de algemar, direito de greve, etc (Vieira, 2008, p. 451).
Essa relevância qualitativa tem o suporte dos dados quantitativos. Como demonstra Falcão et al. (2011)11 11 Falcão et al. (2011, p. 22) dividem os processos em três tipos de competência, em três personas do STF: constitucional, ordinária e recursal. Em 1988, havia 4.721 processos na corte recursal, 5.310 na corte ordinária e 65 na constitucional. Em 2009, a distribuição era de 9.880 na corte recursal, 14.557 na ordinária e 1.653 na constitucional. , em 1988, a quantidade anual de processos era de 10.096 e, em 2009, esse número saltou para 76.090.
Para entendermos a relevância da pauta temática temos que levar em conta que o Judiciário é poder reativo: só pode entrar em ação e decidir sobre determinado tema quando acionado pelas partes. Mas, uma vez que determinada questão chega até o STF, quando entra na pauta para ser julgada? Como o STF decide o que e quando julgar, ou seja, como a pauta das sessões é organizada e decidida? Quais os critérios que determinam a entrada ou não de um processo na pauta de julgamento? Essa questão tem suscitado diversos questionamentos e debates12 12 Sobre o tema, ver Dimoulis e Lunardi (2012). A principal crítica desses autores é a de que "na atualidade, o regimento interno do STF e a legislação não estabelecem prazo vinculativo: o relator e a presidência do STF exercem o poder de determinar a pauta conforme critérios pessoais, não explicitados e imprevisíveis". , visto que mais do que o eventual impacto comunicativo, o poder de agenda, de definir a pauta, é um dos principais momentos de exercício do poder (Abramovay, 2012).
Esse poder de pautar é dividido entre relator e presidente do STF. Dita o regimento interno do tribunal que o relator do processo solicite ao presidente data de julgamento (art. 21, seção X). De acordo com o artigo 13, III do regimento, é da competência do presidente do STF "dirigir-lhe os trabalhos e presidir-lhe as sessões plenárias, cumprindo e fazendo cumprir este Regimento" (STF, 2012, p. 27).
Assim, à medida que os ministros finalizam suas relatorias, enviam-nas para a secretaria, que as coloca em pauta. Às vezes, por ordem de chegada. Outras vezes um ou outro ministro, ou a própria Presidência, a pedido de uma ou outra parte, pede prioridade. Às vezes, usa-se o critério legal de prioridades, como nos casos previstos no artigo 145 do regimento: habeas corpus e extradição, por exemplo13 13 "Art. 145. Terão prioridade, no julgamento do Plenário, observados os arts. 128 a 130 e 138: I os habeas corpus; II os pedidos de extradição; III as causas criminais e, dentre estas, as de réu preso; IV os conflitos de jurisdição; V os recursos oriundos do Tribunal Superior Eleitoral; VI os mandados de segurança; VII as reclamações; VIII as representações2; IX os pedidos de avocação e as causas avocadas" (STF, 2012, p. 101). . Outras vezes, o próprio Poder Executivo, ao avaliar sobretudo as consequências de planos econômicos e de decisões de maior impacto financeiro para o Tesouro Nacional, faz chegar formal ou informalmente à Presidência do tribunal as eventuais consequências jurídicas e políticas de se apressar ou de se retardar um julgamento.
Até recentemente, na maior parte das vezes, inexistia maior preocupação com a eventual conveniência e oportunidade da decisão, com o eventual timing político da decisão do STF, ou com o impacto da interpretação constitucional além das consequências nas partes processualmente envolvidas. A agenda era uma decisão discricionária da Presidência, que detém ampla margem de liberdade. Esta não era exercida de maneira estratégica e parece ter permanecido como rotina burocrática até a gestão do ministro Nelson Jobim (2004-2006), que modificou esta dinâmica. Normalmente, a inclusão na pauta para julgamento era decidida pela secretaria da Presidência, sem um critério pré-definido, ou então pela relevância das teses jurídicas em questão, a pedido de um ou outro advogado ou ministro. Jobim começou a utilizar outro critério: selecionar para integrar a pauta da sessão, dentre os processos já conclusos para julgamento na secretaria, aqueles que corresponderiam ao momento político-jurídico, sendo que teriam prioridade os casos em que houvesse maior expectativa ou demanda da opinião pública. A partir daí, os sucessivos presidentes buscaram maior sintonia entre agenda do STF e a agenda da opinião pública.
O relatório "Fortalecendo o sistema das Nações Unidas: as Nações Unidas e a sociedade civil", coordenado por Fernando Henrique Cardoso, inicia sublinhando a importância da opinião publica para as decisões dos governos no século XXI: "A opinião pública tornou-se um fator chave influenciando ações e políticas governamentais e intergovernamentais" (ONU, 2004). Esse fenômeno é inevitável e decorre do aprofundamento em todo o mundo tanto da democracia deliberativa local quanto da expansão global. Com isso, temas de interesse direto da cidadania ganharam um novo incentivo na pauta do STF, o que contribuiu ainda mais para intensificar as relações comunicativas do tribunal com os cidadãos14 14 Nesse sentido, a iniciativa do ministro Nelson Jobim abriu caminho para maior participação da opinião pública na interpretação constitucional. .
Ainda no que se refere à agenda temática, mais recentemente, em 2012, o ex-presidente do STF, o ministro Ayres Britto, causou controvérsia ao revelar seu desejo de julgar semanalmente um caso relevante até a data de sua aposentadoria no tribunal. Um dos ministros teria dito, segundo a Folha de S. Paulo15 15 Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/46766-stf-resiste-a-pressa-de-ayres-no-mensalao.shtml. que "não é prudente colocar na pauta uma final de Copa por semana".
O Conselho Nacional de Justiça
Para fechar esta primeira parte, não podemos deixar de mencionar um fator que indiretamente intensifica a comunicação do STF com a opinião pública: a criação do CNJ e a consequente ascensão ao STF das demandas por moralidade e eficiência na administração da justiça. Explicaremos melhor:
Antes da criação do CNJ, as questões concernentes à administração judicial não costumavam chegar ao STF e, quando chegavam, diziam respeito a uma só causa e a um só tribunal, isto é, elas só chegavam ao STF como questões individualizadas, de interesse de um juiz, de um cidadão ou de um tribunal. Agora, chegam como questões sobre a administração judicial enquanto política pública.
Antes, a repercussão, não somente jurídica, mas também comunicativa ou midiática, da decisão do Supremo era restrita e de interesse apenas das partes. Mas, com o CNJ, o STF ganhou competência constitucional recursal para rever as normas que regulam o sistema de administração judicial em seu todo, como, por exemplo, normas que estabeleceram teto para os salários dos juízes, acerca da proibição de nepotismo, de controle cotidiano da moralidade dos tribunais e dos magistrados. Essas questões são hoje de grande interesse da opinião publica e de crescente impacto político e orçamentário.
Embora não tenha "inundado" o STF com recursos, o CNJ deu maior visibilidade à presença do STF na opinião pública como "decisor último" e gestor do sistema de administração da justiça estatal (Falcão et al., 2011)16 16 "[...] de 2005 a 2009, o STF recebeu um número relativamente pequeno de casos envolvendo o CNJ: 485, ou seja, apenas 0,1% das 420.975 ações que chegaram ao Supremo neste período" (Falcão et al., 2012, p. 52). Outro dado importante é que, entre 2005 e 2011, foram apenas 32 Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI) nas quais o CNJ era o requerido. .
Essa visibilidade chegou a um momento culminante quando das discussões acerca da competência concorrente do CNJ para investigar juízes17 17 ADI 4.638, ajuizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) contra Resolução 135 do Conselho Nacional de Justiça, no que se refere à uniformização de normas relativas ao procedimento administrativo disciplinar aplicável aos magistrados. . Essa discussão teve grande repercussão na mídia e ganhou até mesmo status de trending topic em redes sociais (Falcão, 2011) mais um indício da intensificação da relação comunicativa entre tribunal e cidadãos, num movimento de aproximação.
Esses três recentes fatores TV justiça, agenda temática, e Conselho Nacional de Justiça , intencionalmente ou não, acabaram por constituir uma nova e ampliada comunicação entre o STF e a sociedade, entre seus ministros, a mídia e cidadãos.
Os brasileiros e o conhecimento do STF
Sobre a intensificação das relações comunicativas entre STF e o cidadãos, eis nossa primeira pergunta: quanto os brasileiros conhecem sobre o STF? Quando se faz essa indagação uma preocupação é pensar como mensurar tal conhecimento.
Há uma crítica aos estudos que abordam o conhecimento que as pessoas têm a respeito das altas cortes a partir de questões abertas acerca da lembrança de fatos e de dados específicos18 18 Ver, por exemplo, Gibson e Caldeira (2009, p. 430). . Gibson e Caldeira (2009), por exemplo, concluíram que questões abertas subestimam a extensão em que pessoas comuns conhecem a Suprema Corte norte-americana.
Neste estudo procuramos, porém, tratar o conhecimento a respeito do STF a partir de uma estratégia mista de pesquisa, que utiliza questões fechadas e abertas sendo que, nestas últimas, tivemos o cuidado de abordar o conteúdo do que os entrevistados sabem sobre a instituição e não fatos e dados específicos que lembram.
Ao serem perguntados se conheciam ou já tinham ouvido falar sobre o STF, a maioria dos entrevistados respondeu afirmativamente à questão. Sendo que, quanto mais alta a escolaridade, a renda e a classe socioeconômica, maior o conhecimento declarado. Os homens também tendem a conhecer mais o tribunal do que as mulheres, e os moradores dos grandes centros urbanos, um pouco mais que os moradores das localidades do interior.
Mas ter ouvido falar e saber da existência do STF não implica necessariamente a aproximação que intencionava o ministro Xavier de Albuquerque na década de 1980, no sentido de que a população se apercebesse da importância das decisões do tribunal. Então, para os brasileiros que afirmaram conhecer o STF, perguntamos se eles saberiam dizer o que faz esse tribunal, ou seja, qual é a função dessa instituição.
Mais da metade dos entrevistados não soube responder a essa questão. Com isso, apesar da maioria dos brasileiros já ter ouvido falar do STF (69%), somente uma minoria deles (45% dos 69% que já ouviram falar, ou seja, cerca de 30% do total de entrevistados), de fato, tem ideia do que é e o que faz o STF. Quanto maior a escolaridade, a classe socioeconômica e a renda, maior o conhecimento dessas funções. Há também uma grande diferença de gênero: a maioria dos homens soube citar alguma função do tribunal, o que não ocorreu entre a maioria das mulheres entrevistadas.
Considerando apenas os entrevistados que declararam conhecer o STF, a função mais citada foi a de freio e contrapeso (checks and balances): 19% dos entrevistados apontaram que cabe ao STF controlar e julgar os atos do Legislativo e Executivo19 19 É importante pontuar que as respostas à pergunta foram registradas de forma aberta, em seguida, foram agrupadas de acordo com a divisão em três funções: (1) Controla/fiscaliza atos do Legislativo e do Executivo; (2) É a última instância do Judiciário; (3) Julga a constitucionalidade das leis/decide se leis são válidas. A vasta maioria citou apenas uma função, sendo que os poucos entrevistados que citaram mais de uma função foram contabilizados de acordo com a primeira menção. . A segunda função mais mencionada foi a de última instância do Poder Judiciário, lembrada por 16% dos entrevistados. E, em terceiro lugar, sua função de revisão judicial (judicial review), com 10% dos entrevistados declarando que a principal função do tribunal é decidir se as leis são válidas e estão de acordo com a Constituição. Essas respostas constituem na verdade a essência da interpretação constitucional.
Para os entrevistados que disseram conhecer o STF, perguntamos ainda o quanto confiam no tribunal. As pessoas de escolaridade e renda alta, pertencentes à classe A, são as que mais confiam no tribunal20 20 Os níveis de escolaridade foram classificados da seguinte forma: (a) alta: ensino superior completo ou mais; (b) média: ensino médio completo ou superior incompleto e (c) baixa: até ensino médio incompleto. Os níveis de renda foram classificados da seguinte forma: (a) alta: mais de 8 salários mínimos; (b) média: mais de 2 e até 8 salários mínimos e (c) baixa: até 2 salários mínimos. Para a classificação de classe econômica, utilizamos o Critério Brasil (CCEB) da Associação Brasileira de Estudos Populacionais (Abep). . Também os entrevistados que conhecem alguma função ou atividade da instituição (ou seja, sabem o que o STF faz) confiam mais no tribunal do que aqueles que não conhecem. Ou seja, quem conhece o STF, confia mais nele.
Esses dados indicam que, apesar do STF continuar sendo "o outro desconhecido" para a maioria da população, existe sim um percentual significativo de brasileiros que conhece a instituição e, entre estes que conhecem alguma função do tribunal, há maior confiança e valorização dele. Os dados sugerem que, também no Brasil, é aplicável a conclusão a que chegaram Gibson e Caldeira (2009, p. 437) acerca da Suprema Corte norte-americana, de que conhecer a corte é valorizá-la ("to know the court is to love it").
Indica um corpo considerável de conhecimento e pesquisa de diversos países (Estados Unidos, Alemanha, Canadá e África do sul, por exemplo) que um maior conhecimento das instituições judiciárias está associado a uma predisposição maior de atribuir legitimidade institucional a elas. E, falando especificamente da Suprema Corte norte-americana, Gibson e Caldeira (2011) afirmam que os cidadãos que mais a conhecem são os mais propensos a apoiá-la. Muitas vezes o maior conhecimento da instituição está associado com maior atenção dada a ela e, concomitantemente, com maior exposição aos símbolos legitimadores tipicamente ligados aos tribunais. E esses símbolos implicam aprender que a mais alta corte é diferente de outras instituições políticas, e, portanto, muitas vezes mais digna de confiança, respeito e legitimidade para decidir sobre questões de importância na agenda pública do país. Mas, ao mesmo tempo, chamam atenção para o fato de que seria razoável supor que uma maior exposição ao Judiciário e à Suprema Corte estaria associada a uma visão mais realista de como funcionam os tribunais e como decidem os juízes. Atentar para isso seria entender que os juízes têm poder discricionário quando tomam decisões, que estes fazem muito mais do que aplicar mecanicamente a lei aos fatos, que há sim a influência de seus valores pessoais nesse processo. Portanto, os juízes não seriam tão diferentes dos demais atores políticos. Mas os autores concluem que, paradoxalmente, as evidências disponíveis indicam que um maior conhecimento da corte está associado a uma visão menos realista de como os tribunais realmente funcionam (Gibson e Caldeira, 2011, p. 201). Os autores concluem, assim como em estudos anteriores (Gibson e Caldeira, 1992; 2009) que o processo de conhecimento da corte é um processo de aprendizagem social em que os cidadãos passam a entender e valorizar o papel desempenhado pelo Judiciário no sistema político do país.
É importante frisarmos aqui que conhecimento é diferente de experiência os cidadãos podem conhecer o Judiciário a partir de informações que recebem sobre esse ator (principalmente através da mídia) e podem conhecer a partir da experiência que têm com o Judiciário, ao utilizarem os tribunais (seja como autores de ações ou réus em processos).
Estaria também esse processo de aprendizagem em curso no Brasil? Nesse trabalho, nos limitamos à variável "percepção": optamos por explorar essa questão a partir da percepção de um público mais bem informado internautas que acompanham o noticiário político pelo menos uma vez por semana, via jornais impressos e/ou blogues e páginas eletrônicas de notícias. E, considerando que as pessoas nos grandes centros urbanos tendem também a conhecer o STF ligeiramente mais que os moradores do interior, elegemos dois grandes centros urbanos para a pesquisa: Rio de Janeiro e São Paulo, nos quais entrevistamos 1.200.
O STF e agenda pública nacional
Como esse público bem informado percebe a presença do Poder Judiciário em geral, e mais especificamente do STF, no cenário político brasileiro? A primeira pergunta aos entrevistados foi se alguma notícia ou acontecimento envolvendo o Poder Judiciário chamou a atenção deles nos últimos meses. Do total de entrevistados, 38% afirmaram não ter visto notícia que tenha chamado sua atenção nesse tema. Para os que afirmaram terem visto notícia que chamou sua atenção, solicitamos que a descrevesse (pergunta com resposta espontânea e aberta).
A decisão do STF mais citada foi a que reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo (união homoafetiva), mencionada por 23% dos entrevistados; em seguida, aparece a que concedeu liberdade ao italiano Cesare Battisti, citada por 13% e, em terceiro lugar, a que autorizou as passeatas conhecidas como "marchas da maconha", mencionada por 7%.
Ou seja, as notícias que mais marcaram os entrevistados, no que se refere ao judiciário, foram diretamente relativas à atuação do STF. Note-se que outras notícias foram intensamente veiculadas nessa época, como a demissão do então ministro Palloci, acusado de corrupção, e o suposto assassinato de Eliza Samudio por Bruno, goleiro do Flamengo. Considerando também as menções vagas a decisões recentes da corte, 45% dos entrevistados citaram casos em que o STF é emissor principal da notícia. Assim, podemos afirmar que a agenda pública brasileira, em temas relativos ao Poder Judiciário, vem sendo ditada preponderantemente pelo STF.
O poder de agendamento da pauta do STF se refl ete na mídia que exerce sobre o leitor grande impacto, ao optar por noticiar e dar destaque a alguns fatos e não a outros. De acordo com a teoria de agendamento (agenda setting), para explicar, por exemplo, porque um caso técnico como o do italiano Cesare Battisti ganhou tamanha repercussão, enquanto outros casos do STF como, por exemplo, a decisão sobre a impossibilidade de estados concederem isenção ou redução de ICMS, que colocou fim à guerra fiscal, ou ainda aquela sobre as novas regras para o pagamento de aviso prévio proporcional a trabalhadores demitidos não chamaram a atenção dos entrevistados, teríamos que observar o destaque dado a estes temas pela mídia.
Uma simples pesquisa na página eletrônica de um jornal de grande circulação nacional, a Folha de S. Paulo, entre janeiro a julho de 201121 21 Pesquisa realizada no dia 19/03/2012. , ajuda a lançar um pouco de luz sobre o assunto. A busca pelos termos de pesquisa listados abaixo, associados a STF, resultaram nos seguintes números: Cesare Battisti: 130 notícias; união homoafetiva: 40 notícias; marcha da maconha: 40 notícias; aviso prévio proporcional: 7 notícias; ICMS: 5 notícias.
Os três temas de maior destaque na fala dos entrevistados foram os que resultaram em maior número de notícias. É evidente que este é apenas um dado preliminar e parcial, e seria necessário realizar pesquisa mais ampla e detalhada sobre o tema, que não é o foco do presente artigo. Aqui chamamos apenas atenção para a necessidade de considerar os possíveis e potenciais efeitos entre o poder de agendamento do STF, a correspondente cobertura da mídia e a percepção da população.
Em seguida, solicitamos aos entrevistados que classificassem seu conhecimento e familiaridade com relação às atividades do STF. Cerca de 57% declararam conhecer bem ou conhecer um pouco a atuação do tribunal e 43% declararam conhecer só de ouvir falar ou não conhecer nada das atividades da instituição. Novamente, pessoas de escolaridade, renda e classe econômica mais alta são as mais familiarizadas com o STF.
Depois desse primeiro mapeamento sobre acompanhamento de notícias a respeito do judiciário e da justiça em geral, entramos no tema de interesse específico da pesquisa, perguntando aos entrevistados se eles acompanharam ou não a decisão do STF que reconheceu a união estável para casais do mesmo sexo (união homoafetiva). A maioria dos entrevistados respondeu afirmativamente 86%. Sendo que as pessoas com maior escolaridade e renda e as que conhecem o STF (ou seja, declararam que o conhecem bem ou um pouco) foram as que mais disseram ter acompanhado essa decisão. A maioria dos entrevistados declarou que concorda com essa decisão do STF, sendo que as pessoas de maior escolaridade e renda tendem a concordar mais do que as de baixa escolaridade e menor renda. A religião também aparece como fator de distinção: as pessoas que não seguem uma religião concordam mais com a decisão do que as pessoas que seguem alguma religião. E quem conhece o STF tende a concordar mais com a decisão do que quem não conhece. Os mais jovens também concordam mais.
Indagados sobre a quem deveria caber a decisão em casos como este, 40% dos entrevistados apontam a própria população, via plebiscito. Na sequência, o mais legitimado para decidir seria o STF, indicado por 24% dos entrevistados. Sendo que, entre os que conhecem o STF, ele é o mais citado como principal responsável para esse tipo de decisão (41% das menções para o STF frente a 30% para plebiscito). Não podemos, pois, afirmar que existe uma percepção social de que o STF está interferindo com competências do Poder Legislativo.
O terceiro colocado, no que concerne à responsabilidade para este tipo de decisão, é o Legislativo, com 18% das indicações e, por último, aparece o Executivo, com 11%. Os dados mostram que, entre os Poderes instituídos, o Judiciário, via STF, é quem goza de maior legitimidade decisória para casos com esse teor.
Outra decisão do STF de grande repercussão, ocorrida em 8 de junho de 2011, foi conceder liberdade ao italiano Cesare Battisti. Perguntamos aos entrevistados se eles acompanharam ou não essa decisão e 63% responderam afirmativamente22 22 Vale notar que caso muito parecido com o de Cesare Battisti ocorreu em 2007, quando o Supremo julgou pedido de extradição do padre colombiano Olivério Medina, considerado ex-integrante das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), e julgou o processo extinto, concedendo assim liberdade a Medina. Na página eletrônica da Folha de São Paulo, em uma busca por notícias na qual se relacionou STF a Olivério Medina, no intervalo de tempo correspondente ao ano do julgamento (janeiro a dezembro de 2007), encontraram-se apenas 2 notícias, muito menos que as 130 encontradas em uma busca na qual se relacionou o STF a Cesare Battisti (janeiro a julho de 2011), na mesma página. . Há uma diferença expressiva quando se considera o gênero dos entrevistados: os homens declararam ter acompanhado mais do que as mulheres. E quanto mais alta a classe socioeconômica, a renda e a escolaridade, maior a proporção dos que declararam ter acompanhado.
Indagados sobre sua opinião com relação a essa decisão do STF, a grande maioria se declarou contrária, discordando do tribunal. A desaprovação da decisão do STF é grande entre todos os perfis, de classe, renda e escolaridade, mesmo entre os que conhecem o tribunal.
O STF ratificou decisão anterior do então presidente Lula, a de negar a extradição de Battisti para a Itália. O entendimento vencedor foi o de que esse caso era um "ato de soberania nacional" que não poderia ser revisto pelo STF. A reprovação da população à decisão do STF pode ser lida também como uma reprovação à decisão do ex-presidente Lula, sendo ainda um indício de reprovação à recusa do STF em se posicionar e decidir.
Por fim, exploramos junto aos entrevistados a decisão do STF do dia 15 de junho de 2011, que autorizou a realização das passeatas que reúnem manifestantes favoráveis à descriminalização das drogas, conhecidas como "marchas da maconha". A grande maioria dos entrevistados declarou ter acompanhado essa decisão do tribunal (80%), sendo que homens declararam ter acompanhado mais do que as mulheres; quem conhecia o STF mais do que quem não conhecia, e quem tem escolaridade alta, mais do que os de escolaridade mais baixa.
A opinião da maioria dos entrevistados é contrária à decisão do Supremo: 51% dos entrevistados declararam que discordam dessa decisão. No entanto, essa questão é bastante polêmica; com relação a ela, há uma divisão mar-cante entre entrevistados de diferentes gêneros, idades e orientações religiosas. Metade dos homens concorda com liberação das passeatas, enquanto apenas 32% das mulheres concordam. A maioria dos jovens de até 24 anos concorda, enquanto maioria dos entrevistados acima de 24 discorda. A maioria dos religiosos discorda, enquanto a maioria dos que não segue religião concorda com decisão.
A posição também é divergente entre pessoas de baixa e alta escolaridade e renda quem tem escolaridade e renda mais alta tende a concordar e quem tem renda e escolaridade mais baixa tende a discordar.
Essa decisão do STF traz à tona uma discussão mais ampla: a da legalização das drogas. Na opinião de 39% dos entrevistados (que acompanharam a decisão do STF sobre a marcha da maconha), a decisão sobre a legalização das dro-gas deveria se dar via plebiscito. Em segundo lugar, como o mais legitimado a decidir sobre legalização das drogas aparece o STF, com 19% das menções, tecnicamente empatado com o Legislativo, com 18%. E, por fim, o Executivo, com 13% das menções. Outra vez, nesse caso, não podemos afirmar se existe a percepção de interferência, ainda que legítima, do STF no âmbito do Congresso Nacional.
Considerando essas três decisões do STF (união homoafetiva, caso Cesare Battisti e marcha da maconha), notamos que duas delas foram contrárias à opinião da maioria dos entrevistados. Trata-se da função contramajoritária; esse tribunal algumas vezes precisa decidir contra a opinião pública. Nesse cenário, para que ele possa manter sua legitimidade mesmo após decisões contrárias aos desejos da população e da opinião pública e, mais ainda, garantir que suas decisões sejam respeitadas e seguidas, é preciso que a corte tenha uma espécie de "estoque" de confiança pública, ou lealdade. Gibson et al. (2003) afirmam que as atitudes mais importantes dos cidadãos comuns com relação a instituições como as supremas cortes têm mais a ver com lealdade institucional do que com o desempenho dessas instituições em casos específicos.
Tabela 1 O STF decidiu contra a opinião pública no caso Battisti e no caso da marcha da maconha, e ainda assim conta com o suporte do público sendo apontado como o mais legitimado dos Poderes instituídos a tomar decisões em casos delicados e importantes, como a união homoafetiva , e tem o mesmo nível de legitimidade que o Congresso para casos como a legalização das drogas. Notamos assim importantes indícios de que o STF goza tanto de uma reserva de boa vontade, quanto de alguma lealdade do público.
* * *
O STF continua desconhecido pela maioria dos brasileiros. Mas, desde a Constituição de 1988, passou a ser protagonista ativo no debate de questões relevantes para a agenda pública nacional e nas decisões sobre importantes políticas públicas. Sua própria estratégia de comunicação com a sociedade mudou. Quatro foram os fatores principais: a disposição dos ministros de falarem fora dos autos, a adoção da agenda temática, a criação da TV Justiça e a criação do CNJ. O STF está, assim, cada vez mais conhecido por uma parcela significativa da população, sendo que, quanto maior a renda e a escolaridade, maior o conhecimento do tribunal.
A presença cada vez maior do STF na mídia, especialmente escrita, leva ao aumento da atenção voltada para esse ator nos diversos segmentos da sociedade, sobretudo naqueles mais informados (ou seja, os que acompanham o noticiário político), intensificando dessa maneira a relação comunicativa entre o STF e a sociedade brasileira23 23 Ver Gráfico 1. .
Com isso, o STF continua desconhecido para a maioria, mas determinante na configuração da agenda pública brasileira, em especial em temas relativos ao Judiciário. Como vimos no relato de pessoas que, segundo nosso recorte, são informadas sobre política, os temas mais lembrados quando se trata da justiça são os que estão sendo debatidos e decididos no STF. Sem dúvida o STF se transformou em arena privilegiada para o debate e a decisão de conflitos e assuntos polêmicos, constituindo-se em um importante veto player.
O STF tem se destacado e se popularizado por suas decisões que interessam e impactam no dia a dia da população. É curioso perceber a repercussão que o caso da marcha da maconha ganhou, com o movimento utilizando a decisão do tribunal como legitimador de sua atuação, como fica manifesto a seguir nos cartazes e foto:
Outro ponto relevante que os dados indicam é que, quando se trata de decidir temas polêmicos, como a união homoafetiva e a legalização de drogas, os cidadãos querem ser diretamente ouvidos: instados a indicar quem deveria ser o principal responsável por decidir sobre esses temas, em primeiro lugar, respondem o plebiscito, isto é, existe uma demanda por maior participação e ampliação da democracia.
Mas quando se trata de delegar poder, o STF é o ator que goza de maior legitimidade pública entre os Poderes constituídos, com uma proximidade muito grande ao Congresso no caso da legalização das drogas.
Os dados indicam que parte considerável dos cidadãos brasileiros entende e valoriza o papel desempenhado pelo Judiciário no sistema político do país (69% dos brasileiros declararam que conhecem ou já ouviram falar do STF e 30% da população soube citar ao menos uma função do tribunal). A escolaridade é fator determinante nesse conhecimento e nessa percepção das atividades e do papel Supremo, assim como na avaliação deste. Esses dados permitem a afirmação de que, quem conhece o STF e acompanha sua atuação no cenário político, confia mais na instituição do que aqueles que não a conhecem.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Maio 2013 -
Data do Fascículo
2013